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Ideias nº 20 - incaer

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Id. em Dest., Rio de Janeiro, n. <strong>20</strong>, p. 96, jan./abr. <strong>20</strong>06


Edição<br />

Divisão de Estudos e Pesquisa<br />

Editor Responsável<br />

Manuel Cambeses Júnior<br />

Projeto Gráfico<br />

Mauro Bomfim Espíndola<br />

Wânia Branco Viana<br />

Jailson Carlos Fernandes Alvim<br />

Abdias Barreto da Silva Neto<br />

Revisão de Textos<br />

Dirce Silva Brízida<br />

Ficha Catalográfica elaborada pela<br />

Biblioteca do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica<br />

Idéias em Destaque / Instituto Histórico-Cultural da<br />

Aeronáutica. – n.1, 1989 –<br />

v. – Quadrimestral.<br />

Editada pela Vice-Direção do INCAER até <strong>20</strong>00.<br />

Irregular: 1991–<strong>20</strong>04.<br />

1. Aeronáutica – Periódico (Brasil). I. Instituto Histórico-Cultural<br />

da Aeronáutica. II. INCAER.<br />

CDU 354.73 (05) (81)


Apresentação<br />

A Direção do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica<br />

(INCAER) tem a grata satisfação de apresentar aos seus leitores o<br />

exemplar de número <strong>20</strong> da revista Idéias em Destaque.<br />

Como sói ocorrer, nesta edição, concernente ao primeiro<br />

quadrimestre do corrente ano, apresentamos doze trabalhos da lavra<br />

de prestigiosos e contumazes colaboradores deste periódico,<br />

procurando contemplar uma ampla gama de assuntos que julgamos<br />

ser importante ressaltar, de modo a tornar a revista Idéias em<br />

Destaque assaz atraente e de agradável leitura.<br />

Faz-se mister enfatizar que estamos receptivos àqueles que<br />

desejarem colaborar com a nossa revista nos remetendo artigos de<br />

interesse de nossos leitores.<br />

Desta maneira, acreditamos estar contribuindo, sobremaneira,<br />

para a divulgação de nossos vultos históricos, no registro de fatos<br />

significativos da Aeronáutica brasileira, de Geopolítica, do<br />

pensamento estratégico nacional e, acima de tudo, de cultura geral.<br />

Tenente-Brigadeiro-do-Ar Ref. Octávio Júlio Moreira Lima<br />

Diretor do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica


Sumário<br />

Nº <strong>20</strong><br />

jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

1. As Violações “Invisíveis” das Fronteiras:<br />

Proposta Inovadora para a Tipologia de Fronteiras...................................7<br />

Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

2. Novas Teorias do Poder Mundial ...............................................................16<br />

Carlos de Meira Mattos<br />

3. A Religião na Modernidade: Algumas Funções<br />

Históricas e Sócio-Políticas..........................................................................19<br />

Edson de Castro Homem<br />

4. Coréia Unificada e Brasil no Século XXI: A Ordem Multipolar...............37<br />

Severino Cabral<br />

5. China: Política e Religião...............................................................................42<br />

Marcelo Hecksher<br />

6. O Marechal-do-Ar Armando F. Trompowsky de Almeida,<br />

Consolidador do Ministério da Aeronáutica ............................................49<br />

Celso Paulino da Silva<br />

7. A Evolução do Poder Aéreo entre as duas Guerras Mundiais....................59<br />

José Augusto Abreu de Moura<br />

8. A Dinâmica do Processo Civilizatório.........................................................72<br />

Manuel Cambeses Júnior<br />

9. O Renascimento .............................................................................................79<br />

Araken Hipólito da Costa<br />

10. Mentalidade de Defesa no Brasil ...............................................................82<br />

Ivan Fialho<br />

11. O Fomento da Indústria de Defesa como Fator<br />

de Preparo da Mobilização Nacional .........................................................86<br />

Sergio Xavier Ferolla<br />

12. Reflexos Lentos, porém Descoordenados ................................................91<br />

Milton Mauro Mallet Aleixo


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

6 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

As Violações “Invisíveis” das<br />

Fronteiras: Proposta Inovadora<br />

para a Tipologia de Fronteiras<br />

Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

Os estudos sobre fronteira nacional, seja nos bancos de escola<br />

seja no âmbito universitário, tratam dos seus aspectos históricos, geográficos<br />

e jurídicos. As várias definições da mesma podem ser resumidas<br />

na concepção de FRONTEIRA JURÍDICA, que é o limite<br />

legal entre as jurisdições soberanas de dois Estados.<br />

Essa definição tradicional é perfeitamente correta e serve<br />

de fundamento, por exemplo, para as preocupações com que muitos<br />

brasileiros analisam as ameaças, concretas ou em potencial,<br />

à incolumidade do território nacional. É também a partir da mesma<br />

definição que se elaboram os planejamentos de ação governamental<br />

para fins de desenvolvimento ou de emprego de elementos<br />

de segurança.<br />

Graças à atuação continuada do nosso serviço diplomático e,<br />

muito especialmente, à extraordinária e devotada competência do<br />

Barão do Rio Branco, ao chegar ao ano de 1910, o Brasil tinha todas<br />

as suas questões de fronteira resolvidas pacificamente, por meio de<br />

negociações diplomáticas ou arbitragem internacional, sem jamais<br />

recorrer ao uso da força. Por isso, os brasileiros puderam, desde<br />

então, desfrutar da tranqüilidade de saber que o País não tem problema<br />

algum de fronteira. Isso, entretanto, não elimina o fato de que, por<br />

diferentes causas e em diferentes momentos, tenhamos tido, continuamos<br />

tendo e poderemos sempre ter problemas na fronteira.<br />

Para evitar ou neutralizar ameaças e/ou violações de nossas<br />

fronteiras, o Brasil contou, historicamente, com a vigilância e a<br />

capacidade profissional do Itamaraty e das Forças Armadas, além<br />

da dos órgãos policiais e aduaneiros especificamente incumbidos<br />

dessas tarefas.<br />

Entretanto, as características do relacionamento internacional,<br />

após o fim da Guerra Fria, estimularam modos mais agressivos<br />

de comportamento, sobretudo por parte da superpotência<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

7


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

(Estados Unidos) e das duas megapotências (União Européia e Japão).<br />

As conseqüências da Terceira Revolução Industrial e o processo denominado<br />

Globalização aumentaram exponencialmente o hiato de poder<br />

entre esses três Centros de Poder Econômico (CPEs) e os demais países.<br />

Além disso, as pragas do narcotráfico e do terrorismo internacional<br />

criaram novos riscos e ameaças. Finalmente, a adoção de conceitos<br />

emanados da chamada Revolução em Assuntos Militares (RAM), demonstrada<br />

de maneira espetacular no ataque ao Iraque, desfechado pelos<br />

EUA em março/abril de <strong>20</strong>03, confirmou a vigência ominosa do que<br />

se tem chamado de Pós-Modernismo Militar. 1<br />

De tudo isso surge a necessidade premente de que se passe a<br />

considerar, com muito maior intensidade, outro tipo de fronteira, até<br />

agora pouco apreciada. Trata-se da FRONTEIRA METAFÍSICA,<br />

que defino como a linha de defrontação entre interesses de dois<br />

(ou mais) Estados.<br />

Na concepção jurídica, sobejamente conhecida, as fronteiras<br />

podem ser agrupadas em três categorias:<br />

1. Terrestre – que pode ser seca, fluvial ou lacustre, e cuja<br />

definição e caracterização obedecem a critérios determinados pelo<br />

Direito Internacional Público;<br />

2. Marítima e Oceânica – atualmente regidas pelas normas da<br />

Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, popularmente<br />

conhecida como Convenção da Jamaica;<br />

3. Aérea – também regida por normas internacionais, especialmente<br />

no que se refere ao uso do espaço aéreo.<br />

Já na concepção metafísica, a variedade de categorias é maior<br />

e, na verdade, convém deixar sua listagem em aberto. Assim, por<br />

exemplo, deve-se considerar uma fronteira (metafísica) espacial,<br />

embora o espaço sideral, em termos jurídicos, seja considerado internacionalizado,<br />

ou seja, destituído de fronteiras nacionais. Um exemplo<br />

dessa fronteira (metafísica) espacial é a aplicação unilateral de<br />

1 Sobre a Revolução em Assuntos Militares e o Pós-Modernismo Militares<br />

há vários textos publicados pelo autor, como, por exemplo, na “A Defesa<br />

Nacional”, n o . 792, de jan./fev./mar./abr. <strong>20</strong>02.<br />

8 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

restrições ao acesso a tecnologias de mísseis, como ocorre com o<br />

Regime de Controle da Tecnologia de Mísseis (RCTM).<br />

Analogamente, na tipificação metafísica, existe uma fronteira<br />

cibernética, evidenciada sobretudo com o surgimento da Ação Bélica<br />

Informatizada (ABI) e da Ação Bélica Estratégica Informatizada<br />

(ABEI) 2 . Além disso, com a enorme importância da Internet, aí aumentam<br />

os interesses com potencial para gerar confrontações.<br />

A mais importante das fronteiras metafísicas, porém, é a que<br />

denomino fronteira institucional. Ela se configura quando, em função<br />

de defrontação de interesses de dois Estados, um deles consegue<br />

impor a aceitação de atos internacionais (adesão a tratados, celebração<br />

de acordos etc.) ou a adoção de medidas executivas, legislativas<br />

ou judiciárias nocivas ao interesse nacional do Estado mais fraco. De<br />

forma mais abrangente, pode-se definir a fronteira institucional como<br />

aquela em que, por qualquer tipo de pressão, coação ou indução<br />

ilegítima ou ilegal – com origem em outro Estado – são celebrados<br />

acordos internacionais, são adotadas normas legais e/ou regulamentares<br />

e são tomadas decisões executivas e/ou judiciais em detrimento<br />

dos interesses nacionais. É útil ressaltar que esse tipo de ação<br />

pode ter longo tempo de preparação “invisível”, como ocorre com o<br />

recrutamento e emprego de “agentes de influência”.<br />

Os dois tipos de fronteiras apresentam características bastante<br />

diferentes. Vejamos as principais:<br />

– As fronteiras jurídicas são regidas por normas do Direito<br />

Internacional Público e por Atos Internacionais, inclusive acordos e<br />

tratados bilaterais. Elas são visíveis, ainda que, em determinados casos,<br />

essa “visibilidade” exista em função de alguma convenção (por<br />

exemplo, uma linha geodésica). As ações de violação de uma fronteira<br />

jurídica são detectáveis, às vezes até mesmo antes de se efetivar a<br />

violação. Quando não chegam a ser previamente detectadas, as violações<br />

e seus resultados são fisicamente perceptíveis;<br />

2 Ação Bélica Informatizada (ABI) – um dos novos recursos que compõem<br />

o arsenal de forças armadas pós-modernas.<br />

Ação Bélica Estratégica Informatizada (ABEI) – nova modalidade de<br />

agressão, que visa a causar grandes danos ao adversário empregando<br />

exclusivamente meios informatizados para atacar sistemas informatizados<br />

do mesmo.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

9


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

– As fronteiras metafísicas, porém, revestem-se de algumas<br />

peculiaridades. Em primeiro lugar, elas não só são invisíveis,<br />

como geralmente são de detecção difícil ou mesmo impossível.<br />

Em segundo, a elas não se aplicam as normas consagradas pelo<br />

Direito Internacional, que regem as fronteiras na concepção jurídica.<br />

Por último, as ações do “agressor” são empreendidas em<br />

sigilo, e o “agredido” geralmente só percebe os resultados da<br />

violação quando estes já estão consumados.<br />

A fim de esclarecer ainda mais a distinção entre as fronteiras<br />

jurídicas e as metafísicas, sintetizo, no quadro abaixo, as características<br />

descritas acima:<br />

Fronteiras jurídicas: Fronteiras metafísicas:<br />

Regidas por normas do Direito Não sujeitas a normas<br />

Internacional Público, Atos internacionais específicas.<br />

Internacionais, acordos e<br />

tratados bilaterais.<br />

Visíveis (ainda que por Invisíveis, de detecção difícil<br />

convenção). ou até impossível.<br />

Ações detectáveis, às vezes O “agressor” age de forma<br />

antes mesmo de efetivar-se sigilosa ou sub-reptícia.<br />

a violação.<br />

Violações fisicamente O “agredido” não percebe a<br />

perceptíveis. violação ou só a discerne após<br />

o fato consumado.<br />

Para entendimento prático dos diversos tipos de fronteira, consideremos<br />

a situação do Brasil na conjuntura internacional, tomando<br />

os últimos quinze anos como moldura cronológica. A natureza dos<br />

problemas que se configuraram ou podem vir a surgir nas nossas<br />

fronteiras decorre das formas existentes ou previsíveis das ameaças<br />

à soberania ou aos interesses nacionais do Brasil. De modo a facilitar<br />

10 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

o estudo, adotei a relação abaixo para definir a natureza dos principais<br />

problemas na fronteira do Brasil:<br />

1. Reivindicação “jurídica”<br />

Como o Brasil adota, de maneira inflexível, o princípio de pacta<br />

sunt servanda (os tratados têm de ser respeitados) e, como todas<br />

as nossas fronteiras estão (desde 1910) fixadas juridicamente, por<br />

tratados, qualquer reivindicação desse tipo, por qualquer vizinho, é<br />

inadmitida e inadmissível;<br />

2. Implicações de reivindicação entre terceiros<br />

Alguns dos nossos vizinhos ainda têm controvérsias sobre fronteiras<br />

em aberto, como ocorre, por exemplo, com a pretensão da<br />

Bolívia de recuperar (do Chile) sua saída para o mar. O Brasil precisa<br />

sempre se manter atento para evitar ser envolvido, ainda que<br />

indiretamente, em controvérsia desse tipo;<br />

3. Pressões para adoção de legislação interna ou assinatura<br />

de acordos lesivos ao interesse nacional<br />

Estamos aqui diante de um dos tipos de fronteira metafísica, a<br />

institucional. Como exemplificarei adiante, nesse tipo de fronteira o<br />

Brasil sofreu, diversas perdas, nos últimos quinze anos. Existem ainda<br />

vários riscos de novas violações, como ocorre com as pressões<br />

dos EUA, diretamente e através da AIEA, para sustar a produção de<br />

urânio enriquecido pela empresa Indústrias Nucleares Brasileiras<br />

(INB), na sua Usina de Enriquecimento em Resende (RJ), utilizando<br />

tecnologia desenvolvida pela Marinha do Brasil. Cabe sublinhar que<br />

essa atividade está sendo conduzida em estrito cumprimento das obrigações<br />

internacionais do Brasil, inclusive com supervisão da AIEA;<br />

4. Ameaça militar<br />

Pode-se considerar essa ameaça como inexistente, porém é preciso<br />

relativizar tal inexistência. De fato, não parece haver qualquer ameaça<br />

militar iminente, no momento atual. Entretanto, não se podem ignorar certas<br />

ameaças militares em potencial, sobretudo caso se considere,<br />

conjugadamente, a instabilidade em alguns dos países vizinhos e a vigência<br />

da Diretriz de Ação Preventiva, anunciada oficialmente pelo Governo norte-americano<br />

em <strong>20</strong>02. É importante sublinhar que o unilateralismo que<br />

vem sendo evidenciado por Washington, conjugado com a implementação,<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

