walter benjamin - Programa de Pós-Graduação em Filosofia - UFBA ...

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09.05.2013 Views

A teologia mística de Isaac Luria e as mais ousadas pesquisas da vanguarda estética se ligam assim ao centro da doutrina benjaminiana da alegoria, que também é, profundamente, uma teoria da história como lugar conjunto da significação e da morte. A interpretação alegórica, essa produção abundante de sentido, a partir da ausência de um sentido último, expõe as ruínas de um edifício do qual não sabemos se existiu, um dia, inteiro; o esboço apagado e mutável desse palácio frágil orienta o trabalho crítico. 66 Em O Narrador, o justo é aquele que tenta a partir da consciência de sua responsabilidade histórica trazer ao mundo valores a muito esquecidos. A figura do narrador remete as histórias do Rabi Nakhman (bisneto de Baal Schem Tov fundador do Hassidismo), que em momento algum é citado por Benjamin, mas que é de fundamental importância para sua análise sobre a narração. Para o judaísmo não importa o quanto tempo temos, mas sim, o que fazemos com o tempo que nos é dado. É esta união entre temporalidade e dever que fortalece o valor da justiça dentro da tradição. Benjamin compreendeu bem a relação entre tempo e justiça ao escrever O Narrador. Segundo ele, o valor da experiência narrativa sempre se vinculava a uma experiência do tempo. Ao constatar que a partir do século XIX, a experiência do tempo sofreu graves mudanças, dentre elas, a do tempo enquanto valor de produção determinada pelo ritmo das máquinas. Esta nova experiência do tempo que busca homogeneizá-lo ao ritmo das máquinas transforma o homem em autômato, escravo dos meios de produção. É contra essa experiência de tempo que Benjamin discordou: 66 Op.cit. p. 46. 67 Ibid. p.62-63. Com efeito, ao reler com atenção “O Narrador”, descobrimos que seu tema essencial não é o da harmonia perdida; atrás deste motivo aparente parece uma outra exigência. Não se trata tanto de deplorar o fim de uma época, e de suas formas de comunicação quanto de detectar na antiga personagem, hoje desaparecida, do narrador, uma tarefa sempre atual: a da apokatastasis, esta reunião de todas almas no Paraíso, segundo a doutrina (condenada por heresia) de Orígenes, uma doutrina que teria influenciado Lesskov. Recolhimento que o narrador, essa figura secularizada do Justo, efetuaria por suas narrativas, mas, singularmente, que definirá também o esforço do historiador “materialista”, tal como o chama Benjamin nas “Teses”. O que se opõe a essa tarefa de retomada salvadora do passado não é somente o fim de uma tradição e de uma experiência compartilhada; mais profundamente, é a realidade do sofrimento, de um sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências comunicáveis, que não pode dobrar-se à junção, à sintaxe de nossas proposições. 67 54

Quando o sofrimento não pode mais ser comunicado, a experiência chegou ao máximo da atrofia. É o que procura dizer a citação, é o que lemos no inicio de O Narrador, quando ele descreve os soldados que voltavam do campo de batalha mudos, pobres de experiências comunicáveis. A tradição judaica expressa que não existe limite para a interpretação, pois reconhece, incentiva e postula uma interpretação infinita. Essa é a proposta de Benjamin no estudo sobre a narração e na sua análise da história. Sem memória não pode existe relação com o passado, nem com as vitimas das injustiças, nem mesmo com a dor alheia. Benjamin observa: A inquietação de nossa vida interior não tem, por natureza, este caráter irremediavelmente privado. Ela só o adquire depois que se reduziram as chances dos fatos exteriores se integrarem à nossa experiência. Os jornais constituem um dos muitos indícios de tal redução. Se fosse intenção da imprensa fazer com que o leitor incorporasse à própria experiência as informações que lhe fornece, não alcançaria seu objetivo. Seu propósito, no entanto, é o oposto, e ela o atinge. Consiste em isolar os acontecimentos do âmbito onde pudesse afetar a experiência do leitor. 68 Benjamin precisava encontrar uma figura heróica para lutar contra as transformações; primeiramente buscou o flâneur, mas ao constatar que este não possuía os atributos teológicos necessários recorre ao narrador, que representa a figura do justo. O Rabi Nakhman de Bratslav (1772-1810) foi um dos expoentes do movimento pietista fundado por Baal Schem Tov (O Mestre do bom Nome). Independente de sua contribuição no âmbito das idéias religiosas do judaísmo, ele contribuiu de forma significativa para a literatura judaica. Partindo dos escritos bíblicos e hermenêuticos do judaísmo se tornou um dos grandes narradores do imaginário ficcional e místico. Seus relatos eram transmitidos oralmente e depois transcritos por membros de seu círculo de seguidores, esse precioso material foi de grande importância para autores do século XX, em particular Franz Kafka. Nakhman compreendeu o poder da palavra para a formação do sujeito dentro de uma tradição. Para ele, a comunicação não significava um acontecimento comum sobre o qual não se deveria refletir já que nos é familiar e bem conhecida, pelo contrário, era rara e maravilhosa, como algo recém-criado. Aproxima-se muito da idéia do Benjamin de tomar a narração oral como uma forma de intercambiar experiências. 68 Op. cit. p. 106. 55

