Tocqueville e Beaumont - sobre o sistema penitenciário nos
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filantrópicas, <strong>Tocqueville</strong>, mesmo que tivesse tido acesso a elas, muito provavelmente<br />
as teria repudiado, pois apontavam para a revolução, a qual para ele significava o terror.<br />
A contradição da civilização com o aumento da criminalidade na França<br />
Como em todos os seus escritos, <strong>Tocqueville</strong> demonstra sempre sua enorme<br />
preocupação em explicar a França para os franceses. Ao se deparar com a grande<br />
contradição existente na sociedade européia de seu tempo, a de uma sociedade rica,<br />
civilizada e de bem-estar, em contrapartida a outra miserável, com uma grande taxa de<br />
criminalidade e um imenso mal-estar, é a França que ele quer entender. Como se fosse<br />
uma necessidade fundamental, ele precisava estar sempre mostrando como se<br />
desenrolava o processo democrático francês aos seus conterrâneos. Suas análises e seus<br />
discursos foram sempre feitos para os franceses. Evidentemente, incluía a França entre<br />
os países civilizados: “Como todas as sociedades que atingiram um alto grau de<br />
civilização, a sociedade na França está possuída de um mal interior que agride o<br />
princípio de sua existência. Crescendo à medida que a sociedade faz progressos,<br />
constante na sua marcha lenta e quase imperceptível, este mal funesto escapa, há<br />
muito, à atenção pública e só chama atenção do legislador quando, levada a excessos e<br />
torna-se uma ameaça de ruína e de destruição. Este mal é o aumento progressivo de<br />
crimes e delitos, à medida que a sociedade se torna mais civilizada. Este progresso não<br />
é mais contestado, pois que o próprio governo apresenta documentos confirmando-o.” 1<br />
Semelhante à situação social que <strong>Tocqueville</strong> observara em Manchester, na<br />
Inglaterra, a França de 1830, mesmo antes da revolução de julho, exibia uma imensa<br />
miséria e uma ostensiva riqueza, <strong>sobre</strong>tudo <strong>nos</strong> grandes centros urba<strong>nos</strong> industriais,<br />
ocupando por vezes o mesmo lócus; em outras palavras, a oposição entre capital e<br />
trabalho. Na França, como na Inglaterra, o capital significava não apenas a riqueza<br />
econômica, mas também a supremacia e o poder advindo das vantagens do<br />
conhecimento e das relações sociais e políticas, como partes de um todo.<br />
Para os autores do relatório <strong>sobre</strong> as penitenciárias, essa situação era acentuada<br />
pelas piores condições daqueles que nada possuíam, nem trabalho, nem comida, o que<br />
acabava por conduzi-los à prisão por roubo, mau comportamento, ignorância e<br />
vagabundagem. A origem de todos esses males, explicam, está entranhada na própria<br />
sociedade, pela falta de educação, pelo abandono das crianças, dos jovens e<br />
desempregados entregues à própria sorte, tanto na cidade como no campo. Homens,<br />
mulheres e crianças que andavam pelos campos e pelas cidades mendigando, por vezes<br />
sendo ajudados pelas comunidades locais e religiosas e que, por muitas outras,<br />
transformavam-se em bandidos que exploravam a infância e subjugavam os ainda mais<br />
miseráveis. Uma vez que <strong>Beaumont</strong> e <strong>Tocqueville</strong> condenavam a filantropia como<br />
solução e consideravam que a vagabundagem aumentava a criminalidade, estavam<br />
convictos de que era necessário contrapor às reformas de um <strong>sistema</strong> <strong>penitenciário</strong>,<br />
reformas sociais, culturalmente assentadas em valores morais e educacionais.<br />
Os dois autores parecem muito mais preocupados em colocar as origens dos<br />
crimes nesses fatores, devido ao pauperismo que nasce da falta de trabalho e das<br />
condições de vida do trabalhador industrial, do que dos crimes das classes mais<br />
favorecidas. Como afirma Seymour Drescher, comentando <strong>Beaumont</strong>: “à época a<br />
reforma penitenciária era considerada necessária porque os crimi<strong>nos</strong>os eram oriundos<br />
das classes mais pobres. As prisões deveriam se transformar em lugares de educação<br />
para aqueles miseráveis.” 2<br />
1 O.C., T., IV, v.1. p.49.<br />
2 Drescher, Seymour. Dilemmas of Democracy. University of Pittsburgh Press, 1968, p.134.<br />
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