11


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

pelas forças armadas norte-americanas, das concepções da Revolução<br />

em Assuntos Militares (RAM), acentua intensamente a<br />

diretriz política de intervir onde quer que possa ser identificada ou<br />

presumida uma ameaça a interesses dos EUA;<br />

5. Ameaça armada<br />

Em alguns dos países vizinhos, movimentos subversivos podem,<br />

por diferentes motivos, “transbordar” para o território brasileiro.<br />

O caso mais notório é a atuação das FARC na Colômbia,<br />

as quais já foram protagonistas, direta ou indiretamente, de violações<br />

da soberania brasileira. Outro tipo de ameaça armada decorre<br />

das atividades do tráfico internacional de drogas, cabendo<br />

aqui destacar as medidas para controle e repressão no âmbito do<br />

SIVAM. Finalmente, embora o Brasil não esteja incluído entre os<br />

alvos prioritários do terrorismo internacional, não se pode ignorar<br />

a ameaça que ele representa para os interesses nacionais;<br />

6. Atividades ilícitas<br />

Elas abrangem o contrabando, a “pirataria” e a imigração<br />

ilegal. Embora sua repressão seja atribuição precípua dos órgãos<br />

policiais, a dimensão que muitas delas tenha assumido pode requerer<br />

a participação, ainda que subsidiária, das Forças Armadas<br />

brasileiras. Impõe-se aqui o cuidado para evitar que esse<br />

envolvimento possa se ampliar e, assim, acarretar certo desvirtuamento<br />

das responsabilidades constitucionais das mesmas.<br />

7. Porosidade decorrente de intensa atividade econômica<br />

De forma geral, pela dinâmica própria da economia e da<br />

demografia brasileiras, essa porosidade nos é favorável. É preciso,<br />

porém, acompanhamento diuturno dessa “expansão” natural<br />

e não planejada, a fim de equacionar eventuais desdobramentos<br />

perigosos. Exemplo desse risco é o crescimento continuado do<br />

contingente de emigrantes brasileiros no Paraguai, onde são conhecidos<br />

como “brasiguaios”.<br />

8. “Vazios”<br />

Ainda existem algumas áreas de fronteira em que a ocupação<br />

se mostra muito rarefeita. Assim ocorre, por exemplo, na enorme<br />

faixa do território brasileiro junto do sul da Guiana e do Suriname.<br />

Esses “vazios” precisam ser, pelo menos, monitorados de modo a<br />

12 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

impedir a sua utilização criminosa por narcotraficantes. Por outro<br />

lado, a incúria das autoridades brasileiras ao estabelecer imensas áreas<br />

de proteção ambiental e de reservas indígenas em faixas de fronteira<br />

cria verdadeiros “vazios” do poder do Estado, gerando perigosas<br />

vulnerabilidades para a segurança e a soberania do Brasil.<br />

Uma problemática que requer estudo amplo e equacionamento<br />

multifacético é o “enclave” representado pela Guiana Francesa, último<br />

remanescente do colonialismo europeu na América do Sul e que,<br />

curiosamente, faz com que a mais extensa fronteira terrestre da França<br />

seja com o Brasil.<br />

Historicamente, o Brasil esteve envolvido com a Guiana Francesa<br />

de maneira episódica. Em 1727, cumprindo dupla missão em Caiena,<br />

uma diplomática e outra secreta, Francisco de Melo Palheta conseguiu<br />

trazer para Belém as primeiras mudas de café. Em 1808, já com a<br />

Corte instalada no Rio de Janeiro, D. João VI ordenou a ocupação da<br />

Guiana Francesa, de onde suas tropas só saíram em 1817, quando a<br />

colônia foi devolvida à monarquia francesa restaurada. Em 1900, graças<br />

à brilhante defesa conduzida pelo Barão do Rio Branco, o Presidente<br />

da Suíça, árbitro da chamada Questão do Amapá, reconheceu<br />

nossos direitos sobre a região compreendida entre os rios Oiapoque e<br />

Araguari, que era reivindicada pela França. Em 1942-1943, Washington<br />

tentou, sem êxito, persuadir o Governo brasileiro a invadir e ocupar a<br />

Guiana Francesa em vez de enviar tropas para lutar na Itália. Finalmente,<br />

em 1961, pouco depois de ter assumido a Presidência da República,<br />

Jânio Quadros teria ordenado aos Ministros militares o planejamento<br />

da invasão da Guiana Francesa. O assunto teria sido discretamente<br />

“esquecido” e superado com a surpreendente renúncia do Presidente,<br />

em 25 de agosto do mesmo ano.<br />

Na atual conjuntura, porém, a Guiana Francesa pode vir a ser<br />

utilizada como instrumento por aqueles que pretendem a<br />

“internacionalização” da Amazônia brasileira.<br />

São notórios os pronunciamentos de autoridades e pseudocientistas<br />

de outros países, bem como de conhecidas ONGs, no sentido de se<br />

proclamar a Amazônia como “patrimônio da Humanidade”. Em 25<br />

de fevereiro de <strong>20</strong>05, numa conferência para diplomatas e especialistas<br />

na sede da ONU, o político socialista francês Pascal Lamy defendeu<br />

a tese de que as florestas tropicais devem ser tratadas como “bens<br />

públicos mundiais”, que ficariam sujeitos a certas regras coletivas<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

13


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

de gestão internacional, deixando de lado a questão da propriedade.<br />

Aliás, Lamy foi eleito Diretor-Geral da Organização Mundial<br />

do Comércio (OMC), em maio de <strong>20</strong>05, de onde poderá continuar<br />

atuando para promover tal proposta, claramente nociva aos interesses<br />

brasileiros.<br />

Ora, um governo francês, de comum acordo com os EUA e os<br />

membros da União Européia, poderia tomar a iniciativa de, excetuando<br />

a pequena área em torno de Caiena e da base espacial de Kourou,<br />

proclamar o território da Guiana Francesa como “bem público mundial”,<br />

a servir de “modelo” para o resto da floresta amazônica.<br />

É importante destacar que, às vezes, a feição jurídica pode<br />

encobrir a real natureza metafísica da fronteira. Essa identificação<br />

é necessária para que se possam equacionar corretamente as<br />

verdadeiras vulnerabilidades e/ou violações e se adotem as medidas<br />

pertinentes.<br />

Vejamos alguns exemplos:<br />

1. Na nossa fronteira com a Colômbia houve dois casos de violações<br />

da fronteira (jurídica) terrestre e aérea. Na região do Traíra, elementos<br />

das FARC atacaram, em território brasileiro, efetivos do Exército<br />

Brasileiro, com perdas de numerosas vidas. Anos depois, as Forças<br />

Armadas colombianas utilizaram, sem autorização do Governo brasileiro,<br />

a pista de pouso em Iauaretê (a fim de lançar operação militar<br />

urgente para retomar a capital provincial de Mitu, ocupada pelas FARC).<br />

Nesses dois casos ocorreram, sem dúvida, violações da nossa soberania<br />

em termos jurídicos. Entretanto, muito mais grave foi a violação da<br />

fronteira (metafísica) institucional, pela tibieza com que se portaram<br />

autoridades brasileiras no mais alto nível do Governo Federal;<br />

2. Por ordem direta do Presidente Fernando Henrique Cardoso,<br />

o Governo brasileiro aderiu (em 1997/1998) ao Tratado de Não Proliferação<br />

Nuclear (TNP), contrariando décadas de resistência amplamente<br />

fundamentada às pressões dos Estados Unidos. O TNP<br />

contém dispositivos que o tornam uma verdadeira imposição da desigualdade<br />

jurídica dos Estados e que violam de modo irretorquível a<br />

soberania nacional. Portanto, essa adesão significou gravíssima perda<br />

na fronteira (metafísica) institucional. Analogamente, a assinatura<br />

(pelo então Ministro de Ciência e Tecnologia, Embaixador Ronaldo<br />

14 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcos Henrique Camillo Côrtes<br />

Sardenberg, hoje chefe da Missão na ONU) de um Acordo para o<br />

uso, pelos norte-americanos, do Centro de Lançamento de Alcântara<br />

foi outra perda na fronteira (metafísica) institucional. Felizmente, graças<br />

a oportunas gestões de brasileiros patriotas, sua homologação foi sustada<br />

no Congresso Nacional, já que esse acordo continha cláusulas<br />

inaceitáveis, por violarem a soberania e a dignidade nacionais;<br />

3. Em <strong>20</strong>03, uma aeronave militar francesa, transportando militares<br />

e agentes de inteligência e segurança, pousou no Aeroporto de<br />

Manaus sem a devida autorização prévia. A operação visava conseguir<br />

a libertação de uma senadora colombiana (que também tem nacionalidade<br />

francesa) seqüestrada pelas FARC. O incidente jamais<br />

foi devidamente esclarecido, mas constituiu, inegavelmente, violação<br />

da fronteira (jurídica) aérea e terrestre. Entretanto, muito pior foi a<br />

violação da fronteira (metafísica) institucional, configurada pela maneira<br />

hesitante e incompetente com que o Governo federal se portou<br />

no episódio;<br />

4. Atualmente, está por se concretizar a intolerável demarcação,<br />

em área contínua, da chamada Reserva de Raposa/Serra do Sol, pela<br />

qual se destina território equivalente ao Estado de Sergipe a cerca de 14<br />

mil índios. Como essa “reserva” corresponde a um enorme trecho ao<br />

longo das nossas fronteiras com a Guiana e a Venezuela, é fácil entender<br />

o imenso risco que isso significa para a segurança nacional, em mais uma<br />

perda na fronteira (metafísica) institucional.<br />

Esses e muitos outros fatos levam à conclusão de que, nos últimos<br />

quinze anos, a maior vulnerabilidade do Brasil tem estado e continua<br />

estando na fronteira institucional (metafísica). Isso não quer<br />

dizer que possamos continuar descurando da capacitação de nosso<br />

Serviço Diplomático e de nossas Forças Armadas para a defesa permanente<br />

e eficaz de nossas fronteiras jurídicas. Contudo, mais do<br />

que nunca, impõe-se difundir o conhecimento e o estudo das ameaças<br />

que incidem sobre nossas fronteiras metafísicas, em especial a<br />

fronteira institucional, cuja localização, obviamente, está em Brasília.<br />

Só assim poderemos, nós brasileiros, impedir novas perdas e recuperar<br />

o que já se perdeu nesse passado recente.<br />

O autor é Embaixador de Carreira, aposentado a pedido,<br />

em 21 de janeiro de <strong>20</strong>05<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 7-15, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

15


Carlos de Meira Mattos<br />

Novas Teorias do Poder Mundial<br />

Carlos de Meira Mattos<br />

Durante os últimos cem anos, três teorias geopolíticas dominaram<br />

a mente dos estudiosos de política internacional das grandes<br />

potências:<br />

– A teoria do “heart land” (1904), também chamada de teoria<br />

do poder terrestre, de autoria do geógrafo e diplomata inglês Halford<br />

Mackinder, segundo a qual a potência que dominar a “area pivot”,<br />

centro da massa continental euro-asiática, dominará a Ilha Mundial e,<br />

quem dominar a Ilha Mundial, dominará o mundo;<br />

– A teoria do Professor norte-americano Nicholas Spykman (1942),<br />

que prevê a conquista da Ilha Mundial pelas fímbrias, partindo da conquista<br />

das áreas costeiras (contrariando Mackinder, que antevia essa<br />

conquista partindo do interior do continente euro-asiático);<br />

– A mais antiga, a teoria do “Poder Marítimo” (1890), do Almirante<br />

Alfred T. Mahan, escritor e geopolítico norte-americano,<br />

prevendo a conquista do mundo pela potência que dominar os mares,<br />

os estreitos e as passagens obrigatórias da navegação marítima,<br />

assegurando-lhe a capacidade de livre navegação por todas as<br />

partes do planeta.<br />

Essas três teorias influíram na mente e nas decisões de importantes<br />

chefes de governo do passado, tais como Theodore Roosevelt,<br />

Guilherme II, Hitler, Mussolini, Churchill, Stalin, Franklin Roosevelt,<br />

De Gaulle e, por último, Reagan. A estratégia da política de poder da<br />

Alemanha no tempo do “kaiser” Guilherme II e de Hitler, assim como<br />

a da antiga União Soviética, refletiram as teorias de Mackinder, enquanto<br />

a estratégia de poder norte-americana tem sido inspirada pelas<br />

teorias do Almirante Mahan e do Professor Spykman.<br />

Novas teorias do poder mundial vêm ocupando o cenário internacional<br />

após a desagregação da União Soviética, que causou o fim<br />

da bipolaridade do poder mundial, e em face das pressões de uma<br />

sociedade globalizada. Entre várias das novas teorias, destacamos<br />

quatro que nos pareceram mais interessantes:<br />

16 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 16-18, jan./abr. <strong>20</strong>06


Carlos de Meira Mattos<br />

– A dos “Blocos e Zonas Monetárias”, do Professor francês<br />

Jacques Brochard, contida no seu livro “Le Mirage du Futur – La<br />

Nouvelle Ordre Internationel” (1990);<br />

– A do “Lime” ou da fronteira viva móvel, do Internacionalista<br />

francês Jean Christophe Rufin, autor da obra “Armadilha Humanitária”<br />

(1991);<br />

– A “Tríade” do Clube de Roma, uma visão do mundo como<br />

uma sociedade organizada nos moldes de uma enorme empresa<br />

multinacional;<br />

– A da “Incerteza” (ou da Turbulência), do Estrategista francês<br />

Pierre Lellouche, exposta, principalmente, no seu livro “Le<br />

Nouveau Monde de 1er Ordre de Yalta au Desordre des Nations”.<br />

Numa síntese comparativa sobre a visão de poder mundial oferecida<br />

pelas novas teorias, podemos concluir que os autores Brochard<br />

e Rufin, nas suas prospectivas, não acreditam na duração do poder<br />

hegemônico dos Estados Unidos. Vêem o domínio do planeta exercido<br />

por grupos dos mais poderosos – Estados Unidos, Europa Ocidental,<br />

Rússia e Japão (quando escreveram, a China ainda era considerada<br />

potência secundária).<br />

Rufin vê a necessidade, para a preservação do poder do Ocidente,<br />

de uma fronteira viva móvel, no sentido leste-oeste, contendo<br />

o enorme perigo da invasão da Europa pelos “novos bárbaros”, povos<br />

africanos e asiáticos, de conseqüências imprevisíveis para a civilização<br />

e cultura ocidental-cristã. Teme o que chama de invasão da<br />

fome e a invasão do fanatismo religioso.<br />

A Tríade do Clube de Roma (três blocos de nações liderados<br />

pelos Estados Unidos, Europa e Japão) prospecta a organização de<br />

uma sociedade mundial planejada, visando evitar as anunciadas calamidades<br />

de nível planetário: descontrole ambiental, explosão<br />

populacional, crise energética, carência de água e perigo nuclear. Prevê<br />

um mundo organizado segundo o modelo das grandes empresas<br />

multinacionais e dirigido pelos três grupos de nações sob a supervisão<br />

dos Estados Unidos.<br />

Por último, a teoria das Incertezas do Professor Lellouche previu<br />

que nos próximos 30 anos (escreveu em 1992) não haverá um poder<br />

capaz de dominar a turbulência provocada por inúmeros conflitos de<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 16-18, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

17


Carlos de Meira Mattos<br />

índole social, étnica racial, fanatismo religioso, fome e ameaças de<br />

uso de armas de destruição em massa. Anteviu três décadas de<br />

desordens e incontrolável onda de violências, fora do controle de<br />

qualquer poder ordenador.<br />

Praticamente, no presente, a sociedade mundial está vivendo<br />

um período de ausência temporária de um eficiente órgão ordenador,<br />

seja a ONU, a União Européia, o Pacto do Atlântico ou alguma<br />

superpotência. Estamos vivendo as previsões de Lellouche sobre a<br />

ausência temporária de um poder ordenador capaz de restabelecer<br />

a paz e a segurança, sufocando os vários pólos de conflitos graves,<br />

sangrentos, transnacionais, que se espalham pela Europa, Ásia e<br />

África. A chamada hegemonia norte-americana tem-se mostrado<br />

insuficiente nesse mister de preservar a ordem mundial. A ONU,<br />

outros organismos internacionais, ou Estados nacionais igualmente<br />

têm fracassado nesse desiderato.<br />

Todos os autores citados, em suas teorias, consideraram a América<br />

Latina uma zona de relativa estabilidade e descartável em termos<br />

de influir na composição do poder mundial. Em se tratando do<br />

Brasil, não é isto que pensam outros pesquisadores estrangeiros<br />

que nos colocam na prospectiva de vir a se transformar numa grande<br />

potência dentro de 30 ou 50 anos.<br />

O autor é General-de-Divisão Reformado, Doutor em Ciência Política<br />

e Conselheiro da Escola Superior de Guerra (ESG).<br />

18 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 16-18, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

