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AVISO À NAVEGAÇÃO - Casa das Áfricas

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1<br />

RUY DUARTE DE CARVALHO<br />

<strong>AVISO</strong> <strong>À</strong> <strong>NAVEGAÇÃO</strong><br />

olhar sucinto e preliminar<br />

sobre os pastores kuvale<br />

da província do namibe com<br />

um relance sobre as outras<br />

sociedades agropastoris<br />

do sudoeste de angola<br />

1997


PREFÁCIO<br />

O texto que se segue não foi, na sua forma original, escrito para publicar em<br />

livro. Tem a extensão, a forma e o conteúdo que me pareceram não tanto<br />

adequados mas, dentro da condensação que me foi possível fazer, pelo menos<br />

adaptados à tarefa que me foi proposta e que lhe está na origem: a de tratar o<br />

"caso kuvale" de forma a integrá-lo num "estudo sobre comunidades e<br />

instituições comunitárias angolanas na perspectiva do post-guerra". (1)<br />

Quando me foi sugerido adaptá-lo à sua publica(c)ão em livro ocorreu-me que,<br />

fazendo-o, poderia talvez atender ao mesmo tempo, ainda que isso não passasse<br />

de um remedeio, a duas urgências e uma impossibilidade com que venho a debaterme<br />

já faz tempo.<br />

A primeira dessas urgências seria a de alargar, para além dos artigos que já<br />

escrevi (2), a publicação para o grande público dos resultados de uma pesquisa<br />

que, à razão de quatro meses por ano, venho perseguindo desde 1992. A<br />

impossibilidade é a de até aqui não ter podido investir na análise dos<br />

materiais ,mas sobretudo na redação desses mesmos resultados, o tempo e a<br />

disponibilidade necessários para dizer o que quero, o que tenho a dizer, e da<br />

forma como me parece que há-de ser. Nos intervalos do trabalho de terreno<br />

tenho-me sobretudo ocupado de funções de ensino ou de tarefas para ganhar a<br />

vida. Bolsas no exterior de que beneficiei, em Bordéus e em Lisboa, utilizei-as<br />

pare mergulhar em bibliotecas e arquivos, aproveitar contactos, produzir<br />

intervenções e escrever, precisamente, os artigos a que aludi. Fui prosseguindo<br />

a análise, bem entendido, completei o terreno, alarguei-o à Namíbia, e<br />

amadureci, sobretudo, os meus planos de exposição. Está tudo pronto, só falta<br />

escrever. E não arrisco encetar mais uma vez, já cometi antes esse suicídio<br />

operativo, seja o que fôr que é para ser de grande fôlego mas depois tem que<br />

ser interrompido a meio de um qualquer primeiro capítulo. Assim, continuo em<br />

dívida. Para com quem? Para com aqueles que me forneceram as informações e os<br />

testemunhos de que hoje disponho e para os que me ajudaram a recolhê-los. E,<br />

dentre estes, alguns não tinham obrigação nenhuma de o fazer, nem<br />

institucionalmente nem porque a sua actividade estivesse de alguma forma ligada<br />

àquilo que faço: empresários do Namibe, por exemplo, e outros amigos.<br />

Este não é nenhum dos possíveis livros que tenho para oferecer-lhes, com que<br />

quero retribuir-lhes. Sem ser um livro para especialistas da análise social<br />

também não é aquele que quero escrever para um público comum que não estará, à<br />

partida, interessado nos contornos específicos da matéria que tratarei e que<br />

vou ter, por isso, que tentar atingir através da escrita capaz de seduzi-los.<br />

Este livro quando muito poderá, se conseguir ser mais do que um honesto<br />

relatório, entender-se como uma proposta circunstancialmente dirigida a pessoas<br />

de alguma forma eventualmente alerta<strong>das</strong> para as questões que me ocupam : ou<br />

porque são profissionais que devem ocupar-se de situações relaciona<strong>das</strong> com as<br />

sociedades pastoris e agropastoris, ou porque são pessoas envolvi<strong>das</strong> em<br />

interações com este tipo de sociedades no exercício da sua vida comum ou apenas<br />

por razões de vizinhança. Ou para outros cuja aten(c)ão ocorra ligada ao<br />

facto de serem cidadãos angolanos ou do mundo e do seu tempo e pronto. Não digo<br />

nada nele que tenha por menos verdadeiro ou justo, mas o que digo é escasso e<br />

austero, há questões e referências que mal afloro, outras que deixo em branco,<br />

outras que lhes passo ao lado.<br />

1


De qualquer maneira dedico-o às pessoas do Namibe, ou para aí vira<strong>das</strong>, que me<br />

têm feito confiança e me ajudaram a trabalhar. E a frequentar o Sul, razão que<br />

me é vital.<br />

Ah! ... Falta referir a segunda urgência (disse antes que eram duas). Essa,<br />

entendê-la-à quem, sem perder de vista o título do livro, Aviso à Navegacão,<br />

consumir o texto.<br />

1


INDÍCE<br />

Prefácio..........................................................<br />

Introdução - .....................................................<br />

Capítulo Pimeiro - Continuidade na mudan(c)a....................<br />

Ca. III - Sobre o desempenho socio-económico da sociedade kuvale<br />

nos últimos vinte anos ................................<br />

Cap. IV - A orgânica e as dinâmicas de um sistema de produção.....<br />

Cap. V - sobre a resolução social de um sistema pastoril<br />

Cap. VI - expressões da interacção com a realidade envolvente<br />

Cap. VII - perturba(c)ões endógenas<br />

Cap. VIII - o futuro pastoril em questão<br />

Cap. IX - esboço de um quadro de incidências aplicado a toda a<br />

mancha pastoril angolana<br />

Cap. X - integração e intervenção<br />

Conclusão<br />

Posfácio<br />

Anexos<br />

1


INTRODUÇÃO<br />

PARA A APREENÇÃO PRELIMINAR DE UMA SINGULARIDADE KUVALE...<br />

Proponho partir de duas citações. Não porque as aprecie sobremaneira mas porque<br />

introduzem, de pronto, no vivo da matéria, na singularidade de um "caso":<br />

"Elsewhere, aridity and sand made farming difficult, except for the<br />

valleys of some of the larger streams flowing down from the highlands;<br />

there, small, distinctive communities combined stock-keeping with<br />

whatever agriculture they could manage to support themselves."<br />

Joseph C. Miller, Worlds Apart: Africa's Encounter with the<br />

Atlantic in Angola, ca. 15OO-185O, Seminário Internacional de<br />

História de Angola, 1995, 22 p.<br />

"Pourtant, à cheval sur le Sud et le Centre-Angola, subsiste, résiduelle,<br />

l'ethnie Herero dont un sous-group, celui des Cuvale, va avoir le triste<br />

privilège de subir le poids de la guerre totale à une époque aussi<br />

tardive que 194O-41."<br />

René Pélissier, Les Guerres Grises, Resistence et Revoltes en<br />

Angola (1845-1941), Orgeval, 1977, 63O p.<br />

Os Kuvale são Herero, portanto, encravados na aridez e na areia, "residuais" e<br />

sobreviventes de uma guerra total. São Herero em Angola, tal como o são os<br />

Ndombe, a Norte, os Hakahona e os Dimba, a Leste, os Himba, a Sul. Estes<br />

estendem-se para além do rio Kunene, pela Namíbia, onde se misturam ou encostam<br />

aos Herero que, com os Mbandero entram pelo Botswana. Da maneira como a aridez<br />

os "encrava", e eles se encravam nela, direi abundantemente ao longo deste<br />

texto. Da sua história recente, que é a de uma recuperação consumada, referirei<br />

factos e efeitos.<br />

Os Herero de hoje provêm de populações pastoris de língua banta que terão<br />

chegado à costa ocidental da Africa, pelo Leste, a nível do paralelo de<br />

Benguela, e que, alcança<strong>das</strong> as estepes que precedem o mar, flectiram para Sul,<br />

cada vez se internando mais nas bordaduras do Deserto do Namibe e depois para<br />

Leste, até ao Kalahari.<br />

A viagem que as trouxe até aí é mais um percurso no tempo do que uma deslocação<br />

no espaço. Elas faziam parte de uma expansão bantu de cultura pastoril que<br />

quando atingiram o território do que é hoje Angola, talvez no séc. XV, durava<br />

provavelmente há mais de 1 5OO anos, desde que os seus antepassados de língua,<br />

os Bantu depois chamados de Orientais, se encontraram na costa Leste com os<br />

Nilóticos, que lhes transmitiram a cultura pastoril que por sua vez tinham<br />

aproveitado dos Cuxitas, 3 OOO anos antes. Os Cuxitas, esses, tê-la-ão recebido<br />

do Oeste, <strong>das</strong> franjas do Sahara, que entretanto secara. As mutilações<br />

1


dentárias, o sistema <strong>das</strong> classes de idade, a recusa de comer peixe, traços<br />

culturais que vigoram entre os Kuvale de hoje, remontam, tanto quanto se sabe,<br />

aos Cuxitas, por não se saber se estes também os não receberam de outros.<br />

A qualidade dos pastos, sem dúvida, a boa resposta dos animais aos recursos do<br />

meio em condições normais, a possibilidade de garantir a vida e a reprodução ou<br />

a renovação de um sistema pastoril mesmo tendo que enfrentar oito meses secos<br />

cada ano e anos de chuvas muito reduzi<strong>das</strong>, terão estado na base da fixação a<br />

partir <strong>das</strong> bordaduras do extremo norte do deserto do Namibe de populações que<br />

transportavam consigo a memória colectiva e a marca cultural, inscritas nos<br />

comportamentos e nas dinâmicas, de paisagens inegavelmente semelhantes, pelo<br />

menos à primeira vista, gazelas e zebras, por exemplo, ou capins, Schimitias e<br />

Eragrostis, do outro lado do continente. Sendo evidente a excelência dos<br />

pastos, também é possivel estabelecer ali uma gestão da água que acaba por ser<br />

a dos próprios pastos em função da água ou vice-versa: transumância, portanto,<br />

antes e agora. Muita coisa terá mudado entretanto, evidentemente, a presença da<br />

fauna selvagem e da sua intervenção no eco-sistema mudou mesmo radicalmente<br />

(ela está hoje praticamente extinta), a presença do próprio homem explicará<br />

muitas <strong>das</strong> configurações florísticas do presente, mas os termos globais da<br />

produção e da produtividade continuam a fundamentar-se numa interacção<br />

ecológica directa.<br />

Os Kuvale não serão hoje mais de 5 OOO, mas ocupam um território vasto: mais de<br />

metade da Província do Namibe. São na actualidade um povo próspero, nos termos<br />

que eles próprios valorizam: estão cheios de bois. Os seus espaços não foram<br />

praticamente, a não ser a Nordeste, teatro de incidências directas da guerra,<br />

tem havido chuva nos útimos anos, pelo menos que chega para manter o gado (até<br />

tem havido anos bons e há muito tempo que não há verdadeiramente nenhum ano<br />

mau) e, no entanto, o processo de Angola todos os anos os coloca em situação de<br />

penúria alimentar. Não conseguem trocar bois por milho. Este binómio, tanto<br />

boi-tanta fome, é mais um sinal da sua singularidade. Mas não é esta, também, a<br />

de Angola? Tanto petróleo...<br />

De qualquer forma constituem um "caso" em Angola. Analisar a sua singularidade<br />

é analisar a de Angola e haverá questões e detalhes que embora aqui apareçam<br />

referidos a eles, correspondem a problemas, e a problemáticas, que dizem talvez<br />

respeito a outros Angolanos, senão a todos.<br />

Sobre os Kuvale de ontem e de hoje não há muito material escrito. Há,<br />

evidentemente, uma vasta bibliografia sobre os Herero a partir da Namíbia, mas<br />

sobre os Kuvale e os restantes Herero de Angola só há mesmo algum material<br />

histórico, e coloco aqui alguns artigos técnicos <strong>das</strong> primeiras déca<strong>das</strong> deste<br />

século, a etnografia de Carlos Estermann, e um único, que eu saiba, trabalho<br />

científico, o de Julio de Morais, uma tese pioneira de análise ecológica,<br />

datada de 1974.<br />

O trabalho de terreno que garantiu o que a seguir exponho foi levado a cabo,<br />

intermitentemente, de 1992 a 1996, e foi possível graças a apoios oficiais e<br />

privados a que irei tentando agradecer, e prestar contrapartida, à medida que<br />

puder ir divulgando os resultados. O presente trabalho faz parte desse<br />

processo. Nele procurarei condensar o mais possível, sem entrar em grandes<br />

detalhes históricos ou etnográficos, a informação que julgo estar em condições<br />

de poder disponibilizar no âmbito de uma exposição que se pretende<br />

eminentemente pragmática e dirigida sobretudo a decididores de políticas e de<br />

acções, a agentes da intervenção e a outros sujeitos eventualmente implicados<br />

numa interacção prática com os Kuvale e, por extensão, com as sociedades<br />

pastoris e agropastoris de Angola de uma maneira geral.<br />

1


... Geográfico-ecológica<br />

Numa paisagem onde se vê o homem actuar sem procurar à partida afeiçoá-la a<br />

objectivos económicos que a alterem, onde os seus próprios interesses vitais e<br />

palpáveis passam pela utilização da paisagem tal como ela é, será difícil ao<br />

observador não se deixar envolver pela temática ecológica. Para ser mais<br />

preciso, não é só o facto de não se observarem ( a não ser talvez se se for um<br />

agrostólogo perspicaz) alterações produzi<strong>das</strong> pela presença do homem. É que o<br />

homem, aqui, pode parecer uma emanação do meio, e este poderia ser o ponto de<br />

partida para uma deriva, para um qualquer acesso de impressionismo, de delírio<br />

romântico, via certamente segura e garantida de ficar definitiva e eternamente<br />

de fora tanto da problemática que envolve este homem como daquela que envolve<br />

este meio. Mas é verdade que tudo aqui se projecta sobre um fundo ecológico e<br />

que grandes nomes ligados ao estudo <strong>das</strong> sociedades pastoris como Gulliver,<br />

Deshler, Dyson-Hudson e Jacobs, e outros classificados como neofuncionalistas<br />

umas vezes, neoevolucionistas outras, são nomes ligados ao ecologismo cultural.<br />

Aqui, de facto, a cultura não pode ser entendida fora de um quadro de<br />

interacções em que tudo quanto é exterior às pessoas, e aos grupos que as<br />

pessoas constituem, é, praticamente só, natureza accionada e condicionada por<br />

factores em que a tecnologia pouco intervém.<br />

Os terrenos são pastagens naturais, a água é a que provém de chuvas escassas e<br />

breves, a agricultura possível está sempre dependente da ocorrência da primeira<br />

chuva e da regulariade improvável <strong>das</strong> que se lhe seguirem, as águas acumula<strong>das</strong><br />

não permitem regadios nas zonas que são precisamente as <strong>das</strong> melhores e mais<br />

abundantes pastagens, a produção de cereais é sempre fortemente condicionada e<br />

aleatória. Vindo tarde, a chuva, não permitirá já a cultura do milho, talvez só<br />

permita ensaiar a do massango. Mas mesmo chegando tarde garantirá ainda assim<br />

os pastos, e mesmo escassa poderá assegurar a manutenção dos animais, a<br />

preservação dos vitelos que entretanto tenham nascido, haverá leite para eles e<br />

para as crianças, transitar-se-á para o ano seguinte sem que se tenha<br />

obrigatoriamente registado um saldo de todo negativo. Será necessário, para<br />

tanto, ter sabido agir com a ciência adequada à gestão de um equilíbrio muito<br />

precário.<br />

É esta portanto a área geográfico-ecológica que os "encrava". Ao incauto não<br />

poderá deixar de por-se a interrogação de como é possível extrair vida e razão<br />

para viver num meio assim e a evidência de que da relação que garante a<br />

sobrevivência ali há-de necessariamente resultar um homem tão diferenciado<br />

quanto o próprio meio. Ao técnico, esta mesma relação impõe, na maioria dos<br />

casos, respeito. Ao analista social, não obrigatoriamente "perito" e apressado,<br />

a impressão que prevalece é a de que para lidar com tal precariedade será<br />

preciso investir muita "ciência", ou a ciência de extrair dali o que não é<br />

precário, é mesmo melhor que alhures.<br />

... Económica<br />

Equilíbrio é a palavra chave e trata-se de um equilíbrio que vai ter sobretudo<br />

em conta a manutenção física dos animais e a produção de leite. A economia em<br />

1


presença é, realmente, uma economia do leite. A sociedade não perde, não pode<br />

perder isso de vista. Todo o trabalho desenvolvido a partir do gado bovino se<br />

desenvolve com base no pressuposto de que do leite depende precisamente a<br />

reprodução do rebanho que é não apenas a fonte produtora do leite para um<br />

regime alimentar humano que se fundamenta nele, mas também da carne que o<br />

complementa e dos excedentes que darão acesso ao aprovisionamento de cereais e<br />

outros "apports" do exterior. A criação de outras espécies animais, como a de<br />

ovinos e caprinos, dependente dos mesmos factores ecológicos, complementa a dos<br />

bois e visa, por sua vez e sobretudo, a produção de "moeda" para transacções<br />

com o exterior. É verdade que a produção destes pequenos animais, com destaque<br />

para a de caprinos, se tem revelado particularmente adequada ao comércio dos<br />

últimos anos, marcadamente episódico e envolvendo pequenos volumes de<br />

mercadoria, com comerciantes de passagem e povos vizinhos. Mas também esta<br />

circunstãncia confirma toda a importância do gado bovino nas condições de<br />

"encapsulização" económica que os últimos anos têm imposto.<br />

De facto, no certo, no verdadeiro, para além da escassa produção agrícola que<br />

as chuvas puderem garantir e de um subsidiário recurso a uma igualmente escassa<br />

produção vegetal espontânea, só se pode mesmo contar com o leite que as vacas e<br />

em casos de extrema crise as ovelhas e as cabras produzirem, com a carne que<br />

resultar dos animais doentes e débeis que não resistirem, e com a daqueles que<br />

forem abatidos, sempre a coberto de pretextos sociais reguladores, como veremos<br />

mais tarde. A pastorícia tal-qual, portanto, a relação animais/água/pastagens<br />

tendo em vista a manutenção e a reprodução dos rebanhos, a sua rodução,<br />

absorvem e polarizam to<strong>das</strong> as dinâmicas técnicas, sociais e culturais que hãode<br />

estabelecer os contornos e a especificidade do sistema. Uma questão de<br />

equilíbrio, desta forma, que tem em conta já não só as condições ecológicas e<br />

as extracções energéticas que elas garantem, mas também a gestão social e a<br />

cobertura cultural, ou ideológica, que assistem ao seu aproveitamento. A noção<br />

de equilíbrio atravessará todos os sistemas que garantem a subsistência e a<br />

reprodução do grupo humano.<br />

Quadros sociais e culturais urdidos à volta da relação com o boi e com o meio,<br />

bem como a interação entre tudo isto e o presente virá a ser, logicamente, a<br />

matéria principal deste trabalho. Retenhamos por agora que a uma economia tão<br />

estritamente pastoril não poderá deixar de corresponder uma cultura igualmente<br />

marcada pelos argumentos da pastorícia, e que esses argumentos, ou "valores",<br />

comportam expressões tão susceptíveis de entrar em choque com os da cultura e<br />

da economia envolventes e dominantes como o desprezo pela agricultura, os<br />

agricultores, os "assimilados" às dinâmicas ocidentaliza<strong>das</strong>, a repulsa pela<br />

prestação de força de trabalho a terceiros e a legitimação de entrar na posse<br />

de gado dos vizinhos. É pela via desses choques que a história moderna tem<br />

sobretudo envolvido os Kuvale. E também ela dá testemunho da sua singularidade.<br />

... e Histórica<br />

Considerada em relação à sua projecção imediata no presente, a história dos<br />

Kuvale diz sobretudo respeito àqueles eventos que na memória colectiva ficaram<br />

assinalados como "guerras", sucessivas e marca<strong>das</strong> pelos sinais da sua colocação<br />

no tempo, inevitavelmente liga<strong>das</strong> a disputas pela posse do gado: razias,<br />

contra-razias, repressões administrativas e militares, espoliações e saques,<br />

processos de desapossamento e de recuperação que trazem já em si as dinâmicas<br />

que apontam, ou poderão apontar, à renovação de um ciclo que tende a ser<br />

vicioso.<br />

1


Em termos de tratamento disciplinar esta história continua, naturalmente, por<br />

fazer, e não me cabe a mim, evidentemente, ensaiá-la sequer. Existem fontes<br />

documentais a explorar e trabalho de terreno a orientar nesse sentido e embora<br />

neste último domínio eu tenha recolhido dados que podem vir a revelar-se úteis,<br />

no que se refere a fontes escritas apenas utilizei material imediatamente<br />

consultável.<br />

Os testemunhos que obtive no terreno referem-se explicitamente à guerra dos<br />

Kambarikongolo, às do Nano, à dos Ingleses, e uma sucessão de outras guerras,<br />

Mulungu, Kapilongo, Kalute, que acabam por conduzir àquela que veio a colocar<br />

os Kuvale em situação de completa derrota e paralisação, à beira da sua<br />

extinção não só enquanto grupo sócio-culturalmente distinto e identificável,<br />

mas também física, numa grande medida: a guerra chamada Kokombola, a de 194O-<br />

41, que quer dizer a guerra geral, total, "mundial", como me foi referida por<br />

um informante escolarizado. É essa a guerra que no tempo colonial ficou<br />

conhecida como a "guerra dos Mucubais", referência que ainda hoje é utilizada<br />

nos meios envolventes.<br />

A primeira, a guerra dos Kambarikongolo, é a que em textos portugueses costuma<br />

ser designada como a guerra dos Hotentotes e corresponde à extensão pelo Sul de<br />

Angola da expansão de grupos Khoi, os Topnaar e os Swartbooi, que, a partir do<br />

que é hoje o Sul da Namíbia, se alargou para Norte, conquistando gado e<br />

pastagens aos Herero e aos Himba até à margem do rio Kunene, obrigando muitos<br />

destes últimos a migrar para o lado de Angola, e trazendo até às portas do que<br />

é hoje a cidade do Namibe, e era então a Vila de Mossâmedes, acções de razia<br />

que sobressaltaram durante largos anos todo o nosso Sudoeste. Ela obrigou<br />

inclusivamente muitos Kuvale a refuguiarem-se e a fixarem-se, nalguns casos,<br />

para além dos contornos e da escarpa da serra, com um subsequente processo de<br />

retorno à zona de serra abaixo, lento e prolongado, que parece projectar-se<br />

ainda no presente. Tenho encontrado mais-velhos Kuvale que nasceram lá e ainda<br />

hoje se vêem implicados em relações de parentesco aí urdi<strong>das</strong> na decorrência de<br />

tal movimentação circunstancial. Ela pode, por outro lado, e essa é uma<br />

hipótese a esclarecer, corresponder à citada guerra dos Ingleses. Os grupos de<br />

raziadores Khoi eram acompanhados, e por vezes enquadrados, parece, por<br />

"mestiços-ingleses" oriundos do Orange e do Cabo. Mas poderão também os<br />

"Ingleses" referidos ainda hoje ser os Alemães, 28 famílias, vindos<br />

directamente da Alemanha e que aparecem no Sul de Angola, postos aí pelo<br />

governo português, acompanha<strong>das</strong> por um lote de Portugueses saídos da <strong>Casa</strong> Pia,<br />

de Lisboa. Foram-lhes dados terrenos no Munhino e na Bibala, mas cedo<br />

desprezaram as hipóteses agrícolas para se investirem na apropriação de gado de<br />

populações vizinhas.<br />

De qualquer forma, simultaneamente a estas guerras vinham decorrendo as<br />

"guerras do Nano", acções de razia pratica<strong>das</strong> por numerosos bandos oriundos do<br />

"alto", do Nano, os Munanos, como ainda hoje são designados na região os povos<br />

do planalto interior a Norte e os Ovimbundo de uma maneira geral. Elas<br />

exerceram uma forte pressão sobretudo sobre as populações do planalto interior<br />

sul e estenderam-se até à costa.<br />

Muitas dessas guerras do Nano traziam já a marca da incidência europeia<br />

directa. Mossâmedes é sacudida em 15 de Agosto de 1848 por uma dessas guerras,<br />

tendo os pastores locais, do vale do Bero, vindo acolher-se à Fortaleza. Cedo<br />

se esclarece tratar-se antes de uma "guerra de brancos", composta por gente de<br />

Quilengues e escravos dos regentes dessa capitania e do Dombe Grande, e sob a<br />

influência de uma figura que acompanha a história da região durante largos<br />

anos: o então Major Garcia.<br />

1


Isso faz parte de um processo que haveria de estender-se até à guerra de 194O-<br />

41 e que envolve desde o início, como era de esperar, as próprias autoridades<br />

portuguesas que empregam grupos vizinhos uns contra os outros tanto em<br />

operações de razia como em perseguições, quando os povos da região são acusados<br />

de fazerem o mesmo por conta própria.<br />

Que os Kuvale "roubam" gado nunca constituiu dúvida para ninguém e são muitas<br />

as acusações que neste sentido e ao longo dos tempos vão pesando sobre eles, ao<br />

princípio designados como "Mondombes" segundo um equívoco que há-de prevalecer<br />

por muito tempo. Já nessa altura são julgados como insubmissos, rebeldes,<br />

avessos ao trabalho e sobretudo, sempre, refinados e inveterados ladrões de<br />

gado. Ao longo de toda a segunda metade do séc. XIX eles serão alvo de ferozes<br />

retaliações por parte da administração e dos colonos, chegando-se a organizar<br />

contra eles "guerras gentílicas", constituí<strong>das</strong> por 3O OOO homens recrutados<br />

para o efeito ( Silva 1971:496).<br />

Essa é mais uma marca da história que vem reflectir-se no presente. Este tipo<br />

de acções, envolvendo outros Africanos, deu curso a um movimento belicoso de<br />

razia recíproca entre populações Kuvale e Tyilengue, a noroeste do território<br />

dos primeiros, que se prolonga até hoje e que define alguns dos contornos <strong>das</strong><br />

suas respectivas implicações nas guerras actuais.<br />

Em 188O, um ex-governador do Distrito de Mossâmedes refere que no ano anterior<br />

fora enviado um ofício ao chefe do Concelho de Campangombe, proíbindo-lhe oporse<br />

à passagem de uma guerra que vinha do sertão de Benguela para guerrear os<br />

"Cubaes". Ao que o chefe responde logo a seguir para dizer que "a guerra é<br />

convocada por brancos com o sentido de guerrearem os mondombes", e que a<br />

intenção dos "convocadores da guerra" não podia ser outra senão "terem parte<br />

dos roubos que a guerra fizesse". Num outro ofício, cinco meses mais tarde, o<br />

mesmo chefe confirma: o soba de Quilengues, que foi quem comandou a tal guerra<br />

"cumprindo literalmente a ordem do Exmo Governador do Distrito (...), entregou<br />

aos europeus residentes no Concelho do Bumbo todo o gado que havia sido<br />

apreendido (...) tendo trazido apenas para as suas terras a gente prisioneira<br />

de guerra" (Almeida 188O:52-53). Um outro administrativo refere-se, também<br />

longamente, mais tarde mas reportando a mesma época, às relações entre Kuvale<br />

e Tyilengue, sendo estes, sob a regência dos então capitães-mores,<br />

sistematicamente utilizados contra aqueles ( Frazão 1946 :269). Sobre o<br />

inverso, Kuvale utilizados por autoridades ou Brancos privados para atacar<br />

outros povos, nada encontrei nas leituras que fiz.<br />

As "guerras" que vão seguir-se às do Nano, na sequência atrás apontada,<br />

reportar-se-ão já ao séc.XX e correspondem sobretudo às diligência<br />

administrativas de que os Kuvale foram sendo sucessivamente objecto até à<br />

catástrofe de 1941. Elas terão de novo e de algum modo aparecido sempre<br />

associa<strong>das</strong> a acções que envolvem grupos vizinhos,usados também, a partir daí,<br />

como tropa auxiliar. As menções a estas diligências administrativas,<br />

nomeadamente da parte de técnicos veterinários ( Sequeira 1935, p.e.) que<br />

operavam na região, é constante.<br />

A guerra de 194O-41, que é a última e a definitiva destas diligências, utilizou<br />

cerca de mil soldados a que se juntaram mais mil auxiliares indígenas, mestiços<br />

e europeus, dois aviões, um deles da aviação cívil artilhado com uma<br />

metralhadora e equipado com bombas, e um pelotão de morteiros para combater,<br />

meter na ordem, uma população Kuvale estimada num máximo de 5 OOO pessoas.<br />

Durou 5 meses, comportou execuções em massa e atrocidades contra prisioneiros,<br />

deu cobertura a saques e a pilhagens, confiscou cerca de 2O OOO cabeças de gado<br />

bovino , ou seja, estimou-se, 9O% dos efectivos totais anteriormente na posse<br />

do grupo. Fez mais de 3 5OO prisioneiros que depois remeteu às ilhas de S. Tomé<br />

1


e do Príncipe, à Lunda, onde trabalharam para a Diamang, à Damba, em Malange, a<br />

propriedades agrícolas e à Câmara Municipal de Moçâmedes. Assegurar-se-ia<br />

assim, de acordo com o comandante <strong>das</strong> operações, a sua adaptação a hábitos de<br />

trabalho e interesse pela agricultura ( Sotto-Maior 1943 e Pélissier 1977:5O9-<br />

515).<br />

1<br />

CAPÍTULO PRIMEIRO<br />

CONTINUIDADE NA MUDANÇA<br />

Toda esta sucessão de acções e de eventos colocou os Kuvale num ponto da sua<br />

história do qual o presente ainda é tributário: espoliados do seu gado,<br />

reduzidos em número, dispersos, o retorno dos que sobraram inaugurou toda uma<br />

série de estratégias de recuperação que teve que passar, nomeadamente, por uma<br />

redifinição territorial, primeiro à procura de parentes que a guerra tivesse<br />

poupado, refugiados no mais dentro dos matos ou à sombra da bandeira<br />

portuguesa, e depois com vista a um alargamento de relações e implicações de<br />

troca com outros grupos. A isto associou-se a prestação de trabalho assalariado<br />

em diversos sectores do sistema económico envolvente e a reconverção temporária<br />

e circunstancial da economia doméstica à produção agrícola para com os<br />

excededentes desta, e de acumulações monetárias, adquirir gado. Medi<strong>das</strong>,<br />

portanto, decidida e obstinadamente investi<strong>das</strong> na recuperação de uma<br />

prosperidade que de novo viesse a traduzir-se em bois. <strong>À</strong> data da independência<br />

ela estava já de alguma forma reposta. Os Kuvale já estão em pé de novo, já têm<br />

gado. Continuam a prestar trabalho assalariado mas para muitos será já só<br />

talvez quase para pagar o imposto. O investimento esforçado na agricultura<br />

correspondeu apenas a uma premência do passado. O que vai seguir-se jogará<br />

francamente a seu favor, embora também os vá envolver nas dificuldades que não<br />

pouparam nenhum Angolano.A independência política de Angola, de facto, vem<br />

trazer aos Kuvale a abertura de um período revigorante para o grupo e imprimir<br />

novas dinâmicas a este processo de recuperação, anulando o imposto,<br />

disponibilizando gado e libertando terras com a partida dos Portugueses, dando<br />

oportunidade e cobertura, inclusivamente e perante o curso que as coisas<br />

tomavam, a uma reabilitação e a uma revitalização, por razões pragmáticas, da<br />

razia, recuperada assim a oportunidade para um quadro de razões "ideológicas "<br />

que remete a uma continuidade reafirmada nas suas práticas e mesmo nos seus<br />

antagonismos.


As implicações dos Kuvale na cena político-militar do post-independência serão<br />

trata<strong>das</strong> com maior detalhe mais à frente. Os desenvolvimentos que decorreram<br />

<strong>das</strong> perturbações imediatas do sistema administrativo e económico, nomeadamente<br />

no que diz respeito à cessação do imposto e à recuperação de território e de<br />

gado, constam do que segue.<br />

Imposto, terras e gado: a libertação<br />

O imposto, instaurado na colónia de Angola em 19O7 e recorrendo, para se<br />

estender ao seu território inteiro, a todos os métodos julgados adequados,<br />

incluindo a coacção e a violência, constitui para os Kuvale, de acordo com o<br />

seu próprio testemunho, a razão mais evidente para a situação de insegurança<br />

endémica e de conflito que marcou até à guerra de 194O-41 a sua relação com a<br />

autoridade colonial.<br />

A própria guerra de 194O-41 é entendida na sequência da expansão e da<br />

implantação da lei do imposto e aparece ligada aos recenseamentos finais que<br />

lhe estiveram ligados. Recolhi testemunhos da parte de pessoas que viveram<br />

várias "guerras" ou "rusgas" até às acções que marcaram "a guerra grande": "...<br />

chamaram to<strong>das</strong> as pessoas, escreveram todos os que tinham de pagar imposto,<br />

tinham que vir todos porque essa rusga é grande, parece que todos vão acabar.<br />

Quem não pagava era buscado nessas matas onde é que estavam, quando chegavam lá<br />

onde é que os brancos concentravam, uns, que tinham sido recolhidos aí na mata,<br />

tinham que ser assassinados... Uns, que vinham para se apresentar também, eram<br />

escolhidos, alguns matavam, outros, que eles consideravam que são bons,<br />

ficavam. No Cahinde, era onde recolhiam primeiro essas pessoas para ir em S.<br />

Tomé, depois a concentração era no Virei, aí subiam nos carros que era para os<br />

levar. Uns é que foram para S. Tomé, outros é que foram mortos, outros é que<br />

voltaram aqui no Sayona, ou no Kavelokamu".<br />

Testemunhos desta natureza reconhecem que alguns incidentes, ligados a acções<br />

de razia e contra-razia, precipitaram os acontecimentos, mas entendem-nos mais,<br />

implícita ou explicitamente e às vezes de forma muito peremptória, como<br />

ocorrências vivi<strong>das</strong> por "homens de guerra", dyai, mais implicados nas suas<br />

acções e vocações de iniciados na arte da razia, que aliás se confunde com<br />

guerra - o vita -, do que numa causa colectiva à escala da dramaticidade de um<br />

momento que a sua operatividade no entanto sublinhava e "complicava" ainda<br />

mais. Nomes como o de Tyindukutu, que morreu preso na fortaleza de Moçâmedes e<br />

cujo percurso pessoal, que registei em muitos detalhes e comporta a sua captura<br />

ligada à traição de um companheiro, ocorrida em zonas mais remotas que<br />

frequentei e onde inquiri também, estarão hoje investidos de uma carga<br />

romanesca que faria as delícias e a glória de ousados produtores de fantasias<br />

que são depois consumi<strong>das</strong> e invoca<strong>das</strong> como História, mas na memória <strong>das</strong><br />

populações subsistem mais como casos de emergência social, ligados ao<br />

funcionamento regular do sistema pastoril kuvale, do que como o de "leaders" de<br />

uma qualquer resistência organizada. Ninguém cultiva a memória de uma<br />

resistência, o que subsiste é a lembrança e são os traços, ainda, de uma<br />

"rusga" final e arrasadora.<br />

Assim, quando os exílios terminaram e os tyindalatu - os desterrados- voltaram<br />

e puseram em execução toda uma série de estratégias que aos olhos da<br />

administração colonial era a confirmação do seu sucesso, entre elas ocorreu o<br />

investimento de muitos homens no trabalho assalariado de cujo rendimento<br />

extraíam dinheiro para pagar o tal imposto, imposto finalmente a todos, e para<br />

comprar bois. Encontrei quem tenha trabalhado no caminho de ferro, nas estra<strong>das</strong><br />

e outras obras como pistas de aterragem, na estiva do porto de Moçâmedes, como<br />

1


serventes da Administração e de Brancos privados, mais tade nas "pedreiras",<br />

explorações de mármore e de granito que a independência liquidou, a bem dizer.<br />

Do ponto de vista do inquérito, será interessante assinalar que, vista hoje no<br />

contexto da história dos Kuvale tal como ela é apreendida "de dentro", esta<br />

afectação ao trabalho assalariado é um lapso de tempo que o advento da<br />

independência viria a limitar a apenas duas kula's - classes de idade -: a dos<br />

homens que têm hoje mais de setenta anos e que à data dessa guerra eram jovens<br />

adultos em princípio de carreira e a seguinte, dos seus filhos maiores. Os pais<br />

dos primeiros "estiveram sempre nesta vida do gado ou envolvidos nessas guerras<br />

nossas antigas", e os filhos menores dos mesmos, que hoje se aproximam já dos<br />

quarenta anos de idade, e rapazes mais novos, já foram "libertados" pela<br />

independência. O trabalho assalariado, desta forma, é hoje encarado como a<br />

memória de uma ignomínia ligada à humilhação de 194O-4I e a sua extinção, que<br />

em meu entender é uma resultante da libertação política mas também da<br />

desestruturação global e total que ela assumiu entre nós, marca para os Kuvale<br />

o advento da recuperação por inteiro do seu estatuto de pastores económica e<br />

institucionalmente independentes, libertos também do pesadelo deprimente do<br />

imposto e prontos para retirar um benefício imediato da nova ordem em presença.<br />

Terras e gado<br />

Não inquiri objectivamente sobre detalhes ligados à "recuperação" de gado<br />

deixado por fazendeiros ou comerciantes portugueses que deixaram Angola, da<br />

mesma forma que nunca, porque o meu trabalho sempre pressupôs um contacto<br />

prolongado e a inscrever nas dinâmicas endógenas, procurei colocar indagações<br />

que pudessem ser julga<strong>das</strong> como "politicamente" indiscretas ou susceptíveis de<br />

poderem ser entendi<strong>das</strong> como capazes de servir à intervenção de quaisquer<br />

autoridades.<br />

Mas perante certas características morfológicas - pelagem, desenho <strong>das</strong><br />

armações, configurações ósseas ou cutâneas - de animais que integram os<br />

rebanhos comuns, é evidente que corre ali sangue de gado importado, não de todo<br />

diluído através <strong>das</strong> opções de cruzamentos que se terão imediatamente seguido à<br />

incorporação no gado dos Kuvale de gado proveniente <strong>das</strong> explorações dos<br />

Europeus e que, conforme dados de um relatório de 1965 (Brito 1965), somava<br />

nessa altura para cima de 25 OOO cabeças de bovinos em todo o então Distrito de<br />

Moçâmedes.<br />

De acordo com o mesmo relatório o número de "criações organiza<strong>das</strong>",<br />

empresariais portanto, era então de 99, a maior parte a Norte e ao longo do<br />

caminho de ferro, do Munhino à Bibala, e, a Sul, na zona de Campangombe. Vinte<br />

estavam inscritas na famosa Reserva do Caraculo, e exploravam sobretudo ovelhas<br />

produtoras de peles "astrakan", assunto que mereceria ser tratado com detalhe<br />

mas não aqui, evidentemente.<br />

Muitas dessas explorações estavam veda<strong>das</strong> a arame farpado e, embora no que é<br />

hoje a Província do Namibe essa ocupação nunca tivesse assumido a dimensão e as<br />

implicações que lhe estiveram liga<strong>das</strong> no planalto interior, sobretudo a<br />

Nordeste, do lado do Kamukuio, da Lola e do Kaitou, obstavam em muitos casos às<br />

dinâmicas da pastorícia, sonegando recursos e interrompendo percursos da<br />

transumância. Essas vedações foram, evidentemente, deita<strong>das</strong> abaixo ou<br />

destruí<strong>das</strong> onde era necessário passar, e algumas benfeitorias, como captações<br />

de água, aproveita<strong>das</strong> até o tempo, ou o uso que lhes foi dado, as terem<br />

1


inutilizado. Nalguns casos, escassos embora, penso, mas dos quais assinalei<br />

pelo menos um na área do Virei, onde uma bomba adquirida pelos produtores<br />

locais extrai água de um furo antigo, benefícios daí advindos ter-se-ão mantido<br />

até hoje.<br />

De qualquer maneira, tanto do ponto de vista material como do de uma<br />

subjectividade que passa pela consciência colectiva, a disponibilização da<br />

maior parte <strong>das</strong> fazen<strong>das</strong> que até à independência se vinham instalando nas áreas<br />

de exercício dos Kuvale constituiu uma recuperação territorial, e a utilização<br />

<strong>das</strong> suas áreas acompanhou o aumento evidente dos efectivos bovinos e ovinos<br />

dos últimos vinte anos. Que esses efectivos tenham sido engrossados não só com<br />

o "gado dos brancos" deixado em território kuvale mas igualmente com outro<br />

proveniente do planalto, também talvez não seja matéria para dúvi<strong>das</strong>. E se a<br />

expressão numérica desse benefício imediato actuou como um factor extremamente<br />

importante, outros factores não deixaram de entrar em linha de conta. Embora,<br />

da parte dos produtores kuvale, fosse prudente e aconselhável diluir<br />

estrategicamente esse gado no rebanho geral para prevenir eventuais operações<br />

de "contra-recuperação" nem que fosse por parte do Estado (nunca se sabe, há<br />

coisas em que o Estado pode revelar-se sempre legalista e eficiente), e nunca<br />

tenha sido considerada a hipótse de continuar a reproduzir esse gado entre si,<br />

qualidades zootécnicas de que eram portadores foram devida e sabiamente<br />

considera<strong>das</strong>. A sua aptidão para a produção de leite e a precocidade de algumas<br />

ra(c)as foram ti<strong>das</strong> em conta, bem entendido, mas também traços menos<br />

zootécnicos mas que a cultura pastoril valoriza: "... esses bois, uns<br />

aproveitaram para aumentar o leite, davam mais, e boi de raça não custa para<br />

crescer, não demora. E o 'berro' desses bois está muito bom, nós gostamos dos<br />

bois que berram bem, sim, o berro do boi - kuvandala - tem muita importância".<br />

A independência, portanto, reabrindo imediatamente horizontes geográficos,<br />

políticos e económicos, e apontando a projecções que referirei mais adiante.<br />

Tudo bem, assim. Ou nem tanto. Alguma coisa tinha que trazer dificuldades.<br />

A marca inversa dos tempos: abastecimento<br />

De 1943 à data da transição para a independência o sistema económico dos Kuvale<br />

foi-se reabilitando, fruto do seu investimento obstinado nesse sentido, mas<br />

sempre articulado a uma economia de mercado que entretanto se expandia. Uma<br />

rede de comerciantes europeus foi cobrindo toda a área e substituindo-se à<br />

incidência comercial dos funantes do passado, mercadores ambulantes. O<br />

provimento de tudo quanto os Kuvale nem sempre produziam em quantidades<br />

suficientes - milho -, ou não produziam de todo - têxteis, vinho, ferramentas<br />

(catanas, pouco mais que isso) e matéria para adornos, principalmente - foi<br />

sendo assegurado por postos de comércio fixo e atingiu níveis equilibrados que<br />

por sua vez asseguravam o escoamento da produção animal excedente. A<br />

comercialização de gado fora desse contexto, deslocações dos próprios<br />

produtores às zonas do planalto grandes produtoras de milho, terão tido<br />

carácter absolutamente excepcional que talvez, no entanto, possam aparecer hoje<br />

sobrevaloriza<strong>das</strong> na memória de "key informants", normalmente "autoridades<br />

tradicionais" particularmente ajusta<strong>das</strong> a estratégias de informação<br />

imediatista que eles próprios se encarregam de colocar a salvo de qualquer<br />

confirmação.<br />

Com a independência toda essa rede comercial se anulou, como se sabe, e<br />

instalou-se um vazio que, em muitas áreas e nalguns casos, se mantém até hoje.<br />

1


De Dezembro de 1992 a Abril de 1993 pude acompanhar, na região do Sayona, uma<br />

situação de profunda crise alimentar e o que observei e inquiri durante esse<br />

período pode articular o que uma informação sucinta como a que estou tentando<br />

prestar será capaz de ensaiar a esse respeito. O ano anterior de chuvas tinha<br />

sido fraco, a reserva de cereais estava esgotada, o leite, base da alimentação,<br />

estava reduzido ao mínimo. A implicação directa e praticamente exclusiva do<br />

Estado nos circuitos de distribuição comercial centralizada a nível nacional<br />

estava ultrapassada pelo curso dos tempos e dos ajustamentos ideológicos, que<br />

não apenas pragmáticos, e se ainda apareciam no terreno funcionários com milho,<br />

faziam-no a título privado procurando tirar benefício pessoal de mercadorias<br />

coloca<strong>das</strong> sob seu controle e ou pretendiam dinheiro em troca, o que não existia<br />

nas mãos dos produtores kuvale, ou exigiam contraparti<strong>das</strong> de gado vivo de tal<br />

forma delirantes que as pessoas iam preferindo permanecer famintas, sempre na<br />

espectativa da chegada de verdadeiros comerciantes, a participar num tal<br />

desmando. Alguns dos poucos comerciantes residentes noutras zonas, que vinham<br />

do "tempo antigo" ou resultavam já da transição em curso no sistema económico<br />

global, abandonaram as lojas na sequência <strong>das</strong> "agitações" que se sucederam às<br />

eleições. Outros, a quem tinha sido concedida pelo Estado a exploração de<br />

postos de comércio e os geriam a partir do Namibe ou do Lubango, tinham deixado<br />

de aparecer ou faziam-no muito esporadicamente. A muitos desses era imputado o<br />

atropelo de se proverem, nas sedes administrativas e a coberto <strong>das</strong> suas<br />

credenciais de comerciantes da zona, de mercadorias trazi<strong>das</strong> para ali para<br />

abastecer as populações locais, mas que eles voltavam a transportar para a<br />

cidade onde as introduziam no circuito urbano, mais rentável e menos arriscado.<br />

