walter benjamin - Programa de Pós-Graduação em Filosofia - UFBA ...
walter benjamin - Programa de Pós-Graduação em Filosofia - UFBA ... walter benjamin - Programa de Pós-Graduação em Filosofia - UFBA ...
mito que tanto podia ser o progresso ou a religião. O conto de fadas foi a primeira medida tomada pela humanidade para se libertar do mito como observou Benjamin: O mundo mítico, à primeira vista próximo do universo kafkiano, é incomparavelmente mais jovem que o mundo de Kafka, com relação ao qual o mito já representa uma promessa de libertação. Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito. Novo Odisseus, livrouse dessa sedução graças “a um olhar dirigido a um horizonte distante”...“as sereias desapareceram literalmente diante de tamanha firmeza, e, no momento em que estava mais próximo delas, não as percebia mais”. Entre os ancestrais de Kafka no mundo antigo, os judeus e os chineses, que reencontraremos mais tarde, esse antepassado grego não deve ser esquecido. Pois Odisseus está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas. 79 Quando Benjamin diz que Kafka se propôs a narrar sagas ele compreendeu na narrativa kafkiana a necessidade de contar a jornada do homem na terra (uma busca de sentido). A existência humana é posta a prova no momento em que diante do sagrado nada faz sentido. O mundo de Kafka é cinza, repleto de animais patéticos, e burocratas mesquinhos. Onde a tríade judaica formada pela revelação, lei e comentário o definem. Os protagonistas desse mundo imaginário não podem abrir mão dessas categorias, mesmo não compreendendo ou vivendo de acordo com elas. Essa tríade judaica também está presente na filosofia benjaminiana, em particular no papel do comentador. Kafka exprime a tragédia pelo cotidiano. Podemos constatar isso principalmente em O Processo e O Castelo, onde tanto K quanto Josef K (que são a mesma pessoa) vivencia sua tragédia no dia-a-dia. O que ele relata não é somente o absurdo do mundo, mas também o absurdo da existência humana. Se o seu mundo é um mundo sem esperança, ainda assim, existe esperança na justiça divina. Benjamin observa: 79 BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Obras escolhidas I: magia e técnica,arte e política. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 143. 64
Kafka escutava o que lhe dizia a tradição e quem ouve intensamente não vê. Este ato de ouvir é cansativo, sobretudo porque só coisas confusas chegam até aquele que ouve. Não há doutrina a se aprender e nem conhecimentos que se possa conservar. O que se capta de repente são coisas que não estão determinadas para nenhum ouvido em especial. Isto inclui um estado de coisas que caracteriza estritamente a obra de Kafka por seu lado negativo (quase sempre sua característica negativa será mais rica de perspectiva que a positiva). A obra de Kafka representa um adoecimento da tradição. Tratou-se de definir a sabedoria, às vezes, como o lado épico da verdade. Assim, a sabedoria é caracterizada como um bem da tradição; ela é a verdade em sua consistência “hagádica”. 80 Mesmo no momento em que critica a tradição, Kafka não deixa de recorrer a ela. Ele continuou ouvindo a tradição judaica e inspirado por ela construiu sua obra. Hagadá em hebraico significa narrativa ou lendas, as parábolas presentes na obra de Kafka muito se aproximam deste sentido. Segundo Mandelbaum: Foi o próprio Benjamin que afirmara, em seu texto “O narrador”, que “a sabedoria é o lado épico da verdade”, querendo dar a entender que aquela não é, em si, um bem da tradição, mas uma operação que emerge do contato do homem com ela. Ele agrega nessa carta que “ela [a sabedoria] é a verdade em sua consistência hagádica. Hagadá, em hebraico, quer dizer narrativa, e costuma ser usualmente definida de um modo negativo, ou seja, como toda aquela porção do ensinamento rabínico que não é halahá (caminho, trilha ou lei, toda a tradição legalista do judaísmo expressa em código de lei), mas com a qual guarda uma íntima relação, por ser dela uma expressão exemplar. Toda hagadá é um midrasch, assim como também toda halahá é um midrasch, um modo de expor e desdobrar o texto fundante. A hagadá é complemento do texto fundante em sua versão ficcional. 