A Religião na Modernidade: Algumas<br />

Funções Históricas e Sócio-<br />

Políticas<br />

Dom Edson de Castro Homem<br />

A exposição de algumas funções históricas e sócio-políticas da<br />

Religião na modernidade é o objetivo de nossa abordagem. Na realidade,<br />

faremos algumas indicações, sem pretender esgotar a vastidão<br />

do tema. Por isso, inicialmente, faremos uma abordagem geral, para<br />

depois, apresentarmos a Religião como promotora de Cultura, a desvelar<br />

conflitos, sua função na ordem democrática, na estética, na<br />

realidade sócio-econômica, no exercício do diálogo com as diferenças,<br />

para concluirmos com o ministério de João Paulo II, que abriu<br />

novas perspectivas para o relacionamento da Religião com o mundo.<br />

Sempre que possível também indicaremos as reações de adesão e de<br />

rejeição das influências modernas, especialmente no Catolicismo.<br />

I. Abordagem Geral<br />

A modernidade supõe seus antecedentes: o Renascimento, o<br />

Humanismo e a Reforma Protestante. Ela instaurou uma nova ordem<br />

política, social, econômica e religiosa no Ocidente. Com ela se rompe<br />

o projeto da cristandade. Os Estados modernos são estabelecidos.<br />

São várias as leituras a respeito da função da Religião, elaboradas<br />

pelos autores modernos, sobretudo entre os iluministas. No entanto,<br />

um elemento comum se destaca: com a separação entre a razão<br />

e a fé, instaura-se também a separação entre a Igreja e o Estado.<br />

Esta é a grande herança que separa a Religião da Política. Se houver<br />

conflitos, e eles sempre retornam, é quanto à interpretação dessa<br />

separação e distinção, na atuação prática de ambas as instâncias,<br />

dado que há sempre pontos de contato.<br />

No entanto, há autores que remontam a Jesus e não aos pensadores<br />

modernos a idéia de emancipação da Religião em face do Estado.<br />

Isto devido a sua atitude de fugir quando alguns queriam nomeálo<br />

rei, a convicção de que seu reino não é deste mundo e, especialmente<br />

a assertiva: Dai a César o que é de César e a Deus o que é<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

19


Dom Edson de Castro Homem<br />

de Deus. Por tal afirmativa, parte do homem ficou emancipada do<br />

Estado, fonte de onde emanou sua autonomia (Cf. LLANO<br />

CIFUENTES, Rafael. In: Relações entre a Igreja e o Estado, José<br />

Olympio, 1971, p. 64). Nesta interpretação, a Religião cristã teria<br />

influenciado, ainda que em prazo longo, para o que se tornou possível<br />

somente durante a modernidade.<br />

Do ponto de vista histórico, na Idade Média não havia separação<br />

como entendemos hoje. Havia a distinção de poderes entre o<br />

báculo e o cetro, portanto a diferença de competências de ambas as<br />

instituições. Contudo, elas se tutelavam mutuamente e sofriam ingerências<br />

recíprocas. Cabia à igreja sagrar o rei, isto é, confirmá-lo.<br />

Destacamos os desmandos do cesaropapismo, pelo qual na pessoa<br />

do imperador se concentrava tanto o poder do Estado quanto da Igreja.<br />

Sublinhamos que, no regalismo, a Igreja era só protegida pelo rei,<br />

mediante o regime do Padroado, guardando sua autonomia nas questões<br />

de ordem espiritual. Sinalizamos, a bem da verdade, que o Papa<br />

Bonifácio VIII, na Bula Unam Sanctam, chegou a exigir que todos<br />

os reis e príncipes cristãos lhe prestassem obediência. Já era o presságio<br />

que o poder dos príncipes lhe fugiria das mãos. Com efeito, a<br />

modernidade acabaria com o privilégio do Padroado e, também, com<br />

a pretensão da Igreja acima do Estado. Na prática, avaliamos que o<br />

Padroado atrapalhou mais do que facilitou ou protegeu a ação apostólica<br />

da Igreja. Ao contrário, a modernidade e a República deram<br />

muito mais autonomia à Igreja. No Brasil, isto é notório.<br />

Surge a nova noção de ciência, dependente do método empírico,<br />

a favor do progresso do conhecimento natural e do desenvolvimento<br />

tecnológico. Emerge a individualidade ou a subjetividade pensante<br />

contra os argumentos da tradição e da autoridade, seja a lógica<br />

aristotélica, com a argumentação escolástica, seja a mediação das<br />

instituições eclesiásticas. Esta posição contrária entra em conflito com<br />

a Religião medieval, mas em contrapartida também é influenciada<br />

por posicionamentos religiosos que respeitavam ambas as esferas,<br />

distinguindo a fé e a razão, ou a aceitação de Deus mediante a revelação<br />

e a especulação filosófica. No método científico, a exclusão<br />

inicial da Teologia e da Filosofia que, depois se consolidou como válida<br />

e necessária, não significava afirmar nem o agnosticismo nem o<br />

ateísmo como postulado. Apenas o novo método de se fazer ciência.<br />

<strong>20</strong> Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

Segundo a Filosofia da História de Hegel, a modernidade começa<br />

com Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650), que exaltam a<br />

possibilidade do conhecimento humano mediante a razão. De acordo<br />

com vários historiadores da Filosofia, ela tem seu apogeu no<br />

Iluminismo. Os iluministas eram deístas, portanto contra o ateísmo.<br />

Entretanto, também eram contra a Religião positiva, sobretudo o Cristianismo.<br />

A Religião não tinha nenhuma boa e útil função, exceto<br />

infelizmente reprimir e inibir as paixões. Por exemplo, Diderot (1713-<br />

1784) declara contra a Religião que sem as paixões os homens excepcionais<br />

se degradam, e que viveríamos bastante tranqüilos se estivéssemos<br />

seguros de que não há nada a temer no outro mundo.<br />

De acordo com a avaliação de Kant (1724-1804), o Iluminismo<br />

é a saída ou a libertação do homem do estado de minoridade, que ele<br />

deve imputar a si mesmo se não fizer uso de seu próprio intelecto e<br />

sem ser guiado por outro. No entanto, a racionalidade, como critério<br />

único de verdade, é questionada se não passar pelo crivo da crítica.<br />

O próprio Kant pergunta: o que posso conhecer? O que devo fazer?<br />

O que me é permitido esperar? As perguntas, já sendo um ato da<br />

razão, incluem seus limites ou suas condições de possibilidade, que<br />

devem ser analisadas de modo crítico. Mesmo a Religião é considerada<br />

nos limites da razão.<br />

A modernidade vai perdendo seu vigor, após Kant, com ele ou<br />

contra ele, com as várias e conflitantes tentativas de se pensar a<br />

modo racional a realidade pessoal e social. Pensamentos fortes em<br />

termos de sistema ou paradigma com pretensão universal são o<br />

Hegelianismo (Hegel 1770-1831), o Positivismo de Comte (1798-1857)<br />

e o Marxismo (Marx 1818-1881). Também a Fenomenologia de<br />

Edmund Husserl (1859-1938) merece a afirmação de pensamento<br />

forte e abrangente, mas não tem a incidência política dos pensamentos<br />

anteriormente citados. Entretanto determinou muitas interpretações<br />

da realidade social, inclusive a Religião como fenômeno.<br />

Na segunda metade do século XX, muitos aspectos da<br />

modernidade persistirão, mas não terão de conviver com o advento<br />

da pós-modernidade no pluralismo, na fragmentação e na<br />

indeterminação ou debilidade do pensamento e da Religião como fenômeno<br />

midiático e na busca de novos embasamentos éticos diante<br />

do ceticismo, do relativismo e do contextualismo dos valores morais.<br />

É um pouco a situação que estamos vivendo. O sagrado retorna.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

21


Dom Edson de Castro Homem<br />

Está presente na sociedade e na Política, girando em torno do simulacro<br />

e do lúdico para a satisfação de interesses imediatos.<br />

II. A Religião como Elaboradora de Cultura<br />

Através da Religião, o homem está ligado ao ser absoluto e<br />

originante, a que chama de Deus. Assim se compreende quem pratica<br />

ou professa qualquer Religião. Independentemente das várias<br />

concepções da divindade ou da Religião e das diversas expressões<br />

de religiosidade, a priori é necessário que cada um de nós, crente<br />

ou descrente, compreenda o fenômeno com sua especificidade, para<br />

distingui-lo dos demais em que ele se encontra. Isto porque, como<br />

diz Mircea Eliade, não existem fenômenos religiosos puros, pois dependem<br />

da sociedade, da Cultura e da linguagem. Mesmo o Cristianismo,<br />

que se considera Religião revelada, não produzida diretamente<br />

pela Cultura, não pode prescindir das mediações culturais,<br />

sem as quais não seria um fenômeno histórico, datado e comunicável.<br />

Portanto, inteligível.<br />

O fenômeno humano e social da Religião, sendo um fato simbolicamente<br />

plural, relaciona-se com o conjunto da vida de um povo<br />

e das pessoas, em particular. Neste sentido, a Religião não só é<br />

pluridimensional, permitindo várias formas de leitura ou de interpretação,<br />

mas supõe a Cultura para veicular sua concepção de Deus,<br />

do homem e do mundo. Aliás, constitui-se em fato duplamente cultural.<br />

Dialeticamente, é influenciada e influencia.<br />

Primeiramente, é influenciada e até condicionada pelo lugar<br />

cultural e geográfico de sua origem, pelo momento histórico em que<br />

nasceu e pelos períodos históricos que percorreu. Trata-se da influência<br />

da tradição, entendida como memória viva e rica de significados,<br />

divulgada só oralmente e ritualmente. De fato, as religiões estão<br />

intimamente ligadas à História de seus respectivos povos, de<br />

sorte que é muito difícil a Cultura ser separada da Religião em termos<br />

de influxo recíproco. No entanto, assim como os povos aceitam<br />

outras influências culturais, também são condicionados ou determinados<br />

por elementos assimilados destas outras expressões religiosas<br />

que chegam. Por isso, é comum observar alguns modos de<br />

sincretismo e até de justaposições de influências.<br />

O antigo Israel foi influenciado e acolheu aspectos das religiões<br />

dos povos vizinhos, mas o forte monoteísmo javista conseguiu<br />

22 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

purificá-los de costumes pagãos e impedir a contaminação dos ídolos.<br />

O Cristianismo, embora não possa ser entendido sem sua dependência<br />

originária do Judaísmo, que define a base de seu conteúdo,<br />

distingue-se da vinculação devido ao apelo universalista que o obrigou,<br />

desde o início, a admitir o processo necessário de inculturação.<br />

Por fidelidade a si mesmo e por razões de sobrevivência, a dispensa<br />

da circuncisão facilitou ambos os processos. Por estas razões intrínsecas,<br />

e devido às primeiras perseguições em território judaico, adentrou<br />

e se difundiu no mundo helênico. Logo após, entrou também em Roma.<br />

Nestas incursões, tanto influenciou quanto recebeu forte contribuição<br />

das Culturas grega e latina, apesar da perseguição do Império<br />

Romano. Tornou-se uma Igreja de gentios e não mais de judeus convertidos,<br />

a não ser excepcionalmente.<br />

A História dolorosa dos cismas coincide com o posicionamento<br />

posterior de manutenção e de afirmação, ainda que sempre em processo<br />

de atualização, de certas heranças culturais significativas que<br />

a Religião cristã transformou. A Igreja Ortodoxa Oriental mantém<br />

laços estreitos com a herança bizantina na Arte, na Liturgia e na<br />

Teologia. Recebeu, conservou, mas transformou. A Igreja Católica<br />

Romana conserva as tradições latinas na Língua, no Direito e na<br />

organização eclesiástica, sem rejeitar o patrimônio grego do pensamento.<br />

Também recebeu, conservou e transformou. A herança cultural<br />

dos mosteiros medievais, sobretudo da Ordem Beneditina, é reconhecida<br />

pela divulgação do saber, seja pela conservação, pela cópia<br />

e pela tradução de livros clássicos gregos e latinos, seja pela documentação<br />

histórica. O mesmo se diga das bibliotecas e arquivos<br />

das Dioceses e do Vaticano. São fontes irrecusáveis de pesquisa. O<br />

Anglicanismo, ao romper com o Papa, também conservou e transformou<br />

muitos elementos do Catolicismo e assimilou aspectos consideráveis<br />

da Reforma Protestante. As Igrejas oriundas da Reforma rejeitaram<br />

a centralidade romana, representada pela tradição católica e<br />

pelo magistério do Papa, em função da identidade anglo-saxônica. A<br />

tríplice afirmação só a fé, só a Bíblia e só a graça, de Lutero,<br />

serviu para consolidar a nova proposta de ruptura contra as instituições<br />

tradicionais do poder sacralizado da realeza e da Igreja. Na<br />

pretensão de romper em nome de um evangelho puro, parece que<br />

rejeitou mais do que recebeu. No entanto, de onde veio a maior parte<br />

das Escrituras, o Credo Apostólico e o Niceno-constantinopolitano, o<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

23


Dom Edson de Castro Homem<br />

agostinismo, presentes na Reforma, se não da tradição viva da Igreja<br />

anterior? Muito do patrimônio recebido, inclusive o nominalismo da<br />

Filosofia medieval, foi transformado pala própria herança anglosaxônica,<br />

também recebida e atualizada. Também o Islamismo muito<br />

recebeu do Judaísmo, do Cristianismo e das tribos árabes. Recebeu,<br />

adaptou ou transformou.<br />

Tais reflexões visam considerar a Religião não só como criadora<br />

de Cultura, mas também transformadora de certos elementos culturais<br />

encontrados, para recriá-los, desconstruí-los ou mesmo inibilos.<br />

Isto pode se dar de forma pacífica. Trata-se do sincretismo ou da<br />

justaposição. O primeiro supõe o lento discernimento da purificação<br />

histórica no processo de inculturação e, ao contrário do que normalmente<br />

se diz, pode respeitar e integrar se não todos, muitos valores<br />

encontrados. A segunda, que é a justaposição, dispensa o<br />

discernimento, ao agrupar tradições díspares independentemente da<br />

coerência interna, especialmente a doutrinal.<br />

A íntima relação entre Religião e Cultura só seria compreendida<br />

e melhor valorizada, devido à descoberta moderna da historicidade,<br />

tema ligado à concepção da Filosofia da História, a partir de Hegel.<br />

Com o método histórico-crítico aplicado à exegese e à hermenêutica<br />

dos textos bíblicos e dos dogmas, percebeu-se melhor o problema da<br />

historicidade, cuja solução supera o dogmatismo católico e o<br />

fundamentalismo protestante. Contra ambos, possibilita a releitura ou<br />

a re-interpretação, em função da mensagem contra o invólucro cultural<br />

já superado. Trata-se de nova aplicação do sentido da exortação<br />

de Paulo: “a letra mata, o Espírito é que vivifica”. Não sem conflito<br />

com o Magistério católico que condenou o Modernismo, tais tentativas<br />

foram feitas e muitas são legítimas para a compreensão da fé<br />

que a Religião veicula. Aqui se trata de distinguir o que é vinculativo<br />

do que é elemento cultural ou da mentalidade de época.<br />

III. A Religião a Desvelar Conflito<br />

O encontro de culturas pode ser um confronto de religiões, de<br />

forma violenta e sangrenta. Trata-se da rejeição que condena, persegue<br />

e elimina o diferente ou oponente. Todas as perseguições contra<br />

as crenças alheias, as cruzadas, as inquisições e as guerras religiosas,<br />

incluindo a guerra santa dos muçulmanos, são formas de conflito<br />

em que a Religião foi utilizada como instrumento ideológico repressor<br />

24 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

dos inimigos por um lado e justificador, por outro, de interesses políticos<br />

e econômicos a serem conquistados.<br />

A forma do sucesso está no convencimento do discurso<br />

demonológico contra o outro, apontado a serviço do diabo simbólico.<br />

Muitas vezes, o confronto se dá no interior da própria Cultura<br />

religiosa quando grupos sectários, cismáticos ou heréticos<br />

desestabilizam o tecido social. Muitas vezes, as novas religiões surgem<br />

destes movimentos separatistas. Neste caso, as religiões tendem<br />

a se exorcizarem reciprocamente e a “caçar bruxas”. Tratase<br />

da função social de canalizar simbolicamente o percentual de<br />

não adaptação que gera conflito até à violência, e que existe em<br />

qualquer sociedade. É uma função que hoje consideramos deplorável,<br />

e que as análises sócio-políticas da Religião na modernidade<br />

nos ajudaram a perceber e a discernir.<br />

Na perspectiva da psicologia das massas e dos exércitos, a<br />

Religião e a religiosidade podem adquirir a função de dar sentido de<br />

bondade e de justiça à luta ou ao conflito social até à guerra como<br />

confronto radical. A modernidade indicou essa função que, certamente,<br />

o teólogo chamaria de patologia. Inclusive os poderes político<br />

e militar, mesmo quando não se trata de estado de guerra com teor<br />

religioso, podem servir-se da religiosidade popular, através de símbolos<br />

ou de orações ou da invocação do nome de Deus como ideologia<br />

justificadora ou encorajadora do conflito. Ao final, Deus se põe do<br />

lado dos vitoriosos, nunca dos vencidos. A Idade Média, baseando-se<br />

nas Escrituras, resolvia o dilema através do conceito de flagelo de<br />

Deus. Os vencidos pelos inimigos de Deus receberiam a derrota como<br />

castigo por faltas cometidas para retomar o processo penitencial purificador:<br />