Apareciam também imprevisíveis mercadores de ocasião mas, tal como os<br />

anteriores, traziam menos milho do que aguardente. Reinstalava-se assim, de<br />

alguma forma, o regime dos funantes de longínqua e triste memória, situação que<br />

se mantém até hoje.<br />

A partir da zona onde eu então acampava mandavam-se mensageiros ao Namibe para<br />

implorar aos tais comerciantes a sua intervenção urgente, e à volta <strong>das</strong> casas<br />

comerciais encerra<strong>das</strong> juntam-se enormes contingentes de pessoas e de cabritos,<br />

aguardando a resposta. Do milho que restava não era sequer, pela maioria, feita<br />

farinha, comiam-no torrado, maneira de torná-lo mais rentável e de enganar a<br />

fome ao maior número possível de familiares. Muitas mulheres partiam para o<br />

Bumbu, área de Campangombe, onde populações agrárias, aí instala<strong>das</strong> desde<br />

sempre, talvez pudessem ainda dispensar algum cereal, quanto mais não fosse a<br />

própria semente guardada, e onde nas fazen<strong>das</strong> abandona<strong>das</strong> haveria, era ainda a<br />

época, pelo menos mangas que se pudessem disputar. O tempo antigo em que o<br />

Governo assumira o abastecimento, apesar de nunca ter assegurado um exercício<br />

regular e satisfatório e lhes ter ensinado, desde o início, que era melhor<br />

aprenderem a contar só consigo mesmos e com os vizinhos, era já recordado até<br />

com saudade, e as constantes queixas em relação às últimas modalidades do<br />

regime insinuavam também reservas quanto à "fidelidade" que lhe era devida por<br />

consenso geral, o que começava a preocupar as "autoridades tradicionais" com<br />

quem então eu contactava de perto. E no entanto não se tratava de um ano<br />

anormal. Era apenas uma questão de "desfuncionamento conjuntural". Entretanto<br />

choveu. E veio o milho do Pam ( nota) já depois da chuva e de voltar a haver<br />

leite e de ser o tempo da carne. Voltarei ao assunto.<br />

Desde então e até Agosto de 1996, quando interrompi a minha última estadia no<br />

terreno, nunca mais houve, que eu saiba, uma situação tão constrangedora. Mas<br />

temo que à data em que estou escrevendo este texto, Janeiro de 1997, a situação<br />

não seja, de novo, <strong>das</strong> melhores. As chuvas de 95-96 foram de novo fracas e a<br />

partir de Julho havia quem estivesse já a racionar o milho disponível. Os<br />

comerciantes continuavam ausentes e cada vez eram encara<strong>das</strong> com maior<br />

determinação, por parte de alguns sectores do povo, estratégias alternativas<br />

que referirei mais tarde.<br />

1


De assinalar, ainda, que entre as razões invoca<strong>das</strong> pelos comerciantes para<br />

permanecerem ausentes, assume um lugar muito marcante a de que o gado<br />

resultante <strong>das</strong> transacções lhes é, enquanto aguarda escoamento,<br />

sistematicamente roubado. Tal não deixa de ser, de algum modo, verdade. Mas<br />

isso não acontece aos comerciamtes que permanecem no terreno ou aos funantes,<br />

hoje chamados "candongueiros", que levam consigo os animais no mesmo transporte<br />

que trouxe a mercadoria. Acontece àqueles que os deixam à guarda de modestos<br />

trabalhadores trazidos consigo <strong>das</strong> cidades e são deixados no local para ver se<br />

vão trocando ainda alguns restos de produtos adventícios e nalguns casos<br />

absolutamente invendáveis (candeeiros!!!), por vezes ao longo de meses.<br />

Acompanhei situações destas e fui algumas vezes acordado por tiros e pelo<br />

alarido que se segue a um roubo de gado.. Aí o gado é de facto "roubado": "...<br />

muitas vezes são 'bandidos' que vêm de fora, mas nós também não podemos ver os<br />

bois que entregámos a ficar todos os dias cada vez mais magros, a sofrer<br />

assim...".<br />

O "roubo", desta forma, continua a temperar as relações dos Kuvale com o<br />

exterior. A sua menção nunca andará muito arredada do que tenho para dizer.<br />

CAP. 2<br />

ENVOLVIMENTO NA CENA POLÍTICO-MILITAR<br />

Os Kuvale aderiram em massa, e desde o início, ao Mpla (registarei as siglas<br />

como substantivos próprios), e fortes contingentes seus integraram de pronto as<br />

suas forças arma<strong>das</strong>. Se a primeira circunstância constitui ainda matéria para<br />

reflexão (que correntes terão assegurado essa identificação "política", p.e.),<br />

a segunda foi de molde a suscitar, na altura, a maior surpresa aos<br />

desprevenidos. Os Kuvale, de facto, eram até aí, para assinalar-lhes uma<br />

diferença que os restantes Angolanos, e outros, sempre gostaram de sublinhar,<br />

reconhecidos também por serem aqueles que nunca tinham feito parte do exército<br />

colonial.<br />

Acção política adequada e imediata da parte do Mpla na sua mobilização? Sem<br />

dúvida, foi um factor. Mas, quanto a mim, trata-se de bastante mais que isso.<br />

Produzi já matéria sobre o assunto que é de fácil consulta (nota sobre<br />

1


artigos). Tentarei aqui tratá-lo de forma mais adequada aos objectivos deste<br />

trabalho.<br />

Logo após o golpe de Estado que em Portugal inaugurou o período de precipitação<br />

histórica que Angola ainda vive de forma convulsiva, os primeiros indícios de<br />

que as coisas vão mudar talvez tenham sido de molde a inquietar os Kuvale.<br />

Verificam que há agitação entre os Brancos e depois sentem que o seu gado está<br />

de novo ameaçado. Com a chegada dos "movimentos", Fnla, Unita e Mpla , os dois<br />

primeiros encontram um acolhimento preferencial por parte da comunidade branca,<br />

e nessa aliança inscrevem-se caça<strong>das</strong> que, pelo caminho, mexem no "gado dos<br />

mucubais". Ao mesmo tempo, porém, os Kuvale apercebem-se de que o terceiro<br />

"movimento" lhes oferece a hipótese de se defenderem dessa ameaça imediata, ou<br />

os incita a isso, e de visar mesmo mais longe. Um número apreciável de Kuvale<br />

alista-se nas forças do Mpla, as Fapla.<br />

Mais tarde, quando à data da independência o Mpla a declara em Luanda mas a<br />

maior parte do território de Angola é a imensa retaguarda <strong>das</strong> pressões que,<br />

pelo Norte e pelo Sul, o confinaram praticamente ao corredor do Kwanza, os<br />

Kuvale envolvem-se também numa bolsa de resistência que este movimento preserva<br />

na província do Namibe. E quando, no princípio de 1976, a pressão relaxa e o<br />

Mpla se vem instalar sobre o vazio, a identificação entre os Kuvale o Mpla<br />

confirma-se para reproduzir-se até hoje, dando corpo àquilo que em meu entender<br />

se trata da expressão de uma "aliança" fundamentada em razões históricas e<br />

culturais susceptíveis de revelar a sua evidência.<br />

História, ...<br />

Referi atrás o lugar marcante que nas guerras que precederam a ofensiva de<br />

194O-41 contra os Kuvale ocuparam elementos saídos de populações situa<strong>das</strong> a<br />

norte da sua área. <strong>À</strong> memória de todo o processo <strong>das</strong> razias do Nano vem jntar-se<br />

a do papel desses fortes contingentes de Munanos nas tropas auxiliares<br />

portuguesas e a circunstância, bem mais presente e incidente, de que mais<br />

próximos do que os Munano, mas tidos talvez como os Munano mais próximos, estão<br />

os Tyilengue, a quem a ofensiva de 1940-41, sofrida por muita gente que está<br />

viva ainda, viria a conferir de novo um papel activo. Não só alguns dos<br />

incidentes que determinaram o reforço daquela repressão tiveram lugar com eles,<br />

mas ela comportou ainda desta vez o seu envolvimento directo nas operações<br />

militares. Um relato mais detalhado <strong>das</strong> operações de um dos destacamentos<br />

militares envolvidos na campanha faz alusão explícita a um grupo de 2OO<br />

carregadores Tyilengue que depois de iniciada a marcha em questão se mostraram<br />

contrafeitos por terem julgado antes que deveriam participar na ofensiva<br />

enquanto guerrilheiros e com direito a saque, portanto ( Correia 1952:597).<br />

A proximidade física e a convergência de interesses em relação a um mesmo<br />

objecto, o gado, vão encontrar no nosso passado recente uma nova oportunidade<br />

para reproduzir-se. A fronteira étnica, se quisermos entendê-la assim, vai<br />

constituir ao longo destes últimos anos a frente de confrontos entre as partes<br />

envolvi<strong>das</strong> no conflito armado angolano ou, introduzindo uma visão mais complexa<br />

da situação, estes vão alimentar-se também de antagonismos que não são apenas<br />

"ideológicos" em termos de definição política moderna discursivamente<br />

proclamada, ou invocada. Embora tenham ocorrido incidentes um pouco à volta de<br />

1


todo o território da Província do Namibe, ao Sul eles disseram sobretudo<br />

respeito ao facto de essa zona ter constituido uma retaguarda da Swapo (nota) e<br />

terreno de incidências retaliadoras da intervenção sul-africana imediata ou<br />

mais proximamente liga<strong>das</strong> ao processo da luta de libertação namibiana, e foi no<br />

Noroeste que se desenvolveram embates, avanços e recuos dentro de um quadro<br />

verdadeiramente angolano. E é para lá que aponta, por determinismo geográfico<br />

mas também por investimento nesse sentido, a intervenção de soldados Kuvale,<br />

sobretudo as grandes mobilizações e movimentações iniciais. Para um lado e para<br />

o outro da linha oscilatória dos combates e dos territórios afectos ao<br />

controle ou à presença dos exércitos em causa, vai circular muito gado. O saque<br />

de guerra vai nalguns casos substituir-se à prática milenar da razia, ou<br />

confundir-se com ela. Mas o espírito da razia, a sua incidência e a sua<br />

prevalência culturais, nunca vão deixar de estar presentes. As notícias e os<br />

ecos da guerra, que fui recolhendo ao longo da minha permanência no terreno do<br />

inquérito, sempre fizeram referência a bois e foram produzi<strong>das</strong> numa linguagem<br />

muito ligada a implicações locais e semanticamente mais próxima de conceitos<br />

ligados a guerras antigas do que aos sinais de uma guerra moderna, ditada por<br />

interesses ou razões implicando directamente a noção de Estado. E a par disso<br />

ia eu próprio observando a intensificação de traços culturais profundamente<br />

inseridos numa "ideologia" capaz de integrar o presente mas capaz também de<br />

lhe afeiçoar a expressão, como veremos adiante.<br />

... pragmatismo ...<br />

O raciocínio que vou propor é arriscado tanto do ponto de vista especulativo<br />

como por poder colidir com algumas ortodoxias militantes. Mas posso invocar,<br />

não para justificar-me mas para fundamentá-lo, que ele não resulta de um<br />

investimento de análise, ou de síntese, exclusivaemnte meu. Resulta antes de<br />

reflexões opera<strong>das</strong> em grupo e em situações de inquérito, empenhados também os<br />

informantes, ou os circunstantes, em encontrar comigo um fio condutor para a<br />

inteligência de um processo de que afinal têm sido eles próprios os actores.<br />

Foram situações como esta que me permitiram assinalar, por vezes, depoimentos<br />

de uma apurada percepção política <strong>das</strong> oportunidades.<br />

Os "movimentos" (Mpla, Unita, Fnla) andavam então (1974-75) a oferecer<br />

bandeiras, retratos e emblemas mas não só, armas também. "Isso acontecia por<br />

toda a parte, os outros iam ter armas, nós tinhamos que as ter também. Os<br />

outros, quem? Aqueles com quem mantemos um contencioso que vem dos tempos. Eles<br />

encostam aos Munano, iam ser mobilizados por aquele lado. Ou então: nós iamos<br />

poder ter armas, poder, se a situação se precipitasse como já se previa, actuar<br />

contra os outros, saldar até contas antigas, de qualquer maneira se nós não o<br />

fizéssemos faziam-no eles, nós precisávamos mesmo de armas, nem que fosse só<br />

para nos defendermos. Por outro lado o Mpla aqui não tinha ninguém, não tinha<br />

passado, sabia que os outros estavam a mexer-se, precisava de nós, e era dele<br />

que nós precisávamos. A Fnla, por que não? Porque era lá que estavam a encostar<br />

1


os Brancos, que ao mesmo tempo estavam já a virar-se contra nós, tinham também<br />

contas antigas a ajustar connosco e começaram logo outra vez a olhar para o<br />

nosso gado, e a Fnla e a Unita afinal também estavam juntos”. Simples? Talvez<br />

nem tanto e sobretudo, parece-me, nada aqui colide com as lógicas quer <strong>das</strong><br />

formações políticas em presen(c)a, ao tempo, quer dos Kuvale.<br />

A sociedade Kuvale no seu todo terá vivido até hoje, assim, uma actualidade<br />

política que se inscreve sem hesitação numa continuidade traduzida pela<br />

vigência sem interrupção da autoridade do "Mpla", sem necessidade, da sua<br />

parte, de estabelecer qualquer distinção entre o "movimento" do início, o<br />

partido que se lhe seguiu e o Estado que prevalece. A expressão local desta<br />

constatação poderá talvez reconhecer-se pelo papel que as "elites" locais têm<br />

jogado desde a definição <strong>das</strong> opções massivas ocorri<strong>das</strong> no processo da<br />

independência até à segunda mobilização de testemunho directo a que as eleições<br />

conduziram. A incidência política destas elites significará menos uma acção<br />

investida na captação de apoios para uma ou outra alternativa de poder do que a<br />

extensão executiva de um poder central que as utiliza como agentes de regulação<br />

aptos a actuar para além dos terrenos que a administração domina. Elas<br />

constituem o corpo <strong>das</strong> "autoridades tradicionais" e, no caso que estou<br />

tratando, elas pertencem to<strong>das</strong>, sem excepção que eu conheça ou tenha<br />

assinalado, à linhagem hegemónica que o sistema endógeno reconhece e acata, os<br />

Mukwangombe e,dentro deles, os Hamba. Foram eles os "activistas" da vigência do<br />

partido único e são, hoje de novo, como o foram no período colonial,os<br />

"regedores", os "sobas" e os "seculos" em exercício. Se tivermos em conta que a<br />

acção política por eles exercida, ao serviço do Mpla, aproveita uma opção<br />

potencialmente massiva também por razões históricas e culturais, como vimos<br />

atrás, e se inscreve num ambiente político, mesmo urbano, dominantemente<br />

favorável ao poder que oficialmente marcou os últimos vinte anos, como ficou<br />

provado não só pela expressão dos votos mas também pela relação de forças que<br />

marcou na cidade do Namibe, e por toda a Província, as "limpezas" que se<br />

seguiram às eleições, apreenderemos, no geral, o quadro político local. Uma vez<br />

mais, nas ocorrências a que acabo de aludir, os Kuvale intervieram com uma<br />

prontidão, uma eficiência e um voluntarismo suficientes para atemorizar também<br />

quem dominava a cena e reconhecia neles "gente nossa". Por serem "gente nossa"<br />

e eu ir lidar e viver com eles, mereci a simpatia, e até a ajuda, por parte da<br />

militância urbana do Namibe, para poder iniciar e dar curso ao meu trabalho.<br />

Mas sempre, também, me foi aconselhada prudência. Não só porque ia frequentar<br />

terrenos sujeitos a incursões e acções do "inimigo", mas igualmente porque ia<br />

lidar com "Mucubais". Uma retaguarda, portanto, fiel sem dúvida mas a ponto de<br />

assustar. Sobre a "política" prevalece a trama do dia-a-dia, e as dinâmicas e<br />

as lógicas que regem o dos Kuvale não são exactamente as mesmas que o Estado<br />

visa e tenta impor com os instrumentos de que dispõe e à sua maneira, quer<br />

dizer, de uma maneira que ao longo de vinte anos cada vez se tem restringido<br />

mais na sua efectiva operatividade tanto espacial como institucionalmente. De<br />

facto, cedo me apercebi, entre outras coisas, de que o maior perigo que corria<br />

não era o de cruzar com o "inimigo" em deambulações que por vezes me levavam às<br />

periferias do território "controlado", porém de aí, precisamente, poder vir a<br />

ser acidentalmente tomado por elemento do "inimigo", algum Sul-Africano<br />

remanescente e perdido.<br />

Toda esta matéria pode ser tratada de uma forma mais envolvente e elaborada,<br />

sem dúvida, fazendo mesmo apelo a outras componentes. De facto, por exemplo,<br />

à data da minha última presença no terreno, Agosto de 1996, muitas armas eram<br />

francamente exibi<strong>das</strong>, umas trazi<strong>das</strong> do serviço militar, outras livremente<br />

adquiri<strong>das</strong> a mercadores descidos da serra, e os meus assentos de diário fazem<br />

constantes referências a incidentes internos, prepotências e ajustes de contas<br />

em que as armas, acidental ou circunstancialmente, intervêm,tanto como meio de<br />

agressão como de intimidação.<br />

1


Também é verdade que a desestruturação global e a mobilidade incontrolável a<br />

que o meio dá cobertura, e em que o próprio sistema socio-económico se<br />

fundamenta, favorecem exercícios irregulares sob qualquer ponto de vista. E que<br />

alguns ajustes de contas excedem o âmbito <strong>das</strong> relações internas para alargar-se<br />

a agentes do sistema envolvente. A radicalização de campos de filiação ou de<br />

imputação política a que o período que antecedeu e sucedeu as eleições deu<br />

origem, estimulou-les a oportunidade, a comportamentos e acções de retaliação,<br />

destruição e efectivo roubo que provavelmente nunca virão a ser completamente<br />

esclarecidos mas sugerem, e nalguns casos demonstram, a expressão actual do<br />

aproveitamento do vigor e do voluntarismo "mucubal" ao serviço de interesses<br />

que não são dominantemente os seus.<br />

O que me interessa extrair agora do que foi exposto é sobretudo que por detrás<br />

de toda a implicação kuvale na história recente e da incidência desta na<br />

história dos Kuvale, subjaz uma referência mestra: o gado. O apoio dos Kuvale<br />

ao Mpla e a sua participação na guerra, nas novas guerras, terá, em meu<br />

entender, acabado por revelar-se, como também não poderia deixar de ser, a<br />

evidência da sua qualidade de pastores, uma evidência alargada a tudo quanto é<br />

prática da vida.<br />

... e cultura.<br />

O gado tem pernas, é móvel, é fácil de roubar, levar consigo. Sendo fácil<br />

perdê-lo devido a incidências de pilhagem da parte de outros, é necessário<br />

defendê-lo, to<strong>das</strong> as sociedades pastoris o sabem. E isso exige uma competência<br />

que passa por uma aprendizagem, por uma instrução, por um treino constantes.<br />

Ora foi precisamente a capacidade daí advinda que granjeou aos Kuvale a fama de<br />

bons combatentes assegurada por todos quantos com eles têm lidado na guerra<br />

moderna e que guindou também alguns deles a postos de comando. Aí investiram<br />

toda a arte da defeza e do ataque, sobretudo em situações de golpe-de-mão que<br />

incessantemente os adolescentes kuvale, os buluvulu, nas suas longas horas de<br />

lazer (o gado pasta sozinho) treinam em conjunto em campos próprios, nas<br />

imediações dos sambos da transumância quando, durante a maior parte do ano,<br />

andam longe <strong>das</strong> residências principais acompanhando os bois, perseguindo pastos<br />

e águas. Saltar, caminhar no escuro, "ver de noite, ouvir ao longe", arremessar<br />

pedras, "porrinhos" e azagaias - ehonga's - com precisão (foi-me recomendado<br />

que se algum dia tivesse que entrar em confronto físico com um "mucubal"<br />

procurasse imediatamente o corpo-a-corpo, em que são menos destros, mas<br />

evitasse as distâncias que permitissem constituir-me alvo para arremessos),<br />

retira<strong>das</strong> rápi<strong>das</strong> mesmo conduzindo gado, constituem a matéria da sua<br />

aprendizagem e do seu treino, a substância da sua ciência da guerra, e os<br />

generais dirão do papel que tais qualidades jogaram em muitas <strong>das</strong> situações que<br />

comandaram.<br />

Tal eficiência garante, na sua origem, a defesa dos rebanhos mas ela pode<br />

garantir também, bem entendido, o ataque. Defender-se e atacar constitui a<br />

dinâmica do lado turbulento da vida pastoril, é um dado universal. O espírito<br />

da razia é um dado cultural integrado no "modo de produção", se quisermos<br />

objectivar e tecnicizar o discurso. Uma citação "sábia", para apoiar: "O gado é<br />

vulnerável ao roubo (e isso impõe) a necessidade de estabelecer um sistema de<br />

prontidão militar. A atitude militar não corresponde à protecção do território<br />

1


mas à da mobilidade dos animais e tem como ineviável contrapartida a<br />

institucionalização do 'raiding'", diz W.Goldschmidt (1979:2O). Também entre os<br />

Kuvale as coisas se passam inscritas num quadro equivalente de legitimidades. A<br />

apropriação de gado pela via da afirmação da destreza e da coragem guerreiras é<br />

uma hipótese que não só excita os jovens mas que vem igualmente ao encontro <strong>das</strong><br />

expectativas dos mais velhos, atentos à reprodução do sistema e dos códigos que<br />

o garantem. Dentro <strong>das</strong> grandes categorias sociais do gado que definem os termos<br />

da propriedade, da gestão e do uso desse factor de produção em que se cruzam<br />

to<strong>das</strong> as linhas da vida, o boi, uma delas, a que corresponde aos animais<br />

afectos aos circuitos da matrilinhagem, como veremos adiante, comporta, para<br />

além daqueles a que os dispositivos da sucessão dão acesso,as cabeças<br />

introduzi<strong>das</strong> no rebanho através do investimento pessoal do sujeito, as únicas,<br />

aliás, sobre as quais ele pode exercer de forma inequivoca o seu arbítrio<br />

pessoal sem ter que, explicitamente, prestar contas a ninguém. Qualquer homem,<br />

cumprida a sua adolescência, vai ter que recorrer a gado dessa natureza. Um dos<br />

animais indispensáveis à prestação matrimonial que o vai projectar no curso da<br />

vida, aquele, precisamente, que lhe garante o controle sobre os filhos perante<br />

a família da mulher, não pode provir de outra categoria. A hipótese da razia<br />

inscreve-se à partida no quadro <strong>das</strong> opções que o podem garantir. O recurso a<br />

essa via de apropriação, se chegar a ocorrer, poderá no entanto, para a maioria<br />

dos Kuvale, não passar de uma ocorrência pontual e fortuita.<br />

Mas as circunstâncias podem ser de ordem a estimular não só o recurso enquanto<br />

modalidade mas também o culto da própria hipótese. A par de outras<br />

manifestações de tipo cultual e conotações religiosas que a crise dos últimos<br />

anos terá estimulado, porque é um fenómeno alargado a todo o espaço nacional,<br />

também o culto dos espíritos da guerra - lundolo - terá ali encontrado terreno<br />

propício ao seu exercício e, de alguma forma, à sua ressurgência e<br />

intensificação. Cerimónias de iniciação, visando a incorporação de espíritos de<br />

antepassados transmissores dos talentos da guerra, tornaram-se a certa altura<br />

uma ocorrência comum. O fenómeno está sem dúvida ligado a determinantes mais<br />

pragmáticas de redistribuição e consumo, como teremos oportunidade de ver, mas<br />

pode talvez também ser encarado como um dispositivo de substituição ou<br />

transferência e uma manifestação explícita dos processos de "encapsulização"<br />

que referirei também mais tarde. As sessões a que assisti envolveram sobretudo<br />

jovens adultos que já teriam passado pelas Fapla ou para quem a hipótese de<br />

virem a integrar formações arma<strong>das</strong> formais já não fazia parte <strong>das</strong> expectativas<br />

imediatas. Desde 1992, depois da criação do exército nacional, a incorporação<br />

de homens Kuvale cessou e a maioria dos que nisso tinham estado investidos<br />

regressou e foi reintegrada no sistema produtivo e social comum.<br />

Ocorre perguntar, aliás, se os benefícios advindos da articulação de uma<br />

prática ancestral - a razia - à guerra moderna terão na verdade assumido uma<br />

expressão tão generalizada e frutuosa assim. A maioria <strong>das</strong> informações que<br />

nesse domínio recolhi e <strong>das</strong> ocorrência que pude acompanhar, talvez também<br />

porque o meu terreno de indagação se situou sobretudo manifestamente a Sul,<br />

dizem mais respeito a acções que trazem a marca do ambiente local mas se<br />

reportam mais aos espaços do próprio sistema endógeno, ou ao território que o<br />

envolve. E dá conta, por outro lado, de um quadro de modalidades que em<br />

português haverá a tendência para traduzir abusivamente por "roubo",<br />

linguística e conceptualmente. Há uma diferença estatutária entre roubo tal<br />

qual e acções de guerrilha ou de desvio no interior dos dispositivos do<br />

sistema. E se é verdade que to<strong>das</strong> pressupõem a necessidade de controle, e<br />

algumas perturbam a ordem social de forma a impor a articulação entre os<br />

dispositivos de controle internos e os do Estado, também é verdade que, no<br />

quadro da ideologia interna que prevalece, nem to<strong>das</strong> podem ser cataloga<strong>das</strong> de<br />

"crime". Elas podem pressupor "reparações" mas não, obrigatoriamente,<br />

1


"sanções". Esta é matéria que remete ao tecido <strong>das</strong> relações com o exterior,<br />

nomeadamente com o Estado, e ela será retomada com maior detalhe mais à frente.<br />

CAP. 3<br />

SOBRE O DESEMPENHO SOCIO-ECONÓMICO DA SOCIEDADE KUVALE NOS (Ú)LTIMOS VINTE ANOS<br />

Uma resposta histórica e culturalmente fundamentada ...<br />

To<strong>das</strong> as sociedades angolanas em contexto rural e segundo as incidências locais<br />

dos efeitos, quer directos, quer indirectos, da desestruturação geral e da<br />

guerra, terão de alguma forma sido conduzi<strong>das</strong> a processos de "encapsulização",<br />

1


ao contrário, talvez, do que terá acontecido em meios urbanos, onde a principal<br />

modalidade de sobrevivência se tem fundamentado numa articulação dispersiva,<br />

porque comercial, obrigando a contactos sociais muito diversificados, tanto<br />

para comprar, prover-se de mercadorias, como para vender, extrair-lhes o<br />

benefício.<br />

Mas entre os Kuvale ter-se-á tratado mais de aproveitar as condições vigentes,<br />

para aplicá-las ao pleno exercício de um modelo até então apenas abalado pelas<br />

pressões exteriores, mas não extinto ou irremediavelmente perturbado, do que de<br />

sujeitar-se a elas e ter que adoptar práticas, articulações ou mesmo<br />

instituições, referi<strong>das</strong> ou não a um "passado" mais ou menos distante, capazes<br />

de garantir aos grupos em questão a capacidade de se bastarem tanto quanto<br />

possível a si mesmos, circunstância bem mais generalizada a toda a Angola, no<br />

seu conjunto.<br />

Entre uma prática anterior à guerra de 194O-41, e cuja prevalência os terá<br />

conduzido precisamente a ela, e aquela a que as novas circunstâncias apontavam,<br />

não terá havido uma verdadeira "solução de continuidade", antes as duas se<br />

vinham articular numa continuidade "de facto", uma vez que o abalo, a derrota,<br />

a desarticulação, a desestruturação a que a catástrofe anterior conduzira, não<br />

tinha tido afinal como consequência a "domesticação" do grupo pelo poder<br />

colonial e a sua inscrição forçada no sistema envolvente, como as autoridades<br />

portuguesas esperavem, antes dera origem, obstinação redentora, resistência não<br />

prevista, a uma reabilitação, reactivação, de dispositivos intrínsecos ao<br />

modelo endógeno, que se pensava ter desbaratado, através de uma nova<br />

dinamização da mobilidade e da relação entre as pessoas e da circulação de gado<br />

dentro dos códigos da solidariedade e da reciprocidade. Enquanto outras<br />

sociedades, nas condições actuais de Angola, tiveram que "reinventar"<br />

dispositivos que lhes garantissem uma auto-suficiência capaz de assegurar a sua<br />

sobrevivência, aos Kuvale bastava dar livre curso, nas condições do presente,<br />

às dinâmicas de uma insularidade pela qual tinham lutado e quase se tinham<br />

deixado destruir ou mesmo aniquilar, não só cultural mas fisicamente. Tiveram,<br />

evidentemente, que saber adaptar-se às condições que o acesso de Angola à<br />

independência e as situações que se lhe seguiram criaram, mas fizeram-no dando<br />

curso a uma continuidade que remetia não só ao tal modelo secular mas também ao<br />

"treino" de recuperação que tinham desenvolvido durante os últimos trinta anos<br />

da vigência colonial. Era a própria recuperação que encontrava na nova crise as<br />

vias do seu processo e da sua confirmação até aos dias de hoje em que, apesar<br />

de às vezes padecerem fome por não haver nem aparecer quem lhes forneça o milho<br />

que não podem produzir em quantidades suficientes, os Kuvale talvez nunca<br />

tenham sido tão prósperos em termos de gado em exploração. Dir-se-ia que<br />

enquanto para outras sociedades as circunstâncias actuais constituíam as<br />

determinantes de uma rotura no seu processo de integraçao num "sistema global",<br />

para os Kuvale ocorriam como as condições de reposição de duas continuidades: a<br />

de um modelo endógeno nunca perdido de vista e a do processo de reabilitação<br />

iniciado imediatamente após o seu regresso <strong>das</strong> deportações de S. Tomé, da<br />

Damba, da Lunda.<br />

Com o novo tempo que a independência instaura as restrições à mobilidade fisica<br />

e pastoril são, como já vimos, levanta<strong>das</strong> ou reduzi<strong>das</strong>, e a incorporação de<br />

fluxos de animais estranhos às unidades de produção vem também gerar situações<br />

favoráveis ao grupo. Ambos os factores vêm ao encontro de um melhoramento dos<br />

termos da relação com o meio, do aproveitamento dos seus recursos e<br />

potencialidades naturais em que os Kuvale são mestres. Para fazê-lo eles não<br />

vão precisar de "apports" nem de tecnologias exteriores, ferramentas, adubos e<br />

sementes, por exemplo, dependentes de articulações ao sistema mercantil,<br />

circunstância que liquidou ou estrangulou a maior parte <strong>das</strong> economias<br />

domésticas angolanas tanto em relação a práticas anteriores como à sua<br />

1


capacidade para se investirem em estratégias de auto-suficiência. Passaram a<br />

faltar vacinas para o gado, é verdade, mas a região é sanitariamente benigna<br />

quando comparada com outras, ter-se-ão de alguma forma reabilitado práticas<br />

tradicionais de prevenção e cura e, de qualquer forma, a intervenção sanitária<br />

anterior sempre esteve muito longe de ser massiva, até porque os próprios<br />

detentores de gado se furtavam a isso. Também não houve, por outro lado, crises<br />

de seca para além do que é normal. E os rebanhos aumentaram dando prova do<br />

excelente desempenho económico dos Kuvale insularizados face a um contexto<br />

envolvente de descalabro generalizado. Os termos dessa apurada interacção com o<br />

meio e as estruturas, os dispositivos, as práticas que a actualizam e<br />

factualizam, garantindo portanto a produção e a produtividade dos Kuvale,<br />

constituirão o grosso da matéria que irá seguir-se.<br />

Outro fio condutor que utilizarei dirá respeito ao ajustamento a que vou ter<br />

necessidade de operar para lidar com a noção de "comunidade". Se entendermos a<br />

comunidade como um grupo social caracterizado pela vida em comum, implicando<br />

bens, aspirações, etc, terei, sem dúvida, dificuldade em adaptar essa noção ao<br />

meu objecto de estudo. Se optar por uma definição que lhe confira os contornos<br />

de um grupo de pessoas considera<strong>das</strong> como um todo e vivendo no mesmo lugar, as<br />

hesitações serão ainda maiores. Nem o habitat, que é típicamente disperso, nem<br />

o modelo residencial, que é instável, nem as relações que caracterizam o<br />

sistema prevalecente, em que as distâncias estruturais não coincidem sempre com<br />

as distâncias físicas e a mobilidade sociológica é muito grande, se adaptam a<br />

tais contornos. Para o inquérito e para a análise a questão nunca me pôs<br />

problemas de maior. As unidades de análise mais significativas e pertinentes<br />

sempre acabaram por projectar-se a si mesmas em relação às interacções<br />

implica<strong>das</strong> nos processos visados e se nalguns casos a vizinhança contava, de<br />

facto, noutros ela resultava imediatamente preterida a favor de outras ordens<br />

de proximidade e implicação, parental, política ou mesmo religiosa, to<strong>das</strong> elas<br />

determinantes para a percepção, da minha parte, e a prática, para os<br />

inquiridos, dos processos em questão.<br />

A própria célula produtiva e consumidora elementar, a família nuclear, nunca<br />

aparece isolada mas sempre inserida em unidades de família mais extensas que<br />

por sua vez se associam a outras familias extensas para formar então aquilo a<br />

que poderá chamar-se uma unidade de produção que por sua vez se faz e se desfaz<br />

ao ritmo <strong>das</strong> estações, se reparte pelo território de acordo com as estratégias<br />

de repartição do rebanho familiar que se traduz frequentemente pela<br />

interposição de grandes distâncias, tão grandes que apontam a regimes<br />

climatológicos diferentes, contornos da transumância.<br />

Partirei no entanto, e evidentemente, dos grupos locais de produção. Mas terei<br />

que alargar-me, paralelamente e de imediato, a unidades também locais de<br />

solidariedade parental, que por definição não coincidem com as primeiras, e<br />

alongar-me por aí fora até à identificaçao de situações rituais de consumo e<br />

redistribuição que actualizam, ainda que localmente, a dimensão de uma entidade<br />

colectiva à escala de toda a projecção territoral e "política" do grupo,<br />

privilegiando embora a vizinhança, ou actuando através dela e retendo, logo<br />

assim, alguns daqueles traços que podem ser imputados à categoria "comunidade".<br />

... na relação meio/sistema<br />

Cinco rios maiores atravessam a região afecta aos Kuvale: o Carunjamba, o<br />

Bentiaba, o Giraul, o Bero ou Cubal e o Saiona, que é afluente deste. O Kurora<br />

constitui a fronteira sul. Só em Março, nem sempre, esses rios escoam água para<br />

1


o mar, e com os seus afluentes dão por vezes origem a terraços povoados por<br />

grandes arbóreas, entre elas a Acacia albida, o Ficus gnaphalocarpa e o<br />

Combretum imberbe. Na sua vizinhança, mas não em cima deles e sobretudo na zona<br />

da mata seca, se dispõem as onganda's, que são a modalidade mais fixa de<br />

residência dos Kuvale, a partir <strong>das</strong> quais se desenvolve alguma agricultura,<br />

quando a chuva dá, nas baixas dos rios. Esta agricultura raramente é suficiente<br />

para garantir a produção dos cereais necessários à subsistência <strong>das</strong> famílias<br />

que lhes estão liga<strong>das</strong>, e esta é uma <strong>das</strong> circunstâncias que acaba por definir a<br />

especificidade kuvale no contexto <strong>das</strong> outras sociedades com que confinam,<br />

também afectas à cultura pastoril.<br />

Dependentes do exterior em relação a cereais, a actividade dos Kuvale é<br />

sobretudo e quase que exclusivamente investida na exploração animal que lhes<br />

assegura o leite, a carne e a produção de excedentes com que hão-de adquirir<br />

ao exterior os bens alimentares e outros de que necessitam, têxteis e bebida,<br />

principalmente. As condições do meio impõem-lhes valores muito baixos de<br />

densidade populacional (O,5 pessoas/Km² em média) e garantem-lhes indíces<br />

elevados de proporção pessoas-animais. No seu conjunto, os Kuvale podem assim<br />

ser definidos como uma sociedade pastoril. Os seus vizinhos de quem mais<br />

dependem, ou com quem mais estreitamente se relacionam serão, por sua vez,<br />

agropastoris.<br />

Os Kuvale praticam uma economia de que a agricultura não está excluída mas onde<br />

ela ocupa sempre, ou quase sempre, um lugar escassamente complementar. É da<br />

manutenção, da reprodução e do crescimento <strong>das</strong> suas mana<strong>das</strong> que depende a<br />

própria viabilidade física da sociedade diferenciada que constituem e os<br />

distingue dos seus vizinhos imediatos mais ou menos identificados com outras<br />

caracteristicas ecológicas, percursos históricos, ou "appartenances" étnicas,<br />

se quisermos: os Tyilengue a Noroeste e os Mwuila e os Gambwe a Leste,<br />

identificados também com gado mas que habitam regiões onde chove acima dos 6OO<br />

mm, com os animais inscritos em sistemas que conferem um lugar muito mais<br />

importante à agricultura. Estes os representantes actuais dos agroastoralistas<br />

com quem as sucessivas gerações kuvale terão obrigatoriamente lidado desde a<br />

fixação na região dos seus antepassados migrantes. Entre os agropastoralistas,<br />

o grosso da atenção produtiva é canalizado para a agricultura (não falo dos<br />

testemunhos que possam recolher-se junto dos homens, que sempre se dirão mais<br />

pastores do que agricultores, mas da sociedade em si mesma, e da percepção que<br />

há-de decorrer da sua avaliação). Aí, por exemplo, é muitas vezes o rebanho que<br />

pode ser incrementado através da produção de excedentes agrícolas, ao contrário<br />

do que acontece entre os Kuvale, que adquirem produtos agrícolas a partir de<br />

excedentes animais, e este é um traço vital da articulação entre os dois tipos<br />

de economia nos tempos que correm, como veremos adiante. A própria<br />

especialização que marca a economia dos Kuvale (e que talvez não seja<br />

historicamente tão profunda como isso, pode antes corresponder a um processo<br />

desenvolvido já depois de antigas populações agropastoris se terem fixado num<br />

meio que viria ele próprio a impor a especialização), e que os define como<br />

pastoralistas face a agropastoralistas, não poderia ter-se consumado sem a<br />

proximidade física destes e <strong>das</strong> relações de troca que ela pode garantir.<br />

De qualquer maneira é essa mesma especialização produtiva, económica, que os<br />

configura também social e culturalmente. A mobilidade, por exemplo, comum tanto<br />

às sociedaes pastoris como às agropastoris, para eles não corresponde apenas a<br />

uma estratégia produtiva, é uma condição para a vida, com tudo o que isso<br />

representa de projecção em todos os sectores da sua vida, precisamente. Não<br />

ultrapassando os termos físicos da sua prática, mesmo os seus espaços<br />

residenciais "fixos", as onganda’s, dizem menos respeito a um local do que a<br />

uma "zona", a um perímetro, restrito embora, em que os sectores menos móveis<br />

1


<strong>das</strong> famílias têm que movimentar-se, ainda assim, em situações de maior crise<br />

anual, definindo quadros de uma transumância mínima que definirei mais tarde. É<br />

sobretudo através da mobilidade total em que se implicam que os Kuvale têm que<br />

saber manter a todo o custo um equilíbrio com o meio e dentro do meio.<br />

Para o que interessa directamente a este capítulo insistirei apenas em dois<br />

aspectos situados muito estritamente no tempo. É preciso manter os animais<br />

vivos e a produzirem leite, tanto para se reproduzirem como para proverem à<br />

alimentação humana. Todo o know-how, a competência técnica dos pastores kuvale,<br />

pode ser entendido como desenvolvendo-se à volta destes dois eixos e ele tem<br />

que ter em conta, logo à partida, a constituição física dos próprios animais em<br />

exploração.<br />

Os bois dos Kuvale pertencem ao tipo Sanga, comum a uma grande parte da Africa,<br />

e são considerados pelos zootecnistas como uma raça fixada, os " bois dos<br />

Mucubais", precisamente, robusta, resistente, corpulenta até para o tipo de<br />

gado de que se trata, e sobretudo extremamente bem adaptada ao meio do interior<br />

do Namibe. Todos os estudos, relatórios,informações e notícias fazem generosas<br />

e unânimes referências às suas qualidades neste domínio, mesmo quando assinados<br />

por quem o fez, no passado, para atacar veementemente o sistema pastoril dos<br />

Kuvale. Esta aptidão de tal gado para se afirmar nas precárias condições em que<br />

prospera não pode ser senão o resultado da actuação adequada de quem para ali<br />

os trouxe e ali os mantém e reproduz. Os Kuvale, naturalmente, desenvolvem um<br />

programa solidamente estabelecido de intervenção genética. Ela tem em conta<br />

aspectos tão imediatamente catalogados de "irracionais", segundo perspectivas<br />

"maximalistas" de aproveitamento dos recursos energéticos e aos olhos de quem<br />

só vê no gado aquilo que ele dá e não, também, aquilo que ele "é" ( excluídos<br />

da avaliação os factores culturais sem os quais aquele gado não estaria, de<br />

facto ali, só haveria paisagem e eventualmente, não tendo sido entretanto<br />

dizimada, fauna selvagem), como o tamanho e a forma dos cornos, o "berro" do<br />

animal, a cor da sua pelagem. Mas antes disso intervêm, posso assegurá-lo,<br />

factores como a produção de leite e, ligada a ela, a resistência física dos<br />

animais. Nenhum touro é tão valorizado como um animal que tenha luthipa,<br />

designação que faz alusão à tenacidade da membrana que envolve a carne dos<br />

lombos, "de que se fazem os fios rijos para enfiar as missangas" dos adornos ou<br />

dos sortilégios. "Esse touro tem luthipa!: é aquele que dá boas crias,<br />

resistentes. Pode ser estreitinho, pequeno, mas não morre na seca. Pode vir<br />

paz, o Governo pode mudar, os comerciantes podem voltar, pode mudar muita coisa<br />

para melhor, mas temos sempre que contar com a seca, vai chegar um ano em que<br />

não chove mesmo nada e os filhos desse touro é que vão aguentar, vão ainda<br />

assim dar leite, e garantir que tudo volte a refazer-se".<br />

O "stock" animal é adequado, adequada tem que ser também a sua manutenção e a<br />

sua reprodução. Questão de pastos e água, questão de transumância. A mobilidade<br />

impera, tem que imperar. Os resultados da minha observação na área do Sayona<br />

não diferem dos de observações técnicas e científicas aplica<strong>das</strong> a zonas na<br />

região que podem ser considera<strong>das</strong> equivalentes (Morais 1974) e mesmo a outros<br />

contextos pastoris (Johnson 1969, por exemplo).<br />

A zona geográfica que os Kuvale ocupam e exploram é a dos pastos doces e mistos<br />

que se situam entre a costa atlântica e o planalto interior, entre os paralelos<br />

13.5 e 16.5, sensivelmente. E se os especialistas, e bem, não esquecem que a<br />

"palatibilidade" dos pastos não explica tudo, também afirmam que os pastos<br />

doces constituem um tipo de "cobertura herbácea que se mantém apetecível pelo<br />

gado ao longo do ano, mesmo depois de ter ficado seco, não perdendo o seu valor<br />

alimentar e daí, com maneio adequado e desde que sejam controla<strong>das</strong> as<br />

necessidades de abeberamento, se poderem implantar explorações (...) tendo como<br />

1


ase o aproveitamento dos recursos pascigosos naturais" e que aos pastos mistos<br />

corresponde uma "cobertura herbácea mais densa e de porte mais elevado", uma<br />

"composição florística mais variada" com possibilidades de um "encabeçamento<br />

bovino muito superior" (Diniz 1991:165). Um eco-sistema, portanto, em que "a<br />

composição qualitativa da produtividade primária revela um valor alimentar<br />

bastante equilibrado do ponto de vista da pastagem para os fitófagos ungulados<br />

(gado e grande fauna selvagem), que são os consumidores mais importantes do<br />

eco-sistema" (Morais 1974:25).<br />

<strong>À</strong> zona dos pastos doces corresponde a faixa de clima árido/semi-árido, formação<br />

estépica, onde predominam as gramíneas. A dos mistos à dos climas secos dos<br />

tipos semi-árido e sub-húmido seco. A primeira é também em grande parte uma<br />

estepe sub-desértica típica de arbustos (encosta às dunas que a partir do Sul<br />

penetram em Angola até ao paralelo da cidade do Tombwa, ex-Porto Alexandre) e<br />

cede lugar, em direcção ao Leste, às estepes de transição para as matas secas<br />

de Clophospermum mopane, núcleos de mata cercando as correntes e apoia<strong>das</strong> aos<br />

'kopjes' e às colinas, até formar as matas densas de mutiatis (C. mupane) altos<br />

(ibid.:1O) que acabam por encontrar a escarpa da Chela numa grande extensão da<br />

área.<br />

O geógrafo Urquart (1963:2) descreve com muita precisão e economia esta<br />

configuação. Ele diz que, através da maior parte da sua extensão, a serra da<br />

Chela forma uma impressionante face escarpada que marca um desnível abrupto de<br />

vários "milhares de pés" a partir do planalto interior: "Alguns inselbergs<br />

residuais de uma antiga e mais extensa superfície do planalto erguem-se (...)<br />

para Oeste da face escarpada. Para Norte a escarpa é muito menos impressionante<br />

mas continua a formar uma rotura bem definida entre o deserto costeiro e o<br />

planalto (...). O deserto, que atinge cem milhas de largura, é a extensão norte<br />

do Deserto do Namibe (...). Numa série de degraus erosivos que são mais<br />

recentes do que as velhas superfícies do planalto, o deserto inclina-se para o<br />

Oceano Atlântico a partir de elevações de seiscentos metros, na base da<br />

escarpa."<br />

(É) este declive, esta extensão, que define a zona explorada pelos Kuvale. Eles<br />

jogam entre os 2OO e os 6OO metros de altitude, do mar para a serra, e sobem<br />

aos 1 OOO metros, onde ocorre a escarpa, nas modalidades mais alarga<strong>das</strong> da<br />

transumância. As que<strong>das</strong> pluviométricas passam de 2OO a 4OO mm caídos de Janeiro<br />

a Março em níveis inferiores aos 5OO metros até valores que podem atingir os<br />

