walter benjamin - Programa de Pós-Graduação em Filosofia - UFBA ...

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09.05.2013 Views

Mas o esquecimento – e aqui atingimos um novo patamar na obra de Kafka – não é nunca um esquecimento individual. Tudo o que é esquecido se mescla a conteúdos esquecidos do mundo primitivo, estabelece com ele vínculos numerosos, incertos, cambiantes, para formar criações sempre novas. O esquecimento é o receptáculo a partir do qual emergem à luz do dia os contornos do inesgotável mundo intermediário, nas narrativas de Kafka. 121 A estrutura narrativa da obra de Kafka se aproxima dos comentários hagádicos, de uma lei desaparecida, com sua dinâmica própria. Se o esquecimento é importante para Kafka, a lembrança mais ainda. Na lembrança não somente o narrador, mas também o ouvinte exercita sua responsabilidade histórica ao descobrir seu papel no mundo. No estudo sobre a narração Benjamin aponta para o fato de que a verdade da narração não está no seu desenrolar, mas naquilo que lhe escapa e esconde, no momento de silêncio onde a voz toma fôlego. No caso de Benjamin, seu estudo sobre a narração tem uma forte influência desse pensamento, não apenas pela presença da figura do justo tzadik, mas também, pelas suas afirmações no tocante a um “mundo ético”, “experiência ética”, o “conselho enquanto sabedoria” ou a “memória enquanto faculdade épica”. Martin Buber escreveu em Histórias do Rabi, que o hassidismo representa “o cabalismo convertido em ethos”. O que deu a esse movimento religioso essa característica foi o estabelecimento de uma comunidade religiosa, onde seus lideres, os tzadikim, através da narração oral buscavam ensinar aos seus discípulos o universo da cabala, assim como popularizando trabalhos e tratados sobre conduta moral e ética judaica para um público amplo. Quanto a Kafka, a sua estrutura narrativa é herdeira direta da utilizada pelos tzadikim. Suas histórias não encerravam em si a plenitude de sentido que abrigavam. O papel deles era fundamental; sua enunciação é toda uma celebração de gestos promotores de uma forma de conto, onde a narrativa de um conto se manifesta como uma gnose dos homens e do mundo. Ele pensa a existência humana a partir da criação literária, nesse ponto, concilia o sagrado com o mundo laico. Sua estrutura narrativa se assemelha a dos tzadikim, que ao narrar suas lendas levam os ouvintes a repensarem sua existência. O mundo ético que nos fala Benjamin em O Narrador, no universo kafkiano aparece como perdido e sem esperança de retorno. No entanto, se ainda há um fio de esperança em Kafka, essa 121 Op. cit. p. 157. 92

esperança encontra-se na transmissibilidade. No ato de narrar está presente a possibilidade de uma experiência da verdade, e essa é uma experiência mística. Como Benjamin observou a obra de Kafka não se ajusta inteiramente a prosa ocidental, mas assim como a Agadá se relaciona com a Halahá, são construídas de tal forma que podemos utilizá-las com fins didáticos. Suponho que tanto Benjamin quanto Kafka constrói a seu modo um caminho para uma vida ética. Em Benjamin está representada pela figura do narrador, e sua postura ética diante do mundo, assim como o caráter transformador do seu pensamento messiânico. Este através de uma ética universal busca levar a justiça a toda humanidade. Em Kafka, pela prosa tão próxima da pedagogia judaica, em particular a desenvolvida pelos tzadikim. Nos respectivos pensamentos a estética se encontra com a religião, surgindo desse encontro uma filosofia da linguagem onde a narração oral tem um papel relevante e a alegoria determina seu caminho. Em Sobre o conceito da história, outra vez a narração retorna, só que na figura do cronista, que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, mas levando em conta que nada do que aconteceu na história deve ser considerado perdido para ela. No próximo capítulo, tratarei da alegoria do Anjo da História para Benjamin, assim como o valor da responsabilidade histórica em seus escritos. 93

Mas o esquecimento – e aqui atingimos um novo patamar na obra <strong>de</strong><br />

Kafka – não é nunca um esquecimento individual. Tudo o que é<br />

esquecido se mescla a conteúdos esquecidos do mundo primitivo,<br />

estabelece com ele vínculos numerosos, incertos, cambiantes, para<br />

formar criações s<strong>em</strong>pre novas. O esquecimento é o receptáculo a<br />

partir do qual <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> à luz do dia os contornos do inesgotável<br />

mundo intermediário, nas narrativas <strong>de</strong> Kafka. 121<br />

A estrutura narrativa da obra <strong>de</strong> Kafka se aproxima dos comentários<br />

hagádicos, <strong>de</strong> uma lei <strong>de</strong>saparecida, com sua dinâmica própria. Se o esquecimento<br />

é importante para Kafka, a l<strong>em</strong>brança mais ainda. Na l<strong>em</strong>brança não somente o<br />

narrador, mas também o ouvinte exercita sua responsabilida<strong>de</strong> histórica ao <strong>de</strong>scobrir<br />

seu papel no mundo. No estudo sobre a narração Benjamin aponta para o fato <strong>de</strong><br />

que a verda<strong>de</strong> da narração não está no seu <strong>de</strong>senrolar, mas naquilo que lhe escapa<br />

e escon<strong>de</strong>, no momento <strong>de</strong> silêncio on<strong>de</strong> a voz toma fôlego.<br />

No caso <strong>de</strong> Benjamin, seu estudo sobre a narração t<strong>em</strong> uma forte influência<br />

<strong>de</strong>sse pensamento, não apenas pela presença da figura do justo tzadik, mas<br />

também, pelas suas afirmações no tocante a um “mundo ético”, “experiência ética”, o<br />

“conselho enquanto sabedoria” ou a “m<strong>em</strong>ória enquanto faculda<strong>de</strong> épica”. Martin<br />

Buber escreveu <strong>em</strong> Histórias do Rabi, que o hassidismo representa “o cabalismo<br />

convertido <strong>em</strong> ethos”. O que <strong>de</strong>u a esse movimento religioso essa característica foi o<br />

estabelecimento <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> religiosa, on<strong>de</strong> seus li<strong>de</strong>res, os tzadikim,<br />

através da narração oral buscavam ensinar aos seus discípulos o universo da<br />

cabala, assim como popularizando trabalhos e tratados sobre conduta moral e ética<br />

judaica para um público amplo.<br />

Quanto a Kafka, a sua estrutura narrativa é her<strong>de</strong>ira direta da utilizada pelos<br />

tzadikim. Suas histórias não encerravam <strong>em</strong> si a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentido que<br />

abrigavam. O papel <strong>de</strong>les era fundamental; sua enunciação é toda uma celebração<br />

<strong>de</strong> gestos promotores <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> conto, on<strong>de</strong> a narrativa <strong>de</strong> um conto se<br />

manifesta como uma gnose dos homens e do mundo. Ele pensa a existência<br />

humana a partir da criação literária, nesse ponto, concilia o sagrado com o mundo<br />

laico. Sua estrutura narrativa se ass<strong>em</strong>elha a dos tzadikim, que ao narrar suas<br />

lendas levam os ouvintes a repensar<strong>em</strong> sua existência. O mundo ético que nos fala<br />

Benjamin <strong>em</strong> O Narrador, no universo kafkiano aparece como perdido e s<strong>em</strong><br />

esperança <strong>de</strong> retorno. No entanto, se ainda há um fio <strong>de</strong> esperança <strong>em</strong> Kafka, essa<br />

121 Op. cit. p. 157.<br />

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