Pecamos, Senhor, misericórdia!<br />

A Bíblia faz uma teologia quase sempre narrativa da guerra e da<br />

paz. No Antigo Testamento isto é muito claro. Mais ainda no Alcorão.<br />

Até porque o homem religioso precisa de explicações para conviver com<br />

ambos os aspectos de sua existência. O próprio pacifismo do Cristo e<br />

dos primeiros cristãos foi veiculado com expressões de combate, ainda<br />

que espiritual. Paulo chama o cristão não só de atleta, mas de soldado ou<br />

combatente. Entretanto, o pacifismo inicial durou pouco. Constantino<br />

escolheu a cruz como símbolo do exército: Com este sinal vencerás.<br />

Hoje soa como ideologização o fato de ele ter instrumentalizado o mais<br />

sagrado símbolo cristão. No entanto, ele soube inculturar a recente<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

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Dom Edson de Castro Homem<br />

simbologia religiosa, dando-lhe nova leitura a partir do lugar de destaque<br />

no seu exército. A nova Religião passava a ter uma função<br />

legitimadora do Império.<br />

Com efeito, aos poucos a cruz estaria presente em todos os<br />

lugares públicos. Não só nos altares. Desta forma, começava uma<br />

nova ordem de relação simbólica e efetiva entre a Igreja, organizando-se<br />

no Império, e o Estado que se reorganizava também diante do<br />

novo poder religioso emergente. Inaugurava igualmente o Catolicismo<br />

guerreiro que de início será de defesa e depois, diante das conquistas<br />

muçulmanas, tornar-se-á um Catolicismo de reconquista.<br />

Santo Agostinho daria à cristandade emergente os elementos<br />

para pensar e construir a realidade sócio-política em tempo de paz e<br />

de guerra. De um lado definiria a paz como tranqüilidade da ordem,<br />

de outro insistiria na ordem a ser defendida. Daí, a noção de guerra<br />

justa ou de legítima defesa a exigir a manutenção e a modernização<br />

dos exércitos, mesmo em tempo de paz e em regime de cristandade.<br />

O Brasil Colônia conheceu a simbologia e a interpretação religiosa<br />

nas lutas entre portugueses e índios. Os santos protetores<br />

foram considerados, muitas vezes, santos guerreiros em favor da<br />

Coroa Portuguesa. A Religião possuía a função de também expandir<br />

o império português com seu projeto de colonização. Anglicanos<br />

e protestantes fizeram o mesmo nas colônias inglesas e holandesas<br />

contra a idolatria e a superstição, em nome da pureza evangélica,<br />

no intuito da conquista.<br />

Durante a modernidade houve guerras de Religião, no interior<br />

do Cristianismo dividido após a Reforma, com episódios deploráveis<br />

entre reformados, anglicanos e católicos, cujos motivos eram mais da<br />

ordem da Política e da Economia que propriamente da fé. No entanto,<br />

eminentes pensadores políticos do Liberalismo e do Iluminismo,<br />

apesar da contestação do poder temporal da Igreja, talvez até devido<br />

a tal indisposição, contribuíram para a tolerância religiosa e até a boa<br />

convivência, a prazo longo, e após muitos conflitos, como fruto da<br />

razão e da Democracia, segundo os ideais da Revolução Americana<br />

e da Revolução Francesa, esta nem um pouco tolerante, apesar do<br />

seu lema de igualdade, liberdade e fraternidade, que não deixa de ter<br />

inspiração cristã. A atitude de tolerância voltará com outro nome<br />

quando abordarmos a nova função dialógica da Religião. Trata-se de<br />

diálogo religioso e de ecumenismo.<br />

26 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

IV. A Religião para a Ordem Democrática<br />

Hobbes, Locke e Rousseau, embora divirjam quanto às características<br />

do Estado Moderno democrático, concordam na concepção<br />

de um contrato social como fundamento da sociedade organizada<br />

racionalmente. O poder não viria mais de Deus. Portanto,<br />

não passaria pela tutela da instância religiosa. Ele foi dessacralizado.<br />

Viria do povo, através das eleições. A posição de distância e de<br />

diferenciação religiosa permitiria tal assertiva. Na realidade, exigia<br />

uma nova presença da Religião na sociedade que fosse separada<br />

do Estado. Historicamente, foi bom para ambos, como sublinhamos<br />

acima. O Estado se libertou da tutela religiosa. A Igreja se emancipou<br />

da tutela estatal. A pacificação dos espíritos se deu no sentido<br />

de que novas relações foram estabelecidas, não sem conflitos, entre<br />

os defensores da autonomia de ambas as instituições. A propósito,<br />

a Igreja em cada Estado moderno tem sua história peculiar de<br />

harmonia e de confronto. O fruto da ordem democrática foi de cooperação<br />

e de respeito mútuo, guardando as respectivas instâncias<br />

de poder e as atribuições funcionais.<br />

A Religião católica contribuiu, ainda que indiretamente, como<br />

já vimos, para este novo estado de coisas nas disputas entre o cetro<br />

e o báculo, especialmente pela posição singular do poder papal. Entretanto,<br />

coube a Lutero, através da proposta separatista entre fé e<br />

razão e a ruptura com o papado, apressar a nova mentalidade emergente<br />

e em termos novos em que o poder do Papa é excluído. Sem<br />

ter previsto e mesmo desejado seu livre exame da Bíblia em<br />

contraposição ao magistério da Igreja Católica, favoreceu dois aspectos<br />

da autonomia que caracterizariam a modernidade: a liberdade<br />

do indivíduo e o Liberalismo econômico. Também ensejou a separação<br />

entre a Igreja e o Estado, bem como os ideais republicanos.<br />

De fato, o Luteranismo, quando põe a Bíblia na mão do povo,<br />

estimula de algum modo não só a alfabetização das pessoas, o que<br />

já seria um fato socialmente relevante, mas também propicia a progressiva<br />

participação popular que somente os republicanos inaugurariam<br />

pela implantação do regime democrático, a escola pública e<br />

o acesso de todos à educação.<br />

Outros afirmam que o Protestantismo incentivou a prevalência<br />

do Estado sobre a Religião cristã, a despeito de suas reconhecidas<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

27


Dom Edson de Castro Homem<br />

implicações democráticas. Calvino idealizou uma teocracia. O<br />

Anglicanismo inicialmente é a submissão da Igreja à vontade do rei.<br />

Perpetuou o rei como Chefe da Igreja, no lugar do Papa. Hegel, eminente<br />

filósofo de raiz protestante, declara ser o Estado moderno a<br />

realização do espírito absoluto, cuja releitura inspiraria ulteriormente<br />

os totalitarismos estatais de direita e de esquerda, no século XX.<br />

Já dentro da nova ordem democrática, a Religião teve uma<br />

função ambígua: ou mantenedora das concepções de mundo e de<br />

governo anteriores ao novo regime; ou incentivadora dos ideais<br />

republicanos e democráticos; ou crítica de seus aspectos ideológicos<br />

e utópicos.<br />

Quanto ao Catolicismo, de início não foi favorável à Democracia<br />

na Política por fidelidade à monarquia, mantendo-se internamente<br />

hierárquico e até monárquico na sua estrutura eclesial. O<br />

Papa até à segunda metade do século XX era coroado. Os Cardeais<br />

eram considerados príncipes. Só com o Concílio Vaticano II, o<br />

modelo monárquico foi substituído pela consideração do poder colegial<br />

dos bispos entre si, e em união e sob a autoridade do Papa. A<br />

colegialidade se torna o governo mais de acordo com o retorno às<br />

fontes da fé: a Escritura e a Tradição.<br />

A Igreja Católica aceitou sua autonomia e independência do<br />

Estado, na condição moderna, pois são de natureza diversa pela configuração<br />

e pela finalidade. Contudo, a separação não exclui a colaboração<br />

recíproca, pois ela e o Estado estão a serviço do bem-comum<br />

dos homens. Para realizar sua missão, a Igreja reivindica o direito<br />

ao reconhecimento jurídico da própria identidade, inclusive através<br />

de formas estáveis de acordos e de instrumentos que garantam<br />

relações harmoniosas entre ela e o Estado.<br />

Neste novo contexto, o Catolicismo precisou elaborar uma teologia<br />

das realidades terrestres e a teologia do laicato ou da presença<br />

dos católicos na Igreja e na vida pública, através das profissões e do<br />

testemunho de sua fé. Insiste, então, na superação da via devocional,<br />

típica da presença dos leigos no antigo regime, através de confrarias,<br />

irmandades e associações, para uma via testemunhal, mediante comunidades<br />

e movimentos e pastorais de inserção no mundo. Emerge<br />

um Catolicismo social e político, recentemente contestador em relação<br />

ao Estado e, logo a seguir, até no interior da própria Igreja.<br />

28 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

V. A Função Estética da Religião<br />

Numa leitura estética também com implicações sociais relevantes<br />

no nível do aprimoramento de competências artísticas, as religiões<br />

contribuem ou inibem as Artes. Se o Judaísmo e o Protestantismo<br />

proíbem esculturas é claro que esta forma de Arte não será difundida<br />

entre seus adeptos. As demais Artes serão aprimoradas, sobretudo<br />

a Literatura e a Música. O Catolicismo precisará de bons<br />

escultores ou santeiros ou pintores, além de artistas e artesãos que<br />

trabalhem os metais para os objetos do culto e a confecção das alfaias<br />

e das vestes litúrgicas.<br />

Ainda que seja preciso matizar a polarização para evitar generalizações,<br />

a Cultura protestante acentuará a comunicação da palavra<br />

com a utilização da Oratória, enquanto a Cultura Católica a comunicação<br />

da imagem, através das Artes Visuais, inclusive a<br />

dramatização religiosa. Enquanto o culto católico é festivo e lúdico,<br />

veiculado pelo simbolismo de ritos, vestes e cores, o culto evangélico<br />

tradicional sempre optou pelo despojamento e pela simplicidade, atendo-se<br />

quase com exclusividade ao simbolismo do livro: seja a Bíblia<br />

que se lê e da qual se prega, seja o hinário que se abre para acompanhar<br />

o canto, estimulando a participação da assembléia sem desvalorizar<br />

o solo e o coral. Disposições estéticas diferenciadas igualmente<br />

haveriam de influenciar a arquitetura dos respectivos templos e até o<br />

modo diverso de composição artística no interior dos cemitérios.<br />

A Arte Barroca só se entende como expressão de Arte Católica,<br />

porque houve um confronto histórico e cultural com o Protestantismo.<br />

No Brasil, coincide com a Arte de estilo colonial nas igrejas do período.<br />

Neste caso e nos demais, a Religião influencia a Arte e vice-versa.<br />

Aqui seria necessário acrescentar a influência dos diversos<br />

momentos da História da Arte no período cultural da separação entre<br />

a fé e a razão. Basta lembrar que a modernidade influenciou mais a<br />

Arte Sacra ou Litúrgica do que o contrário, embora os temas religiosos<br />

também sejam apresentados até por artistas de formação<br />

racionalista, agnósticos e ateus. Neste caso, a influência é no nível do<br />

valor universal da mensagem humanística, não da doutrina religiosa<br />

propriamente dita, ou quando o artista é solicitado ou contratado para<br />

dar sua contribuição. Então, traduz dentro do espírito do Modernismo<br />

sua concepção religiosa.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

29


Dom Edson de Castro Homem<br />

A Catedral de Brasília é um bom indicador dos sinais dos tempos<br />

modernos. Ao contrário das catedrais medievais, o arquiteto ateu<br />

e comunista fez a Catedral enterrada em meio à cidade. Para se<br />

adentrar no recinto do culto eucarístico, é preciso descer a rampa.<br />

Para entrar no palácio do governo há que se subir à rampa. O que se<br />

vê da Catedral é apenas sua bela e delicada torre a significar as mãos<br />

do povo brasileiro em atitude de ofertório. Assim é enaltecida a religiosidade,<br />

não o culto sagrado ou oficial. Também aqui o meio é a<br />

mensagem, cheia de ideologia. No entanto, a Religião pode restaurar<br />

sempre a pureza do sentido a seu favor. Mesmo no estranhamento<br />

desta simbologia da morte de Deus, o templo paradoxalmente deixa<br />

de ser simples monumento estético quando a assembléia de culto o<br />

preenche e aquece com a celebração da sua fé e de sua esperança.<br />

Deus se faz presente no templo santo do seu povo reunido. A fé<br />

sempre vence o mundo, conforme as palavras de Jesus, desde quando<br />

a Eucaristia era celebrada nas catacumbas, isto é, no subsolo de<br />

Roma, a arrogante Capital do Império, ávida de perseguição e de<br />

morte. Além disso, temos que admitir com fina ironia que a Catedral<br />

de Brasília sempre estará aberta a todos que se dispuserem a descer,<br />

enquanto o palácio do governo jamais abrirá as portas a todos que<br />

quiserem subir.<br />

VI. A Função Sócio-econômica da Religião<br />

Max Weber relaciona com boa análise sociológica o surgimento<br />

do Capitalismo com a emergência do Calvinismo na relação entre<br />

teoria e moral puritana com a Economia, mediante o valor do trabalho<br />

e o acúmulo do capital como bênção divina. Portanto, também a Revolução<br />

Industrial tem um componente religioso ético originário. Significa<br />

que a Religião pode ter influência transformadora na sociedade<br />

e gerar a Economia.<br />

Karl Marx, opositor do Capitalismo, ao contrário, define a Religião<br />

como sendo o ópio do povo, já que é superestrutura ideológica de<br />

pura alienação e de dominação para manter a ordem e o poder constituídos,<br />

especialmente, o dos donos do capital contra os que vendem<br />

a força do seu trabalho. Portanto, desqualifica-a como agente transformador<br />

da História. Ao contrário, Ernst Bloch, mediante o conceito<br />

de princípio-esperança, mesmo considerando-se marxista, possibilita<br />

pensar a Religião unida à utopia. Paul Ricoeur com a ajuda do princí-<br />

30 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

pio-esperança desenvolve um pensamento semelhante. Trata-se da<br />

esperança de um novo mundo de paz, de justiça e de fraternidade,<br />

mediante grupos insatisfeitos e revolucionários da sociedade. De fato,<br />

muitas religiões ou movimentos religiosos tiveram início como<br />

vanguardistas, até sectários, através da influência de líderes<br />

carismáticos ou proféticos. Portanto, em laços estreitos com a utopia,<br />

através do descontentamento com o presente a ser modificado ou<br />

desconstruído em função da edificação do futuro. Depois é que se<br />

organizaram em instituições de cunho eclesiástico, no sentido de serem<br />

regidas por normas e dirigidas por um corpo de especialistas ou<br />

ministros de culto.<br />

Diante do Liberalismo econômico e do Capitalismo selvagem,<br />

do Marxismo e do Comunismo e das demais economias estatais e,<br />

sobretudo, devido às questões sociais ligadas aos trabalhadores: salário;<br />

tempo de serviço; aposentadoria e desemprego, e os problemas<br />

mais abrangentes como a pobreza, a fome e a miséria, a educação, a<br />

moradia e a saúde, a Igreja Católica precisou elaborar sua Doutrina<br />

Social através das Encíclicas dos Papas, e reunir o laicato na Ação<br />

Católica, através do método Ver, Julgar e Agir, e dos demais Movimentos<br />

Sociais ou Entidades sócio-caritativas e educativas que surgiram<br />

já no final do século XIX e nas Pastorais Sociais e Comunidades<br />

Eclesiais de Base, e nos Pronunciamentos das Conferências Episcopais,<br />

recentemente.<br />

Devido à modernidade, com suas teorias e práticas de confronto<br />

ou de consenso no campo social, a Igreja Católica se sentiu no<br />

dever de construir um ensinamento social em função de ações efetivas<br />

de transformação política. Também os teólogos com acertos e<br />

erros, haja vista a Teologia da Revolução e da Libertação, procuraram<br />

dar sua contribuição ao pensamento e à pratica, em sintonia com<br />

as Ciências Políticas e Sociais. De modo geral, as demais Igrejas<br />

elaboraram uma Teologia da práxis e igualmente exerceram e realizam<br />

uma ação social expressiva em favor dos pobres. Neste campo,<br />

a maioria das Igrejas exerce um papel de conscientização e de denúncia<br />

de irregularidades contra a dignidade humana.<br />

VII. A Função Dialógica da Religião<br />

Na modernidade, houve perseguição à Igreja Católica em diversos<br />

países, na França durante o período revolucionário, na Ingla-<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