6OO mm mais para o interior, de Novembro a Março, também. Desde o Sayona, por<br />

exemplo, uma parte <strong>das</strong> mana<strong>das</strong> sobe aos 1OOO metros a partir de Outubro para<br />

beneficiar de um regimen de chuvas que aí pode começar por essa altura, atingir<br />

os 8OO mm e estender-se até Abril. Mas em Abril já estarão cá em baixo de novo,<br />

porque os pastos se refizeram e, se o ano foi bom, podem garantir uma<br />

concentração de todos os efectivos bovinos até ao mês de Outubro seguinte. A<br />

estas escalas de altitudes e de que<strong>das</strong> pluviométricas corresponde,<br />

evidentemente, uma significativa diversidade <strong>das</strong> formações vegetais. Assim, "a<br />

exploração pelos bovinos dos recursos alimentares deste eco-sistema aparece não<br />

somente como função da disponibilidade quantitativa da alimentação, mas também<br />

dependendo principalmente da diversidade <strong>das</strong> diferentes sub-regiões para os<br />

tipos da formação vegetal" e "a capaciddae de sustentação [ da pastagem]<br />

depende tanto da produtividade pecuária disponível como da diversidade dos<br />

tipos de formação vegetal, o que justifica a transumância como sendo a técnica<br />

mais racional sob as condições deste meio." ( Morais 1974:48 e 114)<br />

A partir destes elementos e com base em dados que recolhi e observações que fiz<br />

na região do Sayona, ensaiarei um quadro de movimentações que corresponde a<br />

transumâncias recentes. Do ponto de vista físico há a possibilidade de arrumá-<br />

1


las segundo a componente tempo e a componente espaço. De Maio a Setembro, num<br />

ano normal, o gado todo dos Kuvale pode convergir para áreas que grosso modo se<br />

situarão nas zonas de mata de mutiatis baixos, nas quais se situam sobretudo as<br />

concentrações habitacionais de carácter mais fixo, as onganda’s. Algum desse<br />

gado poderá ao longo do ano nunca se ter afastado muito dessa área, para<br />

assegurar a manutenção <strong>das</strong> pessoas que a bem dizer não abandonam já as<br />

onganda’s, os muito velhos, acompanhados às vezes só por crianças e pelas<br />

mulheres activas que aí permaneçam para os assistir e garantir a exploração dos<br />

animais. Outros lotes de gado, mais volumosos, praticam deslocações que às<br />

vezes, em anos bons, também são de raio reduzido e se limitam a uma<br />

transumância que pode classificar-se de "pulsatória", de vai-e-vem ( Johnson<br />

1969:187) e em anos mais difíceis alargar-se e, a partir de Julho, demandar já<br />

pastos da estepe arbustiva a oeste, para depois, ao encontro <strong>das</strong> primeiras<br />

chuvas que podem ocorrer na base da serra a partir de Novembro, utilizar<br />

percursos que aí os vão fixar até Fevereiro, quando começar a chover nas áreas<br />

próximas às onganda’s e para aí voltarem, concentrando-se de novo e tendo assim<br />

de algum modo desenvolvido uma transumância circular que os reconduz ao ponto<br />

de partida, donde reiniciarão mais tarde um novo ciclo. Trata-se, até aqui, de<br />

transumâncias praticamente horizontais, embora tenham aproveitado oscilações<br />

entre por vezes os 2OO e os 5OO ou mesmo 6OO metros de altitude.<br />

Grandes contingentes de gado, no entanto, são implicados em percursos de uma<br />

transumância dita vertical. Transumância, de um maneira geral, diz-se em língua<br />

olukuvale kuthiluka - mudar. Subir diz-se kulonda, descer, kupunda. A<br />

transumância para cima diz-se também kutoma. Kutoma é brilhar, e sobe-se a<br />

serra com os bois, para as terras dos "Mumuílas", para aumentar-lhes o sangue,<br />

recuperá-los, dar-lhes brilho. Quando os Mwila descem cá abaixo, o que<br />

"acontece só por causa do sal, ficam só uma semana ou duas, depois voltam para<br />

cima", chama-se kukela. Para cima da serra pode começar a subir-se em Outubro,<br />

quando já tiver começado a chover lá em cima, e tiver tido início a renovação<br />

desses pastos, que os Mwila utilizaram até essa altura mas entretanto<br />

disponibilizaram porque é o tempo de eles regressarem às suas residências<br />

fixas, à volta <strong>das</strong> quais vão investir-se na agricultura. A menção desta<br />

interacção entre o sistema pastoril dos Kuvale e o sistema agropastoril dos<br />

Mwila é pertinente, porque ela ilustra de que forma dois sistemas diferentes<br />

mas vizinhos podem interferir-se. Qualquer alteração profunda na prática mwila<br />

que modificasse o seu prório regime de transumâncias poderia vir a ter<br />

incidências graves sobre os Kuvale a que me estou a referir.<br />

O gado e os homens que subiram a serra permanecem aí até ter chovido cá em<br />

baixo o suficiente para poderem vir a manter-se em enormes concentrações à<br />

volta, no caso que tenho acompanhado de perto, de um afloramento aquífero<br />

permanente no leito do rio Tyakuto, afluente do Sayona, que é por sua vez<br />

afuente do Cubal, ou Bero. O que acabei de dizer refere-se muito sucintamente à<br />

organização geográfica, ecológica, de movimentos transumantes que pude de<br />

alguma forma acompanhar ou registar. Nada diz ainda da organização do habitat e<br />

da do trabalho que lhes estarão obrigatoriamente associa<strong>das</strong>. Os casos de figura<br />

assinaláveis no terreno são muito diversos, evidentemente, mas julgo poder<br />

ensaiar uma sistematização a partir de três grupos, segundo o seu grau de<br />

capacidade de decisão sobre o gado que operam, utilizando, portanto, logo à<br />

partida, uma perspectiva sociológica que grosso modo se ajusta às modalidades<br />

de transumância vistas atrás.<br />

1


CAP. 4<br />

A ORGÂNICA E AS DINÂMICAS DE UM SISTEMA DE PRODUÇÃO<br />

Relações de produção - Unidades de produção/trabalho<br />

Na região do Sayona, em outras que frequentei e de uma maneira geral em todo o<br />

território Kuvale, creio, a organização do habitat, <strong>das</strong> unidades de exploração<br />

dos rebanhos e <strong>das</strong> articulações que se operam entre elas, bem como o trabalho<br />

que desenvolvem, corresponde à configuração de três expressões residenciais,<br />

etárias, sexuais e sociais diferentes.<br />

1


Um primeiro grupo será constituído por homens adultos, e suas mulheres, que já<br />

tenham filhos por sua vez adultos e casados. São eles que habitam e governam as<br />

onganda’s, cercados de rama de arbustos que podem atingir 7O metros de diâmetro<br />

e no interior dos quais o gado pernoita e se dispõem as casas, cónicas e<br />

baixas, e um cercado menor para os vitelos. Cada onganda abriga dois ou três<br />

grupos familiares que podem ser ou não parentes entre si e contar ou não com a<br />

presença dos filhos adultos, ou sobrinhos, ou outros dependentes, dos homens<br />

mais-velhos que os chefiam e estabelecem desta forma entre si parcerias que<br />

implicam a exploração em conjunto do gado que mantêm sob a sua incidência<br />

imediata.<br />

Uma boa parte dos animais sobre que exercem um controle directo poderá no<br />

entanto estar já entregue aos seus filhos adultos e já casados que constituem<br />

entre si, por sua vez, parcerias de exploração e residencia que reproduzem as<br />

unidades que os seus pais formam ou assumem outros contornos, de acordo com os<br />

seus próprios critérios de relação, e se fazem, desfazem e reconstituem ao<br />

sabor <strong>das</strong> necessidades e dos percursos da transumância anual. Estes dois pólos<br />

de configuração residencial e de constituição de rebanhos mantêm-se fortemente<br />

articulados e é entre eles que se decidem as movimentações sazonais que definem<br />

as duas modalidade de transumância mais restrita que assinalei anteriormente.<br />

Os filhos mais novos dos donos <strong>das</strong> onganda’s e muitas vezes já os dos seus<br />

filhos mais velhos que integram o segundo escalão residencial, vão constituir<br />

uma terceira configuração de residência e de condução dos animais. Estes são os<br />

buluvulu's, rapazes entre os 12 e os 25 anos, normalmente, que vivem<br />

permanentemente fora <strong>das</strong> ongan<strong>das</strong> em grupos numerosos que se ocupam de animais<br />

que, sempre sob o controle dos mais-velhos, são implicados na transumância<br />

vertical.<br />

Há uma constante mobilidade de pessoas e de animais entre estes três pólos, e<br />

isso é determinado pela persecução de uma nova fórmula de equilíbrio que excede<br />

agora o binómio animais-recursos para introduzir na relação a carga humana a<br />

sustentar. O exercício da actividade pastoril será sempre a resultante de uma<br />

função que observa esses três factores, sendo ainda necessário considerar em<br />

relação à componente humana a sua avaliação em termos de necessidades de<br />

consumo e de capacidade de trabalho. Esquematicamente ficarão nas onganda’s os<br />

animais que provenham às necessidades e à capacidade de trabalho dos que aí<br />

habitam, e o mesmo se passará em relação aos grupos de jovens adultos com<br />

família. Todo o restante gado será encaminhado para os buluvulu’s. Da mesma<br />

forma as vacas mais produtivas constituirão o grosso do gado afecto às duas<br />

primeiras configurações. É aí que há crianças para alimentar e ao mesmo tempo<br />

mulheres para ordenhar as vacas, bater a manteiga e cuidar dos vitelos, tarefa<br />

esta que também é atribuída às crianças a quem cabe sobretudo, no entanto, a<br />

vigilância sobre os pequenos animais, ovelhas e cabras, que não vamos encontrar<br />

nos buluvulu’s.<br />

Entramos assim nos complexos domínios do trabalho. Os homens trabalham, as<br />

mulheres trabalham, trabalham os adolescentes, rapazes e raparigas, e as<br />

crianças também: trata-se de uma economia doméstica. Mas ninguém trabalha<br />

excessivamente, fiquemos tranquilos. Valores aferidos em relação à zona do<br />

Xingo (Morais 1974:1O1-11O) que me parece poderem extrapolar-se em relação<br />

àquelas que observei, permitiram afirmar que a análise da "comunidade" Kuvale,<br />

"segundo o modelo ecológico, traduz a estratégia que adopta: equilíbrio no<br />

interior do seu eco-sistema e investimento nos tempos livres", quer dizer, " o<br />

tempo disponível é muito grande para to<strong>das</strong> as classes de indivíduos activos, o<br />

que corresponde a um valor de qualidade de vida". E ficamos também a saber que<br />

o rendimento do trabalho da população activa Kuvale é francamente superior ao<br />

de outras sociedades envolvi<strong>das</strong> em economias domésticas. Por outro lado aparece<br />

1


confirmada e quantificada a constatação de que os trabalhos com o gado<br />

constituem mais de metade do trabalho total <strong>das</strong> populações e absorvem o maior<br />

volume de investimento por parte dos homens, dos adolescentes masculinos e <strong>das</strong><br />

crianças activas. Uma parte importante do trabalho <strong>das</strong> mulheres pode ser<br />

aplicada à agricultura, de Dezembro a Maio nos anos de chuvas regulares, mas<br />

elas intervêm também com regularidade, ou mesmo exclusividade, na ordenha e na<br />

preparação da manteiga.<br />

Estamos pois em condições de lançar um olhar rápido sobre a questão do trabalho<br />

enquanto meio de produção intrinsecamente ligado às estruturas familiares no<br />

contexto de uma economia doméstica. A potencialidade da força de trabalho é um<br />

factor determinante e ela é, numa grande medida e também entre os Kuvale, uma<br />

questão de esposas e filhos.<br />

Deter-me-ei sobretudo na questão dos filhos. O lugar <strong>das</strong> mulheres na sociedade<br />

Kuvale tenderá sempre a escapar à dinâmica dum texto como este, que tem que<br />

ser, por razões de operatividade, necessariamente sucinto e ao mesmo tempo<br />

abrangente. Também o facto de se ocupar de uma sociedade pastoril conduz<br />

implicitamente a isso. Não só a sociedade Kuvale é, como to<strong>das</strong> as outras, que<br />

eu saiba, marcada por uma ideologia masculina, como se fundamenta na exploração<br />

do gado e isso é, incontornavelmente, um domínio sobretudo de homens. Por outro<br />

lado, e agora trata-se de uma responsabilidade pessoal, o respeito que as<br />

mulheres Kuvale me merecem não é de molde a estimular-me a abordagem dos seus<br />

problemas de uma forma adventícia. Eles merecer-me-ão no entanto as alusões<br />

necessárias e virão mesmo a constituir-se, quando for caso disso, como o foco<br />

da exposição.<br />

As crianças trabalham e o trabalho dos adolescentes e dos jovens adultos é<br />

extremamente importante porque são eles os buluvulu’s ou os homens já casados<br />

que constituem as extensões sociais <strong>das</strong> onganda’s, todos filhos dos mais-velhos<br />

que a partir delas gerem o todo. Sem filhos a quem imputar o trabalho do gado<br />

um homem não pode, na realidade, ter gado. Um homem tem que ter filhos,<br />

assegurar sobre eles uma paternidade sociológica que não significa o mesmo que<br />

paternidade biológica, jogar com esta circunstância quando for caso disso em<br />

relação a filhos <strong>das</strong> suas filhas cujos pais biológicos não tenham assegurado a<br />

paternidade sociológica <strong>das</strong> crianças em questão, ou mesmo quando sabe que<br />

filhos <strong>das</strong> suas próprias mulheres foram de facto gerados por outros. Em caso de<br />

necessidade ele terá que chamar a si o trabalho de filhos de outros, adoptandoos<br />

plenamente - kuluka - ou criando-os apenas. Os seus filhos constituirão a<br />

primeira dimensão da sua "riqueza", riqueza esta, afinal, que todos integram e<br />

de que todos são usufrutuários.<br />

Esta implicação do modelo endógeno remete imediatamente a questões que se ligam<br />

ao presente, objectivo deste trabalho, na medida, nomeadamente, em que colide<br />

com a articulação da sociedade kuvale à sociedade global em termos, por<br />

exemplo, de escolaridade e de mobilização de jovens para formações militares. A<br />

elas me referirei oportunamente. Mas também se liga a aspectos intrínsecos ao<br />

funcionamento estritamente interno da sociedade e do seu sistema, tais como a<br />

endogamia grupal, a nível de quem é considerado Kuvale, e a liberalidade<br />

sexual. Ao primeiro terei que aludir, o segundo passo em claro. Mas de qualquer<br />

maneira, fazendo referência a endogamia grupal e a filhos <strong>das</strong> filhas, por<br />

exemplo, acabo por ver-me, finalmente, perante a necessidade de, para poder<br />

prosseguir, ter que franquear os terrenos do parentesco, ao que, até aqui, fui<br />

deliberadamente tentando resistir para não sobrecarregar a leitura, a<br />

exposição. Outros aspectos, aliás, como o do regime da proriedade, em que me<br />

deterei na rubrica seguinte, são também expressões do regime de parentesco e<br />

portanto não há fuga possível. Tentarei ser breve e restringir-me-ei às<br />

informações que bastarem à compreensão de questões incontornáveis.<br />

1


A sociedade dos Kuvale é tipicamente segmentária, sem poder central<br />

constituído ( os "sobas" ou "autoridades tradicionais" correspondem a<br />

"necessidades" <strong>das</strong> administrações, colonial e presente, e emanam na verdade de<br />

grupos hegemónicos mas que não detêm uma autoridade pessoalizada nos quadros<br />

institucionais internos). Como em to<strong>das</strong> as sociedades segmentárias, cada<br />

indivíduo pertence a uma linhagem, a uma linha de sucessão que, no caso dos<br />

Kuvale, como para as restantes sociedades angolanas que ainda têm isso em<br />

conta, é determinada através <strong>das</strong> mulheres, da linha uterina, quer dizer, para<br />

exemplificar: o indivíduo em questão, se for homem, herda de um irmão seu ou de<br />

um tio, não herda do pai, ele pertence a uma matrilinhagem, o pai a outra. Esse<br />

indivíduo faz parte, primeiro, de uma linhagem mínima, ou sub-linhagem: o<br />

conjunto da descendência de uma mulher e <strong>das</strong> suas filhas. A partir daí o quadro<br />

linhageiro vai-se alargando: essa primeira mulher e as suas irmãs com a mãe de<br />

to<strong>das</strong>, esta com as suas irmãs e a respectiva mãe e a descendência junta de<br />

todos os escalões, vão alargando o número de pessoas em sucessivas entidades<br />

colectivas no sentido ascendente até atingirem uma expressão unitária máxima, o<br />

clan. Entre os Kuvale a linhagem mínima chama-se iumu, barriga, iumu rimu,<br />

barriga única, e daí para cima podemos considerar os vererimu, mama única, ou<br />

dyemba imu, placenta única. Vários iumu rimu formarão um vererimu ou dyemba imu<br />

que todos juntos formarão por sua vez a "cúpula", a eanda, plural mahanda, o<br />

clan. To<strong>das</strong> estas categorias são teoricamente exógamas, quer dizer, não casam<br />

no interior de si mesmas, inclusive ao nível da eanda, enquanto que, pelo<br />

contrário, a endogamia grupal é uma regra, isto é, uma pessoa kuvale só "pode"<br />

casar-se com outra pessoa kuvale, as trocas matrimoniais, as operações de<br />

aliança matrimonial, portanto, devem fazer-se no interior da sociedade kuvale.<br />

Os Kuvale "trabalham" , vivem, interaccionando três mahanda: os Mukwangombe, ou<br />

"os do boi"; os Mukwatyite, ou "os <strong>das</strong> plantas", dos vegetais, do milho; e os<br />

Mukwambwa, ou "os do cão", do leão, <strong>das</strong> feras do mato. Uma indagação mais<br />

aprofundada assinalará a presença de vestígios de outros clans, mas o próprio<br />

desempenho pragmático dos Kuvale os inscrecve nos três que apontei. Qualquer<br />

indivíduo, assim, pertence a um destes três grandes grupos e a um só, que é o<br />

seu e da sua mãe, dos seus irmãos e irmãs filhos dessa sua mãe, da mãe da sua<br />

mãe e de toda a sua ascendência até chegar a uma "velha" única que não<br />

chamarei para aqui.<br />

Acrescente-se a isto que na sociedade kuvale vigora, digo bem, vigora, porque<br />

não se trata de nada que se refira a um qualquer passado, é uma coisa que se<br />

passa agora, uma regra que prescreve com quem cada um deve casar-se<br />

preferencialmente, como iremos ver adiante. Estes elementos bastarão por agora.<br />

E só introduzirei outros se vier a ser estritamente indispensável.<br />

Propriedade<br />

Durante a minha frequência do terreno nunca ocorreram dentro do grupo, que eu<br />

saiba, questões à volta da utilização de pastagens ou de percursos, nem me<br />

foram forneci<strong>das</strong> quaisquer informações a esse respeito, referi<strong>das</strong> ao presente<br />

ou ao passado. Para isso concorrerão, evidentemente, razões objectivas de<br />

disponibilidade territorial liga<strong>das</strong> ao facto de não existirem pressões devi<strong>das</strong><br />

a fenómenos de saturação animal ou humana que obriguem a disputas de espaço<br />

físico. A isto poderão, por sua vez, estar associa<strong>das</strong> duas circunstâncias que<br />

se ligam à história recente: a redisponibilização <strong>das</strong> áreas que nas últimas<br />

déca<strong>das</strong> da vigência colonial foram ocupa<strong>das</strong> ou interdita<strong>das</strong> por intenções de<br />

1


desenvolvimento empresarial, e a ocupação de novas áreas, pelo próprio grupo,<br />

na sequência da catástrofe de 194O-41.<br />

A área em que sobretudo situei os meus inquéritos é um caso ligado a esta<br />

última circunstância. A zona do Sayona, quando suscita alusões reporta<strong>das</strong> a um<br />

passado distante é sobretudo para ser lembrada como uma zona que foi sempre<br />

praticamente desabitada, mata selvagem, refúgio de bandidos, terreno de muito<br />

leão. Mas aí terão alguns Kuvale regressados da deportação encontrado parentes<br />

seus ou antigos dependentes escapados a esse destino e junto dos quais vieram<br />

situar o ponto de partida para a sua reinserção e recuperação.<br />

Os antigos dependentes seriam sobretudo os Mulahapahe, Twa, Kuisi, descendentes<br />

de povos normalmente designados por pré-Bantu, caçadores-recolectores que os<br />

antepassados dos actuais Kuvale já vieram encontrar fixados na região quando aí<br />

se instalaram, e que entretanto se foram assimilando à cultura pastoril na<br />

sequência, em muitos casos, da sua sujeição a uma condição de cativos que os<br />

constituiu, também em muitas situações, como herdeiros ou clientes <strong>das</strong><br />

linhagens dos Kuvale que os iam capturando no decurso de acções de razia. Terei<br />

necessidade de voltar a referi-los e de fornecer mais detalhes a este<br />

propósito. As zonas do Hoke, esta encostada à serra, e a da Tyikweia, sobre a<br />

transição entre a mata seca de mutiatis e a estepe arbustiva, que confinam a<br />

Leste e a Oeste com a do Sayona, são referi<strong>das</strong> com territórios muito antigos de<br />

Muluhapahe, de Muyohengue.<br />

Que os parentes kuvale, por outro lado, tenham aí sido encontrados, depois da<br />

guerra de 194O-41, porque entretanto souberam, ou conseguiram, escapar à<br />

"limpeza" colonial e adoptaram um território mais resguardado, é conjectura a<br />

ter em conta. E que aí tenha passado a ser possível viver sem pôr demasiado em<br />

risco a segurança do gado e <strong>das</strong> pessoas, em relação ao leão, porque entretanto,<br />

da década de 193O à de 195O, a caça tinha sido declarada livre em Angola e,<br />

perante o extremínio que a ca(c)a sofreu, aquela ameaça se fizera mais rara,<br />

talvez sobretudo porque as zebras, principal presa do leão, tenham desaparecido<br />

primeiro, também é uma hipótese a não desprezar.<br />

Mas a ausência de disputas em relação à ocupação e à utilização <strong>das</strong> pastagens<br />

estará também e sobretudo ligada a um regime que não é outro senão o que<br />

assiste à generalidade, digamos assim, dos sistemas económicos africanos<br />

endógenos: a terra não tem dono, no sentido ocidental do termo, embora o acesso<br />

a ela e a sua exploração não estejam isentos de regulação. E se nas sociedades<br />

dota<strong>das</strong> de alguma forma de poder centralizado essa regulação passa pelo<br />

arbítrio dos chefes políticos ou dos "chefes da terra", aqui, em que o regime<br />

político endógeno é estritamente segmentário (direi assim, de novo, para<br />

simplificar ainda), ela passa pelos dispositivos de articulação política que as<br />

relações de parentesco de facto constituem. A residência é patrilocal e a<br />

implicação territorial resulta patrilinear. Isso definirá o território imediato<br />

de cada um, integrado na configuração residencial a que pertence, e a sua<br />

prevalência em relação aos recursos que aí se situam ou aos percursos que a<br />

partir daí se dinamizam. Mesmo neste caso parece não ocorrerem colisões.<br />

Reproduzo aqui um peremptório comentário que respondeu à insistência <strong>das</strong> minhas<br />

indagações a este respeito: "Se vem alguém para ficar no sítio onde eu já<br />

cheguei primeiro e a mim não me convém que ele lá fique, isso só poderá ser<br />

devido a duas razões: ou é porque, na sequência de antecedentes pessoais ou<br />

outros, eu sei que não nos vamos poder dar bem, ou é porque os pastos e a água<br />

já não dão para juntar mais gado. Então o que não me convém a mim também não<br />

lhe convém a ele".<br />

1


Nem sempre a razão jogará um papel tão determinante, bem entendido, mas ficamos<br />

pelo menos com a impressão de que a disputa de pastagens não constitui matéria<br />

implícita à prática.<br />

A água, porém, pode levantar maiores problemas. Ecos de tensões territoriais<br />

entre Kuvale e Hakahona, latentes para os lados do Pocolo, por exemplo, que a<br />

determinada altura me chegaram, ligar-se-ão à prevalência da questão da água<br />

numa situação de crise mais aguda ou então, visando maior rigor, à mais<br />

imediata carência de água numa situação de crise que conferia novos contornos à<br />

relação pastos-água.<br />

Se as pastagens são aquilo que a natureza dá sem intervenção de energia física<br />

humana (pelo menos directa, porque afinal os investimentos simbólicos no<br />

sentido de propiciar a chuva comportam movimentações humanas e a intervenção de<br />

produtos económicos), e certos pontos de água o podem ser também (água retida<br />

pelas pedras ou outros substratos impermeáveis), o mesmo não se passa com as<br />

cacimbas (escavações no leito dos rios) durante a maior parte do ano, mesmo<br />

aquelas que durante o tempo <strong>das</strong> chuvas constituem afloramentos aquíferos<br />

naturais. Mas ninguém nega água a ninguém em condições normais de aflição ou<br />

trânsito, e os que desta maneira beneficiarem do trabalho anterior de outrem<br />

não perderão isso de vista, entra nas "contas" da reciprocidade difusa. As<br />

disputas que ainda assim registei remetiam sempre menos a acções de apropriação<br />

ou resguardo de um meio raro do que a antecedentes, maka's antigas<br />

reactualiza<strong>das</strong> a pretexto da água.<br />

Um outro meio de produção sobre o qual é investido trabalho humano são os<br />

terrenos <strong>das</strong> lavras. O trabalho que disponibiliza esses terrenos para a<br />

agricultura , moderado embora porque a mata e a vegetação arbustiva raramente<br />

são muito densas, não chegando por vezes a ramagem daí extraída para assegurar<br />

os cercados necessários à prevenção da invasão dos espaços de cultura pelos<br />

animais, é assunto de homem, como por toda a parte no Mundo. O terreno<br />

desbravado "pertence portanto à linhagem do homem. Mas são as mulheres que<br />

depois trabalham lá e elas também têm herdeiras". Pela via do casamento<br />

preferencial, que teremos que considerar a seguir, os acertos entre linhagens<br />

acerca dos seus direitos sobre seja o que for constitui um exercício permanente<br />

de sociabilidade e de política. Também sobre a questão <strong>das</strong> lavras não me consta<br />

que se levantem problemas de maior. Talvez nas periferias, mas dessas áreas não<br />

estou tanto ao corrente.<br />

O mesmo não poderei dizer, evidentemente, em relação ao gado. A qrande maioria<br />

<strong>das</strong> questões que exigem regulação pos-conflitual quer a nível local quer a<br />

nível "comunal" e logo, assim, implicando a intervenção da administração do<br />

Estado, ao que me referirei mais tarde, diz respeito a disputas em que o gado<br />

intervém.<br />

O gado sobre o qual qualquer indivíduo, homem ou mulher, adulto ou criança, se<br />

sente em condições de invocar direitos, há-de corresponder obrigatoriamente a<br />

duas categorias de ordem social: ou é gado de hupa, ou é gado de hako. Os<br />

primeiros ou provêm da linhagem do pai, e nesse caso serão os hupa propriamente<br />

ditos, ou da linhagem do pai da mãe, os de he musungu ( musungu significa maisvelho).<br />

Os "bois" de hako (quando digo bois estou a referir tudo, machos<br />

adultos castrados [bois de facto em linguagem zootécnica]; touros [machos<br />

reprodutores]; garrotes [machos castrados em crescimento]; vacas [fêmeas já<br />

pari<strong>das</strong>]; nemas [novilhas]; bezerras e bezerros; vitelas e vitelos. São estas<br />

as designações que mais frequentemente ocorrem numa conversa em português), os<br />

bois de hako, portanto, ou são os animais transmitidos pela via da sucessão<br />

linhageira, que se recebem da linhagem da mãe, de um irmão ou de um tio que<br />

1


morreu, ou aqueles que decorrem de aquisições a partir do trabalho de cada um,<br />

entendido como trabalho a energia pessoal retribuída fora dos contextos da<br />

reciprocidade institucionalizada. Um boi, um carneiro, um cabrito que provenha<br />

de retribuições a serviços prestados fora desses circuitos (poderá incluir-se<br />

aqui o trabalho de um tyimbanda, operador da terapêutica, por exemplo) ou do<br />

dinheiro de uma compensação monetária, ou que provenha de milho que<br />

eventualmente e excepcionalmente as mulheres tenham destinado a uma troca<br />

circunstancial, ou <strong>das</strong> panelas, da bebida e do óleo de mupeke que fabricam e<br />

comercializam (ver supra), são animais que cabem na categoria de hako e os<br />

únicos de que um indivíduo pode dispor, de facto, segundo o seu exclusivo<br />

arbítrio pessoal, o que já não acontece com os hako que recebeu de herança -<br />

kupingana - sobre os quais a linhagem inteira não deixa de zelar, de vigiar e<br />

exercer pelo menos um controle moral. Dado porém a um seu filho, ou a um filho<br />

de uma filha sua, um desses hako passará a ser, para quem o recebeu, um animal<br />

de hupa ou de he musungu,com o qual ele pode e deve organizar a sua vida,<br />

consumir-lhe o leite e mesmo em caso de justificada necessidade "comê-lo",<br />

directamente ou trocando-o por milho, sempre porém prestando contas do que fez<br />

à família do seu pai ou do pai da sua mãe, mas de nenhuma outra forma alienálo.<br />

Esse animal não é seu nem da sua linhagem, é da linhagem do seu pai ou da<br />

do pai da sua mãe. A introdução de bois hupa no mercado exterior por jovens,<br />

sobretudo, que passaram pelas Fapla, é uma ocorrência que começa a ser aludida<br />

e que constitui uma perturbação grave ao sistema local de produção (referir-meei<br />

mais adiante a casos desses e a outros). Registei frequentes menções a<br />

ocorrências de fricção entre produtores kuvale e agentes do exterior,<br />

comerciantes e autoridades, que decorrem do facto de para estes " tudo quanto<br />

tem cornos e berra como boi é boi igual, não vale a pena dizer que não é assim,<br />

que neste eu não vou poder mexer senão os meus pais ou os pais da minha mãe vão<br />

me cair em cima e não me vão entregar mais". O caso é particularmente grave<br />

quando, por exemplo, a autoridade administrativa ou policial inside sobre os<br />

bois de alguém porque um seu sobrinho "roubou" gado noutro lugar e anda fugido,<br />

situação que diz tanto respeito a um passado imemorial como a um presente<br />

comum.<br />

Reciprocidade/solidariedade<br />

Se o passado recente tem apontado, em meio rural, à insularização <strong>das</strong><br />

comunidades, à sua “encapsulização”, isso há-de incontornavelmente estimular,<br />

favorecer, criar, constituir, terreno para o exercício de uma economia em que<br />

as trocas não mediatiza<strong>das</strong> (pelo dinheiro, nomeadamente) tendem a assumir um<br />

papel privilegiado. Um tal tipo de economia comporta implicitamente um dado<br />

institucional que em si mesmo é um dos factores estruturantes do tipo de<br />

relações a que dá origem ou a que obriga: a reciprocidade. Ora a organização<br />

económica e social dos Kuvale sempre se fundamentou nas dinâmicas da<br />

reciprocidade. Se por um lado o uso do dinheiro, na história do grupo, adregou<br />

introduzir-se quando, no empo colonial, passou a ser impossível não ter que<br />

pagar imposto ou, como estratégia de recuperação, a ser utilizado para<br />

reconverter em gado fundos obtidos através da prestação de trabalho<br />

assalariado, terá talvez sido muito difícil testemunhar o inverso, quer dizer,<br />

a reconversão de gado em dinheiro. As transacções com o comércio também sempre<br />

o dispensaram, aliás. As aquisições de cereais, de tecidos e de bebi<strong>das</strong> sempre<br />

foram feitas, e ainda o são, através da disponibilização directa de animais sem<br />

mediatização monetária. A posse desses animais, encarados primeiro como<br />

produto, como resultado de exercícios económicos, e depois como valor de troca,<br />

se quisermos tratar assim a questão, sempre adveio de uma dinâmica de<br />

prestações, de alocações e de retornos implícitos, quantitativa ou<br />

qualitativamente equivalentes ou não, directos ou diferidos, que constituem,<br />

1


organizam e estruturam a circulação de pessoas e gado que confere os contormos<br />

específicos da sociabilidade do grupo, ou dos grupos. É o universo da<br />

reciprocidade, não como valor moral, ou não apenas como tal, mas como<br />

instituição económica. Não será arriscado afirmar, porque se trata de uma<br />

constatação empírica teoricamente demonstrável, que os Kuvale nunca deixaram de<br />

constituir uma sociedade estruturada, precisamente, pelo princípio da<br />

reciprocidade, em que a mesma se revela como uma condição necessária e<br />

indispensável ao funcionamento que sempre foi o seu, um elemento básico da vida<br />

económica e social, o modo como os equilíbrios e a integração são visados e<br />

mantidos através da troca de serviços e bens, séries de transacções to<strong>das</strong><br />

dependentes umas <strong>das</strong> outras e por vezes projecta<strong>das</strong> ao longo de extensos<br />

períodos de tempo.<br />

As extensões e as expressões que a reciprocidade assume na quotidianidade dos<br />

Kuvale constituir-se-á assim, de alguma forma, também, um dos fios condutores<br />

da informação que vai seguir-se. E permito-me insistir de que não vou falar nem<br />

do passado nem de sobrevivências, porém do presente tal como ele pode ser<br />

observado, analisado e confirmado.<br />

Tudo vai passar-se, de novo, através do gado. E vamos deparar com circuitos de<br />

reciprocidade em que uma intenção teorizante poderia assinalar articulações<br />

diferi<strong>das</strong>, verticais, circulares e diádicas, por exemplo...<br />

Reciprocidade diferida ( sucessão)<br />

O gado de hako está destinado a uma carreira que o projecta na sucessão dos<br />

dias, <strong>das</strong> estações e <strong>das</strong> gerações, inscrito, precisamente, nas normas e na<br />

engrenagem da sucessão linhageira, matrilinear, gestiva. O mesmo não acontece<br />

com os bois de hupa.<br />

A continuidade institucional da prática é assegurada quando cada filho se<br />

transforma em pai e passa, chegado o tempo, a dar hupa’s ao seu próprio filho.<br />

Mas aqueles animais que ele recebeu na condição de filho servirão de referência<br />

para operações de maior detalhe à data da sua morte e são devolvidos, mais<br />

simbólica do que fisicamente, à eanda donde saíram, a do seu pai. Não são<br />

portanto projectados numa linha de sucessão. Franqueamos aqui não só o universo<br />

da reciprocidade mas também o do sistema de parentesco, que acabam afinal por<br />

ser o mesmo, uma vez que não podem ser entendidos separadamente e constituem um<br />

corpo de implicações que dinamiza o sistema económico em toda a sua abrangência<br />

e cujo tratamento adequado exige, sem hipótese para desvios, saltos ou<br />

simplificações, uma grande complexidade teórica. Extrairei apenas para este<br />

texto aqueles elementos que bastem a uma percepção mínima <strong>das</strong> interacções em<br />

curso na sociedade kuvale.<br />

A instituição dos hupa, bois cedidos por um pai a um filho enquanto quem lhe<br />

vai suceder, estatutariamente, há-de ser um irmão ou um sobrinho seus, homens<br />

da sua própria linhagem, determina uma relação pai/filho que excede os<br />

indivíduos em questão. Em primeiro lugar e em termos de sujeitos implicados,<br />

não se trata realmente de uma relação pai/filho mas, de "pais"/filho, "pais<br />

classificatórios", irmãos do pai e por extensão todos os homens da sua eanda.<br />

Por outro lado, e pela via do modelo de casamento preferencial que ali vigora,<br />

em que um homem casa preferencialmente com a filha da irmã do pai, o filho de<br />

um homem, a quem ele dará hupa, será da eanda que foi a do seu pai, de alguma<br />

forma, e portanto, seu pai também, classificatório. Isto determina, entre<br />

outras coisas, que entre dois segmentos de duas mahanda se vão estabelecer<br />

relações binárias e privilegia<strong>das</strong> que estabelecem uma linearidade masculina<br />

circunscrita a elas e que as alterna no tempo, a par da linearidade uterina que<br />

1


implica os mesmos sujeitos e os situa estatutariamente no contexto global.<br />

Interrogado qualquer indivíduo acerca da família a que pertence, no sentido<br />

lato, ele dirá que pertence a uma <strong>das</strong> três mahanda: Mukwangombe, Mukwatyite ou<br />

Mukwambwa. O seu pai não é da sua família, ele é de uma eanda diferente. E no<br />

entante o fogo - murilu - , instituição fundamental na prática kuvale, é<br />

transmitido de pai para filho.<br />

A qualidade e o governo do fogo, atributos de natureza religiosa, se quisermos<br />

simplificar, transmitem-se através de uma linearidade masculina que, portanto,<br />

existe, funciona, mesmo que não seja nomeada, identificada com um nome como<br />

acontece com a matrilinhagem, e é esse, tanto quanto o estado da minha pesquisa<br />

me parece sugerir, o caso entre os Kuvale. A tal corresponde a emergência do<br />

quebra-cabeças da dupla-filiação, da "double-descent" da terminologia<br />

antropológica inglesa, a "double-filiation" da francesa, com o qual há-de<br />

esbarrar inevitavelmente quem se dispuser a tratar questões herero. Se a<br />

abordagem de questões como esta remete à própria imagem da antropologia<br />

clássica, à "matemática" do parentesco, ela não pode, porém, ser arredada da<br />

análise de situações que são inteiramente situações do presente, como estamos a<br />

ver, e se quisermos aceder à compreensão do que efectivamente se passa em<br />

terreno kuvale, para o caso. Fazê-lo seria passar por cima de implicações<br />

pragmáticas que interessam aos objectivos deste trabalho.<br />

Que a tal linearidade masculina existe e joga um papel importante na<br />

configuração social dos efectivos bovinos com que um indivíduo pode contar para<br />

gerir a sua vida, já o sabemos e confirmá-lo-emos através da toda a exposição.<br />

Que essa patrilinearidade se traduz pela articulação de duas matrilinhagens<br />

também já foi exposto. Vamos ver a seguir de que forma na prática essa<br />

patrilinearidade não se basta a si mesma, se interrompe e renova em cada<br />

geração, como sugeri atrás, e de que forma isso acontece porque de facto essa<br />

articulação entre duas linhagens não envolve a globalidade <strong>das</strong> linhagens<br />

implica<strong>das</strong> mas apenas os individuos nela envolvidos. Mas passemos às<br />

constatações empíricas.<br />

Quando um indivíduo morre, poucos dias depois, há um acontecimento importante.<br />

A sua família, a sua linhagem, o herdeiro do seu pai, os dos seus "pais" que<br />

lhe entregaram hupa's, e o do pai da sua mãe, que lhe entregou he musungu's,<br />

comparecem para regular as contas referentes às entregas desses bois, que foram<br />

assim desviados do caminho - tyilila - da sucessão matrilinear. Eles vêm buscar<br />

o "troco", o retorno dessa operação, os bois que passarão a chamar-se de<br />

nampingo, os nampingo's. Trata-se de um retorno mais simbólico do que efectivo.<br />

A cada entrega anterior vai corresponder apenas a devolução de um animal, macho<br />

ou fêmea conforme a natureza dessa entrega anterior, enquanto de facto ela<br />

gerou descendência, mesmo a partir de um macho castrado, porque, sendo esse o<br />

caso, a primeira obrigação de quem o recebeu terá sido a de fazê-lo valer,<br />

criando-o, uma fêmea pequena, que obtem por troca, e lançar esta na via da<br />

reprodução.<br />

Quem tem que assegurar esse retorno é o herdeiro do morto. É ele o responsável<br />

por to<strong>das</strong> as contas, dívi<strong>das</strong> e créditos, que o seu antecessor deixou para trás.<br />

Nessa altura ele não recebeu ainda a herança que lhe cabe - kupingana - e vai<br />

ter que recorrer, para resolver o problema, à intervenção de outros homens da<br />

sua linhagem, que lhe cedem os animais necessários. Trata-se de empréstimos<br />

dentro da linhagem, faz parte desse caminho que os bois cumprem dentro da<br />

linhagem, e serão, em princípio, saldados quando ele tomar posse da sua herança<br />

e a redistribuir por esse núcleo que se interajuda dentro da eanda e partilha<br />

as heranças de cada um. Esse grupo dentro da linhagem, a quem ele recorre e a<br />

1


quem ele redistribui, é o turiapamu, constituído a partir do iumu de cada um e<br />

ramificando-se pelos vererimu ou dyembna imu que o projectam na eanda.<br />

Há duas constatações que nos importa retirar daqui. A primeira é a da<br />

emergência desse mesmo grupo, o turiapamu, que corporaliza portanto uma<br />

comunidade de interesses e ocorre assim como uma entidade, uma categoria<br />

pertinente e incontornável, para a observação e a análise <strong>das</strong> relações de<br />

produção. Isto remete à questão dos contornos da comunidade a ter em conta<br />

perante os Kuvale, que referi atrás, na medida em que pode ter implicações para<br />

a intervenção. A ajuda humanitária, por exemplo, para actuar terá que passar<br />

por indivíduos, normalmente representativos locais implicados também em<br />

responsabilidades tributárias dentro <strong>das</strong> redes locais de interajuda<br />

estatutária. A segunda é a de que o herdeiro do homem que morreu, que<br />

assegurou, através dos nampingo's, o "troco" devido pela cedência de hupa's ao<br />

seu tio ou ao seu irmão, apesar de pertencer à linhagem do falecido e por isso<br />

lhe caber tal função, não tem nada a ver com a articulação <strong>das</strong> linhagens em<br />

causa no que respeita aos hupa's e nampingos's que lhe dizem pessoalmente<br />

respeito. O seu pai não pertence a nenhuma dessas linhagens, pertence a uma<br />

terceira. Há sobretudo que evitar, da parte do observador, qualquer confusão<br />

entre nampingo e kupingana, entre questões de transmissão de pai para filho e<br />

de sucessão de irmão para irmão ou de tio para sobrinho.<br />

De facto, no óbito em causa, comparece também outro grupo, o dos mwingona, os<br />

filhos classificatórios do falecido, a quem ele deu hupa's, que podem ser<br />

muitos, dependendo da capacidade para tal que ele teve em vida. Eles<br />

correspondem, teoricamente, ao grupo local de exploração que a residência<br />

patrilocal determina e que referi atrás, e constituem, portanto, outra<br />

categoria "pertinente e incontornável" para a observação e a análise <strong>das</strong><br />

relações de produção. Também da sua presença no óbito nos importa reter dados<br />

que interessam aos objectivos deste trabalho. Primeiro, é confirmada a<br />

constatação teórica de que o processo dos hupa, do gado implicado na<br />

patrilinearidade, se interrompe e renova a cada geração: o herdeiro do morto,<br />

que acabou de saldar, simbolicamente e através dos nampingo, as contas dos hupa<br />

que o seu tio ou irmão recebeu, tem perante si aqueles que receberam hupa's do<br />

mesmo morto e a quem a sua linhagem irá cobrar nampingo's quando cada um deles<br />

morrer. Há outras implicações mas talvez só nos interesse reter esta ( torna-se<br />

evidente que cada matrilinhagem, para efeitos de hupa's/nampingo's, está<br />

articulada às duas outras matrilinhagens, uma a do pai do morto, outra a do pai<br />

do seu herdeiro, dois pares de matrilinhagens, portanto, constituindo cada uma<br />

delas uma patrilinearidade). A segunda diz respeito a razões mais imediatas:<br />

nesta altura do desempenho da sociedade, os mwingona trazem para o óbito, a fim<br />

de serem abatidos, bois que provêm dos hupa's que receberam do morto e cuja<br />

carne nenhum Kuvale vai comer. "Seria comer o próprio morto". Mas se<br />

antigamente os cadaveres desses bois, depois de se lhes extraírem os cornos,<br />

que vão para o cemitério, eram deixados ao abandono e consumidos por outros<br />

homens, os Kwisi, ou pelas feras, procurar-se-á hoje trocá-los por cereais ou<br />

talvez sobretudo bebi<strong>das</strong> que serão consumidos no óbito, contactando para isso<br />

um comerciante ou transportador que os leve para a cidade ainda vivos. Aí serão<br />

abatidos e são-lhes extraídos os cornos, que regressam para assegurar a sua<br />

função no cemitério (dir-se-ia que se é interdito "comer" a carne do morto não<br />

o é "comê-lo" transformado em farinha ou "bebê-lo" - a ironia não é da minha<br />

responsabilidade, foi-me feita por um informante). Também este é um aspecto que<br />

importa aos objectivos do trabalho, por corresponder a uma modalidade de<br />

consumo dos resultados da produção económica que pode escapar às avaliações<br />

quantitativas.<br />

<strong>Casa</strong>mento preferencial<br />

1


Passemos a outros circuitos de reciprocidade partindo no entanto ainda, por<br />

razões de continuidade, da situação do óbito. Se considerarmos, ao nível da<br />

mesma geração, a interacção até aqui descrita, não já a do morto mas a do seu<br />

herdeiro. Pressupondo que se trata de um sobrinho e implicando no nosso<br />

raciocínio uma geração em que todos, pressupostamente ainda, estão vivos, vamos<br />

verificar que tudo se passa entre cunhados. O herdeiro do pai do morto é,<br />

através de uma geração interposta, aquele a quem o sobrinho do morto, e ao seu<br />

nível geracional, entrega os nampingo's de hupa e também a sua irmã, para<br />

mulher do outro; o herdeiro do pai da mãe do morto, a quem ele entregou,<br />

através de duas gerações interpostas, os nampingo's de he musungu, é também o<br />

irmão da sua própria mulher. Onde o casamento preferencial visa a filha da irmã<br />

do pai, ou o filho do irmão da mãe, se as feministas preferirem, não pode<br />

deixar de ser assim, com o que isso implica para os circuitos da reciprocidade.<br />