81 É a atitude midraschica que envolve a obra de Kafka enquanto escritor que o aproxima de Benjamin enquanto comentador. O exercício do comentário na obra de Benjamin é adornado por um valor teológico profundo que perpassa toda sua obra: 80 Op. cit. p. 303-304. 81 Op. cit. p. 193-194. Para Benjamin, o exercício espiritual e cultural do comentário estava profundamente ligado à importante questão da capacidade humana de compreender o passado, de estabelecer uma conexão vívida com ele. Era este, na verdade, o problema básico que cativou a atenção de Benjamin e Scholem ao longo de suas carreiras. Essa questão também estava implícita em Kafka, cuja obra pode ser entendida como a representação definitiva da perda de uma tradição confiante. Nos seus romances e contos, entretanto, Kafka afasta o problema da exegese de qualquer contexto histórico, apresentando imagens 65
- Page 13 and 14: CAPÍTULO I - O DECLÍNIO DA EXPERI
- Page 15 and 16: humanas. O estudo sobre a linguagem
- Page 17 and 18: A citação indica a opção de Ben
- Page 19 and 20: A mística da linguagem cabalista d
- Page 21 and 22: homem diante de Deus. Encontramos e
- Page 23 and 24: Isso quer dizer, porém, que soment
- Page 25 and 26: sociedade a técnica prioritariamen
- Page 27 and 28: que não se falou ontem termina em
- Page 29 and 30: Benjamin desejava uma sociedade sem
- Page 31 and 32: As mudanças ocorridas na modernida
- Page 33 and 34: do campo da correspondência. É ne
- Page 35 and 36: Benjamin suspeita da idéia de teso
- Page 37 and 38: Em sua grande maioria, seus textos
- Page 39 and 40: teológico. Sua crítica à moderni
- Page 41 and 42: urbana e industrial, não conhece m
- Page 43 and 44: cotidiana, o choque se impôs como
- Page 45 and 46: Dessa forma, o que está envolvido
- Page 47 and 48: tempo que a sustém e que permite p
- Page 49 and 50: Para a maioria dos físicos o fluxo
- Page 51 and 52: Quem é autenticamente fiel é cham
- Page 53 and 54: omance, é em nome de um desejo de
- Page 55 and 56: Quando o sofrimento não pode mais
- Page 57 and 58: homem ético. Ao trazer a figura do
- Page 59 and 60: Benjamin tinha uma grande admiraç
- Page 61 and 62: A obra de Kafka é uma elipse cujos
- Page 63: sua pergunta, evoca sem o saber, um
- Page 67 and 68: verdade incondicional das convicç
- Page 69 and 70: extremo de sabedoria, que Kafka de
- Page 71 and 72: evolução industrial, o melhor exe
- Page 73 and 74: Essa aldeia talmúdica está no cen
- Page 75 and 76: A porta da justiça é o estudo. Ma
- Page 77 and 78: significado e se torna veiculo de o
- Page 79 and 80: conceito do saber. A promessa da se
- Page 81 and 82: Os românticos e os neo-românticos
- Page 83 and 84: obra existe lugar para a lei e a ju
- Page 85 and 86: questão teológica. Quem melhor co
- Page 87 and 88: caso de Benjamin está diretamente
- Page 89 and 90: Num fragmento intitulado “Um sonh
- Page 91 and 92: Podemos ir mais longe e perguntar s
- Page 93 and 94: esperança encontra-se na transmiss
- Page 95 and 96: salvação do homem. Isso define o
- Page 97 and 98: Cada vez que se pretende estudar um
- Page 99 and 100: O exemplo do cronista para ilustrar
- Page 101 and 102: força cooperadora messiânica. Par
- Page 103 and 104: 3.2 O ANJO DA HISTÓRIA “Minhas a
- Page 105 and 106: Pierre Missac observou a relação
- Page 107 and 108: O messianismo judaico é o ponto de
- Page 109 and 110: No momento em que interpretamos o e
- Page 111 and 112: perdido está presente na idéia de
- Page 113 and 114: momento em que lutarmos pela vinda
Kafka escutava o que lhe dizia a tradição e qu<strong>em</strong> ouve intensamente<br />
não vê. Este ato <strong>de</strong> ouvir é cansativo, sobretudo porque só coisas<br />
confusas chegam até aquele que ouve. Não há doutrina a se<br />