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Dom Edson de Castro Homem<br />

terra desde Henrique VIII e até no México. Nada se compara ao<br />

totalitarismo de Estado nos regimes comunistas. As religiões, especialmente<br />

o Catolicismo, foram subjugadas ao controle estatal. Cunhouse<br />

a expressão: a Igreja na cortina de ferro. Muitos na China sofreram<br />

o crime da lavagem cerebral para abdicarem de sua fé e de suas<br />

convicções mais enraizadas. Inclusive os monges budistas sofreram<br />

horrores, sobretudo os tibetanos. O Comunismo não prega a separação,<br />

mas a absorção da Religião pelo Estado. O Fascismo e o Nazismo,<br />

também ideologias do Estado forte e onipresente, igualmente criaram<br />

grandes obstáculos às Igrejas que ousaram criticá-los. Por razões<br />

de consciência moral e religiosa, muitos foram mortos nos campos<br />

de concentração ao lado do extermínio dos judeus e dos homossexuais:<br />

testemunhas de Jeová, luteranos e católicos. Por isso João<br />

Paulo II chamou o século XX de século de mártires. Muitas pessoas<br />

foram mortas por ódio à fé cristã ou à Religião em geral. O testemunho<br />

dos mártires é o testemunho da verdade da consciência. Morresse<br />

por aquilo em que se crê e de que não se pode abdicar. Aqui, neste<br />

testemunho extremo, ela manifesta sua força de resistência moral.<br />

Nos campos de concentração nazista, praticamente se iniciou o<br />

ecumenismo prático, irmanados os prisioneiros pelo mesmo sofrimento.<br />

Em meio aos horrores contava pouco a diferença religiosa. Os prisioneiros<br />

sem nome se igualavam por serem apenas numerados e marcados<br />

para morrer. Então se descobriram humanos demais na fraqueza,<br />

na impotência e na dependência absoluta de forças tão hostis<br />

e desagregadoras. Foi possível se unirem em torno de um Deus comum<br />

e pessoal na fé do total abandono.<br />

Historicamente, como movimento organizado, o ecumenismo<br />

começa entre os evangélicos diante da fragmentação de tantas comunidades<br />

eclesiais. A Igreja Católica sempre teve dificuldade de<br />

entrar oficialmente quando convidada ao Conselho Mundial das Igrejas,<br />

em Genebra. Participa como observadora. Com a reviravolta do<br />

Concílio Vaticano II, não só aceitou o ecumenismo, mas passou a<br />

promovê-lo. Inclusive o diálogo com todas as religiões e com os ateus.<br />

Surge, pois, uma nova era do relacionamento da Igreja Católica, no<br />

século XX, com as diferenças, pelo diálogo com o pensamento moderno.<br />

Não mais defesa e ataque, mas compreensão e conversação.<br />

Entretanto, a modernidade como expressão filosófica e cultural já<br />

chegava ao acaso. Deixa, porém, o saldo positivo da possibilidade do<br />

32 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

diálogo recíproco e tolerante que inspira ou valoriza as relações pessoais<br />

e sociais, inclusive internacionais baseadas no respeito à<br />

alteridade, à diversidade, ao pluralismo.<br />

O ecossistema e a biodiversidade também foram integrados à<br />

religiosidade pela função dialógica estabelecida com a Religião e<br />

vice-versa. Trata-se da renovada consciência de que o ideal de<br />

comunhão com Deus exige não só a comunhão com as pessoas,<br />

mas também com todo o cosmo degradado pela poluição. Trata-se<br />

da implicação ética da Religião mediante o princípio de responsabilidade<br />

diante da vida, para defendê-la e promovê-la em favor das<br />

gerações futuras.<br />

VIII. A Função da Religião no Ministério de João Paulo II<br />

João Paulo II não só continuou o ideal conciliar. Foi mais além.<br />

Compreendeu com perspicácia, devido a sua experiência de vida na<br />

Polônia com a ocupação nazista e comunista, e por causa de sua<br />

formação filosófica, que emergia um novo tempo não só para o futuro<br />

da Igreja, mas de todos os que professam uma Religião ou que<br />

tenham a boa vontade de construir um mundo mais humano, mais<br />

justo e fraterno. Por isso, se pôs em viagem ou a caminho. Sua primeira<br />

encíclica programática dizia que o homem é a via de Cristo e,<br />

portanto, o homem é a via da Igreja. Propõe um itinerário<br />

antropocêntrico como meta de encontro. Sua personalidade receptiva<br />

e sua capacidade de aprender idiomas lhe permitiram ir ao encontro<br />

desta nova condição comunicativa, através da imagem midiática<br />

que construiu, bem utilizada para os fins propostos.<br />

Enfrentou com suas encíclicas, alocuções e aparições, mesmo<br />

durante a velhice e a doença, a possibilidade de ultrapassar o efêmero,<br />

inclusive de sua própria finitude, pelo anúncio e testemunho da<br />

transcendência. Propôs de forma nova e convincente fundamentos<br />

para a razão e para a fé, a colaboração entre Estado e Igreja, o<br />

diálogo religioso e ecumênico, a presença significante da Religião no<br />

mundo, em função do bem estar e do bem viver do homem em sociedades<br />

livres e justas. Seu pensamento nada tinha de débil. Ao contrário,<br />

manifestava que a razão pode atingir o conhecimento quando<br />

se deixa iluminar pela lucidez da verdade. Através de motivações<br />

religiosas, fruto de sua fé, demonstrou que a Religião ainda tem algo<br />

a dizer ao mundo e pode criar práticas construtivas de aproximação.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

33


Dom Edson de Castro Homem<br />

Com sua liderança, intensificou os laços de fraternidade em<br />

relação à Igreja Ortodoxa, afirmando que a Igreja Católica precisa<br />

respirar com os dois pulmões: o ocidental e o oriental. Pediu perdão<br />

aos judeus pelos erros do passado durante a celebração do ano<br />

santo, na virada do milênio. Insistiu na purificação da memória a<br />

respeito dos crimes e dos abusos históricos, perpetrados por católicos,<br />

para um novo relacionamento de cooperação harmônica e construtiva.<br />

Visitou a sinagoga de Roma e, em suas viagens, estabeleceu<br />

contato com os judeus. Visitou mesquitas e também estabeleceu<br />

em suas viagens contatos com muçulmanos. Aprovou a Declaração<br />

Conjunta entre a Igreja Luterana e a Igreja Católica na questão<br />

principal que dividiu o Cristianismo ocidental: a justificação pela<br />

graça. Caíram as acusações recíprocas e a excomunhão. Ambas<br />

as instituições se comprometeram a compreender o que há de diferente<br />

no dado comum da fé, respeitando a divergência de posições.<br />

Orou junto com todos os crentes de várias religiões que foram aos<br />

Encontros de Assis, porque dizia que a Religião é para unir as pessoas<br />

e não para desunir ou desagregar. Não admitia, o que qualificou<br />

de blasfêmia, usar a Religião e o nome de Deus para guerrear.<br />

Apelou para que as religiões contribuíssem para a paz mundial.<br />

Em suma, significa dizer que a Religião pode também fazer<br />

autocrítica, purificar-se a si própria mediante a revisão histórica e<br />

aprender dos próprios erros. Nesse sentido, pode colaborar para a<br />

construção de novas formas de vida social, baseadas na reconstrução<br />

do presente em função do futuro sem deixar-se aprisionar por<br />

heranças passadistas e obscurantistas. No entanto, há muito que<br />

fazer para a superação dos ressentimentos. A estrada está longe<br />

de ser percorrida. Mas os passos iniciais já foram dados, se não<br />

pusermos obstáculos às conquistas da modernidade.<br />

No contexto contemporâneo da globalização também dos problemas<br />

internacionais, surge a posição do Governo americano, diante<br />

da nova expressão do terrorismo. Influenciado pelo atentado<br />

em Nova York, em 11 de setembro de <strong>20</strong>01, cuja conotação religiosa<br />

foi dada pelos grupos terroristas islâmicos que pretendem ter<br />

agido em nome de Deus, o Presidente dos Estados Unidos deixouse<br />

levar pela linguagem religiosa da retaliação ao qualificar a área<br />

inimiga de eixo do mal, e até justificou a invasão de uma nação de<br />

Cultura islâmica com argumentos não convincentes à comunidade<br />

34 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Dom Edson de Castro Homem<br />

internacional. A Igreja Católica, na pessoa do Papa João Paulo II,<br />

insistiu na conversação, na ação diplomática. Pediu a paz. Defendeu<br />

o direito da soberania dos povos.<br />

A atuação de João Paulo aponta para funções ainda relevantes<br />

e pertinentes das religiões se elas se abrirem às necessidades e aos<br />

apelos da Humanidade, acolhendo-se também umas às outras na colaboração<br />

recíproca quando grandes causas humanísticas estão em<br />

jogo. Essas novas funções apregoadas e inauguradas serão possíveis<br />

se as conquistas da liberdade moderna forem facilitadas pelos líderes<br />

religiosos e, sobretudo, por aqueles que têm o poder de influência e<br />

de decisão na sociedade.<br />

Conclusão<br />

Sabe-se por diversas análises históricas, filosóficas e sociológicas<br />

do pensamento moderno que também não existe neutralidade<br />

religiosa. As expressões religiosas podem esconder ou veicular as<br />

ideologias e utopias, as convicções e os interesses, além do conteúdo<br />

próprio de cada credo professado. Por isso, é necessário elaborar<br />

sempre de novo a crítica das religiões juntamente com a crítica<br />

das ideologias e das utopias, através do pensamento, especialmente<br />

a contribuição de intelectuais e de filósofos. Uma semana de estudos<br />

como esta, certamente favorece a elaboração destes objetivos,<br />

até porque sempre ronda o risco do fanatismo, do fideísmo e do<br />

fundamentalismo. São atitudes irracionais que comprometem o tecido<br />

social e a Democracia.<br />

A modernidade não é unívoca. Nem é tão racional como se<br />

apregoa, pois no acirramento das paixões produziu guerras mundiais<br />

e o extermínio de populações e de etnias. Por isso, o pensamento<br />

crítico é sempre uma reconquista da razão que a modernidade<br />

recorda. Com efeito, ela tem o mérito de nos ter ajudado a valorizar<br />

a razão e a considerar seus limites. Se o projeto for levado a sério,<br />

inibe as polarizações que motivam ações persecutórias contra a<br />

Religião, as diferenças e as minorias. Soa como tautologia, mas a<br />

razão precisa ser a instância crítica de si própria. Se quiser permanecer<br />

no âmbito da razão comunicativa, segundo a expressão<br />

de Habermas, aquela que se deixa interpelar e solicitar pela<br />

alteridade, conforme Levinas. Do ponto de vista católico, a<br />

tautologia é superada quando a razão se deixa também criticar<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

35


Dom Edson de Castro Homem<br />

pela fé, tendo como suposto não a fé fideísta, mas aquela que é<br />

conduzida pela inteligência.<br />

Enfim, sabemos que a modernidade, sem a qual não teríamos a<br />

nova ciência e tecnologia, projetou e sedimentou a democracia<br />

conjugada com a liberdade. Provou-nos que é possível, ao menos no<br />

Ocidente, experimentarmos a convivência pacífica em meio às diferenças<br />

também religiosas, desde que as instâncias e as instituições e<br />

as garantias individuais sejam preservadas pelo estado de Direito.<br />

Aliás, não existe Democracia sem essas garantias. Quando isto ocorre,<br />

a Religião não tem só uma função ética que inspira ou motiva comportamentos<br />

pessoais e sociais. Livremente, ela comunica e celebra<br />

de acordo com seu credo aquilo que lhe é próprio: a dimensão sagrada<br />

da vida e da existência; o mistério da origem e do fim; o sentido da<br />

vida e da morte para a eternidade. Eis o núcleo da fé em Deus. O<br />

resto é apenas mediação como a própria Religião.<br />

O autor é Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro e proferiu esta<br />

palestra por ocasião do Seminário sobre a Religião, realizado na<br />

Escola Superior de Guerra, no período de 21 a 24 de novembro de <strong>20</strong>05.<br />

36 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 19-36, jan./abr. <strong>20</strong>06


Severino Cabral<br />

Coréia Unificada e Brasil no<br />

Século XXI: A Ordem Multipolar<br />

Severino Cabral<br />

“Sabendo reconhecer as prioridades, estarás ao alcance da Via.”<br />

(DA XUE)<br />

O inicio do século XXI, que também inicia o terceiro milênio,<br />

apresenta o mundo em grande e rápida transformação. A extraordinária<br />

revolução na ciência e na técnica habilita a Humanidade a alcançar<br />

novos graus de desenvolvimento na arte de criar riqueza e gerar prosperidade.<br />

A comunicação via satélite e os meios de transporte aéreo<br />

praticamente uniram o mundo inteiro. Indivíduos e nações se aproximam<br />

e se relacionam cada vez mais em todos os horizontes do planeta.<br />

A pouco e pouco se estrutura uma nova ordem mundial baseada no<br />

entendimento e na cooperação de todos os países do mundo, baseada<br />

na independência e autodeterminação dos povos. Por outro lado, esta<br />

nova ordem pressupõe o rápido crescimento econômico e social de<br />

países que se encontram em diferentes estágios de desenvolvimento.<br />

O que se traduz também por tensão e instabilidade, por vezes geradoras<br />

de crises e conflitos.<br />

Nesta grande cena, o Brasil e a República da Coréia aparecem<br />

não só como dois importantes países desse mundo em crescimento,<br />

desafiados a desenvolver não apenas a economia mas, sobretudo,<br />

a difusão do conhecimento em suas sociedades. Conhecimento<br />

das condições existentes nas duas sociedades e no sistema<br />

internacional contemporâneo. Um esforço neste sentido, por parte<br />

de pesquisadores brasileiros e coreanos interessados no<br />

aprofundamento dos laços de cooperação e aproximação entre os<br />

dois países, deve sempre partir das realidades do mundo atual e da<br />

necessidade permanente do diálogo para estabelecer as bases do<br />

entendimento e da negociação internacional.<br />

Faz pouco tempo um relatório da Goldman & Sachs de Londres<br />

despertou a atenção de analistas de todo mundo, ao prever para o<br />

ano de <strong>20</strong>50 a emergência do BRIC. Na antecipação dos autores do<br />

relatório, por volta de metade do século XXI, a estrutura do sistema<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 37-41, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