Quando interrogados sobre o "papel" desta modalidade de casamento preferencial,<br />

os Kuvale dizem, invariavelmente, que é para não espalhar o gado. Essa versão<br />

"funcionalista" do fenómeno pode bastar-nos aqui. Duas constatações, apenas:<br />

perante a morte de alguém e após as contas dos nampingo's, o seu herdeiro não<br />

vai buscar e trazer para casa toda a descendência dos hupa's que o seu<br />

antecessor deu aos seus próprios mwingona e que, como assinalei atrás, é<br />

estatutariamente sua, ou da sua linhagem, mas que, perante a morte em causa,<br />

ficaram ainda afectos às unidades de exploração que, teórica e também<br />

normalmente, esses mwingona integram. Ele só vai trazer consigo aqueles bois<br />

que o seu critério definir para regular as dívi<strong>das</strong> do morto e as que ele mesmo<br />

contraíu, no seio do seu turiapamu, para regular as contas dos nampingo's,<br />

mais, eventualmente, os que resolver introduzir nas dinâmicas da sua gestão<br />

directa, da sua carreira pessoal. O gado "seu" que vai deixar na mão do "primo"<br />

- mulamuhangue - não deixará no entanto de permanecer sob seu controle. Ora<br />

esse mesmo mulamuhangue seu é o esposo putativo ou já executado da sua própria<br />

irmã, ela mesma herdeira, também, do "nosso" morto, interessada igualmente,<br />

portanto, na preservação dos interesses da sua linhagem, nos bois que ficaram<br />

nas mãos desse seu primo que é ao mesmo tempo o seu marido e ao qual,<br />

concomitantemente, ela está ligada por uma comunhão de interesses no seio da<br />

própria unidade de exploração que os dois integram. Ela própria velará por<br />

eles, vigiará, controlará, e de dentro. Engenhoso e lógico, não?<br />

Arrisquemos ainda mais um passo. O filho do herdeiro em questão, esse herdeiro<br />

que deixou na mão do "primo", que é também seu cunhado, os bois que são de<br />

facto seus por direito de sucessão, virá a ser o herdeiro desse mesmo sujeito.<br />

E o seu próprio herdeiro virá a ser o filho de quem o seu filho herda. E o<br />

mesmo mecanismo se reproduz quanto aos herdeiros dos pais <strong>das</strong> mães que se<br />

implicam no dispositivo dos bois de he musungu. Assim, de facto, o gado "não<br />

espalha". E podemos, simplificando embora, apercebermo-nos da complexidade de<br />

toda a dinâmica socio-económica de um sistema como o que vigora entre os<br />

Kuvale, em que está sempre presente, sem oportunidade para desvios, uma<br />

interacção que envolve três grupos implicados num percurso circular de<br />

prestações e retornos, o que é particularmente evidente no campo <strong>das</strong> prestações<br />

matrimoniais e da circulação de esposas ( é a troca restrita da teoria<br />

estruturalista e ao mesmo tempo a expressão sincrónica da reciprocidade, que<br />

coexiste com a sua expressão diacrónica, a da reciprocidade diferida a que o<br />

processo hupa's/nampingo's confere substância).<br />

É a esta complexidade que se referem os peritos quando dizem que têm de passar<br />

à frente, por imperativos do tipo de análise e de produto que define e explica<br />

a sua especialização profissional. Como tenho conseguido dar-me ao "luxo" de<br />

levar as coisas mais longe, numa de franco-atirador, julgo que me cabe<br />

precisamente a função de disponibilizar informações que concorram para uma<br />

1


inteligibilidade da sociedade kuvale, ou outras equivalentes, por parte dos<br />

peritos e de quem decide por elas.<br />

Reciprocidade circular (aliança)<br />

Hako, hupa e he musungu são tês categorias sociais de bois indispensáveis à<br />

apreensão do sistema socio-económico kuvale, já o percebemos.<br />

Dizendo directamente respeito à circulação de animais que traduz no terreno a<br />

"ideologia" da reciprocidade, registei pelo menos mais trinta categorias que,<br />

embora se inscrevam, implicitaemnte, nas anteriores, revelam contornos<br />

sociológicos que lhes conferem um estatuto exigente de uma abordagem<br />

específica. Dentro destas trinta, as que se referem mais imediatamente às<br />

prestações matrimoniais que importa reconhecer serão pelo menos quatro:<br />

o ewina, normalmente um macho ainda pequeno que vai para a família da futura<br />

mulher, directamente para o seu irmão, se o tiver, que por sua vez o canaliza<br />

de imediato e normalmente para um filho seu, passando portanto a ser hupa para<br />

o beneficiário final; o twinya, macho também, mas adulto, destinado ao pai da<br />

noiva e a consumo imediato (não pode ser guardado); o namatuka, macho pequeno,<br />

também para o pai da noiva, através de cuja prestação o noivo adquire direito<br />

à paternidade sociológica dos seus futuros filhos com a mulher em causa, caso<br />

contrário ficarão, ainda sociologicamente, claro, filhos do pai dela; e o<br />

mahante, ainda para o mesmo, entregue à sua classe de idade pela classe de<br />

idade do futuro genro. A estes bois aparece associado um carneiro, o<br />

mbandulalaka (laka é língua e remete aqui a "palavra"), que dá ao futuro marido<br />

o direito de vir a poder admoestar a sua esposa sem que a família dela ou a do<br />

seu pai possam interferir, dentro no entanto de limites muito precisos.<br />

Este é um resumo bem estrito mas no qual, uma vez mais, se revela implícito o<br />

desempenho da articulação entre os três grupos que são as matrilinhagens e<br />

mesmo outros, os <strong>das</strong> classes de idade. Há dois aspectos ligados às prestações<br />

matrimoniais sobre os quais tenho que deter-me se não quero incorrer num lapso<br />

grave. Primeiro, aqui só foram considerados os animais incontornavelmente<br />

implicados no acto imediato de uma contratação matrimonial que se aplique a uma<br />

mulher que vá casar pela primeira vez. Se se tratar de uma divorciada ou de uma<br />

viúva o caso muda de figura. A família do defunto ou a do divorciado exigirão,<br />

de direito, ao marido actual, a compensação de tudo quanto o marido anterior<br />

tiver gasto com ela, o que incluirá, para além da prestação matrimonial que a<br />

envolveu anteriormente, todo o gado gasto em alimentação, vestuário, cultos,<br />

etc. Pode atingir mais de cinco dezenas de cabeças de gado bovino. Operações<br />

desta natureza são frequentes, e mesmo, absoluta bizarria, em relação a<br />

mulheres reconhecidamente estéreis. Conheço um caso, ilustração cabal, e<br />

revigorante, de que, mesmo num contexto em que os contratos matrimoniais não<br />

são assunto que diga respeito só a duas pessoas mas aos grupos inteiros a que<br />

pertencem, "o amor" também "conta muito". O outro aspecto é o que se refere<br />

precisamente ao facto de as interacções liga<strong>das</strong> à prestação matrimonial não<br />

revelarem de facto senão a ponta do iceberg que são aquelas que se<br />

desenvolverão no contexto da "aliança" formalizada naquele acto de união.<br />

Solidariedades<br />

As modalidades da reciprocidade referi<strong>das</strong> até aqui e envolvendo expressões tão<br />

eminentemente económicas como o consumo, a cativação da força de trabalho<br />

1


(filhos) e a acumulação (é tempo de começar a falar dela), inscrevem-se no<br />

quadro <strong>das</strong> relações directas do parentesco. Mas esta ordem socio-económica pode<br />

( tem mesmo que) ser complementada com outras articulações de reciprocidade,<br />

algumas ainda dentro do parentesco mas outras fora dele, se isso é possível. E<br />

uma, de facto, o é e inteiramente: a que envolve a classe de idade.<br />

Indivíduos que tenham em comum o mesmo pai da mãe (de quem são mutekula's) são<br />

entre si mutekwa-mukweto ( colegas na família). Uma outra relação de<br />

equivalência, mais difícil de formular mas que grosso modo implicará elementos<br />

de linhagens diferentes que têm ou se atribuem (pela via classificatória ou<br />

apenas porque querem sublinhar uma solidariedade afectiva) ligações devi<strong>das</strong> a<br />

incidências patrilineares, constituem os bwandye. No interior de cada uma<br />

destas categorias, a que chamarei de instituições de solidariedade horizontal,<br />

e mais naquela que agremia homens de uma mesma classe de idade, os ahumbeto<br />

(não vou deter-me, embora com pena, na problemática <strong>das</strong> classes de idade),<br />

desenvolvem-se correntes de reciprocidade que, para o que nos interessa aqui,<br />

questão de bois, podem assumir duas expressões distintas: acções de consumo<br />

directo de carne e acções de alocação de animais. Nenhum mutekwa-mukweto,<br />

bwandye ou ahumbeto vacilará perante a exigência de um seu igual para que abata<br />

um animal destinado a consumo imediato, circunstância a todos os títulos<br />

excepcional mas aqui, se não de todo comum, pelo menos prevista e admitida (<br />

matéria, portanto, para reflexão), a menos que opte por dar testemunho da mais<br />

completa desmunição, ou a isso o obrigue a realidade crua da vida. Kuhonga é<br />

como se chama a prática a que acabei de aludir.<br />

Em matéria de alocação de animais, a relação assenta nos mesmos princípios que<br />

regem aquilo a que poderei chamar contratações civis entre dois indivíduos,<br />

fora <strong>das</strong> estritas obrigações da solidariedade parental e segundo as quais um<br />

boi (uma vaca, talvez, para o caso) é entregue a alguém - ku thilitha - para<br />

ele "pastar" - ku thitha -, aumentar, fazer reproduzir na sua mão - ya tyita -.<br />

Ele aproveita o leite e fica o caminho aberto para contas posteriores que<br />

podem, em caso de necessidade de quem entregou, passar pela recuperação - ku<br />

pangula - de todos ou de alguns dos animais daí resultantes, o que nem sempre<br />

acontece e é bom sinal, continuando o gado que daí for havendo, porém, a<br />

pertencer, sempre e na sua totalidade, a quem dispensou a cabeça original. Pode<br />

a iniciativa partir de quem pediu - ku vinthila -, precisa, fez ku thiuritha,<br />

mas é sempre uma fórmula estrita de solidariedade, não se trata de deixar na<br />

mão do outro um animal que mais tarde se vai lá buscar - ku kapesa -, nem de um<br />

que se entregou para compensar um favor, um empréstimo - on tanikwa -, nem<br />

sequer do pagamento de um serviço - ku tumba. Sem incorrer no pecado mortal de<br />

uma antropologia estritamente funcionalista, talvez seja impossível não<br />

descortinar também aqui estratégias de aproveitamento de uma força de trabalho<br />

que estatutariamente, culturalmente, nunca é transacionável.<br />

Outras formas de circulação de gado que sem grande esforço poderiam também ser<br />

incluí<strong>das</strong> no universo da reciprocidade (alguns autores inseririam aí até o gado<br />

proveniente de acções de apropriação e de razia), como as acções liga<strong>das</strong> ao<br />

controle e à regulação dos comportamentos sociais segundo o modelo endógeno, as<br />

multas, serão menciona<strong>das</strong> em rubricas seguintes. Volto no entanto a chamar a<br />

atenção para o facto de haver quem não se aperceba, ou não reconheça, o<br />

argumento de que nem todo o gado que está na mão de alguém é dele, com o que<br />

isso implica de equívocos muito frequentes quando o exterior intervem,<br />

comerciantes e autoridades, como já referi, mas também eventualmente<br />

interventores doutra natureza induzidos a aferir a "propriedade" de alguém pelo<br />

gado que ele tem com ele, aonde habita. Tanto mais que a ressalva se ajusta<br />

quer a produtores "ricos" quer a produtores "pobres", como veremos a seguir.<br />

1


Acumulação<br />

CAP. 5<br />

SOBRE A RESOLUÇÃO SOCIAL DO SISTEMA PASTORIL KUVALE<br />

Cada observador, cada analista, cada estudioso, curioso ou mesmo comum<br />

ocidental ou ocidentalizado posto em contacto com uma sociedade pastoril, como<br />

a dos Kuvale, ensaia a sua definição, ou noção, daquilo que poderá ser um<br />

"homem rico" em tal contexto. A primeira evidência que se põe é que os traços<br />

que normalmente lhe servem de ponto de partida para aferir um quadro de<br />

diferenciações de estatuto económico noutros lugares, no seio de outros<br />

sistemas, aqui não se lhe oferecem. Não encontra sinais exteriores imediatos de<br />

riqueza. Toda a gente veste, come e se encontra instalada aparentemente da<br />

mesma maneira. A acumulação e a estratificação, a existirem, hão-de manifestarse<br />

de outras maneiras. E a muitos desses observadores, em contacto com os<br />

Kuvale porque estes são, afinal, também actores dentro do mesmo processo global<br />

que os trouxe ali, hão-de interrogar-se sobre a "racionalidade" de uma lógica<br />

produtiva que permitindo e garantindo, embora, a acumulação e os excedentes de<br />

que vêm à procura, não a traduz no entanto em sinais exteriores de riqueza,<br />

quer dizer, em diferenciações no vestir, no habitar, em número de carros ao<br />

serviço da família ou mais prosaicamente acumulados no quintal e, mais longe,<br />

em viagens, férias, tratamentos na Africa do Sul ou filhos a estudar no<br />

exterior. Há "Mucubais" com bois que dariam para isso. Outros, mais<br />

apetrechados de formação, leituras<br />

ou referências, dirão que as sociedades pastoris são "estruturalmente"<br />

igualitárias. A estratificação e os sinais da diferença estão no entanto lá. Só<br />

que inseridos, de facto, noutra lógica e, consequentemente, noutra prática.<br />

Há mesmo homens muito ricos, "o seu gado é como tyisinde, capim rasteiro e que<br />

não acaba nunca, se expande por toda a parte. Um homem assim pode até ficar<br />

parado, a riqueza que tem desenvolve sozinha, ele é um elombe. Depois há homens<br />

ricos que ainda assim têm que mexer-se para manter a riqueza, esses são vahona,<br />

há homem pobre normal, tem só dez bois ou coisa assim, é hepi, e há também o<br />

pobre máximo, gonde, é como o cão, que não tem nada".<br />

Para uma noção de homem rico<br />

Para mim um homem kuvale rico, a fórmula que utilizo quando me perguntam ou<br />

quero dizer o que é um homem kuvale rico, é, segundo o que tenho ouvido, visto<br />

e constatado, alguém que pode, como em toda a parte, usufruir à vontade daquilo<br />

de que necessita e sempre lhe sobram recursos, onde quer que vá e onde quer que<br />

esteja, e não desdenha dar prova disso, ou porque isso está implícito à sua<br />

capacidade de consumo num contexto social onde nada se consome sozinho, mesmo<br />

uma simples garrafa de licor que se tenha recebido de presente, seja porque dar<br />

prova dessa aptidão faz parte da sua própria estratégia de homem rico, riqueza<br />

chama riqueza. Só que aqui a satisfação <strong>das</strong> necessidades físicas, sociais e<br />

mesmo culturais passa por bois, cabritos e carneiros. Um homem rico é um homem<br />

1


que em todo o espaço kuvale e mesmo em vizinhanças, que é todo o território que<br />

ele visa, o universo do exercício em que se investe, chegando lá e havendo um<br />

comerciante com vinho e com farinha, ele chama alguém e pergunta: "- Não tem aí<br />

um garrote em condições de trocar, que tenha saído do muhoko (estória,<br />

carreira, percurso de vida) daquela vaca bahue (tipo de pelagem) que o tio do<br />

tio do meu tio, he musungu do homem que tu "rendeste" (de quem her<strong>das</strong>te) lhe<br />

entregou quando ele era miúdo? Então traz lá, vamos "comê-lo" (transformá-lo em<br />

farinha e vinho)". Ele está neste caso a fazer kuhomununa, a recorrer ao gado<br />

que tem espalhado. <strong>À</strong> sua volta vai-se juntar muita gente a comer e a beber. Ele<br />

é um homem rico.<br />

Mas na sua onganda , onde reside, ele não tem mais bois do que um homem menos<br />

rico. A relação meio-sistema, como já vimos, e tudo quanto lhe está ligado, a<br />

capacidade de carga <strong>das</strong> pastagens e de movimentação física dos animais em<br />

relação a um ponto de água, a estrutura social doméstica, a estrutura<br />

residencial, a gestão de todos os equilíbrios que fixam os termos dessa<br />

relação, determina a dimensão do rebanho de manutenção que o cerca.<br />

O seu gado está espalhado e a sua atenção virada para to<strong>das</strong> as direções. Ele<br />

tem gado nos buluvulu's, sobre o qual ainda assim exerce um controle imediato e<br />

directo que actualiza fisicamente em cada estação fria, quando as transumâncias<br />

refluem e as famílias e os animais se concentram, e tem gado nas mãos de<br />

parentes, de ahumbeto's, de amigos e de estritos dependentes, por todo o<br />

território kuvale e às vezes para além dele. E tem gado com ele sobre o qual há<br />

outros, alguns até bem pobres, que detêm direitos. Ele é evidentemente detentor<br />

de recursos e mais recursos, animais que lhe garantiriam prover sozinho a to<strong>das</strong><br />

as ocorrências de nampingo, de casamento, de multa, de aprovisionamento de bens<br />

de consumo, bastaria mandar buscar onde tem a haver, não precisa pedir. E no<br />

entanto o leite que bebe provirá muito provavelmente de vacas que na realidade<br />

"pertencem" a outros. Ele joga o jogo.<br />

Quando levanta gado, faz kuhomununa ou kurianbula, conforme se trata de animais<br />

que deixou na mão de outrem na sequência da morte de um seu antecessor<br />

estatutário ou porque lhos alocou, lhos cedeu para que esse outrem os aproveite<br />

e ao mesmo tempo os desenvolva, ele está, ao mesmo tempo que actualiza a sua<br />

autoridade sobre aqueles bois, acto político e probativo da extensão do seu<br />

poder, recorrendo a uma produção realizada fora do círculo imediato da unidade<br />

de exploração local que ele controla directamente e em que está domesticamente<br />

integrado, produzida portanto em seu benefício através de uma força de trabalho<br />

externa. Mas de acordo com o que vimos anteriormente também essas colocações de<br />

gado se fazem predominantemente no quadro da reciprocidade diferida. Ele terá<br />

também ficado, obrigatoriamente, com bois que eram do seu pai e os herdeiros<br />

deste deixaram na sua mão sem poderem abdicar do direito que sobre eles<br />

estatutariamente preservam. E mesmo os empréstimos de bois para nampingo,<br />

embora não possam ser entendidos como operações que geram obrigatoriamente<br />

benefício acrescentado, acabam por constituir um outro terreno de circulação de<br />

bois, mais putativa do que física , tributário <strong>das</strong> dinâmicas da reciprocidade.<br />

A estratégia, neste caso, será a do alargamento do turiapamu de cada um à<br />

escala, puramente virtual, da eanda total, o que é dizer, tendo em conta a<br />

interacção que o casamento preferencial implica, alargar as cadeias de<br />

reciprocidade a to<strong>das</strong> as mahanda e, pura abstracção, mesmo para além delas. De<br />

qualquer maneira a posição de alguém no contexto da actividade que desenvolve<br />

corresponde à extensão social <strong>das</strong> reciprocidades em que está implicado, e a<br />

dinâmica própria ao sistema permite visar uma acumulação ilimitada de retornos<br />

simétricos. Ele não se pode assim limitar-se a dar, tem que receber também.<br />

1


Há homens, assim, que, mesmo que quisessem, não conseguiriam deixar de ser<br />

ricos, a menos que se abatesse uma catástrofe global e total sobre todo o grupo<br />

e o sistema se desmantelasse (e mesmo assim... os homens mais ricos de hoje e<br />

que pertencem sem dúvida à linhagem hegemónica a que já fiz referência, ou dela<br />

são filhos, são-no também porque durante a guerra de 194O-41 souberam fazer-se<br />

poupar pelas forças portuguesas e talvez tenham até beneficiado da<br />

"redistribuição" do gado apreendido aos outros). Mas um homem rico do comum tem<br />

que zelar pela manutenção e pela reprodução da sua riqueza. Aliás todos o<br />

fazem, de uma maneira geral, depende do carácter individual de cada um. Vivi e<br />

inquiri junto do homem apontado por todos como o homem mais rico do mundo<br />

kuvale, aquele que pode recorrer a bois que tem, e muitos, até na Namíbia.<br />

Passou dias seguidos, e ajudei-o nisso conduzindo-o de carro até pontos muito<br />

distantes para poupar-lhe esforço e aproveitar,eu, a oportunidade para<br />

observar, à procura de uma vaca velha que, tendo sido trazida dos buluvulu's<br />

para ser integrada no gado da onganda, não aceitou e abalou pelos matos, se<br />

perdeu à toa.<br />

O acesso à riqueza, a sua manutenção e reprodução, exige evidentemente vários<br />

tipos de talento. O da aplicação e do gosto pelo que se faz, bem entendido e<br />

como acabei de ilustrar, mas também aquele know-how que inclui uma atenção<br />

virada para todos os recursos combináveis, técnicos, bem entendido, mas também<br />

um inequívoco talento social ( a reciprocidade, tabuleiro do sistema, é<br />

relação) e uma colocação adequada face a outros factores que intervêm: é<br />

preciso ter sorte, saber detê-la, geri-la, defendê-la, senão promovê-la. Tudo<br />

se passa, creio, como em qualquer outra parte pelo mundo fora, a racionalidade<br />

é a mesma, só que aqui os investimentos assumem os contornos culturais do<br />

lugar e importa conhecê-los se quisermos abordar com propriedade o passado, o<br />

presente e o conjecturável futuro da sociedade, da "comunidade" que nos ocupa.<br />

E isso acabará por remeter-nos a terrenos onde intervem dominantemente o<br />

simbólico, matéria quase sempre evitada, contornada, não considerada ou até<br />

francamente desprezada por quem não seja antropólogo, mesmo sabendo, toda a<br />

gente o sabe, que há expressões económicas, mesmo aquelas que se podem<br />

quantificar sem esforço, que passam obrigatoriameente pelo simbólico porque é<br />

ele que as dinamiza, actualiza e revela, afinal. Exibir carros, casas, roupas,<br />

viagens, antenas parabólicas e apoios a clubes desportivos não é "simbolizar "<br />

a riqueza?<br />

De competências técnicas já terei dado notícia, ou indiquei pistas, que embora<br />

muito aquém de um tratamento satisfatório talvez possa ser entendida, no âmbito<br />

deste trabalho, como bastante. Das fontes a ter em conta como recurso social<br />

para ter acesso a gado falei de processos de herança, de alocação de hupa's e<br />

de outras categorias de bois, do seu retorno ou "troco", aludi também a multas,<br />

assunto a que voltarei, e referi mesmo razias e apropriações. Vou deter-me um<br />

pouco, assim, no factor sorte, e a partir daí tratar domínios tão eminentemente<br />

económicos como o consumo ritualizado e a redistribuição.<br />

A gestão do factor sorte<br />

Sorte, em olukuvale, é elao. Elao é também o nome do local, o nome do altar, se<br />

quisermos, onde arde o fogo - murilu - dos Kuvale, em frente de uma <strong>das</strong> casas<br />

da onganda, ou de mais de uma, como é mais comum, porque aí vivem várias<br />

famílias juntas, vários homens que detêm, pela via da sucessão patrilinear,<br />

vários fogos. Cada fogo pertence a uma <strong>das</strong> várias categorias de fogo que são<br />

reconheci<strong>das</strong> pela sociedade, e essa será uma <strong>das</strong> pistas para identificar, se a<br />

pesquisa apontar para aí, patrilinhagens ou grupos de patrilinhagens. O fogo<br />

protege a "casa", as famílias que lhe estiverem associa<strong>das</strong> (é um dos irmãos,<br />

apenas, que recebe o fogo deixado pelo pai e zela por ele , é o muni-murilu, o<br />

1


chefe, o dono do fogo que depois cede aos irmãos, aquele que detem o thipo, a<br />

saquinha onde se preservam e renovam as "coisas" do fogo) e principalmente,<br />

claro, os bois. A esse fogo estão implícitos inúmeros interditos e obrigações<br />

que regulam a vida prática <strong>das</strong> pessoas e dos grupos. Ele pode ser afectado pelo<br />

comportamento que cada um, e não se deve, em princípio, "mexer-lhe", quer<br />

dizer, alterar a fórmula da combinação dos ingredientes que são enterrados num<br />

buraco sobre o qual ele arde quando todos os dias é reavivado pelo seu próprio<br />

dono ou por uma filha sua, se existir, ou mesmo um filho. Não se deve mexer no<br />

fogo mas mexe-se, cada um acabará por querer acrescentar-lhe alguma força nova<br />

ao longo da sua vida pessoal, quer se ocupe do próprio fogo-mãe, recebido<br />

directamente do pai, quer de uma extensão desse, recebido de um irmão. É por aí<br />

que pode começar a incidência de alguém sobre a sorte que lhe cabe. Mas um<br />

homem vai, normalmente, mais longe. <strong>À</strong> sorte pode aceder-se, também e para além<br />

da via do respeito pelo "fogo sagrado ancestral", pelo recurso a outra ordem de<br />

intervenções. Não se tratará de qualquer recurso marginal, tratar-se-à de uma<br />

prática integrada.<br />

A par do roubo e do adultério, a feitiçaria é a matéria que mais casos fornece<br />

às jurisdições locais e à circulação de gado que resulta da aplicação de<br />

multas, sendo este, por sua vez, o domínio que maiores contingentes de bois<br />

movimenta no campo <strong>das</strong> hipóteses de acesso não institucionalizado, fora <strong>das</strong><br />

sucessões e <strong>das</strong> prestações, a gado. A bibliografia geral sugere que assuntos de<br />

feitiço não constituem um traço marcante <strong>das</strong> culturas pastoris, mas isso<br />

talvez não seja o que se passa aqui. As acusações de feitiçaria são muito<br />

frequentes, a aceitação por parte de alguém de que actuou como feiticeiro<br />

porque recorreu de facto a um "kimbandeiro", e isso pode ter implicado a morte<br />

de alguém sem que ele o tenha solicitado, são comuns, e a imputação do recurso<br />

dos homens ricos a "altas operações de feitiço", kwakulwamunthu, por exemplo,<br />

que é etampa, isto é, diz directamente respeito a gado e implica morte<br />

obrigatória de pessoa dentro da família, pode vitimar até vinte familiares e<br />

desencadear violências sociais como incesto ritual ( haverá casos que o<br />

exigem), não os poupa, de maneira mais ou menos geral. Ao lado desses aparecerá<br />

quase sempre um pakapwapo, alguém que é tido sempre como feiticeiro mas o outro<br />

é que é, "só que já era rico, a sua riqueza parece que vem do fogo, dos seus<br />

pais, e além disso ele é bonzinho, faz muitas kutonda's, dá muita carne a comer<br />

a toda a gente".<br />

O enquadramento ideológico destes simples enunciados obrigaria a uma longa<br />

viagem pelos sistemas de regulação, de representação da riqueza dos outros,<br />

pela estigmatização da rotura e da marginalidade e pela marginalização de<br />

alguns, que constituem o universo da feitiçaria em toda a parte do Mundo. É<br />

matéria a que nenhum Kuvale (ia a dizer Angolano...), arrisco, é inteiramente<br />

alheio. Tanto mais que não implica apenas acções de agressão visando a sorte e<br />

a riqueza, também obriga à defesa contra as agressões alheias. Não há nenhuma<br />

kutonda (termo que só agora introduzo e cujo significado exacto darei a seguir<br />

mas que, para o caso, dirá respeito a uma situação em que se abateu gado para<br />

consumo e está muita gente junta para comer carne) que não comporte à partida<br />

tratamentos de kuykulu, para prevenir desmandos, e de kwieka, para prevenir<br />

cobiças. Tudo o que implica a vida do anfitrião, a sua "casa", a sua família,<br />

o seu gado e o seu próprio fogo vão estar ao alcance <strong>das</strong> vistas dos que<br />

comparecerão e entre esses há, necessariamente, homens ”muito apetrechados” em<br />

matéria de feiti(c)o. A inveja é universal e universalmente tida, também, como<br />

ponto de partida para o mal. Há feitiços de kuvinga que não visam senão<br />

estragar a vida dos bois do outro, a própria vida do outro, bastando para isso<br />

levar terra da marca do seu pé ou porção do seu excremento. Dá para rir? Talvez<br />

dê para rir mas conta na vida de quem acredita e, que eu saiba, não há nenhum<br />

produtor de bois Kuvale, que é o que nos interessa aqui, que não acredite. E<br />

1


poderá até contar na vida de quem não acredita, basta para tanto que se<br />

proponha actuar e relacionar-se no seu seio nem que seja só para recolher dados<br />

sobre a vida da "comunidade": " - Você tem muitos bois, lá, nos buluvulu's?"<br />

Ninguém lhe responderá com a verdade. Seria abrir a porta a intervenções<br />

alheias. Um obstáculo mais a quantificações fiáveis, portanto.<br />

Redistribuicão<br />

O tempo frio, de Junho a Setembro, é chamado pepela. É o tempo do consumo da<br />

carne. Encerrou-se a época <strong>das</strong> chuvas, o gado ainda anda a comer capim novo,<br />

está gordo, os buluvulu's regressaram, as onganda's, que nalguns casos tinham<br />

sido encerra<strong>das</strong>, foram reocupa<strong>das</strong> e foi refeito o fogo. Por essa altura,<br />

sobretudo já a partir do fim de Junho e por Julho dentro, têm lugar grandes<br />

concentrações de pessoas para o consumo sazonal e ritualizado da carne.<br />

Para esses meses, de facto os mais frios e os mais propícios também à<br />

conservação da carne, convergirão, estatisticamente, os casamentos, por<br />

exemplo, e vários cultos. Estes cultos parece terem vindo a intensificar-se nos<br />

últimos anos.<br />

A interpretação deste tipo de manifestações sociológicas aparece quase sempre<br />

associada à consideração de condições de crise e por Angola inteira fervilham<br />

cultos. Aqui eles aparecem também ligados a uma evidente disponibilidade de<br />

gado para abater, e este será mais um sinal da singularidade kuvale. Dentro<br />

destes cultos serão certamente de assinalar os de espíritos familiares - yo<br />

hande - que transmitem talentos pessoais, como é o caso para os jovens que são<br />

iniciados na arte da guerra, da razia, e os de espíritos estranhos,<br />

estrangeiros, como os que envolvem sobretudo as mulheres. Os de makumuka<br />

introduziram-se sobretudo já depois da independência pela parte sul da região,<br />

a partir da Huíla e dos Gambos, os de ndundu tem lugar sobretudo ao Norte. De<br />

makumuka's tenho testemunhado muitas situações, parece haver uma constante<br />

emergência de neófitas, e de cada vez ocorre o consumo de um boi<br />

obrigatoriamente dispensado pelos maridos destas. A presença do espírito faz-se<br />

conhecer por alterações na saúde e no comportamento da mulher e isso constituiu<br />

uma perturbação maior na vida e na operacionalidade doméstica sobre a qual é<br />

necessário intervir dando curso a um processo de iniciação. As cerimónias de<br />

iniciação sucedem-se umas às outras e accionam uma cadência generosa de<br />

situações de consumo a nível de determina<strong>das</strong> zonas, como aquela em que<br />

sobretudo inquiri, e períodos de ponta noutras, mesmo fora do tempo frio,<br />

quando por exemplo uma senhora reconhecida pela sua qualidade de tyimbanda de<br />

makumukas se desloca até lá, expressa ou episodicamente. Deparei com cerimónias<br />

destas em Janeiro, quando ainda se aguardavam as chuvas da estação e depois de<br />

um ano crítico, em plena situação de penúria generalizada.<br />

Também na estação fria podem ter lugar "festas" de grande expressão mas de<br />

carácter excepcional. Assisti a uma no Virei, em 1995. Tratou-se de uma grande<br />

operação de culto - kuiambela - prestada ao seu pai falecido há alguns anos por<br />

um homem verdadeiramente "rico", aberta a toda a gente, kuvale ou não, e que<br />

trouxe gente de muito longe. Constou de uma deslocação em massa ao cemitério<br />

onde o falecido estava enterrado e da votação ao seu culto de muitos animais<br />

1


jovens que daí para a frente passaram a pertencer à categoria kakethe, ficando<br />

sujeitos a sérias restrições a utlização do leite e da carne que viessem a<br />

produzir. Bois adultos para consumo imediato e generalizado a um nível<br />

verdadeiramente sumptuário, doze animais, foram abatidos na ocasião.<br />

Consumo ritualizado de carne<br />

Num contexto mais restrito, a um nível do que poderemos considerar como<br />

implicações de vizinhança, tem lugar anualmente uma sequência de situações<br />

também de culto aos pais falecidos dos homens mais abastados, cada um dos quais<br />

abate normalmente pelo menos dois animais. A uma cadência por assim dizer<br />

semanal, segundo o que observei em 1994, e ao longo de dois meses, praticamente<br />

toda a população da zona vai ter acesso a uma abundante ração de carne. O<br />

acesso a estas festas passa por convites nominais, por avisos, mas isso<br />

corresponde sobretudo, posso conjecturar, a um aparato de formalização e<br />

actualização de um código muito mais amplo de relações e de reciprocidades a<br />

que a festa no seu todo vai dar curso. Tanto quanto me tenho apercebido, os<br />

convites formais acabam por abranger, por extensão, toda a população da zona, e<br />

mesmo os visitantes ocasionalmente estacionados junto dos que são convidados<br />

acabam por acompanhá-los ou então por consumir, tal como outras pessoas que não<br />

se deslocaram, carne que esses trouxeram da festa. Até eventuais passantes,<br />

pessoas em trânsito e de qualquer proveniência, "étnica" inclusive, serão<br />

acolhi<strong>das</strong> na cerimónia, se houver carne não sacralizada que lhes possa ser<br />

distribuída. Estas festas são anuncia<strong>das</strong> dizendo que "Fulano vai matar". São as<br />

kutonda’s. Ku tonda significa, mais do que matar, separar do resto do corpo a<br />

cabeça e os cornos dos animais sacrificados.<br />

Esses cornos, se o boi é de hupa, vão juntar-se aos de outros animais dessa<br />

categoria sacrificados anteriormente e entalados na pequena paliçada, thifa de<br />

troncos de mwahina - Terminalia prunioides - que constituem o topo dos elao,<br />

dos altares, onde é depositada a carne . Essa carne, de boi hupa, só será<br />

consumida por pessoas kuvale reputa<strong>das</strong> "limpas". E começa por aí a complexa<br />

ordem de restrições e de normas liga<strong>das</strong> ao consumo ritual da carne, a<br />

ritualização do consumo que articula e integra as várias instâncias do sistema<br />

global, circunstância tão evidente e rica de detalhes, nas kutonda's, que<br />

ocorrerá de imediato pensar que estarmos na presença de um daqueles actos<br />

sociais totais para os quais Marcel Mauss, há mais de cem anos, chamou a<br />

atenção. Dessa complexidade extraírei apenas para aqui os aspectos mais<br />

imediatamente significativos para a apreensão do seu nexo pragmático.<br />

São pois abatidos, normalmente, pelo menos dois bois, um de hupa e outro de<br />

hako. As restrições que pesam sobre o consumo da carne de hupa assim o<br />

determinam se se quiser aproveitar a oportunidade para dar prova de<br />

prosperidade e riqueza, disponibilizando carne para toda a gente. Por isso<br />

alguns homens, se realmente não podem dispor de dois bois e abatem apenas um, o<br />

fazem em homenagem à sua classe de idade, utilizando para isso um boi de hako<br />

cuja carne está aberta a todo o mundo. O culto aos seus pais é de qualquer<br />

forma assegurado ao longo de todo o ano através de outros sacrifícios -<br />

kurikutila - quando a sua necessidade pontual se faz sentir, e nessa altura<br />

implicam sobretudo carneiros ou vacas velhas ou maninhas.<br />

Os bois de hako abatidos não são abrangidos por qualquer estatuto especial e<br />

podem mesmo ser animais "sem família", epongo. A necessidade de bois<br />

1


inteiramente desenvolvidos e em bom estado de carnes - du mintho - para a<br />

operação pode dar mesmo lugar a trocas circunstanciais em que são movimenta<strong>das</strong><br />

fêmeas jovens, nemas. É uma oportunidade para alguém que recebeu um macho hupa<br />

de um dos seus pais o trocar por uma fêmea que assume esse estatuto e vai<br />

assim assegurar a reprodução do benefício. Os bois de hupa abatidos são animais<br />

de linhagem animal reconhecida, bois com muhoko, com uma história que pode<br />

comportar muitas gerações de animais e envolver várias gerações de pessoas. São<br />

por outro lado bois du mintho, bois de "respeito", os bois-soba da linguagem<br />

dos comerciantes.<br />

Estes du minthu constituem o verdadeiro excedente do sistema económico kuvale.<br />

Outros machos, maiores ou menores, foram, ao ritmo da sua produção, trocados<br />

por milho ou outros bens de consumo. Os du mintho foram preservados para a<br />

modalidade de consumo a que estou a referir-me ou para os óbitos. Através deles<br />

se pode aferir mais imediatamente a prosperidade de cada um e eles são<br />

francamente utilizados, quando é caso disso, como nas kutonda's, enquanto<br />

argumento de prestígio. Todo o produtor aguarda com impaciência o regresso<br />

sazonal dos buluvulu's às onganda's para se deleitar perante os seus du mintho,<br />

e as mulheres usam, para os proteger, correias que entrelaçam às que protegem<br />

os seus próprios filhos e usam enrola<strong>das</strong> à volta da cintura, por debaixo dos<br />

panos.<br />

A carne proveniente do boi de hupa abatido é depositada no elao e cozinhada nas<br />

suas imediações, a dos hako é cozinhada à esquerda da entrada do curral dos<br />

vitelos e depositada na cerca de espinheiras que o define. Dessa carne é<br />

separada uma parte - vithila - que corresponde à zona do corpo que se associa<br />

à morte do antepassado homenageado e sobre ela vão incidir restrições<br />

equivalentes às que pesam sobre toda a carne dos hupa. Para além de não poderem<br />

comer lá homens solteiros e gente "poluída" ou não kuvale, também os filhos e o<br />

herdeiro do homenageado morto o não fazem, seria "comer o seu próprio pai". O<br />

facto de a carne de hupa e a de hako não corresponderem ambas ao culto do mesmo<br />

antepassado, podendo uma referir-se ao pai do homem e outra ao da sua ou de uma<br />

<strong>das</strong> suas mulheres, facilita as coisas para efeitos de consumo. Quando não for<br />

caso disso abate-se um carneiro, donde comerão os "filhos" do antepassado em<br />

questão ou visitas, como eu.<br />

A carne dos animais sacrificados é criteriosamente dividida e classificada. Há<br />

a primeira e a segunda carne, a carne da noite e a carne de amanhã. Há a carne<br />

do peito, a <strong>das</strong> costelas (são várias as carnes <strong>das</strong> costelas, de facto), a dos<br />

grandes ossos e dos ossos pequenos <strong>das</strong> pernas, os próprios ossos, as vísceras<br />

com o sangue, to<strong>das</strong> elas investi<strong>das</strong> da sua especificidade nos quadros da sua<br />

utilização ritual ou pragmática, incluindo a carne que se agarra à pele,<br />

vityeko, que contempla expressamente os cães. Como pistas que podem interessar<br />

a especialistas da nutrição humana, ocorre-me referir, por exemplo, que o<br />

sangue e as vísceras serão preservados para as mulheres, específicamente para<br />

as mulheres jovens que asseguram o contínuo e volumoso provimento de lenha e<br />

água a que a festa obriga. Os ossos, por outro lado, são destinados aos mais<br />

velhos presentes, chamados um a um para recebê-los e que por sua vez chamam<br />

para ajudá-los homens jovens da sua própria linhagem. Estes partem os ossos e<br />

entregam aos velhos "aquela parte branca pouco dura", ontwa. Os jovens comem o<br />

tutano do interior.<br />

Esta referência à introdução <strong>das</strong> articulações de parentesco em situações de<br />

consumo ritualizado abre caminho para a constatação de que as kutonda's são um<br />

terreno de actualização <strong>das</strong> mesmas e para a percepção de que também actuam no<br />

mesmo sentido quanto a outros níveis de articulação relacional. O trabalho de<br />

abate dos animais, por asfixia e também sujeito a uma ritualização exaustiva, a<br />

1


divisão da carne e a sua cozedura, são tarefas atribuí<strong>das</strong> aos jovens adultos<br />

segundo regras que observam a sua colocação nos quadros do parentesco que<br />

envolvem o "dono" da kutonda ou da sua mulher ou mulheres implica<strong>das</strong> nas<br />

estórias dos animais sacrificados. Bastará talvez ficar por aqui a este<br />

respeito, mencionando apenas o facto e sem entrar em maiores detalhes. O mesmo<br />

não poderei fazer quanto à regulação de outras situações dentro de cada<br />

kutonda.<br />

Vivem-se momentos de grande expectativa e tensão quando as pessoas são<br />

nominalmente chama<strong>das</strong> para participar no acto de comunhão que o consumo da<br />

vithila de facto é se quizermos arriscar analogias religiosas, e quando,<br />

nominalmente também, é distribuída a pele dos animais. Só são chamados a<br />

consumir vithila, já o disse, homens kuvale casados e limpos. Para muitos<br />

jovens adultos, sobretudo para quem andou por fora, e aqui avultam, no<br />

presente, aqueles que estiveram na tropa, esta é uma <strong>das</strong> ocasiões em que a sua<br />

legitimidade, a sua "identidade" kuvale, que aqui excede critérios biológicos<br />

ou mesmo estritamente sociais, é posta à prova. A sua reintegração nas<br />

dinâmicas do grupo, após, por vezes, longos anos de ausência e hipotéticos,<br />

altamente prováveis, comportamentos poluentes fora do controle do grupo, tais<br />

como passar por cima da endogamia grupal, ou a sua exclusão, pode ser decidida<br />

em ocasiões como esta, mesmo que tenham passado por outras provas como a da<br />

obtenção de esposa após o seu regresso. Os critérios do dono da festa , ou da<br />

pessoa que ritualmente oficia nela, o mwarilume, a quem me referirei a seguir,<br />

podem ser, obviamente, mais estritos e mais isentos do que os dos sogros, e o<br />

peso do seu prestígio, reafirmado pela festa que está a dar, pode influir ou<br />

decidir consensos decisivos. Assisti a situações de tanto quanto possível<br />

discreto mas evidente embaraço de ex-militares circunstancialmente excluídos,<br />

postos assim perante uma carreira que acabaria por poder remetê-los, com o<br />

tempo e mais ou menos subtilmente, à condição de banidos - kuiavula.<br />

Mwarilume é uma pessoa designada por consenso <strong>das</strong> famílias implica<strong>das</strong> e sempre<br />

que a ocasião se apresenta, para oficiar em to<strong>das</strong> as situações - óbitos,<br />

nampingo's, kurikutila's, kutonda's e outras - que estabelecem uma relação<br />

entre alguém e a figura do seu pai falecido ou a linhagem deste. O mwarilume<br />

sai dos moname, família afastada do falecido, ainda dentro da eanda mas para<br />

além dos segmentos linhageiros que o envolvem mais directamente. É a ele que é<br />

entregue o cadáver de alguém que acaba de morrer e, através dele, portanto, à<br />

eanda do seu pai. Numa situação de kutonda, como a que estamos a acompanhar, é<br />

a ele que cabe o ofício dos actos em que o antepassado a quem se sacrifica é<br />

interpelado para actuar, no mundo do além, a favor do seu filho e de todos os<br />

seus dependentes imediatos. Isso ocorre na cerimónia inicial - kundu - ,em que<br />

todos os circunstantes, um simples observador como eu incluído, são marcados<br />

com mpeio, pó de calcário, e a famíia é ungida com óleos, no acto de provar -<br />

kumakula - a primeira carne e na benção final que consta de uma nova unção com<br />

a gordura da pata anterior esquerda - kwalavokwa - do boi abatido, situações<br />

estas que envolvem apenas a família. Ao mwarilume é atribuída toda a carne do<br />

peito do animal - lukolo - que ele redistribui conforme os seus critérios, e<br />

metade da pele, com o que ele procede da mesma maneira. A outra metade da pele<br />

é distribuída pelo dono da kutonda. Tiras longitudinais com a largura de uma<br />

mão travessa são extraí<strong>das</strong> destas duas metades da pele e distribuí<strong>das</strong> a<br />

"notáveis" presentes. O próprio acto decide da colocação de um sujeito no<br />

âmbito deste estatuto, da sua introdução ou estabilização nele. São momentos<br />

decisivos na carreira de um homem, são veredictos da sociedade, não se pode<br />

argumentar honestamente sobre quadros de estratificação no interior de uma<br />

sociedade sem ter em conta o modo como a própria sociedade encara a questão e a<br />

regula, e são situações como esta que o revelam. Das tiras da pele, que podem<br />

imediatamente ser transmiti<strong>das</strong> a outra pessoa por quem as recebeu em primeira<br />