A teologia mística <strong>de</strong> Isaac Luria e as mais ousadas pesquisas da<br />

vanguarda estética se ligam assim ao centro da doutrina<br />

<strong>benjamin</strong>iana da alegoria, que também é, profundamente, uma teoria<br />

da história como lugar conjunto da significação e da morte. A<br />

interpretação alegórica, essa produção abundante <strong>de</strong> sentido, a partir<br />

da ausência <strong>de</strong> um sentido último, expõe as ruínas <strong>de</strong> um edifício do<br />

qual não sab<strong>em</strong>os se existiu, um dia, inteiro; o esboço apagado e<br />

mutável <strong>de</strong>sse palácio frágil orienta o trabalho crítico. 66<br />

Em O Narrador, o justo é aquele que tenta a partir da consciência <strong>de</strong> sua<br />

responsabilida<strong>de</strong> histórica trazer ao mundo valores a muito esquecidos. A figura do<br />

narrador r<strong>em</strong>ete as histórias do Rabi Nakhman (bisneto <strong>de</strong> Baal Sch<strong>em</strong> Tov<br />

fundador do Hassidismo), que <strong>em</strong> momento algum é citado por Benjamin, mas que é<br />

<strong>de</strong> fundamental importância para sua análise sobre a narração. Para o judaísmo não<br />

importa o quanto t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong>os, mas sim, o que faz<strong>em</strong>os com o t<strong>em</strong>po que nos é<br />

dado. É esta união entre t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ver que fortalece o valor da justiça<br />

<strong>de</strong>ntro da tradição.<br />

Benjamin compreen<strong>de</strong>u b<strong>em</strong> a relação entre t<strong>em</strong>po e justiça ao escrever O<br />

Narrador. Segundo ele, o valor da experiência narrativa s<strong>em</strong>pre se vinculava a uma<br />

experiência do t<strong>em</strong>po. Ao constatar que a partir do século XIX, a experiência do<br />

t<strong>em</strong>po sofreu graves mudanças, <strong>de</strong>ntre elas, a do t<strong>em</strong>po enquanto valor <strong>de</strong><br />

produção <strong>de</strong>terminada pelo ritmo das máquinas. Esta nova experiência do t<strong>em</strong>po<br />

que busca homogeneizá-lo ao ritmo das máquinas transforma o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

autômato, escravo dos meios <strong>de</strong> produção. É contra essa experiência <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po que<br />

Benjamin discordou:<br />

66 Op.cit. p. 46.<br />

67 Ibid. p.62-63.<br />

Com efeito, ao reler com atenção “O Narrador”, <strong>de</strong>scobrimos que seu<br />

t<strong>em</strong>a essencial não é o da harmonia perdida; atrás <strong>de</strong>ste motivo<br />

aparente parece uma outra exigência. Não se trata tanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>plorar<br />

o fim <strong>de</strong> uma época, e <strong>de</strong> suas formas <strong>de</strong> comunicação quanto <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>tectar na antiga personag<strong>em</strong>, hoje <strong>de</strong>saparecida, do narrador, uma<br />

tarefa s<strong>em</strong>pre atual: a da apokatastasis, esta reunião <strong>de</strong> todas almas<br />

no Paraíso, segundo a doutrina (con<strong>de</strong>nada por heresia) <strong>de</strong><br />

Orígenes, uma doutrina que teria influenciado Lesskov. Recolhimento<br />

que o narrador, essa figura secularizada do Justo, efetuaria por suas<br />

narrativas, mas, singularmente, que <strong>de</strong>finirá também o esforço do<br />

historiador “materialista”, tal como o chama Benjamin nas “Teses”. O<br />

que se opõe a essa tarefa <strong>de</strong> retomada salvadora do passado não é<br />

somente o fim <strong>de</strong> uma tradição e <strong>de</strong> uma experiência compartilhada;<br />

mais profundamente, é a realida<strong>de</strong> do sofrimento, <strong>de</strong> um sofrimento<br />

tal que não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>positar-se <strong>em</strong> experiências comunicáveis, que<br />

não po<strong>de</strong> dobrar-se à junção, à sintaxe <strong>de</strong> nossas proposições. 67<br />

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