37


Severino Cabral<br />

mundial de poder estará apoiada na economia dos países cujas iniciais<br />

formam o acróstico: Brasil, Rússia, Índia e China. Esses países,<br />

mais os Estados Unidos e o Japão, se situariam no topo do<br />

sistema mundial de poder. Curiosamente, a União Européia ficou<br />

de fora desta relação. O que significa que em Londres não se deseja<br />

muito ou não se visualiza bem a península ocidental da Eurásia<br />

como megapoder estatal. De qualquer modo, o curioso relatório serviu<br />

para atrair a atenção para a existência de macrotendências do sistema<br />

mundial, inauguradas com o fim da Guerra Fria, e que são<br />

pouco debatidas pelo público em geral.<br />

A primeira tendência que se anuncia é a de que só os grandes<br />

países do mundo de hoje, que sejam dotados de considerável espaço<br />

territorial, de população e de força econômica autônoma, podem<br />

aspirar a constituir um pólo de poder mundial. Neste sentido, a unidade<br />

e a integração européia servem de balizamento para o caminho<br />

das unidades políticas ativas do mundo contemporâneo: o seu<br />

êxito ou fracasso determinará a futura existência da Europa como<br />

centro mundial de poder. Como também é observável que os principais<br />

obstáculos no caminho dos BRIC para o topo da ordem mundial<br />

se relacionam à capacidade de cada um deles de manter, ampliar<br />

e até mesmo recuperar espaço, população e base econômica. Em<br />

suma, a característica principal do processo em curso, a contrario<br />

sensu da fragmentação da “primeira onda globalizante”, é<br />

a da constituição dos megaestados, que serão amanhã os sustentáculos<br />

da mundialização.<br />

A segunda e decorrente tendência é de que o ambiente internacional<br />

deverá ser profundamente alterado em relação ao que era ao<br />

final da Guerra Fria, sobretudo o sistema que sucedeu a bipolaridade,<br />

e que se denominou Nova Ordem Mundial. Acontecimentos como as<br />

duas guerras do Golfo e o incidente do 11 de setembro são sintomas<br />

da profunda e dramática instabilidade da ordem internacional gerada<br />

pela política de força de uma única potência. A superação desse<br />

estado de coisas será viabilizada pela emergência de uma nova ordem<br />

mundial mais democrática e mais legítima, baseada num novo<br />

equilíbrio de forças entre as nações. O advento de uma ordem<br />

multipolar será positivo para a criação de uma situação internacional<br />

menos tensa e mais direcionada para a elevação do nível de vida das<br />

populações do mundo em desenvolvimento.<br />

38 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 37-41, jan./abr. <strong>20</strong>06


Severino Cabral<br />

A terceira tendência cada vez mais visível no horizonte internacional<br />

é o papel da Ásia do Leste como um dos pilares do mundo<br />

multipolar em gestação. O megadesenvolvimento da China (que já<br />

adquire a forma de um megaestado), da Coréia e do Japão transformou<br />

o mundo ásio-oriental na vanguarda do sistema internacional.<br />

Trata-se de uma região de importância cada vez maior no jogo de<br />

equilíbrio do poder mundial, mas que mantém focos de aguda tensão<br />

e instabilidade na península coreana e no estreito de Taiwan. Uma<br />

herança da época da confrontação, essa realidade ainda se faz sentir<br />

como pesada hipoteca sobre os ombros da sociedade asiática. Ao<br />

fazer prolongar a divisão da Coréia, um país e um povo com uma<br />

História tão rica e cultura multimilenar, essa realidade determina que<br />

se irradiem efeitos negativos – como o demonstra a grave crise<br />

desencadeada pela decisão norte-coreana de se dotar de uma certa<br />

capacidade nuclear – para a paz e o desenvolvimento da região e do<br />

mundo. Daí porque a reunificação da grande nação coreana, congelada<br />

num cessar-fogo inalterado, se encontra hoje no centro de um<br />

debate sobre o futuro do sistema internacional, cuja estrutura geral<br />

começa a esboçar-se neste início de século e de milênio.<br />

Como quarta tendência, é possível constatar a ressurgência das<br />

civilizações afetadas em seu destino histórico pelo mundo euro-ocidental<br />

e pela ciência e técnica moderna. O mundo que assistiu, no<br />

pós-Segunda Guerra, ao processo de industrialização e assimilação<br />

da técnica e da ciência, despertou importantes forças irradiantes e<br />

insurgentes com a descolonização da África, da Ásia e do mundo<br />

árabe-muçulmano. Este último fenômeno, sinalizado pela ressurgência<br />

do Islamismo como protagonista da cena internacional, tem impressionado<br />

observadores de todo o mundo, a ponto de ser interpretado<br />

como o desafio maior do pós-Guerra Fria.<br />

Mas uma quinta e importante tendência pode também ser vista<br />

a influenciar de forma decisiva a configuração do mundo de amanhã.<br />

Trata-se da emergência do mundo latino, cujo protagonismo possível<br />

encontra no futuro megaestado brasileiro seu principal ator. Embora<br />

a Europa meridional seja parte fundadora do mundo latino, o emergente<br />

bloco deverá reunir, sobretudo, o conjunto dos países da América<br />

Latina. O novo mundo latino-americano integrará uma grande<br />

área econômica capaz de impulsionar a criação de uma nova ordem<br />

mundial multipolar.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 37-41, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

39


Severino Cabral<br />

As cinco macrotendências apontadas desenham uma linha<br />

central que aproxima e faz convergir as estratégias dos grandes<br />

países do mundo emergente. Desse modo, pode observar-se que<br />

a Coréia (tanto quanto o Brasil) depende, mais do que nunca, para<br />

consolidar o seu processo de industrialização e ampliar sua participação<br />

no sistema internacional, de uma ordem mundial estável,<br />

equilibrada, respeitadora das soberanias e da autonomia dos países<br />

emergentes, assim como de um ambiente interno favorável ao<br />

seu desenvolvimento.<br />

No caso da Coréia, seu destino final neste processo depende,<br />

acima de tudo, da unificação do seu espaço territorial, para que se<br />

coloque à altura de poder ombrear-se com os grandes estados da<br />

região do leste da Ásia. No cenário em que se situa hoje, dividida por<br />

contingências impostas pela ocupação do seu território por forças<br />

estrangeiras, faz-se presente em seu entorno um quadrilátero de poder<br />

constituído pelos Estados Unidos, pela China, pelo Japão e pela<br />

Federação Russa. Não por acaso as maiores potências do mundo<br />

atual. Daí as dificuldades reais que apresenta e a complexidade que<br />

assume o processo de unificação coreana – e que analistas ocidentais<br />

como Samuel Huntington e Zbigniew Brzezinski tanto alardeiam.<br />

As dificuldades e complexidades explicam por que as iniciativas<br />

de reunificação, embora tenham revelado a disposição dos<br />

governantes de realizar os anseios mais caros à nação coreana, ainda<br />

não se efetivaram. Em plena Guerra Fria, 4 de julho de 1972, os<br />

líderes do Norte e do Sul, respectivamente Kim Il-Sung e Park Chung-<br />

Hee chegaram a estabelecer as bases de um primeiro acordo visando<br />

à reunificação da nação coreana. Contudo, as condições da época<br />

não favoreciam a reaproximação e, tão-somente em junho de <strong>20</strong>00, o<br />

histórico encontro de Kim Jong-Il e Kim Dae-Jung abriu caminho<br />

para o entendimento entre os dois lados, num esforço conjunto visando<br />

à reunificação pacífica da pátria coreana. Ambos os governos<br />

deviam, pois, aproximar-se e unir-se numa pauta comum em defesa<br />

do desenvolvimento, enfrentando as resistências e inércias do status<br />

quo mundial. Finalmente, a eleição de Roh Moo-Hyun fará emergir<br />

um segundo front de aproximação entre as duas partes da nação,<br />

com base na política de paz e prosperidade.<br />

É neste contexto que deve ser vista e avaliada a política brasileira<br />

para a região e muito especialmente para com a Coréia.<br />

40 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 37-41, jan./abr. <strong>20</strong>06


Severino Cabral<br />

O Brasil sustenta com a Coréia do Sul a terceira balança comercial<br />

na região da Ásia-Pacífico. Uma primeira e rápida avaliação<br />

demonstra o fato de que a busca de uma balança comercial<br />

mais favorável ao Brasil tem marcado a ascensão recente de nossas<br />

exportações com destino à Coréia do Sul. Enquanto no campo<br />

político-diplomático, o Presidente Roh Moo-Hyun, eleito em <strong>20</strong>03,<br />

recebeu apoio brasileiro para dar continuidade à política de mãos<br />

estendidas, inaugurada pela histórica realização da cúpula<br />

intercoreana de junho de <strong>20</strong>00, em Pyongyang.<br />

Dentre as oportunidades que ora se apresentam ao relacionamento<br />

coreano-brasileiro, encontra-se o da ampliação do comércio<br />

bilateral, que pode elevar-se, por seu potencial, a níveis bem mais<br />

altos do que os atuais 2.300 bilhões de dólares. Estima-se que, em<br />

muito pouco tempo, poderá ser duplicado e vir a atingir um patamar<br />

de trocas em torno dos 10 bilhões de dólares. Mas não se restringe à<br />

pauta comercial a importância desse relacionamento, pois os dois<br />

estados têm interesses comuns e convergentes no plano maior da<br />

viabilização do projeto nacional de ambos, pela convicção de que sua<br />

própria segurança como nação soberana e independente deve apoiar-se<br />

na estabilidade, na paz e na prosperidade da região e do mundo.<br />

O Brasil e a Coréia, embora distantes geograficamente, devem<br />

assegurar em grau máximo a cooperação bilateral, nos campos político,<br />

cultural, cientifico e técnico. E, assim, sustentarem um verdadeiro<br />

campo de força capaz de estabilizar as pressões e garantir os<br />

interesses dos países em seu conjunto, integrados numa ordem internacional<br />

harmônica, pacífica e próspera. Essa cooperação deverá<br />

consagrar a idéia de que o relacionamento coreano-brasileiro é uma<br />

instância muito importante para o diálogo entre as nações e entre as<br />

civilizações contemporâneas. Ambos os países partem do entendimento<br />

de que culturas e sociedades diversas devem alimentar-se de<br />

sua própria diferença, para enriquecer-se mutuamente, contribuindo,<br />

assim, para a elevação do padrão civilizacional do mundo.<br />

O autor é membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra e<br />

Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de China<br />

e Ásia-Pacífico (IBECAP).<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 37-41, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

41


China: Política e Religião<br />

Introdução<br />

Marcelo Hecksher<br />

Marcelo Hecksher<br />

A História da China é ininterruptamente documentada desde a<br />

dinastia Zhou (1027 a 221 a. C.).<br />

É importante que as análises efetuadas situem os problemas<br />

políticos atuais da R.P.C. no contexto da História, porquanto os chineses<br />

cultuam a sua História. Pela História relatada, poder-se-á<br />

verificar que a China viveu grandes turbulências internas e externas,<br />

até anos recentes. A vida do país retrata séculos de sofrimento<br />

e provação da sua população, motivados pelo isolamento em que<br />

viveu a China, pelo culto às personalidades dos governantes, tanto<br />

na época das dinastias quanto na República, pelas incursões de várias<br />

potências ocidentais, em ataques diretos à soberania do país, e<br />

em função das políticas econômicas defasadas da realidade, em um<br />

panorama mundial cada vez mais globalizado e interdependente.<br />

Nenhum país pode ser comparado à China. Seu imenso território,<br />

sua população, hoje estimada em 1.250.000.000 de pessoas,<br />

composta de diversas etnias, sua geografia, com as mais altas<br />

montanhas do mundo, os desertos mais inóspitos e os climas dos<br />

mais variados, sua inacreditável unicidade no idioma escrito, a par<br />

dos vários dialetos existentes, fazem com que todos os problemas<br />

e suas soluções sejam grandiosos.<br />

Viver na China significa constatar que nada conhecemos desse<br />

país, chamado no dialeto mandarim de “O Império do Centro”.<br />

Sempre que missões diplomáticas ocidentais, particularmente<br />

norte-americanas, se encontram com governantes chineses, existe<br />

uma cobrança, direta ou velada, por uma maior liberdade de expressão<br />

e religiosa na República Popular da China (RPC). E as<br />

discussões sempre são orientadas pelos olhos daqueles que consideram<br />

o modelo norte-americano de democracia um objetivo a ser<br />

perseguido, desprezando características geopolíticas e culturais.<br />

Por liberdade de expressão, nesse caso, leia-se dar voz aos dissidentes.<br />

Por liberdade religiosa, leia-se deixar os líderes religiosos utilizarem<br />

suas tribunas para tratar de qualquer assunto, inclusive de política.<br />

42 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcelo Hecksher<br />

Não sendo comunista, sinto-me totalmente isento para falar sobre<br />

esses temas. Assim, vamos citar alguns fatos relacionados com<br />

as políticas do governo chinês, muitas delas contestadas pelos ocidentais,<br />

sem uma análise mais cuidadosa das razões que levaram à<br />

adoção dessas políticas.<br />

Economia<br />

O governo da China, que podemos chamar de Partido Comunista<br />

Chinês (PCC), uma vez que esse constitui um dos três poderes formadores<br />

da estrutura de governo na RPC (o PCC, o Congresso Nacional<br />

do Povo – CNP e a Conferência Consultiva do Povo Chinês – CCPC),<br />

sendo, em realidade, o poder hegemônico, com a política de abertura<br />

econômica buscou atender à questão básica que norteia qualquer política<br />

governamental, em qualquer regime político: a busca do bem-estar<br />

da população, obviamente pelo desenvolvimento econômico de maneira<br />

a fazer frente às necessidades de investimentos governamentais,<br />

suprindo, por si só, as carências sociais, ou que atraiam investimentos<br />

estrangeiros tal chinês eram “podres”, sem possibilidade de serem honrados.<br />

A falência das indústrias estatais, apesar desse sistema bancário<br />

que lhes dava suporte, estava anunciada e tinha data para ocorrer:<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

43


Marcelo Hecksher<br />

a da saída das empresas estrangeiras que operavam na China como<br />

“joint ventures”, cansadas de perder dinheiro, aguardando a explosão<br />

econômica do Império do Centro.<br />

O suporte que era dado ao regime comunista na China, pela URSS,<br />

deixou de existir com a queda do Muro de Berlim. Vários sinais anteriores<br />

a esse fato já haviam sido percebidos pelos chineses. As carências<br />

econômicas da pátria do comunismo, o declínio do Movimento Comunista<br />

Internacional, tudo indicava que a China teria que buscar o mercado<br />

como fonte de seu desenvolvimento. O propalado mercado interno de<br />

mais de um bilhão de habitantes era uma quimera, considerando-se o<br />

poder aquisitivo da população economicamente ativa.<br />

O Partido supria as carências básicas de todos os seus filiados<br />

e, também, da maior parte da sociedade. Mas, até quando isto seria<br />

possível?<br />

O dilema ideológico era: mudar de uma economia totalmente<br />

dependente do Estado para admitir a propriedade privada. Como adotar<br />

práticas capitalistas, se estas contrariavam tudo que o regime comunista<br />

chinês pregava desde 1º de outubro de 1949?<br />

Sabendo que, até <strong>20</strong>00, ainda existia em Pequim o sistema de<br />

moradia dos “hutongs”, casas intramuros, separadas por estreitas<br />

aléias, com o banheiro e a cozinha coletivos, pode-se imaginar a revolução<br />

de paradigmas criada pelos modernos prédios, pelos condomínios<br />

de casas modernas e luxuosas de propriedade individual, pelos<br />

clubes, pelos banheiros ocidentais, abandonando as latrinas, tidas como<br />

mais saudáveis pela cultura chinesa, em virtude da posição de defecar.<br />

Como aceitar que essas modernidades fossem utilizadas primeiramente<br />

por alguns, não sendo, portanto, compartilhadas por todos,<br />

como no tempo dos “hutongs”, sistema de moradia popular criado<br />

pela revolução?<br />

É importante conhecer como o PCC tratou dessa questão, mudança<br />

de paradigmas.<br />

Deng Xiaoping, o arquiteto da abertura econômica, cunhou<br />

várias slogans, tão ao gosto da cultura chinesa: “hoje não é mais<br />

crime ser rico”; “democracia com características chinesas”; e<br />

“um só país, dois sistemas” foram expressões criadas para justificar,<br />

perante os membros do PCC, a caminhada da China aceitando<br />

o jogo do mercado internacional, para dele poder desfrutar, desenvolvendo-se<br />