1


mão ( a redistribuição desmultiplica-se), far-se-ão sapatos - on kako - ou<br />

cintos - o muvia.<br />

Tratei, com a economia possível, o quadro de uma operação de redistribuição de<br />

carne através do consumo ritualizado que é, por sua vez, um instrumento de<br />

regulação da própria redistribuição e dos contornos da sociedade. Apenas tive<br />

em conta as modalidades e as implicações mais singelas. Nas kutonda's que me<br />

serviram aqui de referência apenas intervieram bois profanos, hako, ou<br />

moderadamente sacralizados, hupa's vulgares. O caso pode ser bem mais<br />

complicado. Um boi hupa pode estar investido de uma carga simbólica bem mais<br />

pesada. Bois que tenham sido levados ao cemitério em situações como as que<br />

referi quando mencionei as kuiambela ou deles provenham, quando atingem a<br />

estatura de du mintho's e são destinados a consumo ritualizado, recebem a<br />

designação de wanavipa e são objecto de disposições que obrigam a queimar-lhes<br />

a pele e os ossos, para que se não espalhem e profanizem, roubando força ao<br />

fogo a que estão ligados. Nem os restos da sua carne podem ser dados aos cães.<br />

"Ali só come quem é afiançado mesmo". As restrições que lhes estão liga<strong>das</strong><br />

podem ilustrar o que tenho a dizer aqui sobre o consumo do leite. É o que<br />

veremos a seguir.<br />

Cobertura ideológica - códigos/integração<br />

Sobre o leite dos hupa’s pesam ainda mais restrições do que as que incidem<br />

sobre o consumo da sua carne. Dele não pode fazer-se manteiga - kwaka - e isso<br />

vem-nos confirmar de que forma, num meio que impõe períodos de um equilíbrio<br />

tão precário entre os recursos e o sistema de produção, até a manteiga pode ser<br />

entendida como um excedente, um resultado que pode ter que excluir-se <strong>das</strong><br />

estratégias que visam a gestão mínima vital. O leite <strong>das</strong> vacas de hupa não pode<br />

misturar-se com leite de outra proveniência e nem mesmo a utensilagem que lhe<br />

está ligada, ou o local de manuseamento desse leite, podem confundi-lo com o<br />

leite comum, saído <strong>das</strong> vacas hako. O leite hupa destina-se ao consumo exclusivo<br />

de quem as tenha recebido (do seu pai, dos seus pais) e dos filhos que for<br />

gerando. Quem pertence à linhagem dos pais do beneficiário, a não ser que se<br />

trate da sua própria mulher ou filhos, sob pretexto nenhum consumirá leite<br />

desse. "Deram-lhe hupa's não é para depois irem lá comer deles" mas para<br />

garantir ao filho condições para abrir o seu caminho na vida. O gado hupa é a<br />

segurança da "casa" de cada um. O vocábulo hupa designa cabaça do leite, mas em<br />

tyihelelo significa também vida, e é este o significado que talvez interesse<br />

reter para o caso. Outras sínteses explicativas podem ser formula<strong>das</strong> a este<br />

respeito, tais como: "É a eanda do teu pai que te dá o empurrão para entrar na<br />

vida; é a tua (a da tua mãe, do teu tio), que te instala nela através da<br />

herança. É esta, por sua vez, que dará o arranque inicial na vida do teu<br />

filho". Ou: " Duas mahanda empurram-se uma à outra". De facto, como vimos<br />

atrás, "duas mahanda (na realidade trata-se de duas metades de duas mahanda,<br />

mas não compliquemos) dão curso, através do casamento preferencial, a uma<br />

modalidade de sucessão masculina, a uma patrilinearidade reconhecível e<br />

previsível que, formalmente ou não, dá lugar a uma efectiva patrilinhagem<br />

"empírica".<br />

A gestão do gado hupa decorre portanto de um corpo de códigos que o destina<br />

prioritariamente, e se necessário exclusivamente, à manutenção e, em casos<br />

extremos, à sobrevivência da célula familiar mínima, à família nuclear de cada<br />

homem. E se, de facto, após a morte do pai, o seu próprio filho está<br />

1


interditado de comer leite dos hupa que dele recebeu, como acontece com a<br />

carne, haverá, para seu consumo pessoal, leite de hupa's deixados por outros<br />

"pais" seus ainda em vida, ou ele já avançou suficientemente na idade para, em<br />

termos práticos, ter já tido acesso a hako's provenientes de heranças ou do<br />

seu investimento pessoal.<br />

Esta afetação de gado, e de consumos, ao domínio do sagrado e do religioso e,<br />

logicamente, a afectação simétrica do sagrado e do religioso ao domínio do<br />

económico, assume uma expressão extrema quando os hupa's considerados se<br />

guindam ao estatuto de kakethe. São bois kakethe todos aqueles que estão<br />

ligados à morte do pai: os filhos de uma vaca que é obrigatoriamente abatida à<br />

catana para que os seus cornos o acompanhem ao cemitério, os quais por sua vez<br />

também são conduzidos aí acompanhados por outras crias (ficam a ser betatifwa,<br />

no seu conjunto) para que lhes sejam extraídos pedaços <strong>das</strong> orelhas que com o<br />

sangue vertido entram na sepultura, e aqueles - kekwa - a que se faz o mesmo<br />

quando por exemplo os percursos da transumância obrigam a que se passe com gado<br />

perto desse mesmo cemitério. Qualquer violação dos interditos que lhes estão<br />

ligados, e entre eles os que se ligam ao consumo do leite, constituem uma forte<br />

agressão ao fogo, à ideologia do fogo, à religião do fogo, com incidências<br />

consequentes muito temi<strong>das</strong> em relação à "sorte" que depende do fogo, que acaba<br />

por ser o próprio fogo.<br />

Conduzi a exposição até aqui e desta maneira para tentar tornar evidente que<br />

três instâncias do desempenho humano ocorrem imediata e intrinsecamente<br />

articula<strong>das</strong>, interdependentes mesmo: a relação com o meio e as colocações<br />

estratégicas em relação a ele, factor de base de todo o sistema económico, o<br />

sistema de parentesco e o sistema religioso. O quadro pode alargar-se.<br />

"Invente-se" uma grelha de articulações em que intervenham também equilíbrio,<br />

mobilidade, subsistência, propriedade plural, reciprocidade, acumulação e<br />

redistribuição, por exemplo e para não ir mais longe, e experimentem-se to<strong>das</strong><br />

as combinações possíveis. Jogue-se o jogo sem temer ser "acusado" de<br />

estruturalista, da mesma forma que não se temeu ver-se imputado de<br />

funcionalismo. Esta pode, quanto a mim, vir a ser uma chave para a apreensão<br />

global do sistema global dos Kuvale, da sua cultura, da cultura pastoril que é<br />

a sua, da sua razão, "racionalidade", e da sua lógica, um instrumento adequado,<br />

enfim, para deixar em aberto a hipótese de poder mexer com a sua vida sem,<br />

implicitamente, os lesar. Interferir com qualquer um dos factores deste<br />

complexo é, na realidade, interferir com um verdadeiro sistema, com uma<br />

viabilidade assegurada que, a ser perturbada, talvez não encontre substituto. E<br />

mais não direi, neste trabalho, sobre o que entendo como cultura, como cultura<br />

kuvale, embora tenha mais a referir, o que é a mesma coisa, sobre viabilidade<br />

kuvale ou sobre viabilidade económica num meio ecológico como é o seu, quer<br />

dizer, sobre a possibilidade de alimentar tanta gente em condições como<br />

aquelas.<br />

1


CAP. 6<br />

EXPRESSÕES DAS INCIDÊNCIAS ENVOLVENTES<br />

(INTERACÇÕES EM CURSO)<br />

O percurso expositivo desenvolvido até aqui fornece-nos a imagem, espero, de<br />

uma sociedade em muitos aspectos inteiramente particular, implicada desde<br />

sempre numa história turbulenta, mas ao mesmo tempo inscrita num meio ecológico<br />

determinante e que lhe impõe um constante exercício de equilíbrio e de<br />

integração. Tanto este equilíbrio como esta integração só se entendem perante a<br />

percepção de que se trata de um equilíbrio que só se realiza projectado no<br />

tempo, quer dizer, não corresponde a uma estabilidade de níveis de consumo ao<br />

longo de todo o ano, antes comporta uma sucessão cíclica de períodos de<br />

abundância e de penúria que no entanto asseguram saldos globais satisfatórios,<br />

e de uma integração que se opera a partir de um corpo de códigos, de uma<br />

gramática cultural, que não perde nunca de vista as referências ideológicas em<br />

que se fundamenta, mas tem sabido encontrar o modo de se compensar e de se<br />

reproduzir segundo as condições que se lhe deparam.<br />

Talvez, de facto e no seu conjunto, a prática dos Kuvale possa ser aferida em<br />

relação a dois pólos de comportamento geral: mobilidade e integração da<br />

1


precariedade. Neste caso a mobilidade poderia mesmo ser entendida como um<br />

exercício implícito a uma viabilidade cujas expressões intrínsecas decorrem da<br />

presença da precariedade a todos os níveis: precariedade dos recursos - o meio;<br />

precariedade histórica e cultural - um sistema económico e um sistema<br />

ideológico que colidem incontornavelmente com as vertentes económica e<br />

ideológica do sistema global envolvente, apoiado este em recursos e meios que<br />

tendem a garantir-lhe a dominância. Perante uma tal contradição estrutural, uma<br />

única resposta: a mobilidade e a sua correlacta, a flexibilidade.<br />

Qualquer autor, qualquer analista que se ocupe <strong>das</strong> sociedades pastoris acaba<br />

por chegar aqui. A bibliografia disponível dá um amplo testemunho disso, e de<br />

tal forma que será normal vê-lo pôr a bibliografia de parte para aliviar a<br />

fatalidade que sobre si sente abater-se de, do ponto de vista teórico, só lhe<br />

restar ordenar os seus materiais segundo um quadro já fixado. Depois pega<br />

nesses mesmos materiais e trabalha-os abstraindo-se desses mesmos quadros<br />

teóricos e quando chega lá de novo, à mobilidade e à flexibilidade, pode<br />

arriscar, finalmente, o confronto: não se trata já de um pressuposto alheio,<br />

ele próprio realizou a constatação. E o que lhe interessa, afinal e em primeira<br />

mão, não são as teorias mas a compreensão dos desenvolvimentos empíricos, a<br />

realidade que aborda, o presente que encara e o futuro em que a sua acção se<br />

implica.<br />

Assim, à sua precariedade histórica, ela mesma decorrente do desenvolvimento de<br />

processos conflituais em que se confrontam objectivos (fins), práticas e<br />

comportamentos tributários de duas coberturas ideológicas diferentes, visando<br />

uma a expansão de um sistema fundamentado numa função linear - o progresso-, e<br />

a outra a preservação de um equilíbrio que joga com funções cíclicas, os Kuvale<br />

souberam até hoje contrapor estratégias e opções que acabam por integrá-la.<br />

Face ao procedimento colonial encontraram maneira de escapar à condenação à<br />

morte sobre eles lançada recorrendo a uma mobilidade e a uma flexibilidade<br />

comportamentais que, <strong>das</strong> condições impostas pelo vencedor, pelo dominador,<br />

extraíram os termos da recuperação do seu próprio sistema, adaptada ao sistema<br />

do outro. Perante o desenvolvimento histórico a que o próprio passado colonial<br />

deu origem, a independência política do Estado em Angola, os Kuvale, implicados<br />

na crise daí resultante e que, em muitos aspectos, porque se traduziu e traduz<br />

em retrocessos, parecia e parece ainda negar o processo universal de<br />

complexificação tecnológica e de crescimento económico de que a própria<br />

independência faz parte, tal como outras populações de Angola que não<br />

abandonaram os terrenos da sua economia doméstica fizeram exactamente o que<br />

tinham a fazer: encapsularizaram-se. Mas fizeram-no à sua maneira, bem<br />

entendido, e, creio, segundo os termos que sugeri antes: tratou-se menos de ter<br />

que inventar uma fórmula para lidar com o presente do que dar livre curso à<br />

recuperação de um modelo que um passado muito recente tinha tentado anular. Por<br />

detrás desta realidade, creio ainda, situa-se o grau de autonomia que a sua<br />

relação com o meio adrega garantir-lhes. Quer dizer, a satisfação <strong>das</strong><br />

necessidades que experimentam, e que cultivam, é em grande medida assegurada<br />

pelos resultados do seu sistema endógeno de exploração do meio. Trata-se ao<br />

mesmo tempo de um factor capaz de sustentar tanto uma resistência cultural e<br />

económica quanto uma capacidade de sobrevivência.<br />

Não é que possam permitir-se ou visem isolar-se do exterior. É uma questão de<br />

grau de dependência: para se alimentarem, para se vestirem, para manter a<br />

sociedade em funcionamento, para se divertirem e para gozar a vida, até, para<br />

proverem às suas necessidades, em suma. Porque a sua representação de uma vida<br />

que merece ser vivida parece ter sido menos influenciada no passado e no<br />

presente pelas propostas do sistema invasor e inovador, e as suas necessidades<br />

nunca chegaram a pautar-se pelas que esse sistema instaura, insinua e muitas<br />

vezes impõe. Quando o mesmo desfuncionou (estou a falar do sistema económico em<br />

1


geral, não de sistemas políticos em particular), isso não afectou tanto a sua<br />

prática de vida quando a da maioria <strong>das</strong> populações de Angola. Se associarmos a<br />

isso o facto de que também o território, o espaço, do seu exercício económico e<br />

social não ter sido tão implicado nas situações operacionais do conflito armado<br />

como a maior parte do resto do país, estamos de novo perante a hipótese de vir<br />

a entender e a reconhecer a singularidade kuvale.<br />

Ora essa singularidade não é a de uma sociedade isolada, fechada ao mundo. Ela<br />

dispõe dos recursos materiais, ideológicos e culturais que lhe permitem sempre<br />

voltar-se para si mesma, nunca deixar de utilizar-se como referência ( e é isso<br />

que a distingue de muitas outras, entraríamos aqui em pleno na problemática <strong>das</strong><br />

identidades colectivas), mas não se fecha sobre si mesma. Nem pode, nem quer e<br />

nem sequer lhe ocorre que poderia ser assim. Praticando um meio que não lhe<br />

garante uma absoluta suficiência alimentar mas sabendo ao mesmo tempo extrairlhe<br />

excedentes, está implícita à sua prática económica a necessidade de se<br />

relacionar com o exterior e de o fazer através de trocas, de comércio. Esse<br />

exterior, por sua vez, inscreve-se num espaço político que a implica e a excede<br />

ao mesmo tempo: é o país. E o presente kuvale faz-se de interacções inscritas<br />

nestas duas dimensões: elas operam-se dentro da própria sociedade, porque essa<br />

sociedade existe como tal, dispõe do seu próprio sistema, e entre a sociedade e<br />

o sistema que a envolve e, porque é assim mesmo, a comporta. Só que, e aqui a<br />

coisa complica-se de novo, não há apenas a sociedade insularizada de um lado e<br />

o país, ou o Estado, se quisermos, do outro. Há escalões de relação, mormente<br />

quando o Estado, como tem sido o caso entre nós, deixa progressivamente de<br />

fazer-se presente a nível dos funcionamentos institucionais e civis. Essa é a<br />

expressão fundamental da nossa crise e é nesse contexto que as relações<br />

necessárias à viabilidade física e social <strong>das</strong> populações de Angola se têm<br />

desenrolado.<br />

Outros grupos<br />

Ao longo de todo o ano, na região do Sayona, aparecem por vezes homens mwila<br />

que descem a serra e vêm cá abaixo trocar milho, eventualmente mantas<br />

provenientes da Namíbia, armas e munições (ocorreu sobretudo ao longo de 1992-<br />

93) e muita bebida, destilados de produção artesanal e makao, cerveja de<br />

massambala, ou mesmo massambala grelada para ser fermentada pelos compradores.<br />

Deslocam-se com burros que lhes transportam a mercadoria e, em relação a zonas<br />

mais encosta<strong>das</strong> à serra, referiram-me mesmo a presença ocasional de verdadeiras<br />

caravanas destes mercadores. Os buluvulu’s quando sobem a serra com o gado,<br />

para aí cumprir essa estação da transumância, também fazem trocas locais com<br />

populações mwila.<br />

Estou a mencionar o que se passa a partir do terreno que tenho mais<br />

assiduamente frequentado. Noutros lugares, conforme os povos implicados nas<br />

vizinhanças, outros casos de figura ocorrerão. Mas, quanto a casos que<br />

testemunhei, os Mwila implicados provêm especialmente do Jau. Este quadro de<br />

relações, capaz de assumir uma expressão importante no actual panorama <strong>das</strong><br />

trocas indispensáveis à sustentação do sistema económico dos Kuvale, abre,<br />

quanto a mim, a hipótese de se reconhecerem, para além <strong>das</strong> encapsulizações que<br />

cada sociedade poderá ter experimentado, zonas de encapsulizações articula<strong>das</strong><br />

que constituem processos de encapsulização definidos também territorialmente<br />

mas envolvendo várias sociedades que entre si tentam assegurar a autosuficiência<br />

a nível do grupo de implicados. A dinâmica dos últimos anos, desta<br />

forma,teria dado origem à reintensificação, por parte de sociedades como as<br />

dos Kuvale e dos Mwila, de um sistema de trocas de alguma forma muito antigo,<br />

na continuidade do que existiria antes que a penetração do sistema moderno de<br />

mercado, através dos Portugueses, tivesse abalado a sua indispensabilidade,<br />

1


primeiro, e depois a sua pertinência ou mesmo a oportunidade, com leis, por<br />

exemplo, como as que pesavam sobre a fabricação artesanal do álcool. As leis do<br />

mercado terão também entrado em jogo e o comércio oficializou-se. Mas perante a<br />

expressão que aquele sistema de trocas voltou a assumir é impossível não pensar<br />

que ele de alguma forma actualiza uma prática que antes da intervenção europeia<br />

tinha que ser regular e volumosa a ponto de assegurar a viabilidade de uma<br />

sociedade pastoril como a dos Kuvale, sempre dependente de cereais produzidos<br />

por outros.<br />

É pois com os Mwila do Jau que os Kuvale do Sayona mantêm um comércio<br />

constante. Também com eles mantêm outros tipos de relação privilegiada. É ao<br />

Jau que se recorre quando é necessário proceder ritualmente para precipitar a<br />

chuva. Isso faz-se entre a linhagem hegemónica dos Kuvale e as hierarquias do<br />

planalto e implica uma extensão de referências que não poderei desenvolver aqui<br />

porque saem do âmbito da exposição. Mas aponta também ao Jau, e a outras zonas<br />

contíguas do planalto, um intercâmbio muito intenso de "kimbandeiros". São<br />

muito valorizados , os serviços prestados por especialistas de ambos os lados<br />

no território dos vizinhos. E as mulheres kuvale sobem lá para vender óleo de<br />

mupeke e fabricar panelas, trazendo depois para baixo o milho com que foram<br />

pagas. A indústria doméstica do mupeke pode assumir grande importância na<br />

actividade <strong>das</strong> mulheres kuvale. Ele é um óleo extraído dos frutos da Ximenia<br />

caffra, espécie arbórea particularmente abundante na zona de serra-abaixo do<br />

curso de alguns rios e mulolas. A sua colheita continua a ser referida como um<br />

dos monopólios da linhagem hegemónica, os Hamba dos Mukwangombe, mas as redes<br />

do parentesco e o relaxamento evidente de tal ordem de pressões de poder, hoje<br />

utiliza<strong>das</strong> sobretudo, tenho sido levado a crer, como referências de impacto<br />

apenas cultural, fazem com que muitas mulheres a pratiquem e procedam à<br />

extracção do óleo, pretexto também para deslocações assíduas às cidades do<br />

Namibe e do Lubango. É um produto caro, muito procurado para uso cosmético e<br />

ritual, e justifica qualquer viagem.<br />

A indústria da olaria é outra actividade exclusivamente feminina. Pode ser<br />

praticada junto <strong>das</strong> fontes argilosas na base <strong>das</strong> primeiras encostas da serra,<br />

no lugar do Hoke, por exemplo, e daí chegam a sair "grandes colunas, o bunga"<br />

de mulheres que as transportam ao planalto, de Agosto a Outubro, quando as<br />

necessidades de milho são maiores e ainda não choveu. Também ocorre fabricaremnas<br />

lá em cima, com barros locais. Foi-me aliás referido que, no antigamente,<br />

desse comércio provinha grande parte do mantimento familiar, o que de novo<br />

remete a quadros pré-coloniais.<br />

Também assinalei a partir da área que estou a referir contactos de troca com a<br />

zona do Bumbo, no sopé da serra, a nordeste, junto de populações hoje<br />

considera<strong>das</strong> Kimbari - assimila<strong>das</strong> à cultura "dos Brancos", muito provavelmente<br />

descendentes dos primeiros agricultores que os Portugueses aí encontraram<br />

praticando um sistema de regadio endógeno. Também questões de roubo asseguram<br />

um contacto permanente entre o Sayona e o Bumbo.<br />

Outro pólo de trocas sempre conjecturável é o Tyakutu, local de uma antiga<br />

fazenda junto ao posto do Cahinde, estabelecido muito depois, onde também há<br />

uma notável concentração de Kimbari e comparecem Mwila de cima e de comunidades<br />

que desceram a serra para se instalarem com carácter definitivo em áreas<br />

situa<strong>das</strong> a Sul, não muito longe. Aí se produz milho de regadio, abundam<br />

mangueiras e funciona, especialmente, uma impressionante bateria de alambiques<br />

para o fabrico de destilados artesanais.<br />

Contactos mais para o Sul e a partir do Sayona, donde continuo a articular<br />

estas referências, estabelecem ligações com o planalto a nível dos Gambos e da<br />

1


Onkokwa, através dos vizinhos Hakahona, podendo mesmo apontar ao Chitado e aos<br />

Himba, e asseguram canais de relação mais discretos e resguardados, ligados<br />

sobretudo à circulação de gados que é preciso remeter para longe, porque<br />

procurados a partir de onde tenham sido trazidos, e que acabarão por beneficiar<br />

de redes de escoamento que a presença ainda não muito distante da Swapo(nota)<br />

abriu para além Kunene.<br />

Outra referência importante, mas esta quase que exclusivamente ligada a<br />

preocupações rituais, é o Kuroka, donde provirá, através da acção de iniciados<br />

de lá, a maior força dos melhores "fogos" dos Kuvale.<br />

A sede do município, por sua vez, é um centro de contactos naturalmente<br />

importante para as populações do Sayona. As relações que aí se desenvolvem<br />

tendem no entanto a inserir-se numa dinâmica ligada aos escassos serviços<br />

oficiais aí assegurados, como a saúde, o comércio mercantil, a administração e<br />

a polícia.<br />

No âmbito dos parágrafos que precedem o que me parece efectivamente de reter é<br />

o facto de não serem de negligenciar, nos tempos que correm, os "apports", de<br />

milho ou outros, garantidos pelas trocas com grupos vizinhos, à margem,<br />

portanto, do comércio normalmente assinalado. A circunstância assume aliás uma<br />

importância complementar quando nos apercebemos de que este tipo de transacção<br />

é considerado extremamente interessante para os Kuvale. Obtêm assim, de facto,<br />

maiores volumes de milho contra menores quantidades de gado. Junto aos Mwila<br />

que descem a serra encontram a mesma condição favorável que antigamente também<br />

vigorava nos contactos que mantinham com os comerciantes instalados. Os Mwila,<br />

em troca do milho que trazem, aceitam garrotes, bois machos em crescimento, que<br />

acabarão por fazer-se adultos nas suas mãos porque os vão incorporar nos seus<br />

rebanhos. Pelas mesmas quantidades de milho os "candongueiros", que são os<br />

agentes do sistema mercantil que ainda assim aparecem também, só aceitam bois<br />

adultos e completamente desenvolvidos. "Lá em cima, se tem milho para trocar,<br />

com dois ou três garrotes pequenos você já consegue sustentar a família durante<br />

o ano todo".<br />

Sistema económico de mercado<br />

Que o comércio localizado, comerciantes instalados, faz falta, ninguém duvida.<br />

E que ainda não apareceu, mesmo quando não é o vazio total que impera, uma<br />

modalidade de comércio que substituísse a dos Portugueses de antigamente,<br />

também constitui consenso. Para além de assegurarem um aprovisionamento<br />

constante e fixo, funcionavam como instituições de crédito e <strong>das</strong> suas<br />

estratégias de comércio concorrencial constavam plataformas de relação<br />

preferencial com certos clientes perante os quais elas assumiam o carácter de<br />

verdadeiras alianças ti<strong>das</strong> por vezes em paralelo com modos e expressões da<br />

reciprocidade e da solidariedade endógenas: "... assim os mais-velhos já choram<br />

daquela vida quando entregavam os bois pequenos... e tinha também essa coisa,<br />

que é on gau, é parecido com a nossa on kita, quando você chega de manhã num<br />

tal parente, lhe acorda, ele é obrigado a te dar qualquer coisa, até um bocado<br />

de tabaco, só. Quando passava de manhã na loja do branco, às vezes até ainda<br />

ele não abriu e não é para comprar nada, apenas que o comerciante acorda ele<br />

diz, toma lá, é um copo de vinho, ou mesmo é os cinco litros, isso é on gau,<br />

quer dizer é on kita que lhe deu. E o mutweongombe é a cabeça do boi, quer<br />

dizer, a cabeça não tem valor, é quase o mata-bicho que ele acrescentava no<br />

valor do animal. Esse não dá? Então vamos no outro que aumenta a cabeça ...".<br />

Artifícios de comerciante? Quem nega? Ao que o cliente contrapunha sem dúvida<br />

também os seus próprios artifícios, afinal o boi era seu e o comerciante vivia<br />

ali era atrás dos bois que ele tinha.<br />

1


De qualquer maneira, se trago tal colorido para este texto, é porque me parece<br />

que num meio onde as relações sociais são densas e todo o exercício da economia<br />

se faz através dessa densidade, a representação ideal de um comércio<br />

satisfatório não há-de poder deixar de referir-se a um âmbito equivalente. O<br />

panorama hoje é outro, já o referi atrás. Não me deterei mais na acção de<br />

funcionários, de comerciantes e de "candongueiros" no terreno.<br />

Nalgumas praças do Namibe aparece hoje muita carne à venda, bois ou cabritos<br />

abatidos mesmo no local ou em quintais. O mesmo acontece ao longo da estrada<br />

para o Lubango, sobretudo no chamado Mercado <strong>das</strong> Mangueiras, na base da subida<br />

da Leba, ou nas suas imediações. Nem todo esse gado provem de produtores kuvale<br />

e muito é atribuído, muitas vezes sem nada que o confirme e apenas porque não<br />

há qualquer controle sobre o seu abate, a roubos que por sua vez também se<br />

atribuem quase sempre, mais ou menos levianamente, a "Mucubais". Onde há gado<br />

roubado ou roubo de gado e homens kuvale por perto a implicação entre as partes<br />

é automática, para o senso comum. Nem sempre é assim, evidentemente, embora os<br />

Kuvale não tenham nada a ver com os pastores do presépio, e nas situações que<br />

assinalei há bois abatidos e homens kuvale por perto porque estes os fizeram<br />

transportar para a cidade e os acompanharam, ou eles mesmos os conduziram a pé<br />

através do leito do Bero ou do Giraul, embora esta modalidade não me pareça a<br />

mais comum. De facto, desde que frequento o terreno, tenho assinalado uma<br />

intensificação de ocorrências em que homens jovens, sobretudo alguns que<br />

passaram pelas Fapla, descem à cidade, contactam com comerciantes ou<br />

camionistas (candongueiros em acção, de novo), ou fazem esse contacto através<br />

de terceiros ou em locais do interior, e os conduzem aos seus sambos (neste<br />

caso residências) para aí fazerem carregar bois destinados ao mercado urbano. É<br />

como se faz também para escoar o gado dos óbitos, de que falei atrás.<br />

Não é prática que eu arrisque assinalar como muito frequente, comum ou<br />

generalizada, como já vi proposto, mas também não diria que ela não tende a<br />

intensificar-se. Os transportadores encaram-na com interesse, quer sejam<br />

comerciantes que por vezes se encarregam eles mesmos de colocar os bois no<br />

mercado, quer sejam simples transportadores que entretanto aproveitam a viagem<br />

do frete para improvisar algum negócio, bebi<strong>das</strong> sobretudo, nos locais por onde<br />

passam ou onde se deslocam. Para todos eles esta modalidade de intervenção<br />

comercial no interior da província comporta menos encargos e riscos que as<br />

formas clássicas de comércio fixado ou ambulante accionado pelas suas próprias<br />

iniciativas.<br />

1


Não procurei informações detalha<strong>das</strong> sobre este tipo de comércio. Posso<br />

conjecturar, no entanto, a partir do pouco entusiasmo com que tenho ouvido<br />

homens kuvale do Sayona, já feitos e instalados na vida, comentar a inovação, e<br />

do facto de lhes ocorrer imediatamente que em tais transacções possa estar a<br />

ser introduzido no negócio gado de hupa, que a mesma não deixa de ser encarada,<br />

pelo menos por alguns sectores, com uma fundamentada reserva. A todos ocorre<br />

também imediatamente que ela pode constituir-se como uma expedita e frequente<br />

oportunidade para cobrir casos de roubo, e isso poderá suscitar suspeitas tanto<br />

em relação a acções desenvolvi<strong>das</strong> por rapazes kuvale fora da sua própria<br />

sociedade como dentro dela. Interrogo-me também sobre os efectivos benefícios<br />

que deste tipo de comércio ocorrerão para as pessoas que não se deslocam à<br />

cidade recolher os benefícios da venda dos animais para aí canalizados. Os<br />

rapazes que os acompanham permanecem de uma maneira geral longas semanas no<br />

Namibe, envolvidos na frenética e eufórica turbulência dos "quintais" onde se<br />

concentra essa população kuvale em trânsito, associada a alguns residentes mais<br />

permanentes ou de facto aí fixados, circunstância que hoje (falo de 1996) é<br />

menos evidente, mas que enquanto houve homens kuvale na tropa assumiu<br />

proporções deveras notáveis. Aí o consumo de álcool era ou é permanente, a<br />

festa é contínua e a generosidade de quem trouxe os bois para vender é sem<br />

limites. Generosa também é a presença de mulheres, aquelas, principalmente, que<br />

desceram para vender óleo de mupeke, ou entao mukwa (fruto do imbondeiro,<br />

An<strong>das</strong>onia digitata) ou mahungu e oluwowo ( larvas comestíveis, que se consomem<br />

frescas ou secas e aparecem nos mutiati no tempo <strong>das</strong> chuvas) ou cabritos, e dar<br />

curso a muitos arranjos amorosos, que nos locais de origem são discretos embora<br />

mais ou menos sancionados institucionalmente mas encontram nestas escapa<strong>das</strong><br />

oportunidade para expandir-se em plena alegria de viver. E vendo grupos de<br />

robustos homens jovens de mãos da<strong>das</strong>, com longos panos novos que lhes tombam<br />

dos ombros, seguidos por lindíssimas mulheres de corpo bem tratado e<br />

arrastando, no passo lento que é próprio à sua gravidade de mulheres dignas e<br />

ricas, o peso brilhante do metal amarelo que em espiral lhes adorna as pernas,<br />

faz bem ao coração dar conta de que nesta Angola de miséria generalizada e baça<br />

há quem transite alegre e colorido, feliz até, sem ser a olhar para o mundo de<br />

cima e de dentro de um Nissan Patrol. Mas para aquilo que afinal interessa aqui<br />

nunca constatei, de facto, talvez também, reconheço, porque a zona que mais<br />

tenho frequentado não é a que abastece mais, desta forma, o mercado urbano,<br />

quem, no interior, estivesse a comer milho ou a beber vinho devidos a operações<br />

deste género.<br />

O mesmo não acontece, porém, em relação a outras situações de contacto com o<br />

sistema económico de mercado liga<strong>das</strong> a deslocações de maior raio. Registei<br />

casos de quem entra em contacto com comerciantes da Chibia, por exemplo, vem do<br />

Virulundo ao Virei, é um dos casos, para tirar uma guia de transporte e parta<br />

a pé para lá, donde há-de voltar transportado já pelo comerciante que lhe vem<br />

colocar a mercadoria à porta do sambo e regressa depois com o gado<br />

correspondente.<br />

Posso ainda acrescentar que há homens kuvale que se fixaram na cidade depois da<br />

sua passagem pelo exército, não muito numerosos, creio. Os que conheço estão<br />

todos mais ou menos implicados em canais de abastecimento e ligados à<br />

circulação de bois no sector mercantil. Quase todos, também, estão articulados,<br />

para fazê-lo, a familiares também mais ou menos investidos de funções nos<br />

quadros administrativos locais enquanto "autoridades tradicionais", alguns<br />

deles proprietários de viaturas que lhes facilitam o negócio ou mesmo titulares<br />

de casas comerciais. O único comerciante kuvale independente que conheço,<br />

proveniente de uma periferia territorial a nordeste, tratado como Kimbari,<br />

banido portanto, não tem, manifestamente, sido homem de grande sucesso.<br />

1


Estado (administração e serviços)<br />

Para um homem comum <strong>das</strong> matas do Sayona a noção que ele tem de Estado talvez<br />

não exceda a de um poder que passa pelo soba do sector que às vezes se farda<br />

de kaki e outras orienta reuniões para resolver makas sem que no entanto os<br />

verdadeiros notáveis da zona , incluindo o antigo soba, já muito velho agora, o<br />

percam jamais de vista, vai à Administração receber o vencimento e ordens<br />

vagas, encaminha penitentes para a polícia de lá, escreve e recebe mukan<strong>das</strong><br />

(cartas, bilhetes, mensagens) liga<strong>das</strong> a roubos, mobiliza as milícias quando<br />

consta que o inimigo anda a espreitar de novo e vai procurando resolver a vida<br />

conforme pode e o deixam. É um herói nacional hoje esquecido, como acontece de<br />

uma maneira geral aos heróis vivos, que acabam sempre por ser homens como os<br />

outros quando a vida os obriga a lutar já não com o inimigo, antes com ela<br />

mesma (foi ele quem abateu o mirage dos Sul-Africanos na Cahama e foi mesmo a<br />

Luanda receber um rádio-gravador que o Governo lhe deu como compensação e um<br />

escritor de lá, a título privado e fazendo jus ao seu apurado sentido <strong>das</strong><br />

coisas, cedeu-lhe os cinquenta contos de um prémio literário da Sonangol), e no<br />

fundo é bom rapaz, ajudou bué esse doutor que tem andado aí a perguntar como é<br />

essa coisa de mwarilume.<br />

O tal homem comum <strong>das</strong> margens do Vitivi sabe que na sede do Munícipio tem os<br />

sobas grandes, tem mesmo o soba maior, primo de todos, mais ou menos, homem de<br />

muitos poderes, o oficial e outros. Sabe também que tem lá delegados do<br />

Governo, chegam mesmo a aparecer, tem enfermeiro e hospital, remédios também<br />

mas é só mesmo na candonga, mas tem, e que de lá saem, às vezes, briga<strong>das</strong> de<br />

vacinação, mas depois não vacinam porque a manga está estragada. "Na Tyikweia o<br />

povo arranjou a manga e depois não veio ninguém e quando voltaram, muito mais<br />

tarde, já a manga estava estragada de novo, mas sempre levam cabritos e isto já<br />

é assim há uma data de anos". Viu também passar o jipe da geologia e minas, mas<br />

nunca parou. A escola que tem no Município só interessa praticamente a Kimbaris<br />

e a funcionários. Acima da Administração sabe que na sede da Província tem um<br />

Governador e depois é Luanda. Mas longe de Luanda, Luanda é longe..."E enquanto<br />

a guerra deles não comer o que é nosso ..."<br />

De um testemunho como este resulta, parece-me, que é sobretudo a nível da<br />

regulação e do controle de litígios locais ou nos quais pessoas da zona se vêem<br />

implica<strong>das</strong> que a interacção com o Estado se manifesta. E aí ela não pode deixar<br />

de ser intensa e permanente. Uma sociedade como a dos Kuvale, para funcionar<br />

não pode descurar os seus dispositivos de controle e para tal não deixa de<br />

invocar, de exigir mesmo, intervenção que a excede ou, talvez melhor, disponha<br />

dos instrumentos de pressão, coacção e punição que cabe aos poderes centrais<br />

accionar. Só ultrapassa porém o âmbito <strong>das</strong> decisões locais aquela matéria que<br />

não obtiver consenso, que exceda a capacidade dos códigos endógenos ou possa<br />

manifestamente vir a ser denunciada a partir dos terrenos que só reconhecem o<br />

foro exógeno, estatal. Problemas de adultério, quebra de compromissos sociais,<br />

agressões, desvios de gado dentro da família, ou <strong>das</strong> famílias, são resolvidos a<br />

nível local, fazendo intervir as famílias implica<strong>das</strong>, os mais-velhos da eanda -<br />

tyiveri -, se necessário, testemunhas oculares ou quem preste - on bangui -<br />

depoimento sobre antecedentes sempre considerados e que normalmente pesam<br />

sobre os veredictos (a reciprocidade, sempre), makas antigas e "continua<strong>das</strong>" -<br />

mu talu, o lupa, tyipopia -. Uma maka em curso é on pela, e para cada caso é<br />

nomeado um dono da contenda - o muni o yon pela - ou investigador - o mu<br />

popithe - que se senta no meio dos circunstantes e acolhe e veícula os<br />

argumentos e os testemunhos <strong>das</strong> partes no decurso de um julgamento, operação<br />

sempre demorada e aberta e que pode comportar muitas sessões. A "autoridade<br />

1


tradicional" local ordena os processos, dá-lhes curso e procura solucioná-los<br />

obtendo consensos. Destes diferendos transitam porém para a Administração - on<br />

bongue , local onde se resolvem os problemas de bongolela, palavra, parece, de<br />

origem himba que significará, igualmente, maka, local, portanto, onde se<br />

resolvem as makas - onde serão ainda, em primeira instância, aprecia<strong>das</strong> a nível<br />

dos sobas grandes aí sediados. Até esse nível vigora o regimen de multas. O<br />

thitha é o nome geral para multa, de o ku thitha, pagar, e vários vocábulos<br />

especificam diversos tipos de multa: ma kodi, por adultério, na kulema,<br />

agressão, on tampo, falta maior, "coisa feia", dormir com viúva, falta de<br />

respeito, que a outros níveis se chamará ukoi, etc.. A substância dos<br />

pagamentos será constituída por bois ou carneiros, evidentemente, e aqui<br />

encontraremos uma nova série de categorias sociais de animais que ilustram quer<br />

a natureza dos casos a que se referem quer o lugar que neles ocupam. Ekoti, por<br />

exemplo, são os animais que em casos de roubo, ou desvio, se acrescentam<br />

àqueles que devem ser devolvidos e indemnizam o lesado pela "maçada" em que se<br />

viu envolvido e pelo que investiu nas diligências de recuperação dos animais.<br />

Até aqui, portanto, os diferendos são resolvidos segundo o modelo endógeno que,<br />

parece-me, em termos gerais se pode sucintamente caracterizar por uma regulação<br />

mais entre grupos de pessoas do que entre sujeitos, e que visa mais a reparação<br />

do que a punição, mesmo em caso de morte. Mas alguns destes casos podem<br />

transitar para a Polícia ou para aí serem encaminhados desde o início, os que<br />

envolvem armas de fogo, por exemplo, ou roubo que implique a propriedade de<br />

terceiros exteriores ao grupo.<br />

Aqui ocorre, inevitavelmente, o embate entre dois modelos, entre dois sistemas.<br />

E se o mesmo se verifica em todos os domínios da actividade corrente, como o<br />

económico, nos do foro jurídico ou do controle social as contradições tendem<br />

sempre a revelar-se muito mais frontais. Sendo este, aliás, o terreno em que as<br />

instituições, as endógenas e as exógenas, e as ideologias que as fundamentam,<br />

são chama<strong>das</strong> a definir-se umas perante as outras e a exprimir assim as<br />

articulações entre os poderes locais e o poder de Estado, creio que uma análise<br />

do processo de mudança global e <strong>das</strong> expressões da crise ou <strong>das</strong> crises que lhe<br />

estiverem liga<strong>das</strong> pode muito bem utilizá-lo como ponto de partida. Como fazer<br />

coincidir, sem graves perturbações para os sujeitos envolvidos, dois sistemas<br />

de controle que os colocam entre dois fogos, dois códigos, em que um comporta a<br />

apreciação de todo um passado de relações entre as partes e o outro, de<br />

substrato ocidental, é simbolicamente representado por uma figura com uma<br />

espada numa mão, uma balança na outra e de olhos vendados, e em que de um lado<br />

intervem implícita a responsabilidade social e do outro a individual, para só<br />

assinalar duas zonas de fricção? Numa <strong>das</strong> últimas conversas que mantive com uma<br />

autoridade tradicional (com "capacidade legislativa") sobre a regulação do<br />

montante <strong>das</strong> multas, assunto a que voltarei mais tarde, foi-me referido que uma<br />

<strong>das</strong> inovações que iam ser introduzi<strong>das</strong> a nível municipal ( trata-se portanto de<br />

um domínio aberto a improvisações), seria a de entregar o causador de qualquer<br />

morte à polícia: " ... assim como está agora é só a família a pagar, o causador<br />

não sofre nada". Noutra situação registei, porém: "...como levar à polícia um<br />

caso de devolução de bois de casamento? E depois, uns velhos destes, não vão<br />

aguentar a maneira como a polícia faz ...". Esta alocução comporta<br />

imediatamente implícitos que me dispenso de especificar ou comentar. São do<br />

domínio comum.<br />

1


Intervenção humanitária<br />

É conhecido o lugar que em Angola tem vindo a ocupar a chamada intervenção<br />

humanitária face à situação de catástrofe generalizada que a história recente<br />

instaurou, à desestruturação geral que ela revela, à ausência da capacidade ou<br />

da determinação de actuação do Estado, ao vazio ou ao desvio institucional, à<br />

desarticulação entre as várias actuações da sociedade civil. Em relação ao<br />

terreno que estou a referir essa intervenção tem sido, no entanto, escassa. As<br />

organizações que actuam na Província ocupam-se sobretudo <strong>das</strong> precariedades<br />

urbanas ou periféricas. Intervenções recentes em concentrações mais<br />

directamente liga<strong>das</strong> ao contexto pastoril por parte de uma instituição<br />

humanitária mantida pelo Governo, o que à partida já é revelador, parece-me, de<br />

uma certa distorção <strong>das</strong> coisas que leva o Governo a actuar caricativamente onde<br />

deveria intervir estatutariamente, tem-se traduzido sobretudo pela edificação<br />

de instalações que visam a escolaridade e a saúde mas que, a menos que a<br />

situação se modifique, acabarão por ter outro destino, por falta de<br />

profissionais que a troco de contraparti<strong>das</strong> salariais adequa<strong>das</strong> as façam<br />

funcionar.<br />

Viajando por aqueles interiores deparamos às vezes com instalações de bombagem<br />

manual de água que a Unicef instalou faz anos, mas nenhuma, que eu saiba, se<br />

mantém em funcionamento. Assinalei mesmo a presença de instalações de captação<br />

de energia solar que entretanto não sei se ainda subsistem porque estavam a ser<br />

objecto de cobiças furtivas por parte de elementos exteriores ao meio.<br />

Ao longo <strong>das</strong> épocas em que testemunhei ocorrências e registei informações, o<br />

evento mais importante ligado à intervenção humanitária foi sem dúvida a<br />

distribuição de milho pelo Pam (nota) em 1993-94. Essa intervenção seguiu-se a<br />

uma situação de verdadeira crise que mencionei atrás e alguns dos aspectos que<br />

marcaram essa intervenção já foram por mim abordados noutras publicações.<br />

Retenho apenas a circunstância de que esse fornecimento de milho, sem a<br />

exigência de qualquer contrapartida, surpreendeu francamente os beneficiários.<br />

Eles dispunham de cabritos e de bois para trocar pelo que lhes era fornecido e<br />

estranharam, muito racionalmente, que ninguém estivesse interessado neles, nem<br />

que fosse para os canalizar, ainda humanitariamente, para o consumo de<br />

populações refugia<strong>das</strong> e desloca<strong>das</strong>, seguramente ávi<strong>das</strong> de carne, carentes sem<br />

dúvida de proteína animal.<br />

A crise em questão foi ultrapassada, já estava mesmo em vias disso quando o<br />

milho do Pam chegou (já tinha começado a chover), e ao longo do tempo em que<br />

essa ajuda se prolongou ela terá sido sobretudo directamente valorizada pelos<br />

sectores implicados na sua distribuição e destino, como aliás parece vir a<br />

acontecer com outras aju<strong>das</strong> parcelares que não ultrapassam, diz-se, a sede do<br />

Município.<br />

Constatações desta ordem são de molde a colocar os decididores, os seus<br />

operadores, os especialistas cujas prospecções os informam e aqueles que se<br />

ocupam dos termos em que essa ajuda se processa, numa situação de verdadeiro<br />

impasse, ela mesma reveladora <strong>das</strong> dificuldades que o funcionamento de<br />

sociedades como a dos Kuvale coloca aos programas de intervenção.<br />

Se é verdade que se pode folgadamente considerar as populações pastoris como as<br />

geralmente mais bem alimenta<strong>das</strong> na Angola de hoje, também é verdade que não<br />

produzem tudo quanto deve constar da sua dieta alimentar e que os excedentes<br />

que realizam nem sempre encontram a via para serem trocados por aquilo de que<br />

experimentam a falta, como tenho abundantemente assinalado. Quando o leite<br />

1


disponível para consumo humano se reduz ou extingue, ocorrem irremediável e<br />

regularmente as crises anuais que colocam as populações na esfera <strong>das</strong><br />

contingências que definem os terrenos afectos às chama<strong>das</strong> problemáticas do<br />