apren<strong>de</strong>r e n<strong>em</strong> conhecimentos que se possa conservar. O que se<br />
capta <strong>de</strong> repente são coisas que não estão <strong>de</strong>terminadas para<br />
nenhum ouvido <strong>em</strong> especial. Isto inclui um estado <strong>de</strong> coisas que<br />
caracteriza estritamente a obra <strong>de</strong> Kafka por seu lado negativo<br />
(quase s<strong>em</strong>pre sua característica negativa será mais rica <strong>de</strong><br />
perspectiva que a positiva). A obra <strong>de</strong> Kafka representa um<br />
adoecimento da tradição. Tratou-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir a sabedoria, às vezes,<br />
como o lado épico da verda<strong>de</strong>. Assim, a sabedoria é caracterizada<br />
como um b<strong>em</strong> da tradição; ela é a verda<strong>de</strong> <strong>em</strong> sua consistência<br />
“hagádica”. 80<br />
Mesmo no momento <strong>em</strong> que critica a tradição, Kafka não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> recorrer a<br />
ela. Ele continuou ouvindo a tradição judaica e inspirado por ela construiu sua obra.<br />
Hagadá <strong>em</strong> hebraico significa narrativa ou lendas, as parábolas presentes na obra<br />
<strong>de</strong> Kafka muito se aproximam <strong>de</strong>ste sentido. Segundo Man<strong>de</strong>lbaum:<br />
Foi o próprio Benjamin que afirmara, <strong>em</strong> seu texto “O narrador”, que<br />
“a sabedoria é o lado épico da verda<strong>de</strong>”, querendo dar a enten<strong>de</strong>r<br />
que aquela não é, <strong>em</strong> si, um b<strong>em</strong> da tradição, mas uma operação<br />
que <strong>em</strong>erge do contato do hom<strong>em</strong> com ela. Ele agrega nessa carta<br />
que “ela [a sabedoria] é a verda<strong>de</strong> <strong>em</strong> sua consistência hagádica.<br />
Hagadá, <strong>em</strong> hebraico, quer dizer narrativa, e costuma ser<br />
usualmente <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> um modo negativo, ou seja, como toda<br />
aquela porção do ensinamento rabínico que não é halahá (caminho,<br />
trilha ou lei, toda a tradição legalista do judaísmo expressa <strong>em</strong> código<br />
<strong>de</strong> lei), mas com a qual guarda uma íntima relação, por ser <strong>de</strong>la uma<br />
expressão ex<strong>em</strong>plar. Toda hagadá é um midrasch, assim como<br />
também toda halahá é um midrasch, um modo <strong>de</strong> expor e <strong>de</strong>sdobrar<br />
o texto fundante. A hagadá é compl<strong>em</strong>ento do texto fundante <strong>em</strong> sua<br />
versão ficcional. 81<br />
É a atitu<strong>de</strong> midraschica que envolve a obra <strong>de</strong> Kafka enquanto escritor que o<br />
aproxima <strong>de</strong> Benjamin enquanto comentador. O exercício do comentário na obra <strong>de</strong><br />
Benjamin é adornado por um valor teológico profundo que perpassa toda sua obra:<br />
80 Op. cit. p. 303-304.<br />
81 Op. cit. p. 193-194.<br />
Para Benjamin, o exercício espiritual e cultural do comentário estava<br />
profundamente ligado à importante questão da capacida<strong>de</strong> humana<br />
<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o passado, <strong>de</strong> estabelecer uma conexão vívida com<br />
ele. Era este, na verda<strong>de</strong>, o probl<strong>em</strong>a básico que cativou a atenção<br />
<strong>de</strong> Benjamin e Schol<strong>em</strong> ao longo <strong>de</strong> suas carreiras. Essa questão<br />
também estava implícita <strong>em</strong> Kafka, cuja obra po<strong>de</strong> ser entendida<br />
como a representação <strong>de</strong>finitiva da perda <strong>de</strong> uma tradição confiante.<br />
Nos seus romances e contos, entretanto, Kafka afasta o probl<strong>em</strong>a da<br />
exegese <strong>de</strong> qualquer contexto histórico, apresentando imagens<br />
65