economicamente.<br />

44 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcelo Hecksher<br />

E essa caminhada não podia envolver erros estruturais. A China<br />

viveu isolada – ou praticamente isolada – do mundo não comunista até<br />

à abertura econômica. Os seus cinco mil anos de História documentada<br />

haviam esgotado o seu poder de contrapor a cultura chinesa ao<br />

desenvolvimento do Ocidente. O controle das comunicações passou a<br />

ser fundamental, em face do volume de informações que passou a<br />

transitar pelos meios eletrônicos, particularmente pela Internet, e o seu<br />

reflexo explosivo na mudança de paradigmas da população envolvida.<br />

Até 1997, o exemplo de militar chinês era o Soldado Li Pen.<br />

Corajoso, leal, obediente, forte, tinha a sua imagem utilizada em<br />

todas as propagandas do Exército Popular de Libertação (EPL).<br />

Em 1997, essa imagem mudou. Foi escolhido para tal um capitãode-corveta<br />

da Marinha do EPL, engenheiro, fluente em inglês,<br />

informatizado, culto e pai de uma família tradicional: mulher e um<br />

filho. Este fato é importante, em face do que representam as imagens<br />

e símbolos na cultura chinesa.<br />

Um país de 1,3 bilhão de habitantes, que deixou de ser império<br />

no ano de 1912, que até à consolidação da República Popular em<br />

1949 sofreu revoluções, Guerra Sino-Japonesa, Segunda Guerra<br />

Mundial, e, posteriormente, Guerra da Coréia, ameaça das forças<br />

republicanas a partir de Taiwan, ameaça de separação do Tibet, motivada<br />

por ações da Inglaterra a partir da Índia, guerra com o Vietnã,<br />

que viveu a Guerra Fria em toda a sua intensidade, não pode se dar<br />

ao luxo de não ter sucesso. Não pode ser pensado como se pensa<br />

uma potência de 250 milhões de habitantes, com, praticamente, a<br />

mesma área geográfica, com mais que o dobro de terras<br />

agriculturáveis, com recursos minerais em nível muito superior,<br />

posicionada no eixo desenvolvido do mundo ocidental.<br />

No XV Congresso do PCC, realizado em 1995, a China traçou<br />

o seu futuro: ser uma potência mundial no ano de <strong>20</strong>15. Vinte anos de<br />

desenvolvimento continuado, preparando e educando uma geração<br />

para absorver a moderna tecnologia desenvolvida na China ou comprada<br />

(ou roubada – observação do autor). Para isso, investiu-se em<br />

educação. E a educação é a alavanca que desenvolve a China, em<br />

todos os campos do poder nacional.<br />

O campo político continua fechado. É a necessidade sentida<br />

de controle dos movimentos sociais nascidos a partir da mudança<br />

de paradigmas.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

45


Marcelo Hecksher<br />

Dar voz ativa aos dissidentes, para que fossem contestadas as<br />

práticas políticas, foi a atitude tomada em 1987, e que desencadeou a<br />

crise da Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial).<br />

Psicossocial<br />

Dentre vários aspectos a serem considerados, merece especial<br />

atenção a situação da sobrevivência na velhice, que se tornou um<br />

problema.<br />

Inexistindo um sistema de previdência único, federal, a aposentadoria<br />

era paga pelas empresas estatais. A queda de produção por<br />

ineficiência, a falta de mercado e a falta do dinheiro fácil da URSS<br />

colocaram em cheque a possibilidade de os chineses, na velhice, receberem<br />

o suporte do Estado.<br />

Um reflexo significativo desse fato foi o recrudescimento do<br />

costume tradicional – em realidade, nunca abandonado – de o<br />

primogênito homem ter a obrigação de sustentar os pais na velhice.<br />

Em regime de controle de natalidade, regime de filho único, no qual<br />

a família deixaria de receber o apoio do Estado (saúde, educação,<br />

moradia e até emprego), em caso de gerar mais de um filho, ocorreu<br />

o aumento do número de abortos dos fetos femininos e do abandono<br />

das meninas recém-nascidas. A tal ponto essa situação se<br />

agravou que o governo, em algumas regiões, proibiu a realização de<br />

ultra-som no pré-natal, temendo o aborto provocado quando anunciado<br />

o sexo do feto. O número de mulheres na China, principalmente<br />

no campo, supera o de homens na razão de duas mulheres<br />

para cada homem.<br />

A liberdade de religião merece uma análise mais detalhada. O<br />

Tibet, por exemplo, sempre foi parte da China, desde o Império. A<br />

figura dos Lamas, inclusive do seu principal líder, o Dalai Lama, é a<br />

de líderes religiosos e nunca de políticos ou administradores, capazes<br />

de cuidar da população que vive na região do Tibet, ou da que vive<br />

em outras províncias da China. Os templos tibetanos estão espalhados<br />

por todo o território chinês. Neles se professa a religião sem<br />

restrições. O governo chinês não admite é que seja aproveitado o<br />

momento religioso para a discussão política. Em um país com a diversidade<br />

religiosa da China, admitir a introdução da religião na discussão<br />

política seria uma temeridade.<br />

46 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06


Marcelo Hecksher<br />

Se assim o fizesse, por exemplo, a província de Xinjiang (capital<br />

Urumqi), rica em petróleo – onde a nacionalidade Uygur é maioria<br />

(apenas 12% de chineses Han) – província fronteiriça com os países<br />

do “ão” (Kazaquistão, Uzbesquistão, Tajaquistão, Kyrquistão,<br />

Paquistão e Afeganistão), estaria ela hoje sobre o controle político de<br />

um regime muçulmano xiita.<br />

Permitir tal fato em um país com as dimensões da China seria<br />

uma temeridade. E contra a política de controle religioso na região<br />

de Xinjiang, as potências ocidentais não levantam a voz, pois estão<br />

interessadas no petróleo da Bacia do Tarin, no deserto do Talamakan.<br />

No início do século XX, no sul da China, surgiu um movimento<br />

religioso no qual seu líder se denominava “Filho de Deus”.<br />

Foram três anos de lutas intensas, uma vez que esse movimento<br />

pregava a criação de uma nação independente.<br />

É o exemplo típico da influência religiosa na vida política,<br />

que se dá no Oriente, onde os movimentos religiosos são escapes<br />

para os sofrimentos da vida cotidiana, mas não trazem a solução<br />

para os problemas sociais vividos.<br />

Conclusão<br />

Por minha cultura e formação, sinto grande dificuldade em<br />

emitir opinião, isento de preconceito ou deslumbrado pela realidade<br />

visível, apesar de lá ter vivido e procurado estudar a História e<br />

acompanhar a evolução política da China.<br />

Não há como aceitar conceitos da democracia ocidental como<br />

válidos para aplicação na China de hoje. Como implantar, por<br />

exemplo, um Poder Judiciário aos moldes dos existentes nos países<br />

ocidentais, para 1,3 bilhão de habitantes, com várias instâncias<br />

e tribunais especializados?<br />

O ritmo da abertura política não pode ser ditado pelos países<br />

ocidentais, pelo modelo americano. A experiência da Rússia e,<br />

mais recentemente, a do Iraque demonstram que a cultura não<br />

pode ser desprezada e que a História não pula capítulos.<br />

Pensar em permitir a influência religiosa no estado chinês é<br />

uma temeridade. Como admitir liberdade religiosa plena, se as religiões<br />

pregam mudanças sociais (que devem ocorrer) sem que<br />

ocorram no ritmo da cultura do país?<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

47


Marcelo Hecksher<br />

Certa vez, perguntaram a Deng Xioping qual teria sido a influência<br />

da Revolução Francesa na vida política da China. Respondeu Deng:<br />

é um fato muito recente para podermos analisar.<br />

Excluindo-se o aspecto evasivo da resposta, ainda assim se pode<br />

inferir que, na China, a História, definitivamente, não pula degraus.<br />

O autor é Coronel-Aviador da Reserva da Força Aérea Brasileira.<br />

48 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 42-48, jan./abr. <strong>20</strong>06


Celso Paulino da Silva<br />

O Marechal-do-Ar Armando Figueira<br />

Trompowsky de Almeida,<br />

Consolidador do Ministério<br />

da Aeronáutica<br />

Celso Paulino da Silva<br />

O nome Trompowsky inscreveu-se na História das Forças Armadas<br />

brasileiras, pelo desempenho que nelas tiveram dois grandes<br />

brasileiros, pai e filho. O primeiro, o Marechal Roberto Trompowsky<br />

Leitão de Almeida, Patrono do Magistério Militar do Exército, e o segundo,<br />

o Marechal-do-Ar Armando Figueira Trompowsky de Almeida,<br />

Consolidador do Ministério da Aeronáutica.<br />

Este nome, que ilustra uma admirável família brasileira, vem de<br />

Ana Elizabeth Von Trompowsky, nascida na Polônia, no início do século<br />

passado. Seu pai representava, junto à Corte brasileira, aquele<br />

país. Às tantas, o nobre povo polonês começou a se revoltar contra a<br />

tutela direta e indireta da Rússia, em conseqüência do Congresso de<br />

Viena, que reformulou o destino da Europa, após Napoleão sair do<br />

palco dos acontecimentos.<br />

A Rússia decide impor medidas rígidas para assegurar o estado<br />

de coisas estabelecido. O pai de Ana Elizabeth, chamado à Polônia,<br />

decide permanecer no Brasil.<br />

A esta altura, o denominado movimento de colonização do Brasil,<br />

iniciado graças à visão de estadista de D. João VI, já se encontrava<br />

em pleno desenvolvimento. De Norte a Sul, implantavam-se as<br />

famosas colônias formadas por filhos de muitos países, principalmente<br />

da Europa.<br />

Dentro desse quadro, cabe destacar a Colônia de São Pedro de<br />

Alcântara, junto à então cidade de Desterro, a qual, em 1894, passou a<br />

se chamar Florianópolis. A região atraía os europeus, tanto que, a seguir,<br />

surgiriam as Colônias de Itajaí, Blumenau, Joinvile e outras.<br />

Certamente atraído pelos encantos daquelas paragens, decidiu o<br />

pai de Ana Trompowsky mudar-se para a cidade de Desterro. Ali ela<br />

conheceu José Leitão de Almeida, com quem veio a se casar. Desse<br />

matrimônio nasceram dois filhos: Roberto Trompowsky Leitão de<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

49


Celso Paulino da Silva<br />

Almeida e Oscar Trompowsky Leitão de Almeida. O primeiro seguiu<br />

a carreira militar, e o segundo, a de engenharia civil.<br />

Em 1869, a família regressou ao Rio. O filho Roberto assentou<br />

praça com destino à Escola Militar, na qual ingressou em 1871.<br />

Nos primeiros postos, revelaram-se sua inteligência e outros<br />

predicados. Dentre esses, ressaltavam seus pendores para o magistério.<br />

Como capitão, foi assistente de Analítica e Cálculo do grande<br />

Benjamin Constant. Prosseguiu sua grande carreira no Exército<br />

Brasileiro, sempre ligado à cultura e ao ensino.<br />

A 8 de fevereiro de 1887, casa-se com a jovem Luísa de<br />

Andrade Figueira, filha do Conselheiro do Império, Sr. Domingos<br />

de Andrade Figueira.<br />

Em 8 de fevereiro de 1919, aos 66 anos de idade, foi reformado<br />

no posto de Marechal. Faleceu a 2 de agosto de 1926. O Decreto<br />

<strong>nº</strong> 51.429, de 13 de março de 1962, designou-o Patrono do Magistério<br />

do Exército.<br />

De seu casamento com Dª Luísa, nasceram quatro filhos, sendo<br />

uma mulher e três homens. Todos eles se tornariam, futuramente,<br />

pessoas de grande participação e de excelente evidência na vida<br />

pública e social brasileira.<br />

O primogênito viria a ser Ministro da Aeronáutica e a atingir o<br />

posto máximo da carreira: Marechal-do-Ar Armando Figueira<br />

Trompowsky de Almeida.Os outros dois foram: Dr. Otávio<br />

Trompowsky Leitão de Almeida (do Banco do Brasil) e Dr. Roberto<br />

Trompowsky Jr. A filha casou-se com o Almirante-de-Esquadra<br />

Adalberto Menezes de Oliveira.<br />

O Marechal-do-Ar Trompowsky, nascido a 30 de janeiro de<br />

1889, iria viver em sua juventude, no século XX, os grandes acontecimentos<br />

da conquista do ar. Em 1901, com a dirigibilidade dos balões,<br />

Santos-Dumont arrebata o Prêmio Deutsch de La Meurth, ao<br />

realizar, nos limites estabelecidos, o circuito que envolvia o contorno<br />

da Torre Eiffel. No Brasil, o ufanismo toma conta de todos, sobretudo,<br />

quando em 1903, o ilustre patrício, vindo da Europa, é recebido<br />

triunfalmente.<br />

Sob a orientação segura e inteligente de seus pais, Armando<br />

Trompowsky entra para a Escola Naval no início de 1906. A 23 de<br />

outubro desse ano, Santos-Dumont consagra-se, novamente, no seu<br />

histórico vôo no 14-bis. É de se imaginar o entusiasmo que deve ter<br />

50 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06


Celso Paulino da Silva<br />

envolvido os alunos daquela Escola voltada para o patriotismo, em plena<br />

formação. Sai da Escola em 1909 e, em 1914, já é primeiro-tenente.<br />

Por decreto de 23 de agosto de 1916, é criada a Escola de<br />

Aviação da Marinha, que logo começa a formar pilotos. No ano seguinte,<br />

a 17 de abril, o Primeiro-Tenente Armando Trompowsky matricula-se<br />

nessa Escola, onde completa o curso de piloto a 3 de outubro<br />

do mesmo ano. Permanece ali como instrutor e em outras funções<br />

até 1921. Nesse ano, é promovido a capitão-tenente. Vai para a<br />

Inspetoria da Marinha e, em 1923, para o Comando de Defesa Aérea<br />

do Litoral. Depois para o Comando da 2ª Esquadrilha de Bombardeio,<br />

Escola de Guerra Naval e Diretoria-Geral da Aeronáutica, voltando<br />

posteriormente para a Escola de Guerra Naval. Em 1932, é<br />

promovido a capitão-de-corveta e, em 1933, a capitão-de-fragata.<br />

Em 1934, serve na Escola de Aviação Naval. Em 1935, chega a capitão-de-mar-e-guerra.<br />

Em 1936 e 1937, comanda a Escola de Aviação<br />

Naval. Exerce a Vice-Direção da Aviação Naval. Em 16 de<br />

fevereiro de 1940, é promovido a Contra-Almirante e assume a Direção-Geral<br />

da Aeronáutica Naval.<br />

Vem para o Ministério da Aeronáutica com a criação deste,<br />

em <strong>20</strong> de janeiro de 1941. Em novembro desse mesmo ano, assume<br />

a Chefia do recém-criado Estado-Maior da Aeronáutica. Em 1º de<br />

abril de 1942, é promovido a major-brigadeiro-do-ar. Em abril de<br />

1945, foi Delegado do Brasil na Conferência ae Organização Internacional<br />

das Nações Unidas, realizada em San Francisco, nos EUA.<br />

Ainda nesse ano, em 30 de outubro, deixa a Chefia do Estado-Maior<br />

para assumir as funções de Ministro da Aeronáutica, em conseqüência<br />

da renúncia do Presidente da República e, naturalmente,<br />

de todo o seu Ministério.<br />

No final do ano, é eleito o novo Presidente, o General Eurico<br />

Gaspar Dutra, que competira com o Brigadeiro Eduardo Gomes.<br />

A 31 de janeiro de 1946, o então Maj.-Brig.-do-Ar Armando<br />

Trompowsky é confirmado, pelo novo Presidente, no Ministério da<br />

Aeronáutica, função que exerceu até o final do mandato do Presidente<br />

Dutra, tendo sido exonerado das funções por Decreto de 29 de<br />

janeiro de 1951. Já era tenente-brigadeiro-do-ar, posto a que fora<br />

promovido em <strong>20</strong> de setembro de 1946. No mesmo dia da sua exoneração<br />

como Ministro da Aeronáutica, passa a exercer as funções de<br />

Ministro do Superior Tribunal Militar.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