"risco", para utilizar a linguagem da intervenção. Uma consideração adequada<br />

destas problemáticas aplica<strong>das</strong> a um meio pastoril também não poderá perder de<br />

vista que para além destas crises anuais tem que se contar, em termos de maior<br />

duração, com outras que também sistematicamente ocorrem quando os ciclos<br />

sazonais são perturbados por anos de que<strong>das</strong> pluviométricas muito reduzi<strong>das</strong> ou<br />

ausência praticamente absoluta de chuvas.<br />

Perante estes dados da realidade, e enquanto os funcionamentos a nível<br />

nacional, tanto da parte directa do Estado como <strong>das</strong> articulações económicas<br />

civis, não encontrarem um modo e um ritmo eficientes e responsáveis, como pôr<br />

de parte a eventual necessidade de uma intervenção humanitária massiva em casos<br />

de extrema agudeza crítica, e como equacionar essa intervenção dentro de<br />

estratégias que se refiram, precisamente, a situações de "risco"? Um papel que<br />

me chegou às mãos já depois de ter iniciado a redacção deste texto ( Risk<br />

Mapping Report for the Pastoral Zone, May 1996), dá exactamente conta desta<br />

dificuldade, apesar da precaridade <strong>das</strong> fontes que utiliza, da discutível<br />

fundamentação de muitas <strong>das</strong> informações com que opera e <strong>das</strong> generalizações que<br />

introduz. Reconhece a vantagem alimentar <strong>das</strong> populações pastoris quando<br />

compara<strong>das</strong> a outras de Angola e as hesitações que hão-de naturalmente levantarse<br />

à formulação de fornecimentos de ajuda alimentar. Apercebe-se, por outro<br />

lado, de que a segurança alimentar da região depende de fornecimentos de grão<br />

por parte do exterior. Mas como a informação que utiliza acerca dos circuitos<br />

de abastecimento não é, parece-me, a mais exacta, e passa nomeadamente ao lado<br />

da questão da transportação de gado e de cereais e da participação de<br />

intermediários, que é onde a coisa falha ou tem falhado sempre, perde-se de<br />

vista que tudo depende a todos os níveis da instauração e da manutenção de um<br />

equilíbrio muito precário, e que só haverá uma segurança mínima efectiva<br />

quando, mesmo em condições normais, ao equilíbrio que os Kuvale sabem extrair<br />

da sua relação com o meio ecológico, o Estado puder, souber ou quiser adicionar<br />

um equilíbrio equivalente que contemple as interacções entre as partes<br />

envolvi<strong>das</strong> nos processos globais <strong>das</strong> economias de Angola, matéria que, sem<br />

dúvida, só a ele diz respeito.<br />

A primeira impressão que se tem perante a paisagem pastoril é, para o<br />

observador alheio à verdadeira substância do contexto, já aludi a isso, a de<br />

que ali não poderá haver senão miséria. Depois constata-se que as populações<br />

comem leite e carne e afinal já não é exactamente como se pensou, é mesmo bem<br />

ao contrário. Mas quem lá vive sabe que de um ano para o outro a catástrofe<br />

pode abater-se, mesmo sem guerra, sobre aquele mundo. Se as chuvas falham, um<br />

só ano que seja, sem comércio regular a funcionar, sem crédito, sem Estado que<br />

garanta assistência ou fomente, apoie, empurre mesmo, comerciantes que<br />

intervenham para deixar comida a troco de gado, esse mesmo gado, sobre o qual<br />

tudo se fundamenta, acabará por cair, quer de fome e sede, quer porque os<br />

próprios pastores " perdem a força de acompanhar os bois, deixam de lhes ligar,<br />

encerram os sambos e o que resta, de bois e homens, dispersa-se, anula-se, terá<br />

que renascer <strong>das</strong> cinzas".<br />

Enquanto não houver um Estado, portanto, capaz de encarar todos os riscos e de<br />

fazer-lhes face repondo os funcionamentos em que deve interferir, a iminência<br />

do risco manter-se-á mesmo quando para outras populações hoje mais afecta<strong>das</strong>,<br />

consolidada a paz, a situação confrangedora que vivem puder ter sido<br />

ultrapassada. Quanto a mim esta intervenção do Estado não deverá passar<br />

obrigatoriamente pela perturbação do sistema de exploração dos recursos<br />

pastoris que as populações praticam, o único talvez capaz de garantir<br />

1


suficiência e prosperidade mesmo, a julgar por experiências nossas do passado e<br />

outras que têm sido postas em prática em toda a África pastoril, para só falar<br />

do que nos é mais próximo. Um tal tipo de intervenção tenderia a saldar-se , a<br />

breve ou a longo trecho, por um empobrecimento efectivo e generalizado dessas<br />

mesmas populações, no melhor dos casos. Falo antes de uma intervenção que<br />

visasse promover, fundamentar e manter as articulações que em última análise e<br />

a nível de uma economia de base, mesmo só alimentar à partida, assegurasse o<br />

escoamento dos excedentes e o provimento daquilo que o meio não permite<br />

produzir.<br />

Enquanto isso não acontecer, e a propósito os optimistas que se pronunciem,<br />

como pôr de parte a eventual necessidade de intervenções humanitárias? Um dos<br />

aspectos do paradoxo é, quanto a mim, exactamente este, uma vez mais: tanto<br />

gado e tanto "risco"..., tanto petróleo, tanto interesse externo, tantas forças<br />

de guerra e forças de paz, tanta ajuda e tanta fome...<br />

1


CAP. 7<br />

PERTURBAÇÕES ENDÓGENAS<br />

(AS QUE MARCAM A DINÂMICA INTRAGRUPAL)<br />

Ao longo <strong>das</strong> páginas que nos conduziram a este ponto da exposição tentei<br />

colocar os Kuvale no tempo histórico em que vivemos e procurei assinalar os<br />

traços de acção e de comportamento que caracterizam os termos da sua relação<br />

com o meio, bem assim como o tipo <strong>das</strong> articulações que definem o seu processo<br />

sobretudo económico. Essas relações e articulações processam-se por sua vez no<br />

contexto de um quadro institucional em que a mobilidade, o parentesco e a<br />

reciprocidade assumem funções estruturantes. Emerge assim um "modelo",<br />

instrumento indispensável à análise quando a sua pertinência teórica é<br />

verificada dentro <strong>das</strong> margens do empírico, quer dizer, quando a observação<br />

continuada dos desempenhos dos "actores sociais" não desmente, antes confirma,<br />

que a sua actuação confrontada à reflexão do analista se situa, mesmo quando<br />

comporta desvios, dentro de opções e alternativas que podem ser numerosas mas<br />

não perdem de vista os termos que o modelo propõe. Os modelos, de facto, tal<br />

como as tipologias, valem o que valem, e a realidade é o que ela é. Pode haver<br />

um abismo entre a regra e a prática e nada se passa, nunca, estritamente<br />

conforme. Ser sobrinho de alguém é sem dúvida estruturalmente determinante, mas<br />

tanto se pode ser o primeito filho da primeira irmã como o último da última, e<br />

essa diferença também conta. Ou pode não haver filha da irmã do pai para casar<br />

com ela, pode mesmo não haver irmã do pai,e um homem não vai ficar solteiro por<br />

causa disso. Ou então a endogamia clânica pode nalgumas situações dominar<br />

estatisticamente a pressuposta exogamia ou tender mesmo a tornar-se<br />

sistematicamente prevalecente, como acontece com a linhagem hegemónica dos<br />

Mukwangombe que a si mesmos se chamam Hamba, Senhores. Mas ninguém, no contexto<br />

do exercício da prática pastoril, perde o modelo de vista. É perante ele que as<br />

actuações se situam, se medem, se aferem. O sujeito sabe que age dentro de um<br />

determinado quadro, que se movimenta dentro da modalidade, da " normalidade",<br />

que o modelo baliza. O que atrás referi a respeito dos nampingo's e dos hupa's,<br />

<strong>das</strong> situações de desempenho real a que assisti, <strong>das</strong> informações que cruzei e<br />

pus à prova, dão-me suficiente garantia disso para poder responder pela<br />

vigência e pela plena actualidade do modelo que formalizei , do modelo que<br />

apreendi e divulguei. E no entanto as coisas mexem, tudo o que forneci acerca<br />

<strong>das</strong> relações do grupo com as configurações envolventes o comprovam.<br />

Julgo ter assim, sucinta e austeramente, bem entendido, e de forma adaptada aos<br />

objectivos deste texto, cumprido um percurso expositivo que corresponde a um<br />

extenso investimento de observação capaz de suscitar, garantir e fundamentar a<br />

análise e, logo assim, a proposta de diagnóstico que se segue.<br />

1


Finalmente um diagnóstico<br />

Poderia partir de qualquer uma <strong>das</strong> evidências que têm marcado a actuação dos<br />

Kuvale no seu passado recente, que é ainda a do seu presente.<br />

Opto pela marca mais generalizadamente referida em relação ao processo que tem<br />

envolvido Angola inteira: a guerra. E, dentro dos fenómenos sociais que lhe têm<br />

estado ou lhe estiveram ligados, a mobilização de jovens kuvale para as Fapla e<br />

o que se terá seguido nos seus percursos pessoais após a transição <strong>das</strong> Fapla<br />

para as Faa (Forças Arma<strong>das</strong> Angolanas), com o período de eleições e poseleições,<br />

quando a maioria se retirou dessa vida militar.<br />

Das indagações que investi nesse sentido resulta-me a confirmação de que a<br />

maioria dos jovens kuvale que passaram pelas formações militares se<br />

reintegraram no sistema pastoril embora nem todos certamente da mesma maneira e<br />

alguns mesmo, talvez, de uma forma marginal em relação a ele. Refiro-me a<br />

alguns casos, seguramente conjecturáveis, de homens que apreenderam o sentido<br />

<strong>das</strong> imensas possibilidades que os tempos em curso têm oferecido a todos os<br />

escalões, digo bem, todos, da sociedade angolana para a apropriação, através de<br />

privilégios institucionalmente cobertos ou de outras vias mais radicais mas não<br />

menos impunes, de bens que deveriam ser públicos ou lhes são nitidamente<br />

alheios. A maioria, porém, reintegrou-se e, embora tenha introduzido<br />

procedimentos que podem ser entendidos como inovadores, não perderam de vista<br />

os objectivos e os modos mais marcantes daquilo a que tenho vindo a chamar o<br />

sistema endógeno.<br />

Interrogando um informante que faz parte desse contingente de ex-faplas a<br />

actuar de novo no terreno e cujo percurso me dá a garantia de estar ao corrente<br />

<strong>das</strong> opções ou do destino de outros, à escala de toda a sociedade kuvale, foi-me<br />

referida uma escassa dezena de casos de indivíduos que não "voltaram"<br />

inteiramente, aqueles que "saíram do pasto". Desses, dois estarão a viver em<br />

Luanda, um casado com uma Zairense, outro com uma mulher de lá, mas ainda assim<br />

têm vindo ao Namibe e aumentado o gado que deixaram com parentes. Outro, que<br />

foi motorista do Presidente da Swapo, fixou-se no Kunene. Outro, que chegou a<br />

ser professor e quando o "movimento" chegou já estava a trabalhar em Moçâmedes<br />

e depois é que entrou na tropa, é hoje quadro administrativo numa comuna do<br />

Norte da Província. Há outro que é soba de uma comuna mais próxima, tem uma<br />

Niva e é também comerciante. Outro ainda é também soba numa concentração do<br />

vale do Bero, não muito longe da cidade. E há mais dois ou três, conhecidos,<br />

que residem na capital da Província, todos mais ou menos implicados no comércio<br />

que a partir dali projectam para o interior, em articulação com as "autoridades<br />

tradicionais" em exercício junto <strong>das</strong> sedes administrativas.<br />

Outros casos referidos, saídos da categoria dos Mulahapahe, elementos de outros<br />

grupos, principalmente Twa ( Kwisi), assimilados à cultura pastoril, inscrevemse<br />

numa matéria que embora importante e interessante exige um tratamento que<br />

excede, em extensão e orientação, a natureza deste trabalho. Deles é dito,<br />

porém, que adoptaram percursos que parecem tê-los distanciado definitivamente<br />

<strong>das</strong> coisas do gado, já porque, à partida e desde novos, se viram<br />

necessariamente mais implicados no "mundo dos Brancos", tendo ido regularmente<br />

1


à escola, inclusivamente, já porque, pressupostamente, deram mais atenção às<br />

hipóteses que se lhes ofereceram de arredar-se de um contexto que os<br />

estigmatizava.<br />

Do que atrás ficou dito sobre homens Kuvale que passaram pelas Fapla e não se<br />

reintegraram no pastoreio ressalto que, para a maioria, não se tratou de se<br />

desligarem inteiramente do sistema. O desvio a que eles dão expressão articulase,<br />

ainda pelas vias do parentesco, aliás, a outra ordem de desvios, mais<br />

marcante, que é do investimento de muitas "autoridades tradicionais" no<br />

negócio. Mas ambas as orientações dão corpo a estratégias de acumulação de<br />

gado.<br />

A anotação que a este respeito me ocorre transportar para aqui, e que virei a<br />

desenvolver no âmbito de outros trabalhos, é a de que mesmo para uma "elite"<br />

que aparece agora a investir-se na economia mercantil, através, nomeadamente,<br />

do acesso a meios de transporte que obtêm sem recorrer ao "capital" gado, o que<br />

a todos repugna ainda, mas sobretudo, talvez, utilizando contraparti<strong>das</strong> de<br />

desempenhos políticos, por exemplo, o objectivo que visam é o de beneficiar<br />

simultaneamente dos estatutos privilegiados que ocupam em relação aos dois<br />

sistemas a que pertencem, apurando estratégias de articulação dos mesmos. <strong>À</strong><br />

hegemonia que lhes cabe à partida dentro do sistema político endógeno ( eles<br />

pertencem todos, já o sabemos, à linhagem ou à eanda hegemónica), vêm juntar-se<br />

os meios, o prestígio e a capacidade de intervenção que lhes advém da sua<br />

colocação no quadro político exógeno, os quais lhes permitem introduzir-se nos<br />

circuitos da economia mercantil extraindo-lhes benefício e lucro mesmo sem<br />

intervenção de moeda, porque tudo se processa através da permuta de mercadorias<br />

por gado, gado esse que vai ocupar o seu lugar nos terrenos da segurança e do<br />

crédito do sistema pastoril assinalado à partida. O risco, por outro lado, foi<br />

nenhum.<br />

Também as iniciativas de jovens que se reintegraram e apontam agora, cada vez<br />

mais, a modalidades inovadoras de articulação comercial entre os dois sistemas,<br />

mas a partir de dentro, como assinalei atrás, podem ser inscritas nos contornos<br />

do mesmo processo. Os resultados da venda de carne na cidade que não forem<br />

imediatamente consumidos aí ou não forem aplicados na canalização de<br />

mercadorias para os consumos domésticos <strong>das</strong> comunidades a que pertencem e<br />

permaneceram na retaguarda, são reinvestidos na aquisição de bois segundo<br />

operações de troca local com elementos de outras unidades de produção/consumo.<br />

É gado que virá aumentar o seu ehako, o seu "fundo pessoal". Até aqui o modelo<br />

endógeno não é perturbado, to<strong>das</strong> as modalidades para aumentar o fundo pessoal<br />

de cada um são considera<strong>das</strong> legítimas e regulares. Foi em grande parte a<br />

partir deste pressuposto, inclusivamente, que a sociedade kuvale encontrou as<br />

vias da sua recuperação durante as últims déca<strong>das</strong> da vigência colonial. Só que,<br />

nos tempos que correm, por este lado está a entrar areia no mecanismo da<br />

engrenagem.<br />

Ir comprar milho e vinho à cidade e mesmo consumi-los lá, é responder às<br />

condições do presente. Nos meios urbanos do Namibe comenta-se: " Agora até os<br />

'Mucubais' estão a vir vender gado...". É evidente que isto também acontece de<br />

uma forma explícita, para além do que revela implícito, que é os comerciantes<br />

não irem comprar-lho ao "mato", porque antes, até à independência, não tinham<br />

tanto gado assim para vender, estavam a repor os seus rebanhos, e também<br />

porque, antes, todo o mercado de carne passava pelos canais oficiais ou<br />

oficializados, não havia a venda directa e informal ao público, sem matadouros<br />

nem intermediários licenciados.<br />

Menos normal, porém, aos olhos da retaguarda kuvale, é que essa actividade<br />

escape ao controle da própria sociedade. Será o caso dos bois hupa canalizados<br />

1


para o comércio sem o conhecimento <strong>das</strong> " famílias dos pais" a quem<br />

estatutariamente eles continuam a pertencer mesmo quando introduzidos na "vida<br />

dos filhos" e advir daí, em paralelo com gado proveniente de outras fontes que<br />

já mencionei e a que voltarei a referir-me, uma acumulação de gado por parte<br />

de estratos etários que, até há pouco tempo, não estavam em condições, nem<br />

gozavam de latitude, para acumular fosse o que fosse. Quer dizer, perdendo o<br />

controle sobre o gado que os mais novos detêm e as acções que desenvolvem para<br />

adquiri-lo, os mais-velhos perdem o controle sobre eles, as relações paisfilhos<br />

ficam abala<strong>das</strong>, a circulação de gado é perturbada, o modelo é agredido,<br />

o sistema é ultrapassado. É a questão tão cara a Claude Meillassoux e a todos<br />

quantos fomos seus discípulos, a do controle dos mais-velhos sobre os maisnovos.<br />

Não vou, evidentemente, levantar voo para esses lados, mas, dando curso<br />

a uma reflexão estritamente aplicada, tenho que arriscar um novo desvio<br />

especulativo. E anoto ainda: a mudança, componente de qualquer dinâmica do<br />

presente, pode traduzir-se não apenas pela adopção de modalidades do sistema<br />

exógeno mas também por alterações desenvolvi<strong>das</strong> no interior do próprio modelo<br />

endógeno.<br />

A par de um modelo de manutenção e de reprodução de "modos", poderá mesmo<br />

descortinar-se um modelo sucessivamente circunstancial, em constante<br />

redefinição orgânica, de transformação e mudança. As lógicas do modelo endógeno<br />

podem produzir respostas que o venham a agredir, que venham a pôr em causa a<br />

operacionalidade do próprio sistema e <strong>das</strong> suas lógicas. Isto pode acontecer,<br />

por exemplo, se o acesso à propriedade passar a fazer-se fora <strong>das</strong> estruturas do<br />

sistema, e este será um daqueles dois ou três aspectos que, mexendo lá, o<br />

edifício corre o risco de desmoronar-se. Os outros poderão ser: a mobilidade<br />

(física e social <strong>das</strong> pessoas e do gado), o sistema de trocas e de circuitos<br />

accionados ou modelados pelo casamento preferencial e os contornos culturais da<br />

afirmação pessoal. Retenho apenas o último.<br />

O que faz correr um homem kuvale do comum, quero dizer, todos os homens kuvale,<br />

afinal, sem exceptuar aquela dezena mencionada atrás que "saíram do pasto"? Em<br />

relação a que quadro de estatutos pretendem dar provas, testemunho da sua<br />

prosperidade, mesmo aqueles que vivem situações ambíguas? De qualquer maneira<br />

será tendo em conta o gado que continua a aferir-se o potencial de<br />

prosperidade, de prestígio, de importância e de competência de um homem kuvale,<br />

mais-velho ou mais-novo, mais ou menos ocidentalizado. E a praticamente<br />

absoluta maioria vive e cultiva, até, um manifesto desprezo pelos indíces de<br />

realização pessoal comuns ao quadro envolvente: as roupas, e os rádios, por<br />

exemplo, que os ex-militares trouxeram da cidade, cessaram imediatamente, após<br />

o seu regresso, de ser tidos em conta. Os sinais exteriores de sucesso são<br />

totalmente os do "modo" kuvale, questão de novo cultural, portanto, e que<br />

ficará para outra altura.<br />

O gado ainda e sempre, portanto. É possível aumentar o gado, é possível alargar<br />

a autoridade pessoal sobre mais gado, e os investimentos pessoais são desta<br />

forma canalizados nesse sentido. Poderá então assistir-se, é esta a minha<br />

proposta teórica que fundamento nos materiais que recolhi, a uma adopção do<br />

recurso a to<strong>das</strong> as vias para garantir a consecução de tais objectivos. E aqui,<br />

em meu entender, o sistema pode "inflacionar-se" e ameaçar-se. O sistema pode<br />

delapidar-se através dos seus próprios excessos, através da sobrevalorização<br />

dos seus próprios argumentos. Estou a referir sobretudo aqui os seus próprios<br />

recursos institucionais, a nível dos funcionamentos internos, portanto, aqueles<br />

que, de facto, accionam ainda dominantemente a dinâmica produtiva dos Kuvale.<br />

A hipótese <strong>das</strong> inflações culturais endógenas<br />

1


Acções liga<strong>das</strong> à cativação da sorte que vão perturbar o "fogo" de cada um sãome<br />

referi<strong>das</strong> como cada vez mais comuns. Induzido, por natureza do ofício, a só<br />

utilizar informações que tenha podido comprovar satisfatoriamente, o que me<br />

obriga, por vezes, a verdadeiros malabarismos de inquérito, sei que posso<br />

utilizar este dado como seguro e configurar-lhe uma importância maior porque se<br />

trata da banalização de uma instituição sobre a qual sobremaneira assenta o<br />

corpo dos códigos que dão cobertura e solidez ideológica ao sistema. O<br />

desenvolvimento desta matéria mais uma vez, no entanto, remeteria a<br />

especulações de análise qualitativa com que entendo não dever sobrecarregar<br />

este trabalho.<br />

Mas a feitiçaria terá aumentado também e esse é um aspecto de que a incidência<br />

dos diferendos a ela ligados pode fornecer indícios objectivos e mesmo, sendo<br />

necessário, mensuráveis. O alargamento de estratégias pessoais para aquisição e<br />

manutenção da sorte aos domínios do feitiço, quer bulindo com a sorte dos<br />

outros quer vitimando no seio da própria família sujeitos que num quadro<br />

cultural de causa-efeito vão trabalhar, em "espírito", para o beneficiário,<br />

inscreve-se, surpreendentemente para quem não lida com a matéria, nos quadros<br />

de um esquema universal, isto é, reconhecido onde quer que a feitiçaria assuma<br />

uma dimensão social, mesmo na Europa moderna, onde não é tão incomum como isso,<br />

e é um fenómeno que incide directamente nas relações entre os vivos. É um<br />

dispositivo de regulação social que nalguns casos preenche uma função<br />

indispensável mas, porque entre os Kuvale ela dá origem, através <strong>das</strong> multas, a<br />

uma importante circulação de gado, não será de estranhar que num presente em<br />

que há tanto gado e tanta maneira de lhe visar o acesso, possa inspirar<br />

desregulações.<br />

As multas, precisamente, constituem um outro nível institucional que no<br />

presente parece fazer face a fenómenos de "inflação". Referi antes de que forma<br />

as multas constituíam um terreno que garante, por vezes, um acesso imprevisto e<br />

volumoso a gado. As dinâmicas do tempo parecem ter induzido a uma incidência<br />

oportunista nesse sentido. Uma conversa que insinuei antes, neste texto, a<br />

propósito da regulação de conflitos e dos volumes que assumem hoje certas<br />

multas, para além dos elementos de que então me servi, deu-me notícia ainda de<br />

que forma a sociedade está, evidentemente, a aperceber-se do perigo e a tentar<br />

controlá-lo. O excesso poderá liquidar a prática, nomeadamente, em meu<br />

entender, porque o enfraquecimento da instituição como instrumento operatório<br />

pode acelerar a penetração, desestruturante, do sistema jurídico exógeno, muito<br />

mais agressivo, abusivo e arbitrário, de acordo com os modos que no presente<br />

vem utilizando. Assim, a título de exemplo, transcrevo: " Multas por morte de<br />

pessoa estão hoje a atingir na região do Kamukuio as 15O cabeças. Fizemos uma<br />

reunião para determinar para a Província toda que, por morte de homem, passam<br />

de 11 no tempo antigo para 21 agora, e de morte de mulher de 21 para 31".<br />

Há mais gado entre os Kuvale, todo este texto confirma que assim é e tenta<br />

explicar porquê, e os anos mais recentes têm sido os de uma euforia<br />

generalizada à volta do gado, na qual se inscrevem, como estamos a ver,<br />

estratégias colectivas e individuais que se desenvolvem no domínio do profano,<br />

do sagrado e de quadros institucionais intrínsecos aos funcionamentos do<br />

sistema donde advem uma tal prosperidade. Não é de estranhar, assim, que o<br />

fenómeno se projecte também aos domínios do cultural. Embora tenha até aqui<br />

procurado passar ao largo de implicações exigentes de uma maior complexidade<br />

analítica, também não poderei ignorá-las inteiramente quando se ligam a<br />

expressões produtivas e económicas.<br />

Tão valorizado é o gado, porque ao alcance de todos, que tudo o resto acaba por<br />

ser correspondentemente desvalorizado. E a agricultura ressente-se disso, tanto<br />

1


como actividade produtiva como enquanto expressão cultural. Esta última<br />

vertente aparece muito explícita quando são referidos depreciativamente os<br />

Kuvale <strong>das</strong> periferias territoriais que ao longo dos anos foram adoptando<br />

práticas agrárias que podem incluir, horror dos horrores, a utilização de bois<br />

para a tracção de alfaias. A banição estatutária dos parentes que se deixaram<br />

envolver nesta inovação técnica resulta implícita. São-me assinalados casos em<br />

que animais que lhes chegaram às mãos pelas vias da sucessão ou <strong>das</strong> alocações<br />

patrilineares lhes são retirados de novo porque os meteram à charrua:<br />

"...quando encontram aquele boi na charrua e vêem que a gente está-lhe a<br />

castigar com o chicote, o homem fica mau, aperta connosco, não aceita. Pega no<br />

boi e leva de novo para casa dele ...". Eu sei que isto fará sorrir e é de<br />

molde a induzir os mais perspicazes dos leitores a colocarem de novo a<br />

"racionalidade" dos Kuvale em causa. Não estarei, claro, tão imediatamente de<br />

acordo. Primeiro porque a tracção animal para efeitos de lavoura jamais faria<br />

algum sentido nas condições do meio ecológico em que a maioria do povo Kuvale<br />

opera, segundo porque nunca passará pela cabeça de nenhum Kuvale importar-se,<br />

por exemplo, com o uso que os Mwila fazem dos seus próprios bois ( embora o<br />

mesmo já não ocorra, talvez, se os bois em questão tiverem, pela via da<br />

permuta, saído <strong>das</strong> suas mãos), terceiro porque a sua atitude face aos Kuvale<br />

<strong>das</strong> periferias volta a ser uma questão cultural, que passa pela ideologia da<br />

"identidade", em que intervêm, portanto, razões que não são exactamente as da<br />

racionalidade económica, como todos nós, Angolanos, bem o sabemos. Melhor,<br />

portanto, passar de novo ao largo da desvalorização da agricultura enquanto<br />

expressão cultural. O mesmo não poderei fazer em relação à agricultura que é<br />

possível desenvolver enquanto actividade produtiva.<br />

Testemunhos que recolhi insistem que as mulheres jovens de hoje estão a<br />

afastar-se muito da agricultura. Devo imputar asserções como esta à tendência<br />

universal e imemorial que to<strong>das</strong> as pessoas com mais de 4O anos evidenciam ao<br />

dizer que antigamente é que era, a juventude de agora assim e assado? Não andei<br />

a medir nada, já o declarei, mas posso assegurar, apoiado em provas, que outras<br />

razões que não culturais ou de "degenerescência juvenil" terão levado a que as<br />

mulheres se invistam hoje em actividades que tendem uma vez mais, através dos<br />

seus resultados, a converter-se em bois, e nesse sentido são também estimula<strong>das</strong><br />

pela realidade conjuntural <strong>das</strong> últimas déca<strong>das</strong>. Refiro-me à produção de álcool.<br />

Posso sem qualquer hesitação ou pudor afirmar que o álcool constitui o<br />

principal e o mais generalizado aliciante do exterior para os Kuvale. Para<br />

muitos, para a maioria, será mesmo o único. Ora, ao mesmo tempo que depois da<br />

independência o fornecimento de álcool pelo exterior passou a ser irregular e<br />

deficiente ( embora às vezes no meio dos Kuvale sejam descarregados camions<br />

inteiros de caixas de aguardente sobretudo no tempo da fome, altura em que se<br />

mostram particularmente carentes de vinho também, outra razão talvez cultural,<br />

mas também talvez não só e que fica para outra ocasião), deixou também de<br />

pesar, na prática, a interdição oficial de fabricá-lo artesanalmente,<br />

extremamente rigorosa até aí. Tendo em conta que o meio fornece recursos para<br />

uma fabricação abundante de destilados a partir de frutos de Sclerocarya spp.<br />

(mungongo), de Cordia spp. (mukoio) e de Grevia flavescens (mupapo), que esse é<br />

um serviço feminino ligado estatutariamente à recolecta, que a procura é muita<br />

e que <strong>das</strong> transacções correspondentes as fabricantes visam sobretudo a cobrança<br />

de carneiros que depois de acabados de criar elas mesmas procuram trocar por<br />

garrotes que por sua vez depois de bois adultos essas diligentes e razoáveis<br />

senhoras procuram trocar ainda por nemas, eu acredito que uma agricultura tão<br />

aleatória como aquela que se pode praticar ali (em que não raro se perde a<br />

semente e o trabalho da sementeira porque entretanto não choveu mais, ou ainda<br />

se semeou quando a chuva veio tarde mas depois já não deu porque o milho não<br />

1


teve tempo de fazer-se), eu acredito que uma agricultura destas possa ser<br />

preterida a favor de um valor seguro como é o da fabricação de kanyume.<br />

A esta actividade libertária <strong>das</strong> jovens e festivas mulheres kuvale, e não só,<br />

também de senhoras já bem maduras, está ligada uma outra que assinalei<br />

brevemente no que já foi dito, e que também pode ser interpretada como um<br />

indíce inflacionário no seio do sistema: a multiplicação de cultos, onde o<br />

álcool intervem aliás generosamente, e em que vejo não já uma estratégia para a<br />

acumulação nominal de gado mas antes uma justificação oportuna e admitida para<br />

um consumo mais generalizado de carne ligado, pode conjecturar-se, tanto à<br />

abundância de efectivos animais como à carência tornada crónica de cereais.<br />

Deparei com constantes makumukas, como disse atrás, no decurso da maior crise a<br />

que assisti, em 1993, completamente fora do período normal do consumo<br />

ritualizado da carne. Ainda aí era a prática do sagrado que dava cobertura a<br />

tal consumo. Mas era um consumo extremamente oportuno para matar uma fome<br />

urgente e eminentemente fisiológica, dá para pensar.<br />

Ligado a consumo e à necessidade de o assegurar mesmo por formas pouco<br />

ortodoxas, circunstância que tem afectado muito bom cidadão angolano, parece<br />

estar também uma <strong>das</strong> modalidades de roubo que tem marcado o tempo kuvale <strong>das</strong><br />

duas últimas déca<strong>das</strong>. De 1993 para 1994 fez-se sentir na zona do Hoke,<br />

encostada à serra, perto do Sayona, a acção de um grupo de jovens assimilados à<br />

cultura pastoril dos Kuvale que matava, para comer, gado dos produtores locais<br />

ou de outros ali estacionados no percurso <strong>das</strong> transumâncias, o que com o tempo<br />

acabou por implicar muita gente, até do Bumbu, onde foram atacar. Também junto<br />

à estrada de asfalto para o Lubango ocorreram por essa altura incidentes com<br />

gado roubado e despachado a um comerciante. Dos do grupo do Hoke conheci dois<br />

deles, que estiveram muito tempo, depois de agarrados, no sambos de dois dos<br />

lesados, mantidos ali sob controle mas livres, à espera de um qualquer encontro<br />

definitivo com o destino. A essa espécie de roubo chama-se wanaka: wanaka o<br />

kuria, roubou e comeu. Ela é entendida sem hesitações por toda a gente como<br />

socialmente desintegrada e embora lhe sejam em primeira mão aplicados os<br />

procedimentos do modelo endógeno, ela acaba por implicar quase inevitavelmente<br />

a autoridade central e os seus métodos.<br />

Dois outros tipos de acção ligados a questões de propriedade ou de autoridade<br />

sobre gado afectam directa ou indirectamente as dinâmicas internas da sociedade<br />

kuvale e colocam frequentemente o seu sistema produtivo em causa ou em<br />

situações que, dentro da perspectiva que venho expondo, podem conduzir a uma<br />

aceleração da sua usura.<br />

O primeiro refere-se à prática da razia, que aos olhos <strong>das</strong> lógicas e dos<br />

procedimentos do sistema global é confundida com roubo puro e simples e<br />

assimilado a crime, enquanto para os Kuvale não é assim, de facto, já o referi<br />

anteriormente. A prática da razia, tal como ela é encarada e praticada ainda<br />

hoje, é uma expressão de guerra - o vita - que na própria designação vocabular<br />

que a refere - kunyanga - pressupõe uma acção desenvolvida longe , "onde não se<br />

conhecem pessoalmente os donos dos bois visados" com o fim de entrar na posse<br />

deles para integrá-los nas dinâmicas do sistema. As implicações são portanto<br />

aqui de outra ordem, e a sua consideração remete ao confronto directo entre os<br />

dois sistemas. Estruturalmente uma acção de razia seria compensada por outra<br />

acção de razia e alguns autores situam mesmo este tipo de interacção nos<br />

domínios da reciprocidade ( Service citado por Sahlins in Godelier 1974). Ou<br />

então a interacção acaba por definir a supremacia de uma parte sobre a outra ou<br />

as outras e foi isso de algum modo o que, a meus olhos, terá acontecido ao<br />

1


longo do prolongado processo que acabou por fixar o domínio português na região<br />

ao longo de toda a última metade do séc. XIX e as primeiras déca<strong>das</strong> deste.<br />

O segundo corresponde a acções de waholela, desviar bois da família, do pai, do<br />

tio. Holela significa que "desviou para esconder, não matou, não comeu, foi<br />

para aumentar". Faz parte da prática comum e implica, como é de prever, muitos<br />

indivíduos jovens. Mas também não deixa de mobilizar a argúcia e o talento de<br />

todos aqueles que emprestam todo o vigor à expansão da sua carreira pessoal.<br />

Integra-se na densa trama <strong>das</strong> relações que ilustram o quotidiano <strong>das</strong><br />

comunidades e, uma vez mais, porque tudo está integrado, os inúmeros casos de<br />

figura a que dá origem confundem-se com os que derivam de questões de<br />

adultério, de divórcio, de feitiço, de agressões, de herança, de devolução de<br />

nampingo's e outras. A expressão inflacionária que parece caber-lhes no<br />

presente corresponderá assim ao quadro geral que procurei esboçar neste breve<br />

diagnóstico social.<br />

Estaremos assim em presença, considerando a sequência de aspectos que acabo de<br />

encadear uns nos outros, de um processo de crise que assume expressões<br />

internas que tento distinguir da crise global, quando sugiro tratar-se de um<br />

processo subtil que dá ao mesmo tempo notícia do vigor do sistema e da<br />

intervenção desse mesmo vigor na usura do próprio sistema. O desenvolvimeto e a<br />

conveniente ilustração desta proposta teórica e de outras que hão-de resultar<br />

dela constitui uma <strong>das</strong> perspectivas gerais do trabalho em que tenho vindo a<br />

investir-me.<br />

Interessará talvez sobretudo não perder de vista que este processo se inscreve<br />

noutro que não só o relativiza como, em última análise, o condiciona e<br />

determina num quadro de contradições e confrontos entre dois mundos, dois<br />

universos. O que acabo de propor é perfeitamente ilustrado, penso, pelo<br />

confronto entre as duas modalidades de regulação social. Acabo de assinalar<br />

esta realidade de impasse, de conciliação impossível, ao aludir às cargas<br />

conceptuais de roubo e de razia, e o que registei atrás, ao aludir à interacção<br />

entre as estruturas locais de controle e o Estado, exprime o mesmo tipo de<br />

impossibilidades, aquelas que a mais curto ou a mais longo prazo não poderão<br />

deixar de saldar-se pela confirmação de roturas, a desfavor, não tem outra<br />

hipótese, do sistema ou dos sistemas que o curso da história insulariza, e<br />

acaba por arcaízar, estigmatizar, inviabilizar. Não é a altura de me deter em<br />

considerações de ordem mais ou menos filosófica. Interessa-me apontar para uma<br />

apreensão pragmática da realidade, e uma vez mais o recurso a uma articulação<br />

binária entre factores eleitos como fundamentais aos dois sistemas em presença,<br />

os da economia pastoril e os da economia mercantil globalizante, hoje<br />

planetária, mesmo sabendo que as articulações binárias sustentam as formas mais<br />

elementares de análise, poderá talvez abreviar o raciocínio.<br />

<strong>À</strong> mobilidade inerente ao sistema pastoril contraponham-se as políticas de<br />

sedentarização em que o sistema moderno e abrangente se investe por toda a<br />

parte, fundamentado em equívocos económicos que cultiva mas visando também, e<br />

talvez sobretudo, razões administrativas e políticas, caso contrário talvez não<br />

pusesse tanto ênfase na sua vontade; ao equilíbrio, aos equilíbrios a que vim<br />

fazendo tão generosa referência contraponha-se crescimento, factor inerente à<br />

economia de mercado; à reciprocidade contraponha-se moeda e mercado,<br />

precisamente, sem perder de vista os tipos de interacção que estão inerentes às<br />

duas modalidades (enquanto em contextos como os <strong>das</strong> sociedades pastoris e<br />

outras, to<strong>das</strong> as transacções se processam através dos canais do parentesco e<br />

<strong>das</strong> solidariedades, o sistema de mercado pressupõe sentimentos como, desculpemme<br />

a caricatura, "amigos, amigos, negócios à parte...”); às articulações e aos<br />

fundamentos dos sistemas de trabalho <strong>das</strong> economias domésticas contraponha-se a<br />

escolaridade; à acumulação redistributiva, a acumulação tesourizante; à<br />

1


integração de to<strong>das</strong> as instâncias (meio, produção, regulação, religião, por<br />

exemplo) a compartimentação <strong>das</strong> mesmas . São apenas algumas sugestões,<br />

bastantes no entanto, espero, para reconhecer a amplitude e a inevitabilidade<br />

do carácter conflitual de um processo inelutável que para além de confrontar<br />

dois modelos económicos constitui o terreno do embate de duas culturas e<br />

sobretudo, e para mim o mais importante, de duas lógicas, duas racionalidades.<br />

Nos domínios da factualidade este embate há-de exprimir-se, necessariamente, de<br />

muitas maneiras, consoante as acções que estiverem em curso, as intervenções,<br />

as respostas, as contra-intervenções e as contra-respostas, e a sequência de<br />

actos e de comportamentos que daí resultarem. A sociedade Kuvale viverá de uma<br />

forma específica as circunstâncias que se lhe depararem e irá ser mais<br />

envolvida por umas contradições do que por outras à medida que os tempos se<br />

forem cumprindo.<br />

O mesmo acontecerá a outras sociedades pastoris e agropastoris do Sudoeste<br />

angolano. Mas to<strong>das</strong> acabarão por se ver implica<strong>das</strong> em todos os aspectos de um<br />

processo global e indetenível de mudança obrigatória. Das hipóteses<br />

diferencia<strong>das</strong> de integração e de compensação recíproca de dois tipos de<br />

economia, de dois tipos de cultura, dois tipos de lógica, dependerá o futuro de<br />

to<strong>das</strong> e de cada uma. A apreensão da ideia de que se trata de um processo<br />

global parece-me importante, fundamental até. A de que num futuro imediato sem<br />

guerra cada uma delas estará colocada preferencialmente perante diferentes<br />

aspectos do mesmo, parece-me indispensável à persecução dos objectivos deste<br />

trabalho ao pressupor, de facto, "uma perspectiva de pos-guerra".<br />

Sem me afastar dos meus terrenos de observação e de análise, que são os da<br />

sociedade kuvale, uma abordagem, sumária embora, <strong>das</strong> questões em que mais<br />

directamente podem vir a ser envolvi<strong>das</strong> as outras sociedades pastoris e<br />

agropastoris angolanas, permitir-me-à, talvez, inscrever a sua problemática na<br />

problemática pastoril que a implica na globalidade, sem que tal pareça assumir<br />

o carácter de uma especulação de cariz teórico. É o que ensaiarei a seguir.<br />

1


A "perspectiva do pos-guerra"<br />

CAP. 8<br />

1<br />

O FUTURO PASTORIL EM QUESTÃO<br />

O que poderá marcar o futuro próximo de Angola, o que condicionará as acções<br />

que, para cada um, para cada grupo, cada região, cada contexto, conviria<br />

minimamente poder programar a partir de uma qualquer perspectiva de pos-guerra?<br />

Para o observador mais ou menos atento à globalidade <strong>das</strong> implicações, a questão<br />

passará por conjecturas acerca <strong>das</strong> plataformas que poderão garantir<br />

precisamente uma qualquer paz, penosamente arrastada através de tantas<br />

negociações, tantas pressões, cedências e esgotamentos, que acaba por ocorrer<br />

perguntar até que ponto os próprios actores do "processo" se manterão<br />

suficientemente lúcidos para não ter perdido de vista o que está de facto em<br />

jogo. Por isso, também, é natural que o observador se interrogue: "o que irá<br />

seguir-se: uma ressaca, arrastada ainda, não só de tão longa guerra mas também<br />

desta tão arrastada negociação, ou uma hipótese qualquer que possa comportar, à<br />

partida, os sinais de alguma reabilitação económica, política, cívica? <strong>À</strong> gestão<br />

da guerra, e à da sua liquidação, que gestão da paz poderá seguir-se? Ou<br />

seguir-se-á apenas uma política de obstrução a opções de guerra, feita ainda e<br />

sempre de uma trama local de razões mais ou menos secretas, para não dizer


ocultas, que as invocações de princípio <strong>das</strong> declarações oficiais não conseguem<br />

ocultar, e de uma orquestração externa por demais evidente? É já tempo de falar<br />

de um programa económico que de qualquer maneira será sempre menos dependente<br />

do espectro político do poder nacional, constituído ou a constituir, do que <strong>das</strong><br />

condições que forem garanti<strong>das</strong> para o enquadramento de Angola em planos mais<br />

vastos e decididos a outros níveis? Objectivos,meios,modelos,reajustamentos,<br />

correcções, dívida, créditos, poupança, investimento, reinvestimento? Apenas<br />

estabilidade e livre circulação? Ou também competência na análise e na<br />

execução? Ou, finalmente, responsabilidade e responsabilização? Reabilitação<br />

nacional? Em que quadro de actuações cívicas?<br />

Para uma boa parte da classe média a questão é a de saber se a moeda aguenta e<br />

de que forma o futuro imediato pesará sobre o programa de actividades paralelas<br />

que a maioria desenvolve à margem ou a partir do seu enquadramento<br />

institucional, ou se dará para ensaiar um frágil estatuto de empresário ou para<br />

mantê-lo, uma vez que poucos programas pessoais deixarão de encarar hipóteses<br />

nesse sentido, tal como antigamente eram visados posicionamentos nas<br />

hierarquias do Estado, quando tudo era Estado no papel mas cada vez menos na<br />

prática.<br />

Para uma grande parte <strong>das</strong> populações angolanas, aquele enorme terço implantado<br />

nos contextos do litoral, à boca dos portos, ou noutras concentrações urbanas<br />

maiores, a questão é a de saber o que haverá para comprar e para vender, e<br />

onde, e se será possível ir mais longe, em termos de raio geográfico de acção,<br />

e se dá mesmo para voltar, se se é deslocado, ou para onde ir, se se é<br />

desmobilizado.<br />

As populações agrárias que permaneceram rurais indagarão do acesso possível a<br />

sementes, a adubos, a "medicamentos" para as plantas, a ferramentas e a<br />

alfaias, a bois de tracção, a créditos e, logo assim, se poderão contar com<br />

algum comércio eficiente e regular, abastecimentos e escoamentos. E olharão<br />

para o céu, não tanto para invocar a providência divina quanto para ver como<br />

vai correndo o ano de chuvas. É com a chuva que vai caíndo e consigo mesmos que<br />

aprenderam a contar.E as pastoris e agropastoris farão o mesmo.<br />

Um estudo relativamente recente, eminentemente técnico e de qualidade (Morais e<br />

Correia 1993), ao ocupar-se da região que engloba o sul da Província da Huíla e<br />

a do Kunene, presta informações que traduzem, afinal, as expressões locais de<br />

um desarranjo comum a toda a esfera rural angolana, garantindo-nos no entanto a<br />

vantagem de não nos afastar dos contextos que pressupostamente devem ocupar-nos<br />

ao longo deste texto. Confirmam os autores que, no seu conjunto, a sociedade<br />

global, debilitada na sua capacidade de intervenção, nem sempre tem agido<br />

"movida por critérios ou interesses ajustáveis ou coincidentes com as<br />

realidades da região" (ibid.:25) e, depois de passar em revista alguns<br />

aspectos específicos que invocarei mais tarde, concluem que " as acções<br />

volta<strong>das</strong> para o meio rural têm-se pautado por um desajustamento entre os<br />

executores e as estruturas de concepção e orientação global, com resultado na<br />

completa marginalização de comunidades rurais e de abaixamento <strong>das</strong> suas<br />

condições de vida" (ibid.:35).<br />

Recorri a esta avaliação tecnicamente suportada de uma situação concreta porque<br />

ela é, quanto a mim, uma <strong>das</strong> muitas maneiras de avaliar uma presença, a do<br />

Estado, designada no caso por "sociedade global", que se tem caracterizado<br />

particularmente pela progressiva perca de substância da sua capacidade<br />

interventiva, iludida ainda assim pela manutenção de um aparato burocrático<br />

investido sobretudo na sua própria manutenção e reprodução. Se há um dado<br />

presente em to<strong>das</strong> as consciências angolanas é a do vazio do Estado. Mas esse<br />

