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alegado da cultura hoje, no ocidente, depois de ter ela superado o<br />
papel social da religião e da ideologia, é a economia, na versão do<br />
divulgado conflito entre cultura e mercado. Mas esse, sendo um inimigo<br />
previsível, é um falso inimigo, um inimigo a servir, antes, como conteúdo<br />
para figuras de retórica, já que, de fato, pode ser facilmente posto a<br />
serviço da cultura de uma maneira ainda mais cômoda do que a religião<br />
e a ideologia.<br />
O sinal chocante de que essa ampla domesticação da cultura,<br />
abarcando-a como um todo e nisso incluindo também — e sobretudo<br />
— a arte, já estava largamente em curso de modo insensível, e de que<br />
a crença na cultura e na arte como um bem, e algo que só pode fazer o<br />
bem além de fazer bem, já estava solidamente implantada, foi fornecido<br />
pela reação à “escandalosa” afirmação do compositor Stockhausen de<br />
que o atentado contra as torres gêmeas de New York em setembro de<br />
2001 era a maior obra de arte de todos os tempos. O atentado em si foi<br />
visto, conforme o comentarista eventual do episódio, como um marco<br />
de várias coisas: do fim do século 20; da consolidação <strong>def</strong>initiva da<br />
globalização, ao incluir em seus moldes e em sua “atitude” o terrorismo<br />
“primitivo” praticado pelo fraco; e, mais que tudo, marco da aldeia global<br />
na qual todo mundo é o quintal de todo mundo (algo que na verdade<br />
a ecologia já repetia há tempos); marco, ainda, da morte <strong>def</strong>initiva, e<br />
morte violenta, da modernidade (quer dizer, do predomínio da razão);<br />
marco do início da III Guerra Mundial; da primeira grande batalha pela<br />
descolonização mundial; da ascensão do terrorismo à posição de poder<br />
mundial contrastando a força da suposta grande, última e única<br />
potência internacional, criando-se assim uma situação assimétrica na<br />
qual o império não tem mais necessariamente a palavra final. Um marco,<br />
enfim, a indicar que nada mais seria como antes. Eventualmente, o<br />
atentado foi tudo isso ou boa parte disso tudo. Numa outra dimensão<br />
igualmente dramática, pela reação que provocou em Stockhausen e<br />
pela reação que o comentário do compositor provocou um pouco por<br />
toda parte, o atentado ao World Trade Center funcionou, indiretamente,<br />
como o primeiro grande lembrete produzido no início do milênio —<br />
depois das aparentemente esquecidas anotações de Freud sobre a<br />
cultura e seu papel na sociedade humana — de que a cultura não é<br />
apenas positividade e que assim como cada indivíduo é virtualmente<br />
um inimigo da cultura, como propôs o fundador da psicanálise, do<br />
mesmo modo a cultura — ou pelo menos a arte, como se verá adiante<br />
— é uma adversária do indivíduo e da sociedade. E esse ato terrorista<br />
lembrou, de modo ainda mais especial, que, se não a cultura, a arte, ela,<br />
é essencialmente algo de perigoso ou não é, pelo menos a grande arte. O<br />
O OUTRO LADO DA <strong>CULTURA</strong> - E A ARTE 11