1


vazio não anula uma presença que é ao mesmo tempo a de uma ausência que se<br />

constitui, em si mesma, como a retaguarda <strong>das</strong> incidências externas que se<br />

exercem mesmo sobre as sociedades mais vira<strong>das</strong> para as estratégias da<br />

sobrevivência imediata, da auto-suficiência alternativa, da encapsulização ou,<br />

se preferirem, da resposta à marginalização. É desse mesmo vazio de acção por<br />

parte do Estado, no qual podem, e talvez devam, ser incluí<strong>das</strong> também as<br />

evidências dos seus desvios funcionais, que decorrem não poucas <strong>das</strong> pressões<br />

que marcam o presente de Angola, as quais por sua vez imprimirão as dinâmicas<br />

de um futuro imediato que, é de crer, arrastará ainda por muito tempo as<br />

marcas de um passado tão longa e radicalmente desestruturante que dificilmente<br />

deixará de dificultar qualquer reestruturação, incluindo a do próprio Estado.<br />

É sobre as intervenções, nalguns casos pressões, que o presente exerce sobre as<br />

sociedades pastoris e agropastoris de Angola que me proponho reflectir um<br />

pouco. Não poderei fazê-lo, no entanto, sem deter-me ainda sobre a sua<br />

colocação no espaço e no tempo de Angola e na problemática global <strong>das</strong><br />

sociedades de cultura pastoril.<br />

Colocação da cultura pastoril no contexto de Angola<br />

As populações angolanas mais ou menos implica<strong>das</strong> na cultura pastoril situam-se<br />

na Província do Namibe e nas que a envolvem: Benguela, Huíla e Kunene.<br />

Populações do sul do Huambo que num passado não muito longínquo poderiam ser<br />

ainda desta forma caracteriza<strong>das</strong> foram-se vendo, ao longo dos anos, envolvi<strong>das</strong><br />

cada vez mais noutros processos económicos.<br />

Urquart (1963:8-13), cujo trabalho continua a parecer-me bastante interessante,<br />

faz referência a isso e fornece dados sintéticos, mas fiáveis, em relação a<br />

todos os povos da região e à sua implicação com o gado. Trabalhos mais recentes<br />

(Estudo de Factibilidade ...) imputam a estas três Províncias um total de<br />

efectivos bovinos da ordem dos 2.5OO.OOO cabeças para uma população humana<br />

estimada em 1.376.OOO pessoas em 199O. Um outro estudo, mais recente ainda<br />

(Morais e Correia 1993: 2), sintetiza os vários contextos geo-económicos:<br />

dependência quase exclusiva da criação de gado para a zona árida do litoral sul<br />

( onde os maiores grupos que actuam são os Kuvale e comunidades Himba junto ao<br />

rio Kunene [ a responsabilidade <strong>das</strong> referências entre parêntesis é minha]);<br />

"uma agricultura marcadamente mercantil, sendo aí a pastorícia uma actividade<br />

complementar na economia da comunidade rural" para as zonas planálticas da<br />

Huíla (onde vivem os Mwila); a coexistência de " uma economia mista de<br />

agricultura para o autoconsumo com a pastorícia" para a área subplanáltica de<br />

Benguela e de Kilengues (com populações Ndombe e Tyilengue); e as zonas do sul<br />

da Huíla e do Kunene (que abrangem populações Ngambwe e Nkhumbi do grupo<br />

linguístico Nyaneka -Nkhumbi, tal como os Mwila, Hakahona, Ndimba, Himba e<br />

Tyimba [ as designações Himba e Tyimba suscitam confusões e podem corresponder<br />

às mesmas formações], todos Herero, e grupos Ambo, dos quais o mais referido é<br />

o dos Kwanyama).<br />

To<strong>das</strong> estas zonas e populações foram, evidentemente, afecta<strong>das</strong> pelos processos<br />

de desestruturação e de destruição global de Angola ligados ou não às<br />

incidências directas e indirectas da guerra. O sudeste de Benguela e o norte da<br />

Huíla ainda à data em que estou a trabalhar neste texto são <strong>das</strong> zonas mais<br />

inseguras de todo o território nacional e as intervenções sul-africanas<br />

utilizaram o eixo rodoviário que liga a fronteira com a Namíbia ao Lubango e,<br />

durante certos períodos, bombardearam intensivamente toda a região Sul,<br />

retaguarda e base para as operações da Swapo.<br />

1


O estudo de Morais e Correia (1993:26-35), referindo-se ao sul da Huíla e ao<br />

Kunene, passa em revista alguns dos enquadramentos locais ligados às<br />

incidências da "sociedade global" e assinala momeadamente que o ensino se<br />

desmantelou depois de 1979 e nunca mais se recompôs; que a assistência à saúde<br />

humana tem sido exígua e precária; que os serviços de apoio à produção animal<br />

nunca ultrapassaram a realização de campanhas anuais de vacinação sempre aquém<br />

da sua intenção massificadora; que as obras de captação e retenção de água se<br />

degradaram e deixaram em grande número de servir devido à "destruição provocada<br />

pela guerra, falta de manutenção e indisciplina na utilização", enquanto as<br />

iniciativas que tiveram lugar se revelaram "basea<strong>das</strong> em conceitos mal<br />

estruturados de modernidade e pouca competência". O domínio do comércio passou<br />

de um período em que assentava em estruturas do Estado, caracterizado por<br />

centralização e pouca flexibilidade alia<strong>das</strong> a "desconhecimento dos hábitos e<br />

costumes da população rural" e "inoperância dos executores locais", para uma<br />

liberalização que trouxe consigo um imediato agravamento dos preços, enquanto<br />

sobretudo a partir de 1989, com a retirada dos Sul-Africanos, o comércio<br />

através da fronteira com a Namíbia acabou por envolver "as comunidades de toda<br />

a região, mesmo as mais distantes a norte".<br />

Colocação dos casos angolanos na problemática da cultura pastoril<br />

Insistindo circunstancialmente numa perspectiva que parte da especificidade<br />

económica de grupos que se investem numa relação directa com o meio para<br />

extrair daí as condições da sua viabilidade, poderei propor, a partir do<br />

tratamento que procurei dar ao caso kuvale, uma formulação que eleja quatro<br />

ordens de factores articuláveis entre si: fundamentação ecológica, expressões<br />

culturais e sociais do sistema de produção, incidências externas e dinâmicas da<br />

interacção.<br />

A mesma formulação, julgo, será aplicável a um grande número de sociedades que<br />

pratiquem uma economia de relativa auto-suficiência ou de relativa autonomia,<br />

culturalmente defendida ou circunstancialmente adoptada, e, logo assim e em<br />

maior ou menor grau, à maioria <strong>das</strong> sociedades pastoris e agropastoris que<br />

prevalecem no Mundo. Serão os factores de determinação ecológica que as<br />

definem como tal. Elas exploram, para o nosso caso, ungulados domésticos que,<br />

sempre associados à agricultura que for possivel, ocorrem como a via mais<br />

eficiente de extrair rendimento de um meio configurado pelo regimem <strong>das</strong> chuvas<br />

e pela natureza da cobertura vegetal.<br />

O aproveitamento económico de um tal meio ecológico comporta as suas regras, as<br />

quais serão dita<strong>das</strong>, precisamente e em primeira mão, pelas exigências que a<br />

manutenção e a exploração dos animais impuserem. A relação pastos-água<br />

constitui-se como a pedra ancilar do próprio sistema e exprime-se imediatamente<br />

através do seu incontornável corolário: a mobilidade. Os pastos, em absoluto e<br />

na sua diversidade, e a água, distribuem-se de forma irregular no espaço e no<br />

tempo e o seu aproveitamento só se traduz em viabilidade económica quando esta<br />

circunstância é tida em conta e racionalmente integrada.<br />

Tais regras, por sua vez, são observa<strong>das</strong> através de comportamentos técnicos e<br />

sociais adaptados à gestão e à integração de vários equilíbrios. O objecto<br />

económico em exploração são os animais constituídos em grupos: os rebanhos,<br />

porções de animais entendi<strong>das</strong> em si mesmas como organismos. A dimensão destes<br />

rebanhos tem que respeitar várias condicionantes: capacidade de carga do meio,<br />

condições de abeberamento e capacidade de trabalho disponível para os conduzir<br />

no aproveitamento dos recursos, para os adaptar aos objectivos da sua<br />

exploração e para lhes extrair esses resultados.<br />

1


Dois tipos de equilíbrio, portanto, têm que ser tidos em conta: os que decorrem<br />

<strong>das</strong> características do meio, que é frágil e rude, e <strong>das</strong> dos animais em<br />

exploração, tidos à partida como os mais adaptados à rudeza do meio, dentro da<br />

espécie, e os que observem a relação simbiótica entre as pessoas e o rebanho,<br />

para utilizar uma expressão feliz de P. Spencer (1965:11). O tamanho de um<br />

rebanho situar-se-à sempre entre um mínimo que responda às necessidades do<br />

grupo de pessoas que o explora e um valor máximo que não exceda a capacidade de<br />

trabalho desse mesmo grupo (Bonfiglioli 1988:163).<br />

Isso leva ou pode levar, como vimos em relação aos Kuvale, a que no contexto da<br />

actuação de uma família , dado que a pastorícia é sempre uma economia<br />

doméstica, se constituam ou possam constituir vários rebanhos imputados ao<br />

exercício dos seus vários membros de acordo com a sua disponibilidade para a<br />

movimentação, decorrente do sexo ou da idade, factor que jogará também na<br />

composição desses rebanhos. São os rebanhos <strong>das</strong> onganda's e dos buluvulu's,<br />

entre os Kuvale. Pode levar, ainda, a que certas quantidades de gado sejam<br />

transferi<strong>das</strong> de uns grupos de pessoas para outros, de acordo com os níveis de<br />

saturação ou de déficit de emprego da sua disponibilidade de trabalho e logo<br />

assim, de formas diferentes, em situações de deseiquilíbrio. Estaremos então<br />

perante as transferências de animais que entre os Kuvale assumem expressões que<br />

vão da atribuição de hupa's aos filhos às alocações que podem beneficiar<br />

parentes afastados, colegas de idade ou simples amigos. Aí, porém, outros<br />

factores poderão ter entrado em jogo, sobretudo razões de segurança relativas a<br />

condições naturais ( equilíbrio pastos-água, de novo),sanitárias ou de ameaça<br />

humana ( guerra, roubo, controle administrativo, por exemplo).<br />

Um conjunto de comportamentos, portanto, donde emergem imediatamente algumas<br />

características eminentemente sociais, tais como um sistema de trabalho que<br />

tende a assegurar o acesso de to<strong>das</strong> as pessoas, ou grupos de pessoas, à<br />

exploração dos recursos e à utilização dos meios. Não se podendo imputar às<br />

sociedades pastoris e agropastoris uma vocação igualitária, como certos<br />

exageros mais ou menos românticos poderiam insinuar, e embora nelas, como vimos<br />

em relação aos Kuvale, as estratificações decorram implícitas à prática social,<br />

estaremos antes perante um modo social que regula práticas adequa<strong>das</strong> às funções<br />

sem que daí resultem roturas sociais (ou então não é apenas isso mas também<br />

aqui não dá para ir mais longe) e onde as instituições encontram o seu lugar no<br />

terreno dos desempenhos operativos.<br />

Veja-se o sistema de parentesco, por exemplo. Tudo se inscreve numa instituição<br />

tão abrangente como ele o é. Mas ela não é considerada em si mesma pelos<br />

sujeitos que a têm em conta e se movimentam no suporte da sua trama. Quando<br />

pergunto a um Kuvale como é que Fulano é seu primo e ele me responde: "-Então<br />

quando ele morre o meu filho não vai lá buscar um boi de nampingo?", eu sou<br />

levado a interrogar-me, como o faz Bonfiglioli (1988:8), se o parentesco é um<br />

ponto de partida ou um ponto de chegada. Da mesma forma quando a religião se<br />

exprime através do sacrifício de animais visando de antepassados recentes cuja<br />

intervenção se invoca a favor <strong>das</strong> condições de exploração dos rebanhos, não<br />

posso deixar de arriscar que se trata da integração dos mortos no sistema de<br />

produção. São traços culturais integrados numa organização social que por sua<br />

vez se integra directamente no meio. São traços de uma cultura pastoril.<br />

Se fiz apelo às citações que precedem e as articulei a constatações e a<br />

formulações que são da minha inteira responsabilidade, foi para poder sugerir<br />

que embora os traços que exprimem as expressões culturais locais variem<br />

consideravelmente às vezes mesmo em situações de vizinhança imediata, as<br />

funções que elas asseguram são muito equivalentes num corpo imenso de<br />

sociedades às quais pode imputar-se uma cultura pastoril. Os sistemas de<br />

1


parentesco, ainda por exemplo, podem assumir expressões muito diferencia<strong>das</strong> e<br />

não jogar sequer, nalgumas sociedades, um papel fundamental, caso daquelas que<br />

se articulam internamente através de classes de idade, mas a mobilidade, a<br />

gestão dos equilíbrios que mencionei, modalidades às quais as instituições<br />

asseguram o curso e a fluidez, estarão presentes em to<strong>das</strong> as sociedades que, no<br />

seu conjunto, integram os 3O milhões de indivíduos que, no Mundo inteiro,<br />

praticam a pastorícia transumante (Bourgeot & Guillaume 1989:3)<br />

Se assim é e nos interessamos por uma sociedade pastoril como a dos Kuvale, não<br />

podemos deixar de conceder uma vista de olhos, quanto mais não seja, a outras<br />

sociedades africanas do mesmo tipo, tendo inclusivamente em conta, sem cair<br />

todavia em exaltações difusionistas, que muito provavelmente to<strong>das</strong> derivam de<br />

uma muito remota pastorícia sahariana (ver infra). Isso nos levaria à<br />

consideração de casos Touareg, Woodaabe, Affar, Nuer, Rendille, Boran, Samburu,<br />

Turkana, Kamirojong, Jie, Masai, Tswana, e Herero da Namíbia, para só<br />

considerar os mais estudados, tendo partido do Senegal ou da Mauritânia e<br />

atravessado o Mali,o Niger, o Tchad, o Sudão, a Etiópia, a Somália, o Kénia, os<br />

Grandes Lagos, a Tanzânia, o Zimbabwé, a Africa do Sul e o Botswana até chegar<br />

ao nosso vizinho de além Kunene. E, logo assim, atravessando o Kunene para o<br />

lado de cá, aos vizinhos imediatos dos Kuvale, Herero ou não, e era aqui que eu<br />

queria, afinal, chegar. To<strong>das</strong> as sociedades que mencionei desenvolvem, no nosso<br />

exacto tempo presente, sistemas de produção aos quais se ajusta o jogo <strong>das</strong><br />

correspondências possíveis que sugeri ao princípio: fundamentação ecológica /<br />

sistema de produção cultural e socialmente diferenciado.<br />

Mas também, e exactamente porque praticam no tempo presente sistemas cultural e<br />

socialmente diferenciados e se repartem por tantas configurações estatais e<br />

regionais diferentes, as vamos ver implica<strong>das</strong> em processos distintos segundo<br />

outra proposta de correspondência entre factores: incidências externas /<br />

dinâmicas de interacção.<br />

Não é evidentemente minha intenção alargar aquilo que quero dizer ao conjunto<br />

<strong>das</strong> culturas pastoris africanas. Ficarei apenas pelas que nos dizem<br />

imediatamente respeito, as angolanas. Mas seria um desperdício não investir<br />

nisso, ainda que com moderação, alguns ensinamentos ou pistas de reflexão<br />

extraídos do que passa ou tem passado com os outros, outros Africanos em<br />

relação aos pastores angolanos, e outros pastores angolanos em relação aos<br />

Kuvale. É que os pastores e os agropastores de Angola também se diferenciam<br />

entre si, praticam meios diferentes, confrontam-se com incidências distintas e<br />

produzem respostas diversas.<br />

1


CAP. 9<br />

ESBOÇO DE UM QUADRO DE INCIDÊNCIAS APLICADO A TODA A MANCHA PASTORIL ANGOLANA<br />

Lembrei atrás que o norte da mancha pastoril e agropastoril de Angola continua<br />

(Janeiro de 1997) a ser uma <strong>das</strong> zonas mais inseguras do país. E mencionei o<br />

comércio que se faz através da fronteira do seu extremo sul. São dois pólos de<br />

um quadro de incidências e de consequências evidentes ou conjecturáveis. A<br />

minha proposta seria a de reconhecer no espaço angolano vários tipos de<br />

interacção, expressões locais de processos que atingem to<strong>das</strong> as sociedades<br />

pastoris e agropastoris africanas, procurando assinalar os seus contornos e os<br />

seus impactos no quadro exacto da conjuntura nacional. Tratar-se-ia ao mesmo<br />

tempo de um ensaio e de um programa de análise que obrigariam ao reconhecimento<br />

<strong>das</strong> condições exactas dos processos em curso e do lugar que neles ocupam,<br />

enquanto variáveis intervenientes, as incidências do processo global e presente<br />

1


de Angola, as implicações assinaláveis, tanto em relação à região como às<br />

populações que dominantemente as habitam, as determinantes geo-económicas que<br />

lhes assistem, as especificidades dos sistemas económicos que praticam, e a<br />

caracterização sócio-cultural dos sujeitos envolvidos.<br />

Cada um dos processos identificados revelaria os seus aspectos mais marcantes,<br />

sem que fosse perdida de vista a presença de outros. E a apreciação de todos os<br />

processos e de todos os factores que neles intervêm acabaria por revelar de que<br />

forma a importância destes, em cada uma <strong>das</strong> configurações reconheci<strong>das</strong>, poderia<br />

vir a alterar-se numa pespectiva de projecções conjecturáveis, quer dizer, de<br />

que forma afinal todos os factores estão presentes em todos os processos, só<br />

que, em cada um, relativizados pelas marcas do presente. Uma tal "démarche"<br />

acabaria por levar ao tratamento dos grandes temas da problemática pastoril.<br />

Roubo ao Norte<br />

Assim, em relação ao Norte, estaríamos perante um processo que revela ainda os<br />

termos de um conflito armado. As armas continuam a intervir directamente,<br />

utiliza<strong>das</strong> agora em casos de roubo de gado e de agressões a populações e a<br />

utentes da estrada que liga Benguela ao Lubango. É assinalada a presença de<br />

grupos armados cuja existência é oficial e publicamente reconhecida como a de<br />

marginais, perante a formal impossibilidade lógica e política de a associar, na<br />

fase actual do processo angolano, a formações políticas, e sobre elas incidirá,<br />

já foi oficialmente anunciado, a acção prioritária do exército nacional após a<br />

fixação da sua constituição na decorrência <strong>das</strong> operações de integração e de<br />

desmobilização que vêm tendo lugar. Do ponto de vista oficial e militar ou<br />

policial, portanto, o assunto não constituirá matéria para grandes debates<br />

teóricos, trata-se de uma questão de incidência repressiva ou dissuasiva. Mas<br />

nós sabemos que a ocorrência do fenómeno, mesmo sem alargar-lhe imediatamente<br />

os contornos, comporta componentes sociais e quiçá culturais. Ele poderia ser<br />

de molde a justificar uma avaliação nesse sentido que aju<strong>das</strong>se a situá-lo e a<br />

reconhecer, talvez, que intervenções militares e policiais não bastarão mais<br />

uma vez à solução de um caso desses se não forem encara<strong>das</strong> também certas<br />

condições que, desde que prevaleçam, podem levar a que este tipo de<br />

"banditismo" se transforme numa erupção endémica, revelando que não se trata<br />

apenas de sequelas de questões passa<strong>das</strong>. Uma avaliação assim encarada poderia<br />

inscrever-se num programa de análise social aplicado às condições gerais de um<br />

país africano, como Angola, confrontado com os termos da sua própria inscrição<br />

na modernidade mas, porque o fenómeno se situa exactamente ali, em território<br />

pastoril, se focaliza sobretudo em gado e envolve populações social e<br />

culturalmente implica<strong>das</strong> em sistemas de produção ajustados às condições da<br />

região, ela inscreve-se automaticamente na esfera da nossa atenção imediata.<br />

Tenho à mão três artigos em que se tratam contextos pastoris tão diferenciados<br />

como os da Zâmbia, da Namíbia, do Transkey e de Madagáscar (Cutshall 1982,<br />

Keulder 1993 e Fauroux 1989). Embora não se refiram necessariamente a<br />

situações equivalentes à nossa, introduzem na análise questões que poderiam ser<br />

pertinentes para o tratamento do nosso caso, como as diferenças e as<br />

imbricações de banditismo comum e banditismo social, banditismo anti-social e<br />

criminalidade rural, iniciativas cívis e colectivas de combate ao roubo de gado<br />

e mesmo a organização de roubos destinados ao provimento de redes comerciais e<br />

industriais. Por outro lado, Clarence-Smith (1979:82-88) trata a importância do<br />

banditismo social na história do planalto da Huíla, principalmente, no decurso<br />

<strong>das</strong> últimas déca<strong>das</strong> do século passado, matéria que podendo não corresponder uma<br />

vez mais à situação que nos aflige agora, não pode ser ignorada.<br />

1


Ao longo deste texto, e considerando o caso Kuvale, tive que deter-me algumas<br />

vezes no lugar que o roubo de gado ocupa nas dinâmicas de cultura pastoril e em<br />

ocorrências históricas que ilustram a complexidade do fenómeno e a sua<br />

participação em desenvolvimentos que tendem sempre a exceder os interesses e as<br />

razões dos sistemas endógenos, inclusive em relação a algumas expressões que o<br />

caso tem assumido no presente. Há razia e há saque, há razia e há roubo, há a<br />

recuperação da "arte" da razia e da disponibilidade cultural dos sujeitos que a<br />

cultivam por parte de manipulações de terceiros, e há um conjunto de processos<br />

desenvolvidos no seio dos sistemas endógenos, ou entre si, que podem até sem<br />

grande esforço teórico ser inscritos nas dinâmicas da reciprocidade:<br />

apropriação ou retenção de gado em que os que agiram agora acabam por ser mais<br />

tarde objecto de uma acção equivalente por parte daqueles que antes lesaram.<br />

To<strong>das</strong> estas modalidades, aos olhos dos decididores de acções militares ou<br />

policiais, tenderão a ser encara<strong>das</strong> como roubo puro e simples e, porque se<br />

desenvolvem num terreno em que se pressupõe uma retaguarda organizada,<br />

extensões de rebeldia grupal que legitimam procedimentos em conformidade.<br />

Estamos talvez perante algo que faz lembrar episódios passados de uma história<br />

turbulenta, a dos Kuvale.<br />

O desenrolar dos acontecimentos locais comporta certamente enredos bem mais<br />

particularizados, menos militarmente abstractos e paradigmáticos, até porque os<br />

próprios agentes <strong>das</strong> intervenções militares e policiais acabam, não poucas<br />

vezes, por ver-se envolvidos nos casos para além do seu papel institucional. E<br />

também questões de diferendo interno serão introduzi<strong>das</strong>, nos processos, pelas<br />

populações implica<strong>das</strong>. As forças da intervenção serão chama<strong>das</strong> para resolver<br />

casos entre famílias e dentro de famílias. Ao mesmo tempo, muitas acusações<br />

fundamenta<strong>das</strong> em imputações e imagens sedimenta<strong>das</strong> pelo passado tenderão a ser<br />

recupera<strong>das</strong>. Para ser minimamente objectivo, correndo embora o incontornável<br />

risco do recurso a uma redução mais ou menos caricaturizante: o teatro dos<br />

acontecimentos é em grande medida a região dos Ndombe e dos Tyilengue. Aos<br />

vizinhos mais imediatos e tradicionalmente envolvidos em confrontos regionais<br />

focalizados nas movimentações compulsivas de gado não deixarão de ser imputa<strong>das</strong><br />

muitas <strong>das</strong> acções de "bandidos", podendo até muito provavelmente desenvolver-se<br />

tendências para confundir "bandidos" com vizinhos. Ora esses vizinhos são os<br />

Kuvale e registei entre eles menções de casos recentes em que grupos armados,<br />

que roubam gado para o lado de Benguela, quando actuam o fazem à maneira<br />

kuvale, vestindo-se como eles e falando bem alto e de forma explícita a sua<br />

língua. Acrescente-se a isto que no interior do território kuvale também actuam<br />

grupos de marginais que roubam gado, que há contenciosos muito graves à espera<br />

de oportunidade para se reactualizarem, que vigora da parte do senso comum<br />

exógeno à sociedade kuvale um juízo, manifesto ou latente, que faz com que todo<br />

o "mucubal" seja, até prova em contrário, um potencial ladrão de gado, que<br />

"tudo" quanto sai do mato com um pano à frente e outro atrás e vem ilustrar a<br />

paisagem urbana ou rodoviária é tido por "mucubal". E é evidente da parte dos<br />

que de facto são Kuvale uma postura orgulhosa, frequentemente com tonalidades<br />

de arrogância e, não poucas vezes, de insolência mesmo, traços de carácter que<br />

eu não tenho a mínima hesitação em confirmar. Talvez haja quem me conceda o<br />

direito de temer sinceramente que o desenrolar dos acontecimentos venha a<br />

envolver uma vez mais os Kuvale em peripécias que poderão descambar em<br />

desastre. E mais não digo.<br />

Fronteira ao Sul<br />

A Sul, a cena <strong>das</strong> interacções em curso ou conjecturáveis é marcada,<br />

principalmente, pela fronteira com a Namíbia. Elas comportam sobretudo as<br />

evidências públicas de relações intensas de comércio mas também as que são<br />

1


urdi<strong>das</strong> no seio dos sistemas de exploração dos recursos pastoris, com uma<br />

implícita circulação de rebanhos e de pessoas quando por exemplo a<br />

correspondência água-pastos e a transferência de animais, dentro dos<br />

dispositivos sociais, encontra a fronteira pelo meio.<br />

Em meu entender uma análise mínima <strong>das</strong> implicações em presença deve ter em<br />

conta os circuitos formais de relação comercial controlados pelas alfândegas e<br />

pelas polícias de fronteira dos dois lados, os circuitos informais do mesmo<br />

tipo que funcionam passando ainda por aí ou que adoptam outras vias de trânsito<br />

ou de contacto, aquele tipo de trânsito que a prevalência dos sistemas pastoris<br />

locais acciona e, ainda, a movimentação que o mercado de trabalho do território<br />

da actual Namíbia suporta de há muito tempo a esta parte.<br />

Em Junho de 1996 pude fazer uma viagem de carro de Windhoek até à cidade do<br />

Namibe, tendo estacionado uns dias em Opuwo, na Provínia do Kaoko, onde<br />

encontrei muitos Angolanos fixados ali como comerciantes, e em trânsito ou de<br />

visita e vindos de tão longe como o Kuroka, a pé e através do deserto. Fui<br />

entretanto posto ao corrente de alguns trabalhos de pesquisa que estão em curso<br />

da parte de investigadores que actuam a partir do território namibiano e<br />

contemplam todos os tipos de interacção desenvolvidos actualmente através da<br />

fronteira, mas nenhum estava à data publicado ainda, razão pela qual me<br />

abstenho de encarar a sua utilização, critério que também usarei em relação a<br />

informações e testemunhos que recolhi sobre a matéria até poder vir a<br />

desenvolver do lado de Angola algum trabalho no mesmo sentido. Um tal trabalho,<br />

em meu entender, não poderia também deixar de observar a caracterização dos<br />

sujeitos e dos grupos implicados em toda esta esfera de relações: agentes do<br />

Estado ou agentes particulares, intervenientes ocasionais ou permanentes,<br />

comerciantes ou "candongueiros" inseridos ou não nos sistemas pastoris, os<br />

circuitos em que o gado entra e os negócios e mercadorias a que aparece<br />

associado. E também os contornos da especificidade histórica e cultural dos<br />

pastores e dos trabalhadores para quem a fronteira não constitui obstáculo.<br />

Quem se interessar pelo assunto, por outro lado, terá que contar com a imensa<br />

bibliografia que existe sobre as relações de fronteira que actualmente se<br />

desenvolvem em África, por se tratar de um tema que neste momento goza de<br />

grande favor em centros académicos e de pesquisa da Europa e da América, pelo<br />

menos que eu saiba. E há de novo os trabalhos de Clarence-Smith ( 1977, com R.<br />

Moorsom, e 1988), indispensáveis para a compreensão de muitos dos<br />

desenvolvimentos locais e mesmo dos sistemas locais.<br />

Questões de outra ordem se manifestam já também no presente fronteiriço e<br />

assumirão sem dúvida uma expressão localizada e pública mais evidente e<br />

premente num futuro próximo. Refiro-me ao desenvolvimento de projectos hidroeléctricos<br />

que contemplam o rio Kunene e as populações que aí vivem e o<br />

atravessam a vau no exercício da sua vida comum. Na Namíbia fala-se muito, e em<br />

Angola menos, da Epupa, onde se trabalha com vista à implantação de uma<br />

barragem que parece não se saber ainda onde vai exactamente situar-se mas que<br />

bulirá muito mais com populações angolanas do que namibianas, dado que a<br />

retenção <strong>das</strong> águas incidirá sobre o regime do rio e os sistemas que lhe são<br />

tributários até às paragens do Humbe. Estive na Epupa, parei, olhei, falei com<br />

populações do lado da Namíbia, tenho estado, na medida do possível, atento ao<br />

que diz respeito a tal empreendimento, mas os técnicos e os analistas que estão<br />

implicados no projecto que se pronunciem, foram escolhidos, ou escolheram-se<br />

entre si, para isso.<br />

Encostado ao Kunene acha-se o nosso Parque Nacional do Yona. Um parque dessa<br />

ordem, se entretanto não se consumar a completa destruição da sua fauna devido<br />

ao uso que se lhe tem dado como coutada para elites urbanas que ali chegam a<br />

deslocar-se de helicóptero e vin<strong>das</strong> por vezes de muito longe, pressupõe<br />

1


turismo. Já há uma empresa constituída para a sua exploração e já me chegaram<br />

ecos da intenção, fatal, de envolver populações locais nos programas de<br />

atractivos turísticos, à medida do que tem sido feito na Namíbia. Aconselho a<br />

este respeito a leitura, por exemplo, de pelo menos um artigo: The Crucial<br />

Link, de Margareth Jacobsohn, datado de 1991.<br />

Intervenção no centro<br />

Sobre a intervenção governamental e não governamental em território Kuvale já<br />

disse antes alguma coisa. Mas o "país kuvale" está "encravado" entre o deserto<br />

e a serra, muito à margem, portanto, do principal centro de emanação de tais<br />

acções, que é o Lubango. Para além de serem as regiões do planalto as que se<br />

acham melhor servi<strong>das</strong> de estra<strong>das</strong>, embora também afecta<strong>das</strong> pelo descalabro<br />

nacional, particularmente evidente no que se refere a vias de comunicação, o<br />

Lubango é um centro urbano que concentra neste momento um apreciável número de<br />

Ong's. Embora razões de segurança não lhes imponham, justifiquem ou cubram com<br />

tanta acuidade, ali, a prática comum a outras regiões de ir e vir no mesmo dia,<br />

e antes que anoiteça, aos terrenos da intervenção, o que coloca, evidentemente,<br />

problemas de efectiva intervenção, a acção dessas organizações é em grande<br />

parte determinada pelas facilidades de acesso, pelas condições de instalação e<br />

pela necessidade de contactos, oficiais, privados e de simples convívio umas<br />

com as outras e com os serviços de Estado que por sua vez também se concentram<br />

no Lubango e poucas delegações têm efectivamente a funcionar nos terrenos.<br />

A acção conjunta <strong>das</strong> Ong's e dos serviços do Estado, administrativos ou<br />

técnicos, incide logicamente, ou pretende incidir, nos sistemas locais de<br />

produção. Numa perspectiva de pos-guerra esta ac(c)ão tenderá a alargar-se, a<br />

reformular-se ou a definir-se e a ganhar algum ânimo. Ao mesmo tempo, e na<br />

mesma perspectiva, acções empresariais, de pequeno e de grande porte, que têm<br />

sobretudo em vista o comércio, e a indúsria também, ligam-se ou hão-de ligarse,<br />

directa ou indirectamente, aos sistemas locais. Aspectos fundamentais às<br />

próprias técnicas de produção, como a mobilidade, a utilização <strong>das</strong> pastagens e<br />

as disponibilidades de água, bem como a comercialização geral, fazem parte dos<br />

programas de todos e constam portanto <strong>das</strong> incidências e pressões a ter em<br />

conta. Dedicarei a algumas <strong>das</strong> questões que aí poderão levantar-se as<br />

considerações que se seguem, onde haverá talvez oportunidade para assinalar<br />

componentes e procedimentos até aqui não encarados.<br />

A nível do Estado, e estritamente no domínio <strong>das</strong> incidências sobre os sistemas<br />

locais de produção ligados à exploração pastoril, haverá, em meu entender, que<br />

distinguir, em primeiro lugar, as acções que poderão desenvolver-se a partir<br />

dos serviços comuns de base e aquelas que decorrerão de programações inseri<strong>das</strong><br />

na planificação económica.<br />

Escolas, saúde pública e assistência veterinária poderão constituir os terrenos<br />

de acção em que o Estado procurará prestar provas a partir de uma<br />

funcionalidade completamente abalada e a que o fim conjecturável da guerra<br />

retirará a cobertura de uma justificação que, embora insuficiente e viciada,<br />

tem constituído até aqui um argumento contra o qual se esbatem to<strong>das</strong> as<br />

críticas e toma<strong>das</strong> de consciência.<br />

O que Morais e Correia (1993:28) referem acerca da acção dos serviços de<br />

veterinária, e <strong>das</strong> condições em que se tem exercido, será comum a todos os<br />

serviços do Estado: destruição ou degradação <strong>das</strong> infra-estruturas que compunham<br />

as unidades de intervenção, carência, insuficiência e má utilização dos meios e<br />

limitada capacidade operativa do pessoal interventor.<br />

1


A modificação deste panorama, que é o que prevalece, terá que passar por uma<br />

alteração profunda da política e da prática gerais do Estado, que vai, em<br />

termos apenas quantificáveis, da disponibilização orçamental à reabilitação <strong>das</strong><br />

estruturas, à dotação de meios, ao controle da sua utilização e à adequação de<br />

recursos humanos qualificados e eficientes. Sabemos de que forma, para poder<br />

reabilitar o papel deste último item, é necessário que os funcionários não<br />

precisem desviar-se ou alhear-se <strong>das</strong> suas funções institucionais ou proceder a<br />

irregularidades dentro <strong>das</strong> mesmas para poderem assegurar a sua sobrevivência.<br />

Isso terá que passar por uma compensação salarial satisfatória e bastante. Mas<br />

entretanto criaram-se e sedimentaram-se dinâmicas assentes sobre a mais variada<br />

ordem de expedientes que não poderá deixar de ser muito difícil desmantelar,<br />

até porque acabaram por instaurar modalidades muito eficientes e operacionais<br />

em relação aos objectivos que as justificavam. As noções de responsabilidade<br />

laboral e cívica não poderão assim ter deixado de resultar profundamente<br />

perturba<strong>das</strong> e adapta<strong>das</strong> às circunstâncias da irregularidade institucionalizada.<br />

A maioria dos actuais funcionários do Estado foi formada e modelada por elas e<br />

nelas. Uma viragem de cabo neste domínio constitui um desafio maior à<br />

intervenção de um Estado que vise atribuir-se uma estatura, uma postura e uma<br />

acção que o não desmintam. Mesmo as conjecturas mais optimistas, as que<br />

admitam, até, que as mudanças começarão por cima, única maneira de poder<br />

admitir-se uma alteração do comportamento dos operadores no terreno, terão que<br />

encarar com prudência e paciência a afirmação <strong>das</strong> alterações necessárias e<br />

admitir que durante muito tempo, ou pelo menos algum tempo ainda, a acção do<br />

Estado continuará a pautar-se mais pela sua ausência ou atropelo e hesitação na<br />

acção do que por uma efectiva capacidade operativa ou de intervenção.<br />

Dentro da actuação geral do Estado parece-me que poderá prever-se, por outro<br />

lado, a projecção de uma vitalidade que, através de organismos especiais, vai<br />

tentar modificar a própria imagem do Estado e da sua capacidade de intervenção.<br />

Alguns desses organismos já existem, como os fundos de fomento e os organismos<br />

de crédito, e eles levarão em conta os termos <strong>das</strong> configurações regionais e<br />

economicamente diferencia<strong>das</strong>. Havendo paz procurar-se-à mostrar que a máquina<br />

do Estado faliu exactamente por causa da guerra e que se a máquina geral pode<br />

permanecer legitimamente e em consequência afectada, através da valorização de<br />

dispositivos institucionais parcelares o Estado pode ainda assim revelar-se<br />

capaz e dar prova da sua capacidade e acerto de orientações. Como esses<br />

dispositivos parcelares não poderão dispensar, todavia, a sua articulação à<br />

máquina-mãe, mesmo aquilo que de novo falhar encontrará aí a sua justificação.<br />

Nos termos do que aqui nos interessa de uma forma particular, as actuações<br />

desses organismos vão ver-se imediatamente confronta<strong>das</strong> à ausência de uma<br />

política pastoril ou pecuária. A tendência institucional será portanto a de<br />

constituí-la enquanto instrumento indispensável à acção. Dentro de que espírito<br />

será ela forjada?<br />

Embora as últimas déca<strong>das</strong> tenham sido marca<strong>das</strong> por um debate "entre velhas<br />

ortodoxias e um novo pensamento quanto a 'pastoral-related issues'" (Pantuliano<br />

1996:2), não podemos deixar de constatar que enquanto a política da<br />

administração colonial actuava, nas suas últimas modalidades, a partir de<br />

planos de "ordenamento da pastorícia", data de 1984, por exemplo, um trabalho<br />

que significativamente se intitula " Projecto de Racionalização da Pecuária do<br />

Sul de Angola". Enquanto os objectivos do "Ordenamento" visavam a "fixação <strong>das</strong><br />

populações rurais menos evoluí<strong>das</strong>" e recomendavam a análise <strong>das</strong> determinantes<br />

da transumância para garantir a "promoção da fixação, por eliminação imediata,<br />

ou gradual, daquelas determinantes" (Portaria n° 13 9O6 de 4 de Setembro de<br />

1965), a segunda argumentava a favor da "visualização" de objectivos que<br />

passariam pela "fixação <strong>das</strong> populações detentoras de gado" depois de afirmar<br />

1


que estas populações "possuem de facto uma riqueza extraordinária, mas não<br />

explorada" (Projecto de Racionalização... 1984:3). Será necessário sublinhar<br />

que do exposto resulta a percepção de que a fixação <strong>das</strong> populações é<br />

considerada implícita a toda a ideologia desenvolvimentalista que por inerência<br />

assiste a toda a filosofia administrativa e técnica, e que só se entende a<br />

capacidade de exploração dos recursos e dos meios quando ela aparece coberta<br />

por uma "racionalidade" mais ou menos definida segundo os termos de um modelo<br />

empresarial, mercantil?<br />

Ainda que seja de admitir que os analistas e os decididores de cuja acção há-de<br />

resultar, explícita ou implicitamente, uma política pastoril para Angola<br />

estejam hoje mais alertados para as "pastoral-related issues", também haverá<br />

que contar com as repercussões que a actual febre empresarial que Angola vive<br />

vier a ter em relação às zonas e às populações que nos interessam. Há um<br />

fervilhar de intenções que se voltam para as potencialidades pecuárias, volta a<br />

falar-se em política de terras, as populações começam a inquietar-se e já há<br />

técnicos a assinalar que "praticamente to<strong>das</strong> as fazen<strong>das</strong> em que a Administração<br />

colonial tinha reconhecido como um erro a sua concessão, no princípio dos anos<br />

6O, foram requeri<strong>das</strong> e entregues, voltando-se a praticar os mesmos erros de<br />

outrora" (Santos 1996:5) e a revelar que muitas dessas fazen<strong>das</strong> estão<br />

transforma<strong>das</strong> em couta<strong>das</strong> para caçar enquanto em outras, salvo excepções,<br />

existe apenas algum gado entregue a assalariados contemplados com a visita dos<br />

proprietários uma ou duas vezes por mês quando vêm trazer-lhes comida e<br />

conferir os animais. Lembram ainda que os erros do passado se deveram<br />

sobretudo aos grandes transtornos que as expropriações dessas áreas provocaram<br />

às populações pastoris e alertam para o facto de questões semelhantes virem<br />

certamente a ressurgir se " as vedações forem reergui<strong>das</strong>" (ibid.).<br />

De qualquer maneira, creio, as intenções priva<strong>das</strong> e públicas acesta<strong>das</strong> sobre a<br />

região agropastoril mais imediatamente visada a partir da conjuntura nacional<br />

do presente, os planaltos interiores e as vertentes do Kunene, filiar-se-ão,<br />

até por razões de petição de princípio, numa tendência dinâmica de base: a<br />

integração da exploração dos recursos e do aproveitamento dos resultados num<br />

sistema económico envolvente e globalizante. Sendo o gado o factor económico em<br />

questão, a política visada é a da sua integração no sistema mercantil, o que<br />

pressupõe a passagem da pastorícia, uma economia do leite fundamentada na<br />

gestão de equilíbrios, à pecuária, uma economia que em casos como o nosso visa<br />

sobretudo a produção de carne fundamentada na filosofia do crescimento<br />

implícita a todos os sistemas económicos modernos.<br />

Da forma como tal for conduzido dependerá o futuro imediato <strong>das</strong> comunidades que<br />

nos estão a interessar aqui. Ora do ponto de vista factual isso não poderá<br />

deixar de comportar intenções e acções de integração tanto administrativa como<br />

técnica, o que irá necessariamente intervir, quando não colidir, com os<br />

sistemas endógenos de produção e, logo, de relações sociais e políticas, isto<br />

é, de poder.<br />

1


CAP. 1O<br />

1<br />

INTEGRAÇÃO E INTERVENÇÃO


São de vária ordem as argumentações que normalmente acompanham os programas de<br />

integração administrativa <strong>das</strong> sociedades de cultura pastoril e to<strong>das</strong> elas<br />

implicam que um dado que lhes é fundamental tenda a ver-se afectado: a<br />

mobilidade. Entram sempre em jogo razões políticas, funcionais e até<br />

invocadamente humanitárias. Do ponto de vista político, mesmo quando essas<br />

sociedades não são frontalmente caracteriza<strong>das</strong> como incontroláveis e<br />

turbulentas, caso que entre nós acontece particularmente em relação aos Kuvale,<br />

elas são to<strong>das</strong> considera<strong>das</strong> como tendencial, quando não tendenciosamente,<br />

independentes e autónomas. A administração, cuja vocação primeira é a do<br />

controle, para actuar sobre elas precisa portanto, por razões múltiplas, de<br />

integrá-las. E a mobilidade é um factor que, quando não impede totalmente a<br />

acção, de qualquer forma não facilita a tarefa. As razões políticas de controle<br />

raramente são invoca<strong>das</strong> e cedem publicamente o lugar a argumentações de ordem<br />

humanitária a favor dos interesses <strong>das</strong> populações. A razão evolucionista e a<br />

atitude etnocentrista alimentam automática e inconscientemente, muitas vezes, a<br />

ideologia do progresso e quem administra não pode também, de uma maneira geral<br />

e implícita, deixar de ser, ou de sentir-se, um agente deste apostolado. Actuar<br />

sobre as populações no sentido da sua fixação e da rotura, assim, dos seus<br />

sistemas, será agir a favor delas, libertá-las do seu "atraso". Tanto mais que<br />

são as próprias populações a reclamar assistência sanitária, para as pessoas e<br />

para o gado, e escolas. Ora é a prestação dos mesmos serviços que elas reclamam<br />

que "obrigam" à fixação, à sedentarização, e os custos sociais e produtivos que<br />

daí resultarem para elas, a troco dos benefícios que pretendem, serão<br />

entendidos como um tributo que não poderão deixar de pagar se querem "evoluir".<br />

O progresso não hesita em sacrificar gerações.<br />

Assim, talvez ninguém se deixe perturbar em demasia com o facto de a<br />

implantação <strong>das</strong> estruturas estatais trazer sempre como corolário uma diminuição<br />

da capacidade de gestão dos equilíbrios por parte <strong>das</strong> popula(c)ões e uma<br />

deterioração <strong>das</strong> dinâmicas internas que são afinal o que as tem mantido vivas e<br />

mais bem alimenta<strong>das</strong> do que a maioria <strong>das</strong> populações angolanas. As próprias<br />

populações virão aliás colocar-se à sombra da administração dando corpo, desta<br />

forma, a uma sedentarização espontânea que é de molde a dar cobertura à ilusão<br />

da sua adesão aos métodos de intervenção sedentarizante.<br />

Ao introduzir aqui este conceito de " sedentarização espontânea" estou a<br />

recorrer a uma tipologia proposta por J. G. Galaty ( 1989:42). Assiste-se de<br />

facto, no contexto geral da pastorícia em Africa, a movimentos de<br />

sedentarização espontânea canalizados para centros de comércio, de assistência<br />

sanitária, de escolas e de ajuda alimentar em tempos de crise económica e<br />

política, confundindo-se neste caso com um outro tipo de sedentarização, a<br />

"assistida", de que Angola tem vivido uma experiência intensa. A estes dois<br />

tipos de sedentarização o autor acrescenta a "sedentarização planificada", em<br />

que se visa ao mesmo tempo integrar os recursos e a produção no sistema<br />

mercantil envolvente, e consolidar o Estado.<br />

Segundo o que sugeri anteriormente é no entanto mais ao nível dos "jovens<br />

leões" que a intervenção a haver, creio, poderá incidir mais directa, decidida<br />

e precipitadamente sobre os modelos de exploração que as populações têm sabido<br />

praticar, queixando-se embora por vezes da falta de intervenção mas certamente<br />

prontas a queixarem-se também quando uma intervenção revitalizada vier a<br />

colidir com os seus verdadeiros interesses maiores, que são os da exploração do<br />

seu gado assente nos pressupostos ecológicos. Qualquer obstrução à sua<br />

mobilidade e à sua gestão dos equilíbrios poderá desencadear respostas prontas,<br />

algumas <strong>das</strong> quais já se anunciam quando o fantasma da ocupação de terras e de<br />

perturbação dos percursos da transumância se insinua no horizonte.<br />

1


Mas é de crer, e de esperar, que o "espírito da época" também venha a assistir<br />

às iniciativas de planificação e de programação que o Estado empreender<br />

através dos órgãos e dos organismos que já existem ou vierem a ser criados para<br />

intervir no sudoeste de Angola. Também eles certamente recorrerão a peritos,<br />

tal como hoje procedem as organizações que ao longo dos últimos anos têm em<br />

grande medida procurado e sido mandatados para preencher, à sua maneira, o<br />

vazio criado pela demissão ou pela indisponibilidade do Estado. Refiro-me às<br />

Ong's.<br />

Empenha<strong>das</strong> hoje, em Angola, em passar de uma política de ajuda a uma política<br />

de desenvolvimento, os seus procedimentos revelam os traços da "evolução" que o<br />

próprio conceito de desenvolvimento veio cumprindo até fixar-se,<br />

operacionalmente, no cavalo de batalha <strong>das</strong> "metodologias participativas",<br />

concepção que pretende regular a actuação no terreno dos agentes da intervenção<br />

e que advem de reformulações teóricas que ganharam corpo a partir do início dos<br />

anos 8O e passaram a valorizar e a eleger o "desenvolvimento local", "par le<br />

bas", "bottom up change", o autodesenvolvimento, o desenvolvimento endógeno, a<br />

recuperação do factor humano, o papel dos actores sociais na modernização, a<br />

mobilização <strong>das</strong> populações implica<strong>das</strong> (Weinberg 1992:19-21). Uma floresta de<br />

siglas que permitem aos iniciados tratarem os métodos de trabalho por tu,<br />

querem to<strong>das</strong> dizer que o "alvo" (que metáfora mais arrepiante!) deve ser<br />

consultado, deve ser ouvido, deve intervir, deve decidir também quando o que<br />

estiver em causa lhe disser respeito, e custa a crer como o reconhecimento de<br />

um direito tão elementar como este tenha constituído um sobressalto tão grande<br />

num mundo por defini(c)ão preocupado com a sorte e a dignidade dos outros como<br />

o da ajuda humanitária.<br />

Tanto quanto pude aperceber-me a partir de algumas experiências em que me tenho<br />

visto envolvido, tais estratégias de implicação <strong>das</strong> populações declara<strong>das</strong> como<br />

benificiárias passa pela realização de "diagnósticos", que às vezes são<br />

reduzidos à fórmula de "pré-diagnósticos", pela "restituição" de análises<br />

feitas por peritos e pela tomada em conjunto de decisões imediatas (tudo tem<br />

que ser imediato), em que tanto a informação como a aceitação dos projectos são<br />

preferencialmente consegui<strong>das</strong> junto dos "key informants", normalmente "leaders"<br />

locais que, "tradicionais" ou não, sempre vi a responder e a pronunciar-se<br />

sobretudo em função do que acham que os interventores preferem ouvir, ou de<br />

acordo com o que entendem poder dar testemunho da sua familiaridade com os<br />

objectivos do desenvolvimento, ou, mais pragmaticamente, com as suas próprias<br />

estratégias individuais ou de elite.<br />

Para um antropólogo que se detenha na vocação, nos métodos, na justificação e<br />

na aplicação da sua disciplina, o valor, a eficácia e a legitimidade de to<strong>das</strong><br />

essas normas de procedimento não podem deixar de ser, imediatamente também,<br />

postas em causa.<br />

Resisto à tentação de alinhar juízos lapidares em que tanto peritos como<br />

antropólogos dão notícia da reserva, para ser suave, que lhes merecem a atitude<br />

e o trabalho uns dos outros. Também não me alongarei sobre a minha posição<br />

pessoal nas dobras de um tal confronto, não só porque isso me conduziria a uma<br />

complexa e antropológica argumentação, mas também porque não poderia evitar<br />

exprimir-me sobretudo enquanto Angolano face ao critério de muitas actuações<br />

humanitárias que se desenvolvem a coberto de um cómodo alheamento por parte <strong>das</strong><br />

autoridades angolanas, o que a meus olhos é bem mais grave. Conto a favor de<br />

Angola com a lucidez <strong>das</strong> próprias populações. Antes de mim sabem elas o que é e<br />

o que não é de levar a sério. Enquanto se tratar de ajuda ela é sempre bem<br />

vinda, mesmo se comporta propostas que a curto prazo se revelam sem sentido,<br />

como a <strong>das</strong> famosas bombas manuais de água. Quando porém a intervenção vem bulir<br />

1


com as dinâmicas da produção local o caso pode no entanto revelar-se mais<br />

grave, até porque é aí que pode revelar-se o equívoco <strong>das</strong> informações dos tais<br />

"key informants" que nem sempre serão os mais isentos intérpretes <strong>das</strong><br />

necessidades <strong>das</strong> populações que é suposto representarem.<br />

O que se passa nos domínios da contribuição à resolução dos problemas da água,<br />

por exemplo, pode remeter a esssa outra ordem de consequências. A água está,<br />

evidentemente, destinada a ocupar sempre um lugar de primeiro plano na<br />

planificação e na programação <strong>das</strong> intervenções. Ela gozará sempre do favor da<br />

intenções e <strong>das</strong> referências. Perante tanta secura as percepções impressionistas<br />

tendem imediatamente para a valorização do problema da água, o que não é de<br />

estranhar. As populações e os famosos "key informants" sabem de que forma as<br />

pessoas estranhas ao meio são impressionáveis a esse respeito e não hesitam em<br />

sublinhar a premência do problema para cativar-lhes a atenção e o empenho. E<br />

dentro dessa lógica actuam no bom sentido, sem dúvida. Não há interventor,<br />

oficial, humanitário ou privado, a quem não venha à ideia incidir no problema<br />

da água. Qualquer intervenção nessa área, vindo ao encontro de uma necessidade<br />

tão evidente, não poderá, em princípio, ser posta em causa e, o que também<br />

conta, deixará traços da acção, da intervenção, é coisa que fica a ver-se, é<br />

obra concreta a dar notícia que houve de facto quem agisse a favor <strong>das</strong><br />

populações.<br />

Não digo que o problema dos pontos de água para abeberamento do gado e para<br />

utilização doméstica não exista e não seja grave. Apenas tento introduzir na<br />

questão, a título de exemplo, to<strong>das</strong> as componentes que a podem informar. Da<br />

consulta dos materiais escritos que em relação ao nosso espaço têm sido<br />

produzidos fico com a impressão de que reina sem dúvida uma certa confusão a<br />

tal respeito.<br />

Os técnicos e os peritos reconhecem que há não só sobrecargas humanas e animais<br />

à volta dos pontos de água que funcionam, mas também zonas subaproveita<strong>das</strong><br />

porque lá não existem locais para abeberamento do gado. A solução estaria<br />

portanto, à primeira vista, na multiplicação dos locais de abeberamento e de<br />

abastecimento de água. Uma observação mais aplicada convirá que talvez não seja<br />

exactamente assim. Na sobrecarga de algumas zonas influirão outros factores,<br />

como a localização de serviços de comércio ou de ajuda, como admiti atrás, e a<br />

inocupação de outras por falta de água é exactamente o que as destina ao seu<br />

aproveitamento posterior e providencial, quando forem servi<strong>das</strong> pela chuva e<br />

ocorrer a oportunidade de serem aproveita<strong>das</strong> segundo o calendário <strong>das</strong><br />

transumâncias, precisamente porque foram preserva<strong>das</strong> até aí por falta de águas<br />

perenes para abeberamento. Tê-las aproveitado antes, ou permanentemente, teria<br />

constituído a introdução de um factor de desequilíbrio num sistema que contava<br />

com a sua utilização sazonal e oportuna. Este será apenas um caso de figura<br />

possível entre muitos, mas eu temo que desequilíbrios desta ordem venham a<br />

insinuar-se sem que ninguém se aperceba muito bem do que está a passar-se se<br />

não se admitir, à partida, que o problema da água tem que ser encarado em toda<br />

a sua complexidade e, mais do que isso, subtileza. São questões que deveriam<br />

mobilizar muita argúcia e ponderação de ordem técnica, política e, porque não,<br />

antropológica.<br />

A sensação que me fica ao ler ou reler documentos ligados a "ordenamento",<br />

"racionalização", "factibilidade", é a de que haveria tendência para reduzir,<br />

ou pelo menos referir prioritariamente, a questão pastoril a um problema de<br />

hidráulica. Em meu entender pode não se situar aí a solução de um problema mas<br />

antes o ponto de partida para muitos problemas. Até o Governador que Moçâmedes<br />

tinha em 1965 já o sabia quando num tom que ilustra perfeitamente uma visão de<br />

devenvolvimentalismo primário temperado de uma apiedada boa vontade, que ainda<br />

hoje prevalece em relação às populações pastoris, dizia:" Impõe-se o dar uma<br />

1


certa possibilidade de fixação a esta gente (refere-se aos Kuvale), como ponto<br />

de partida para uma acção posterior tendente a modificar o quadro de<br />

primitivismo actual. Para tal a água é o ponto fundamental (...) mas importa<br />

planificar com segurança e sobretudo de forma a evitar que para remediar um mal<br />

grande, a sede, não se vá cair noutro ainda mais grave, a degradação dos<br />

pastos" (Brito 1965:2).<br />

Outros, plenamente ao corrente da realidade actual, sabem-no também e de outra<br />

maneira, como Morais e Correia (1993/28), quando referem que é urgente e<br />

necessário encontrar soluções para o problema da água mas que isso só é<br />

possível " eliminando-se definitivamnte as iniciativas basea<strong>das</strong> em conceitos<br />

mal estruturados...etc.", como assinalei atrás. E já que estou a citar, não<br />

resisto a transcrever o magnífico testemunho de um pastor Fulbe, do Sahel: "Se<br />

queres saber o número de animais de um Peul e a altura <strong>das</strong> suas pastagens no<br />

fim da estação seca, olha para a profundidade dos seus poços. Se a sua água não<br />

está muito funda e é abundante, ele tirará mais durante o dia e poderá dar de<br />

beber a mais animais. Mas o capim à volta do seu poço será comido mais depressa<br />

e o seu rebanho emagrecerá. O poço e o capim à volta é como o coração e o<br />

ventre: é preciso que vivam em harmonia, se não um homem fica doente" (Thebault<br />

199O:17). E o autor do artigo que veícula este testemunho refere também a<br />

determinada altura: " a hidráulica pastoril constitui hoje o objecto de uma<br />

interrogação por parte, ao mesmo tempo, dos doadores, cada vez mais reticentes<br />

em implantar obras que são uma fonte potencial de problemas, e dos governantes<br />

sahelianos, que procedem a uma revisão profunda <strong>das</strong> suas estratégias de<br />

intervenção no sector" (ibid.:25).<br />

A. B. Smith (1992), por outro lado,passando em revista o pastoralismo na África<br />

de hoje, confirma a constatação de que por toda a parte aquilo a que poderei<br />

chamar o regimen plural da propriedade <strong>das</strong> terras de pastoreio, outro dado<br />

fundamental para o funcionamento dos sistemas de produção articulados sobre a<br />

mobilidade e o equilíbrio, sofre uma ofensiva geral. Da África do Sul ao Kénia,<br />

mesmo as terras que não têm sido titula<strong>das</strong> a favor de empresários, individuais<br />

ou colectivos e saídos de outros meios, são abrangi<strong>das</strong> por grandes ranchos de<br />

grupo ou cooperativas que retalham os antigos territórios comunitários e<br />

perturbam o seu aproveitamento segundo os modelos antigos e acabam por<br />

traduzir-se em saldos unanimemente reconhecidos como francamente negativos.<br />

Todos dão origem a perturbações sociais que não são convenientemente<br />

compensa<strong>das</strong> pelos reajustamentos tentados, quer por quem os programa quer por<br />

quem os sofre, e as áreas assim defini<strong>das</strong> acabam sempre, mais cedo ou mais<br />

tarde, por não bastar ao exercício dos seus utentes, impondo o recurso a áreas<br />

que uma vez mais serão as que permaneceram como comunitárias, ou a lançar mão<br />

de recursos adicionais como suplementos alimentares para o gado. Um artigo de<br />

G.A. Keya (1991) relativo ao Kénia, vanguarda <strong>das</strong> iniciativas deste tipo,<br />

fornece a este respeito dados muito instrutivos.<br />

Angola, a menos que a lucidez e o conhecimento sejam chamados a intervir,<br />

poderá ter tendência para encarar desenvolvimentos que a levarão a cair em<br />

erros e em impasses equivalentes sem que, uma vez mais, sejam devidamente<br />

leva<strong>das</strong> em conta nem as experiências de outros países africanos nem as próprias<br />

lições do passado angolano. E no entanto Angola dispõe de materiais que embora<br />

datem de há mais de 2O anos mantêm, ou recuperam agora, uma grande actualidade<br />

e continuam perfeitamente inseridos nos desenvolvimentos mais recentes da<br />

reflexão sobre a questão pastoril. Dos trabalhos que em 1973 e 1974 Cruz de<br />

Carvalho, Vieira da Silva e Julio de Morais (saravah!...) assinaram, podem<br />

extraír-se elementos, análises e pontos de vista que se adaptam perfeitamente<br />

às questões do momento. Não me cabe fazer aqui o resumo do que eles dizem, mas<br />

tomando como referência o artigo do primeiro destes autores " 'Traditional' and<br />

'Modern' Patterns of Cattle Raising in Southwest Angola: A Critical Evaluation<br />

1


of Change from Pastoralism to Ranching", não posso deixar de considerar que o<br />

tratamento de aspectos tão valorizados pelos decididores, pelos planificadores<br />

e pelos operadores como a produtividade, a racionalidade e o aproveitamento de<br />

potencialidades, bem como a desmontagem feita sobre as argumentações<br />

modernizantes e desenvolvimentalistas mais comuns e ainda hoje vivazes, ou hoje<br />

vivazes de novo, são de molde a garantir muita ajuda na acção, a prevenir muita<br />

invenção que afinal já não o é e a salvaguardar muita precipitação que nem o<br />

voluntarismo nem o entusiasmo impedirão que se venham a traduzir por prejuízos<br />

notáveis não só para as populações como também para os que programarem,<br />

executarem ou investirem.<br />

Comércio<br />

O futuro imediato <strong>das</strong> sociedades pastoris e agropastoris de Angola vai fazer-se<br />

muito, ou depender, do comércio que houver. O futuro imediato de to<strong>das</strong> as<br />

sociedades rurais de Angola, aliás, dependerá também, em meu entender, do<br />

comércio.<br />

O Estado, mais do que alargar a sua administração a todo o território, para<br />

poder actuar tem que investir-se da função que lhe cabe, o que implica fixação<br />

de políticas, de programas, de objectivos cívicos e civis mas também de uma<br />

estatura e de uma deontologia que o reabilitem aos olhos dos governados. Isso<br />

levará tempo. Pode ser até que a delegação <strong>das</strong> suas funções em organismos<br />

internacionais ou "não governamentaia" acabe por transformar-se numa<br />

dependência endémica. Isso significará que o Estado continuará sobretudo<br />

devotado a si mesmo, investido em preservar-se e em reproduzir-se através dos<br />

seus órgãos de poder e ao ritmo <strong>das</strong> pulsações partidárias e do exercício<br />

político reduzido à sua expressão mais estrita. Outros países africanos, sem um<br />

passado de adversidade tão marcado como o de Angola, também regurgitam de<br />

organizações internacionais ou estrangeiras em quem delegam muitas <strong>das</strong> suas<br />

responsabilidades. Nada do que desta forma é feito junto <strong>das</strong> populações, temo,<br />

se sedimenta. O que se fizer há-de carecer sempre de continuidade. Viver no<br />

provisório pode até ser muito excitante a nível pessoal, mas um país precisa de<br />

continuidade. Caso contrário dispersa-se e não prospera, não se faz, não pega,<br />

talha, solta-se, como a mayonese.<br />

Não tenho razões pessoais nenhumas para fazer o elogio do comércio. Não há nada<br />

que a nível pessoal me pareça menos atraente mas, quando penso em uma qualquer<br />

continuidade civil angolana de há uns bons quinze anos a esta parte, o que me<br />

ocorre é a implicação de toda a população nas hipóteses que ele foi criando,<br />

quer como modo de vida, preenchendo os vazios que o desfuncionamento do Estado<br />

abria, quer articulando-o a funções ou privilégios, quer ainda, ao vê-lo<br />

desaparecer, afastar-se, adoptando maneiras de viver sem ele, como no caso de<br />

sociedades que resultaram marginaliza<strong>das</strong> e tiveram que encapsularizar-se,<br />

mantendo-se sempre, no entanto, na expectativa de algo para trocar. E foi tanto<br />

assim que o tempo, hoje, é o dos empresários. Empresários sobretudo activos no<br />

comércio, mesmo quando se propõem reabilitar indústrias ou explorações<br />

agrárias, onde é preciso um capital de conhecimentos de que raramente dispõem,<br />

enquanto de comerciante todos nós, com entusiasmo ou vencidos e resignados,<br />

temos um pouco.<br />

É possível assim que o sobressalto mais imediato se assinale antes ao nível do<br />

comércio do que ao nível dos serviços e da acção do Estado, ao qual bastará<br />

articular uma política financeira e económica que o não entrave e se possível<br />

o facilite, mesmo. Havendo paz, algum dinheiro, crédito, podendo-se circular e<br />

dando um arranjo às estra<strong>das</strong>, o potencial de energia que em 1992 se anunciava<br />

1


talvez venha a ensaiar uma nova demonstração de vigor. E, do que houver, as<br />

sociedades pastoris e agropastoris de Angola também viverão a experiência.<br />

A zona do planalto interior pastoril tenderá a revelar-se particularmente<br />

activa. Não vou dissertar sobre o assunto porque não disponho de dados<br />

suficientes. Mas, ao que julgo saber, uma unidade industrial privada, por<br />

exemplo, propõe-se assegurar uma capacidade, continuada e para durar, de abate<br />

e tratamento de carne cuja meta de produção anual poderá atingir resultados da<br />

ordem de um terço da capacidade de extracção máxima de 1973 em relação ao<br />

efectivo bovino total <strong>das</strong> provincias da Huíla, do Kunene e do Namibe, o que<br />

poderá significar, noutros termos, o provimento de um quinto do potencial<br />

angolano de consumo. É portanto uma coisa em grande. Visa constituir-se como<br />

alternativa concorrente para o fluxo de produção bovina que é actualmente<br />

canalizado para a Namíbia, o que pressupõe ter que ir ao encontro do produtor<br />

local, e projecta, assim, actuar a nível do comércio, que é onde o povo<br />

agradece, constituindo-se como o ponto de partida e de chegada de um circuito<br />

que utilizará intermediários a quem credita mercadorias para trocar por bois<br />

que serão abatidos depois de melhorados ao longo de três meses nos parques de<br />

retém da empresa. O benefício do intermediário resultará de uma percentagem<br />

sobre o valor do gado que recolhe, mais a diferença entre o preço a que os<br />

tiver adquirido e o valor que a empresa fixou para o quilo de carne viva ao<br />

produtor. Uma actividade baseada em articulações desta ordem dá margem para<br />

muita coisa, capaz de escapar ao controle seja de quem for. Ciente, por outro<br />

lado, de que o interesse da sua actividade vai depender <strong>das</strong> quantidades de gado<br />

que puder vir a trabalhar e que esse gado está em primeira instância nas mãos<br />

do produtor, para além da estratégia do comércio, investirá, contra<br />

disponibilização de gado, evidentemente, na prospecção, perfuração, captação e<br />

retenção de água, evidentemente outra vez. Sem estar interessado em produzir<br />

comentários de qualquer espécie, a mim parece-me que quanto mais não fosse, se<br />

é assim, haveria toda a vantagem em deitar uma olhada para experiências<br />

semelhantes do lado da Namíbia e de uma maneira geral para as de todos os<br />

outros, incluindo os outros que são os próprios produtores, antropológica,<br />

sociológica e politicamente falando.<br />

De qualquer forma o tempo não pára, quem o não sabe, e o que há-de vir dirá<br />

respeito a toda a região. Haverá também comerciantes e funantes, candongueiros<br />

e espontâneos, independentes ou ligados a outras cadeias e a actuar<br />

directamente junto dos produtores ( o que sei disso já o disse quando me referi<br />

objectivamente ao caso kuvale), comércio de estrada, comércio urbano formal e<br />

informal, exportação para outras províncias de gado vivo ou abatido, formal,<br />

formalizado ou informal, também, e fluxos ainda para a Namíbia. De tudo isto,<br />

uma vez mais, há-de resultar o que houver.<br />

1


Conclusão<br />

Se a antropologia serve para alguma coisa em questões concretas é porque, para<br />

explicar-se e justificar-se como disciplina, tenta extrair leis quando analisa<br />

os procedimentos particulares e reconhece neles invariáveis universais. O que<br />

se sabe do confronto da economia e <strong>das</strong> culturas pastoris com a economia e as<br />

culturas mercantis pode não constituir lei, mas há quem arrisque assinalar os<br />

denominadores comuns de certas experiências. Em Angola pode não vir a passar-se<br />

exactamente como os antropólogos dizem, mas a história já nos provou que não é<br />

por sermos Angolanos que as coisas entre nós, para além da cor local, não se<br />

passam exactamente da mesma maneira que algures em África ou mesmo no Mundo.<br />

Os balanços mais actuais do que se passa ou tem passado com as sociedades de<br />

cultura pastoril são unânimes em reconhecer que tudo ou quase tudo tem jogado a<br />

desfavor delas, e que o menor mal só poderia estar numa articulação harmoniosa<br />

entre os dois modelos, os dois sistemas, o do equilíbrio e o do crescimento, o<br />

que já é difícil de imaginar-se, quanto mais de conceber-se. Enquanto<br />

bibliografia de 1974 se ocupa ainda de questões fundamentais como resistência,<br />

racionalidades ,etc. (Schneider, por exemplo), a de 1991 (Keya, ainda por<br />

exemplo) descreve situações em que os programas de mudança falharam todos.<br />

Quem se investir na observação dos terrenos da economia e da cultura pastoris<br />

há-de aperceber-se por si mesmo, e isso emergirá do tratamento que vier a dar<br />

aos seus próprios materiais, como me aconteceu com os Kuvale, que, por exemplo,<br />

como dizem A. Bourgeot e H.Guillaume ( 1989:2-5), os programas de integração<br />

económica, política e cultural, as perturbações que se introduzem através <strong>das</strong><br />

intenções de desenvolvimento, a inserção <strong>das</strong> economias pastoris nos circuitos<br />

mercantis, a imbricação <strong>das</strong> duas lógicas de racionalidade económica, deterioram<br />

as dinâmicas internas, aceleram a desorganização, perturbam as relações de<br />

trabalho, dão oportunidade a uma reformulação dos interesses e <strong>das</strong> estratégias<br />

<strong>das</strong> elites locais que cada vez mais as leva a ter menos em conta os interesses<br />

colectivos, geram clivagens e mutações entre grupos sociais, põem em causa a<br />

gestão fundamentada do território em que assenta o equilíbrio precário dos ecosistemas,<br />

as potencialidades regionais, os verdadeiros interesses <strong>das</strong><br />

populações, a sua própria lucidez e capacidade de discernimento, e podem<br />

determinar mesmo o desaparecimento de sociedades inteiras porque precipitam<br />

processos globais de desequilíbio e, porque o pastoralismo é uma organização<br />

global, uma economia e uma cultura pastoris podem anular-se, negar-se, se um<br />

qualquer dos seus princípios fundamentais é posto em causa. E no entanto são, à<br />

partida, sociedades aptas a assegurar em grande parte a sua segurança<br />

alimentar, e os seus sistemas, desde que não sejam contrariados ou mal<br />

apoiados, são sempre o melhor garante contra a degradação do meio, a<br />

preservação e o aproveitamento dos recursos.<br />

Esta sucessão de tópicos parecer-me-ia suficiente para as boas vontades se<br />

puzessem de acordo sobre a necessidade de encarar o presente e o futuro <strong>das</strong><br />

sociedades pastoris e agropastoris que nos dizem respeito sem passar por cima,<br />

ou ao lado, de problemas que não decorrem da tendência dos antropólogos para a<br />

complexificação e a teorização, mas sim, muitas vezes, da tendência inversa dos<br />

agentes da intervenção para ignorarem a complexidade <strong>das</strong> situações com que<br />

deparam, e não raro geram, e para encararem a teorização como um anátema e<br />

talvez mesmo um vício de intelectuais isolacionistas, sempre prontos a invocar<br />

que não podem fornecer "respostas simples e breves a questões complexas"<br />

1


(Baxter 1991:23), incapazes portanto de se adaptarem à desenvoltura expedita<br />

dos peritos, dos regentes da prática.<br />

As lógicas dos que "praticam" e as dos que teorizam nunca poderão ser<br />

exactamente as mesmas. E mesmo entre os que teorizam, a lógica do economista,<br />

do politólogo, do sociólogo e do antropólogo (e às vezes o mesmo sujeito actua<br />

sucessivamente dentro destes vários registos) quando muito podem complementarse,<br />

mas não coincidem inteiramente nunca, cada disciplina desenvolve também a<br />

sua própria lógica. E nenhuma delas cincide normalmente com a dos agentes<br />

sociais de cuja experiência se ocupam. De alguma forma, porém, é ao antropólogo<br />

que cabe procurar apreender as lógicas do sujeito, dos sujeitos, e não apenas<br />

as dos processos.<br />

Nunca me ocorreu falar em nome fosse de quem fosse e pessoalmente ponho séria<br />

e constantemente em dúvida a fundamentação de qualquer filosofia, modo ou<br />

dispositivo de representatividade. Mas do ponto de vista da minha actuação<br />

cívica, e aqui não é o antropólogo que se manifesta mas o cidadão angolano, só<br />

posso justificar-me, perante as populações e perante mim mesmo, se continuar a<br />

trabalhar para que a "sociedade global" tenha em conta a diversidade dos<br />

interesses e <strong>das</strong> lógicas que a nossa realidade comporta e se aperceba de que,<br />

por exemplo, numa era em que tanto se fala de direitos humanos, não cabe<br />

certamente num tal espírito de cruzada o sacrifício do direito de certas<br />

populações preservarem a capacidade de se resolverem quando os processos donde<br />

emanam os discursos sobre os direitos do homem conduzem à desestruturação e à<br />

destruição totais.<br />

Por isso, embora apenas tenha aflorado ou simplesmente chamado a atenção para<br />

algumas <strong>das</strong> questões mais fundamentais que deveriam ocupar-me, e ocupar aqueles<br />

a quem me tenho estado a dirigir, fiz o que pude, num texto desta natureza,<br />

breve e sucinto por imperativo da tarefa, para sublinhar, junto de quem decide,<br />

planeia e opera, de que forma as sociedades pastoris e agropastoris têm sido as<br />

mais capazes de se preservarem e de se alimentarem ao longo dos vinte anos da<br />

crise que ainda dura. E isso deve-se à funcionalidade dos seus sistemas e à sua<br />

capacidade para gerir os meios de que dispõem em relação a um meio ecológico<br />

que ao mesmo tempo os torna extremamente frágeis perante qualquer atentado aos<br />

equilíbrios de que essa funcionalidade depende. São sociedades capazes e ao<br />

mesmo tempo muito frágeis. E o meio que exploram é rico mas talvez só nas suas<br />

mãos, da maneira como sabem ou como souberem inventar, servi<strong>das</strong> de uma<br />

experiência que é conhecimento e que não podem deixar delapidar a troco de um<br />

progresso de que poderá resultar tão só desestruturação e inviabilidade:<br />

económica, social, pessoal. A vantagem de Angola em relação às sociedades de<br />

cultura pastoril, no meio de tanta desvantagem e porque o tempo se suspendeu<br />

nalguns sectores da vida nacional, seria a de evitar os disparates em que<br />

outros já incorreram, olhando bem para a sua experiência e fazendo disso uma<br />

experiência própria que informasse a acção ou que garantisse ao menos a<br />

consciência do que não se deve fazer. A essa consciência do que não se deve<br />

fazer bastaria acrescentar uma vontade, uma decisão, um exercício de poder<br />

orientados no mesmo sentido. A este respeito não vou pronunciar-me aqui. É que<br />

não se trata de uma questão pastoril, e nem sequer pastoral, é nacional...<br />

Luanda, Janeiro de 1997<br />

1


POSFÁCIO<br />

Apreensão da realidade empírica, identificação <strong>das</strong> componentes que a<br />

estruturam, dos dispositivos que asseguram os funcionamentos e <strong>das</strong> acções que<br />

os actualizam, <strong>das</strong> rectaguar<strong>das</strong> conceptuais que os integram, dos conhecimentos<br />

e <strong>das</strong> competências que os viabilizam, <strong>das</strong> interações que os articulam às<br />

dinâmicas envolventes, <strong>das</strong> dinâmicas, enfim, que marcam o tempo de uma<br />

sociedade, de uma comunidade ... Para quê? Com que fim?<br />

O antropólogo é sempre suspeito. Para o senso comum ele é, na melhor <strong>das</strong><br />

hipóteses um "estudioso", um "intelectual" cujo interesse são sociedades que,<br />

na melhor <strong>das</strong> hipóteses ainda, são ti<strong>das</strong> por "acaicas", de alguma forma<br />

"fósséis ou fossiliza<strong>das</strong>", "ilhas culturais" num mundo que se igualiza<br />

inexoravelmente. O público em geral, o cidadão que foi à escola e que sem saber<br />

muito exactamente o que é antropologia, etnologia, etnografia e sociologia, o<br />

que as confunde e<br />

distingue, também não se atrapalha muito com isso, espera dele que tenha alguma<br />

coisa a dizer sobre "grupos étnicos" que prevalecem, talvez quando muito do<br />

passado daqueles que estão agora integrados ou diluídos enquanto actores nos<br />

desenvolvimentos actuais da cena nacional e, do ponto de vista operativo, que<br />

assinale as sobrevivências culturais, as manifestações folclóricas e aquelas<br />

que poderão informar as políticas de elaboração de um "património cultural" de<br />

que se pretende alimentar o regozijo e o socêgo da consciência nacionais.<br />

Afinal o folclore seria o que há a reter, o resto poderá, sem hesitações de<br />

maior, ser sacrificado ao progresso. A viabilidade nacional, e a de cada um no<br />

tempo que é o seu, não poderia passar senão pela evoluçãp tecnológica e pelos<br />

seus corolários: maximização de benefícios quantificáveis e, no caso da Angola<br />

do presente, o mais possível imediatos. A experiência dos últimos anos, se<br />

obrigou muitas populações de Angola a adoptarem uma economia de sobrevivência,<br />

instaurou, a nível global, mesmo para aqueles sectores que souberam extrair da<br />

situação prevalecente benefícios inimagináveis numa situação "normal", uma<br />

"ideologia" de sobrevivência imediatista nos seus "objectivos", eminentemente<br />

pragmática quanto aos "fins", isentada quanto aos "meios" utilizados. Quer<br />

dizer, entre uma economia de subsistência de alguns e de sobrevivência de<br />

outros, a ideologia do "vale tudo" para todos. Pode até causar estranheza, e<br />

logo desconfiança, que o antropólogo, fundamentado a sua acção numa observação<br />

e numa análise que não dispensam a percepção global e relativizante <strong>das</strong> coisas,<br />

não aproveite esses talentos e as percepções que deles pode extrair para se<br />

investir antes na persecução de benefícios pessoais e imediatos, como toda a<br />

gente. Ou é louco ou é suspeito.<br />

Admitindo ainda assim que se trata de um intelectual, que todo o intelectual é<br />

mais ou menos "poeta", e que todo o poeta é mais ou menos esquizofrénico, vive<br />

num mundo só dele, se o que de facto lhe interessa enquanto antropólogo não é o<br />

folclore, nem são as políticas culturais em curso, é de temer que pertença<br />

então a essa espécie dos que se investem em especulações fundamentais e mais ou<br />

menos bizantinas que constituem o âmago de to<strong>das</strong> as ciências, mesmo as exactas.<br />

Também os cientistas desse tipo são uma espécie de poetas e também aqui há<br />

escasso lugar para eles. Não há instituições de pesquisa que os enquadrem e a<br />

Universidade é uma máquina trôpega que vai atribuindo licenciaturas que depois<br />

1


cada um investirá na luta pela vida de acordo com as opções a que as<br />

oportunidades do imediato induzirem e que muitas vezes não têm nada a ver nem<br />

com aquilo que andaram supostamente a aprender nem com o diplôma que lhes abriu<br />

o caminho.<br />

Enquanto o senso comum entenderá talvez assim o antropólogo, os políticos não<br />

irão muito mais longe. Estatutariamente, ou se ocupam de decisões ou de leis e,<br />

quando lhes ocorre fazer uso de informações que os apoiem, não é aos<br />

investigadores que recorrem, é a directores, executivos, portanto, ou a<br />

técnicos. Os técnicos, por sua vez, quando lhes ocorre ir além dos recursos de<br />

que pessaolmente dispõem ou julgam dispôr para aprender as situações sobre as<br />

quais têm que decidir ou informar, recorrem a "peritos". Os peritos,<br />

finalmente, respodem às questões que lhes são postas, têm que actuar<br />

rapidamente, extrapolam dados, ou às vezes nem isso, apenas conceitos de<br />

príncipio, e quando investem alguma observação localizada enquadram o que veêm<br />

no corpus de referências que constitui o seu capital de peritos, dão, se houver<br />

tempo, uma vista de olhos sobre o que puder estar escrito e lhes tenha vindo<br />

cair às mãos, procedem em relação ao que leêm como fizeram em relação ao que<br />

viram, o resto é considerado a mais, ou marcado por implicações e complexidades<br />

que não dizem, não podem dizer, respeito ao que lhes é pedido. Ou então iriam<br />

"atrapalhar" a urgência de uma acção imediata ou mesmo, se as levassem em conta<br />

e as veículassem nos seus relatórios, poderiam suscitar por parte de quem lhes<br />

encomendou o trabalho ou de quem dirige a instituição que coordena os seus<br />

serviços, as suas prestações, dúvi<strong>das</strong> quanto à sua qualidade de peritos, sábios<br />

expeditos e objectivos, portanto, que não podem correr o risco de deixar<br />

arrastar-se por especulações académicas ou "cientifistas".<br />

Senso comum, políticos, directores, técnicos e peritos, todos têm razão,<br />

evidentemente. Mas sendo homens do mundo, e do "mundo real", terão de admitir<br />

que este mesmo mundo comporta aberrações as mais diversas, e aceitar,<br />

inclusivamente, que nem to<strong>das</strong> elas constituem necessária e obrigatoriamente<br />

ameaças para a sociedade. Algumas dessas aberrações poderão talvez mesmo, se<br />

houver tempo e oportunidade para encará-las, revelar-se talvez úteis, e até<br />

vantajosas, porque afinal veículam informação fiável e pouco ou quase nada<br />

custaram à sociedade, foi carolice do sujeito que informa. Poderão enfim acabar<br />

por admitir que o interesse de alguns actores deste presente angolano (que não<br />

deixaram de o ser por não pautarem o seu comportamento pelas linhas mais comuns<br />

de actuação) por determina<strong>das</strong> sociedades mais ou menos marginais ou<br />

minoritárias, se situa para além do interesse intelectual ou académico que<br />

esses casos lhes suscitam, pode comportar também, ou sobretudo, o interesse ou<br />

o respeito que os cidadãos que as constituem lhe merecem enquanto seus<br />

concidadãos, precisamente. Neste caso o antropólogo, para se manter na sua,<br />

apenas talvez não tenha ainda desistido da hipótese de ser possível intervir em<br />

Angola sem que isso implique envolver-se no poder ou transformar-se em<br />

empresário e insistindo em reclamar que os interesses dessas mesmos minorias,<br />

numéricas ou sociológicas, venham a ser tidos em conta.<br />

Julgo que o texto que elaborei é, dada a sua forma, o seu conteúdo, a<br />

descriminação dos temas e dos aspectos tratados, uma tentativa de intervenção<br />

dirigida a to<strong>das</strong> as formas de intervenção. Tendo arranjado tempo e maneira,<br />

pondo de parte outras formas de emprego do tempo e outras maneiras de lhe tirar<br />

rendimento, para navegar tais terrenos, e conhecê-los, julgo estar em condições<br />

de fornecer alguns "avisos à navegação". Não se tratou, para mim, de cruzar<br />

aquelas "águas" para dizer que tinha lá estado ou recolher amostras de<br />

superfície para aferi-las ao que já sabia antes, ou a tabelas já estabeleci<strong>das</strong>.<br />

Mergulhei nelas à procura de dados e de elementos que não constavam de fontes<br />

1


anteriores. Os elementos que por exemplo disponibilizei àcerca da categorização<br />

social do gado e do lugar que isso ocupa nos sistemas de propriedade, de<br />

circulação e do uso do mesmo, o que é dizer do sistema produtivo, institucional<br />

e regulador global de uma sociedade pastoril, a dos Kuvale, são da minha<br />

inteira responsabilidade, isto é, respondo pelo que afirmo sem amparar-me em<br />

indagações prévias e alheias, as quais, quando existem, quer em relação a<br />

populações herero angolanas ou da Namíbia e do Botswana, se detêm apenas muitas<br />

vezes na menção de generalidades que uma observação mais aplicada acaba quase<br />

sempre por pôr em causa. Fiz portanto, se quizer insistir na metáfora e não<br />

temer passar por pretencioso, serviço de navio oceanográfico investido na<br />

prospecção de águas virgens. E ninguém nega, penso, a utilidade, a necessidade,<br />

da pesquisa oceanográfica quando se pensa pescar e às vezes em grande. Por<br />

outro lado, porque a minha diligência não me transformou em "escafandrista", e<br />

fui lá ver para poder dizer, intervir, posso também, pelas exactas razões<br />

cívicas que mencionei atrás, olhar à volta e transitar da análise de uma<br />

sociedade pastoril em particular à <strong>das</strong> actuações possíveis junto da globalidade<br />

pastoril ou agropastoril do nosso país. E o que falta fazer a partir dos<br />

materiais que recolhi, da informação que acumulei e <strong>das</strong> notas que entretanto<br />

produzi, fá-lo-ei a seguir se entretanto, e para sobreviver, não tiver que<br />

dispersar-me por outras actividades mais rentáveis.<br />

ANEXOS<br />

Esquema de parentesco<br />

Filiação matrilinear<br />

<strong>Casa</strong>mento preferencial com a filha da irmã do pai<br />

∆ = homem |__________| = casados α |<br />

Ο = mulher _____|____ = filhos β }= matrilinhagens<br />

| | = irmãos χ |<br />

. ..>...........................................................................................< ...<br />

:___ _________ _________ _______:<br />

| | | | | |<br />

Οα ∆ β Ο β ∆χ Οχ ∆α<br />

1


|________| |________| |________|<br />

____|____ ____|_____ ____|____<br />

| | | | | |<br />

Οα ∆α Ο β ∆ β Οχ ∆χ<br />

| | | | | |<br />

...>.) ..............) ..............) ...............)................)...............).......< ..<br />

:__| |________| |________| |______:<br />

| | |<br />

...>..........................).................................)..............................).< ..<br />

:___ ____|____ ____|____ ___|___:<br />

| | | | | |<br />

Οα ∆ β Ο β ∆χ Οχ ∆α<br />

|________| |__________| |________|<br />

____|____ _____|_____ ____|____<br />

| | | | | |<br />

Οα ∆α Ο β ∆ β Οχ ∆χ<br />

| | | | | |<br />

...>.) .............) ..............) ..................).............)................).......< ..<br />

:__| |________| |_______| |______:<br />

| | |<br />

...>..........................).................................)..............................).< ..<br />

:___ ____|____ ____|____ ___|___:<br />

| | | | | |<br />

Glossário<br />

Οα ∆ β Ο β ∆χ Οχ ∆α<br />

|________| |__________| |_________|<br />

São aqui apenas incluídos os termos de que a significação dada, quando aparecem<br />

pela primeira vez no texto, convirá manter presente sempre que vierem a ocorrer<br />

de novo.<br />

ahumbeto - “(...)homens de uma mesma classe de idade (...).” (p.41)<br />

buluvulu - “(...)os adolescentes kuvale (...)” (p.21)<br />

eanda - “Vários iumu rimu formarão um vererimu ou dyemba imu que todos juntos<br />

formarão por sua vez a "cúpula", a eanda, plural mahanda, o clan.” (p.32)<br />

1


elao - “Sorte, em olukuvale, é elao. Elao é também o nome do local, o nome do<br />

altar, se quisermos, onde arde o fogo - murilu - dos Kuvale, em frente de uma<br />

<strong>das</strong> casas da onganda, ou de mais de uma, como é mais comum, porque aí vivem<br />

várias famílias juntas, vários homens que detêm, pela via da sucessão<br />

patrilinear, cada um o seu fogo.” (p. 45 )<br />

fogo - ver murilu<br />

hako ( bois de) - “(...) são os animais transmitidos pela via da sucessão<br />

linhageira, que se recebem da linhagem da mãe, de um irmão ou de um tio que<br />

morreu, ou aqueles que decorrem de aquisições a partir do trabalho de cada um,<br />

entendido como trabalho a energia pessoal retribuída fora dos contextos da<br />

reciprocidade institucionalizada.” (p.35)<br />

he musungu (bois de) - provêm “(...) linhagem do pai da mãe (...)( musungu<br />

significa mais-velho). “ (p.35)<br />

hupa (bois de) - “(...) provêm da linhagem do pai, e nesse caso serão os hupa<br />

propriamente ditos(...)”. (p.35)<br />

iumu - “Entre os Kuvale a linhagem mínima chama-se iumu, barriga, iumu rimu,<br />

barriga única, e daí para cima podemos considerar os vererimu, mama única, ou<br />

dyemba imu, placenta única.” (p. 32 )<br />

kakethe - “São bois kakethe todos aqueles que estão ligados à morte do pai: os<br />

filhos de uma vaca que é obrigatoriamente abatida à catana para que os seus<br />

cornos o acompanhem ao cemitério, os quais por sua vez também são conduzidos aí<br />

acompanhados por outras crias (ficam a ser betatifwa, no seu conjunto) para que<br />

lhes sejam extraídos pedaços <strong>das</strong> orelhas que com o sangue vertido entram na<br />

sepultura, e aqueles - kekwa - a que se faz o mesmo quando por exemplo os<br />

percursos da transumância obrigam a que se passe com gado perto desse mesmo<br />

cemitério. Qualquer violação dos interditos que lhes estão ligados, e entre<br />

eles os que se ligam ao consumo do leite, constituem uma forte agressão ao<br />

fogo, à ideologia do fogo, à religião do fogo, com incidências consequentes<br />

muito temi<strong>das</strong> em relação à "sorte" que depende do fogo (...)” . (p. 52)<br />

kuiambela - para o caso, “ (...)grande operação de culto (...) prestada ao<br />

(...) pai falecido (...)” (p.47 )<br />

kutonda - “(...)para o caso, dirá respeito a uma situação em que se abateu gado<br />

para consumo (ritualizado) e está muita gente junta para comer carne (...)” (p.<br />

46)<br />

mahamda - ver eanda<br />

muhoko - “(...)estória, carreira, percurso de vida (...).” (p.44)<br />

mulamwangue - primo cruzado ( filho da irmã do pai ou do irmão da mãe), para o<br />

caso (p.39), do irmão da mãe.<br />

muluhapahe - “(...)Twa, Kuisi, descendentes de povos normalmente designados por<br />

pré-Bantu, caçadores-recolectores que os antepassados dos actuais Kuvale já<br />

vieram encontrar fixados na região quando aí se instalaram, e que entretanto se<br />

foram assimilando à cultura pastoril na sequência, em muitos casos, da sua<br />

sujeição a uma condição de cativos que os constituiu, também em muitas<br />

1


situações, como herdeiros ou clientes <strong>das</strong> linhagens dos Kuvale que os iam<br />

capturando no decurso de acções de razia.” (p.33 )<br />

mupeke - “(...)é um óleo extraído dos frutos da Ximenia caffra, espécie arbórea<br />

particularmente abundante na zona de serra-abaixo do curso de alguns rios e<br />

mulolas.” (p.56)<br />

mutekwa-mukweto - “Indivíduos que tenham em comum o mesmo pai da mãe (de quem<br />

são mutekula's) são entre si mutekwa-mukweto ( colegas na família).” (p.41)<br />

murilu - “(...) fogo (...) , instituição (religiosa) fundamental na prática<br />

kuvale,(...) transmitid(o)a de pai para filho.” (p.37 )<br />

nampingo - “Quando um indivíduo morre, poucos dias depois, há um acontecimento<br />

importante. A sua família, a sua linhagem, o herdeiro do seu pai, ou dos seus<br />

"pais" que lhe entregaram hupa's, e o do pai da sua mãe, que lhe entregou he<br />

musungu's, comparecem para regular as contas referentes às entregas desses<br />

bois, que foram assim desviados do caminho - tyilila - da sucessão matrilinear.<br />

Eles vêm buscar o "troco", o retorno dessa operação, os bois que passarão a<br />

chamar-se de nampingo, os nampingo's.” (p.37)<br />

nano, munano - “ De qualquer forma, simultaneamente a estas guerras vinham<br />

decorrendo as "guerras do Nano", acções de razia pratica<strong>das</strong> por numerosos<br />

bandos oriundos do "alto", do Nano, os Munanos, como ainda hoje são designados<br />

na região os povos do planalto interior a Norte e os Ovimbundo de uma maneira<br />

geral.” (p.10)<br />

onganda - “(...)a modalidade mais fixa de residência dos Kuvale (...)” (p.25)<br />

turiapamu - “Esse grupo dentro da linhagem, a quem ele recorre (para<br />

empréstimos) e a quem ele redistribui (quando herda), é o turiapamu,<br />

constituído a partir do iumu de cada um e ramificando-se pelos vererimu ou<br />

dyemba imu que o projectam na eanda.” (p.38)<br />

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