51


Celso Paulino da Silva<br />

Foi promovido a marechal-do-ar em 30 de janeiro de 1959, vindo<br />

a falecer em 16 de janeiro de 1964. Ao ser criada a Galeria dos<br />

Patronos do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, seu nome<br />

foi aprovado para a Cadeira <strong>nº</strong> 6 como Patrono.<br />

Na condução dos destinos da Aeronáutica brasileira, Armando<br />

Trompowsky houve-se com elevado espírito patriótico e visão profissional<br />

de grande alcance. Pode ser considerado, com justiça, o<br />

Consolidador do novo Ministério.<br />

Havendo terminado a Segunda Guerra Mundial, o Ministro<br />

Trompowsky depara-se com os problemas que decorriam da consolidação<br />

do Ministério e do recebimento das bases americanas do Norte<br />

e Nordeste brasileiros. Com efetivos pequenos, naqueles locais, para<br />

que as bases fossem preservadas e mantidas em funcionamento, foi<br />

necessário utilizar os aspirantes da Escola de Aeronáutica e os oficiais<br />

da Reserva Convocada.<br />

Ao término da Guerra, iniciava-se uma nova ordem de coisas.<br />

A evolução do equipamento aéreo pedia novas estruturas, pessoal<br />

capacitado e, sobretudo, a longo prazo, o desenvolvimento de uma<br />

indústria nacional como fator básico de independência, condição<br />

mandatória do Poder Aéreo.<br />

Para a consolidação do Ministério da Aeronáutica, pelos Decretos-Leis<br />

<strong>nº</strong> 9.888 e 9.889, de 16 de setembro de 1946, o Ministro<br />

Trompowsky deu-lhe nova organização e reorganizou a Força Aérea<br />

Brasileira.<br />

Com vistas a esses largos objetivos, uma série de providências<br />

se desenvolveram. Dentre elas cabe destacar:<br />

– Criação da Diretoria de Ensino;<br />

– Reorganização e ampliação do Estado-Maior da Aeronáutica;<br />

– Reorganização das Unidades Aéreas;<br />

– Reorganização das Bases Aéreas;<br />

– Criação da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica;<br />

– Criação do Curso de Tática Aérea;<br />

52 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06


Celso Paulino da Silva<br />

– Criação da Escola Preparatória de Cadetes do Ar;<br />

– Criação das Auditorias;<br />

– Aquisição de prédio na Av. Marechal Câmara, reunindo<br />

nele os diversos órgãos do Ministério da Aeronáutica que se achavam<br />

espalhados em diversos prédios;<br />

– Ampliação e instalação da Escola de Especialistas da Aeronáutica,<br />

em Guaratinguetá , São Paulo;<br />

– Instalação do Curso de Oficial Mecânico, em Curitiba;<br />

– O Correio Aéreo Nacional, no período da Administração<br />

do Ministro Trompowsky, estimulado pelo apoio oficial, bem como,<br />

fortalecido pela atualização profissional e um fluxo de novo material,<br />

conseqüências da nossa participação na Segunda Guerra<br />

Mundial, viveu uma grande expansão no seu memorável objetivo<br />

de integração nacional. Com os aviões C-47 e tripulações devidamente<br />

adestradas, iniciou as linhas sobre os Andes e penetrou a<br />

fundo pelo Brasil. Em março de 1964, inaugurou a primeira linha<br />

transandina para La Paz e, em 1947, a do Acre, integrando as<br />

Regiões Oeste e Amazônica do Brasil;<br />

– Criação da Comissão de organização do Centro Técnico<br />

Aeroespacial, cujas obras de construção se iniciaram em 1947 e<br />

permitiram o funcionamento do ITA, em 1950;<br />

– Criação dos Parques de Material Aeronáutico de Belém,<br />

Recife e Porto Alegre;<br />

– Construção de duzentos e trinta e quatro aviões Fairchild<br />

PT-19;<br />

– Criação da Comissão de Estudos Relativos à Navegação<br />

Aérea Internacional (CERNAI), órgão que viria a se firmar no<br />

campo internacional, como solução racional para defesa de nossos<br />

interesses no setor da Aviação Comercial;<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

53


Celso Paulino da Silva<br />

– Ativação e ampliação dos Serviços de Proteção ao Vôo<br />

através dos Serviços Regionais de Proteção ao Vôo, tendo como<br />

órgão central a Diretoria de Rotas Aéreas;<br />

– Ainda no Universo da Aviação Civil, muitos problemas foram<br />

enfrentados. Houve, após a Guerra, uma proliferação de companhias<br />

aéreas, conseqüência do baixo custo dos aviões que sobraram daquele<br />

conflito. Pelo controle das concessões de Linhas e restrições<br />

às iniciativas aventureiras, aos poucos o problema foi sendo dominado.<br />

O Táxi Aéreo foi regularizado. Foi criada a homologação dos<br />

serviços técnicos. Expandiram-se as Linhas de integração pelo mecanismo<br />

das subvenções. Ao final de 1949, o número de Aeroclubes<br />

atingira 331, dos quais 230 tinham escola de pilotagem;<br />

– Reaproveitamento de Oficiais da Reserva da FAB.<br />

Pelo Decreto <strong>nº</strong> 9.889 foi reorganizada a Força Aérea Brasileira,<br />

tendo como pontos marcantes:<br />

– Os Regimentos e Grupos passam a Grupos e Esquadrões,<br />

ficando mais adequados àquele empregado na Segunda Guerra Mundial,<br />

recentemente terminada;<br />

– Todas as Unidades Aéreas tiveram suas denominações e<br />

organizações mudadas, exceto os Grupos de Transportes.<br />

Em decorrência daquele Decreto, por Portaria Ministerial, as<br />

Bases Aéreas tiveram uma organização harmonizada com a nova<br />

concepção operacional.<br />

Com a evolução rápida da Aviação nessa época, havia necessidade<br />

de engenheiros aeronáuticos.<br />

Vários engenheiros foram formados na Escola Técnica do Exército.<br />

Foi criada a Comissão de Organização do Centro Técnico da<br />

Aeronáutica (COCTA), em 29 de janeiro de 1946, subordinada ao<br />

Ministro da Aeronáutica, para dar curso à implantação do Plano<br />

elaborado pelo Professor Richard H. Smith, acompanhado pelo Tenente-Coronel-Aviador<br />

Montenegro, no qual o Instituto Tecnológico<br />

da Aeronáutica (ITA) teria a prioridade de implantação.<br />

54 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06


Celso Paulino da Silva<br />

As obras do CTA, iniciadas em 1947, permitiram que o ITA<br />

passasse a funcionar no primeiro semestre de 1950.<br />

O Ministro Trompowsky foi, portanto, um dos grandes responsáveis<br />

pela existência do CTA e do ITA.<br />

A Diretoria de Intendência, tendo sido criada, construiu o Depósito<br />

Central de Intendência, em Marechal Hermes (Rio de Janeiro);<br />

instalou o Reembolsável Central de Intendência e os<br />

Reembolsáveis Regionais; organizou as Fazendas de Pirassununga e<br />

de Jacarepaguá, assim como a Lavanderia da Aeronáutica.<br />

Concedeu autonomia administrativa aos Núcleos de Parque de<br />

Aeronáutica de Recife, de Belém e de Porto Alegre, que passaram a<br />

funcionar como 4º Escalão de Suprimento e Manutenção. A Diretoria<br />

do Material foi reorganizada com um novo Regulamento, e foi<br />

implantado o Sistema Kardex nos Parques do Rio de Janeiro e de<br />

São Paulo, e no Depósito de Aeronáutica do Rio de Janeiro.<br />

Foi criado o Serviço de Transporte e ativado o Parque de Viaturas.<br />

Em 5 de dezembro de 1947, o nome de Alberto Santos-Dumont<br />

foi incluído, em caráter permanente, no Almanaque do Ministério da<br />

Aeronáutica, no posto de tenente-brigadeiro.<br />

Em 1948, foram aprovados o “Regulamento para o Serviço<br />

de Investigações de Acidentes Aeronáuticos” e as “Instruções<br />

para a Concessão de Funcionamento e Realização de Tráfego<br />

das Empresas de Táxi Aéreo”.<br />

Na área de Saúde, reestruturou o Serviço de Saúde e criou o<br />

Quadro de Farmacêuticos de Saúde da Aeronáutica e o Curso de<br />

Formação de Enfermeiros da Aeronáutica.<br />

Através da Diretoria de Aeronáutica Civil, o Ministério subvencionou<br />

várias Linhas de penetração interiorana, assim como, aeroclubes<br />

do interior e os que possuíam escola de formação de pilotos.<br />

As obras da construção da ponte, que ligava o continente à Ilha<br />

do Governador, iniciada com o Ministro Dr. Salgado Filho, foi inaugurada<br />

em 31 de janeiro de 1949, pelo Ministro Trompowsky.<br />

Naquele ano de 1949, ficaram prontos o Edifício Central do<br />

Aeroporto Santos-Dumont e o hangar <strong>nº</strong> 3, que fora iniciado em 1945.<br />

Durante a sua gestão, foram adquiridas várias aeronaves para<br />

a Força Aérea Brasileira.<br />

No ano de 1947, foram trazidos por tripulações brasileiras, cem<br />

aviões de treinamento avançado North American AT-6.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

55


Celso Paulino da Silva<br />

Ao final de 1947 e início de 1948, foram adquiridos 25 aviões de<br />

caça Republic P-47 “Thunderbolt” e 60 aviões de bombardeio médio<br />

North American B-25 “Mitchell”.<br />

Foram adquiridos, também, de 1946 a 1950, 64 aviões bimotor<br />

Beechcraft (AT-7, AT-11 e C-45) e 30 aviões de transporte bimotor<br />

Douglas (C-47 e DC-3).<br />

Muitos outros fatos poderiam ser lembrados para enaltecer a<br />

administração do segundo Ministro da Aeronáutica. Numa síntese<br />

de tudo, basta lembrar sua atuação serena e patriótica durante os<br />

tempos atribulados de então. Quando iniciou sua gestão, a Aeronáutica<br />

acabara de viver horas difíceis. As paixões políticas estavam<br />

exacerbadas. O final do ano de 1945 fora difícil para o País,<br />

culminando essas dificuldades com a renúncia do próprio Presidente<br />

da República. Este, por suas ligações com a Aeronáutica, e pela<br />

simpatia e eficiência do seu Ministro Salgado Filho, naturalmente<br />

tinha seus admiradores e amigos. Por outro lado, o grande líder da<br />

Aviação, Eduardo Gomes, ao perder as eleições para a Presidência<br />

da República, trouxera uma frustração para os seus liderados.<br />

Dentro desse clima, não deve ter sido fácil ao Ministro conduzir,<br />

no início, os negócios da Aeronáutica. Sua grandeza, porém, fez<br />

com que se amainassem os ressentimentos e, aos poucos, as consciências<br />

e as atenções foram se voltando para os grandes objetivos<br />

da nossa Aviação.<br />

Por Decreto de 9 de janeiro de 1951, vinte dias antes de deixar<br />

o Ministério, foi nomeado Ministro do Superior Tribunal Militar. Em<br />

30 de janeiro de 1959, é aposentado por completar setenta anos.<br />

Nesses oito anos de magistrado, distribuiu justiça, pois era digno, independente,<br />

sereno e compreensivo.<br />

Em 12 de março de 1959, foi promovido a marechal-do-ar,<br />

de acordo com a legislação em vigor. A 16 de janeiro de 1964 veio<br />

a falecer.<br />

O Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER) reconhece<br />

no Marechal Trompowsky um lídimo representante da “CLAS-<br />

SE QUE REPELE, PELO RESPEITO DE UMA LEGÍTIMA COM-<br />

PREENSÃO, O QUE ABSTARDA E AMESQUINHA” – palavras<br />

proferidas por ele quando presidiu a instalação do Clube de Aeronáutica,<br />

a 5 de agosto de 1946 – motivo pelo qual é Patrono da<br />

Cadeira <strong>nº</strong> 6 do seu Conselho Superior.<br />

56 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06


Celso Paulino da Silva<br />

Dados Biográficos<br />

– Filiação: Roberto Trompowsky Leitão de Almeida e Luiza<br />

Figueira Trompowsky de Almeida.<br />

– Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)<br />

– Nascimento: 30 de janeiro de 1889<br />

– Esposa: Séfora Franco<br />

– Filhos: uma filha<br />

– Data de Praça: 11 de abril de 1906<br />

– Declaração de Guarda-Marinha: 12 de janeiro de 1909<br />

Promoções<br />

– Segundo-Tenente: 6 de outubro de 1910<br />

– Primeiro-Tenente: 3 de junho de 1914<br />

– Capitão-Tenente: 30 de novembro de 1921<br />

– Capitão-de-Corveta: 25 de fevereiro de 1932<br />

– Capitão-de-Fragata: 15 de junho de 1933<br />

– Capitão-de-Mar-e-Guerra: 21 de fevereiro de 1937<br />

– Contra-Almirante: 16 de fevereiro de 1940<br />

– Major-Brigadeiro-do-Ar: 1º de abril de 1942<br />

– Tenente-Brigadeiro-do-Ar: <strong>20</strong> de setembro de 1946<br />

– Marechal-do-Ar: 30 de janeiro de 1959<br />

Cursos Acadêmicos<br />

– Escola Naval<br />

– Aviador Naval<br />

– Comando da Escola de Guerra Naval<br />

Principais Cargos e Funções<br />

– Instrutor de vôo na Escola de Aviação Naval<br />

– Comandante da Esquadrilha de Caça<br />

– Oficial de Ligação entre a Escola de Aviação Naval e o<br />

Estado-Maior da Armada<br />

– Chefe do Departamento do Pessoal do Centro de Aviação<br />

Naval do Rio de Janeiro<br />

– Auxiliar de Ensino na Escola de Guerra Naval<br />

– Secretário Militar na Escola de Guerra Naval<br />

– Comandante da Escola de Aviação Naval<br />

– Diretor-Geral da Aeronáutica Naval<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

57


– Chefe do Estado-Maior da Aeronáutica<br />

– Ministro da Aeronáutica<br />

– Ministro do Superior Tribunal Militar<br />

Celso Paulino da Silva<br />

Medalhas e Condecorações<br />

– Ordem do Mérito Aeronáutico, grau de Grande Oficial<br />

– Ordem da Coroa da Itália, grau de Cavaleiro<br />

– Medalha Militar de Ouro<br />

– Medalha da Campanha do Atlântico Sul<br />

– Legião do Mérito, grau de Comandante, conferido pelo Governo<br />

americano<br />

– Brevê do “Command Pilot Wings” da Força Aérea Americana<br />

O autor é Coronel-Aviador Reformado e Vice-Diretor do<br />

Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica.<br />

58 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 49-58, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

A Evolução do Poder Aéreo entre<br />

as Duas Guerras Mundiais<br />

José Augusto Abreu de Moura<br />

1. Introdução<br />

Ao terminar o primeiro conflito mundial, o avião estava consagrado<br />

como arma de guerra, desmentira a infeliz afirmação do Marechal<br />

Foch, em 1910, de que não tinha valor militar, mas constituía,<br />

para todos os países, uma solução em busca do problema, pois não se<br />

sabia exatamente como ele poderia melhor fazer o que as armas<br />

fazem, ou seja, contribuir para a solução de problemas militares. Assim,<br />

as opiniões de alguns militares competentes que participaram do<br />

conflito iriam originar as teorias que, pelos vinte anos seguintes,<br />

condicionariam, em conjunto com as estratégias nacionais, o desenvolvimento<br />

do Poder Aéreo.<br />

Mas o avião não foi a única novidade do conflito a suscitar<br />

elucubrações para descobrir seu emprego ótimo. Duas outras importantes,<br />

que viriam a se relacionar em importantes sistemas, foram o<br />

carro de combate e o rádio, a que se juntou o radar no fim dos anos<br />

vinte do século passado.<br />

Este trabalho procura abordar alguns aspectos considerados<br />

interessantes e que cercaram a preparação dos poderes aéreos de<br />

alguns países no período entre guerras e avaliar seus resultados na<br />

Segunda Guerra Mundial.<br />

2. A Arte da Guerra na Primeira Guerra Mundial<br />

Após as guerras napoleônicas, a forma terrestre de lutar foi<br />

sendo alterada a passos largos com a evolução tecnológica da Segunda<br />

Revolução Industrial; apareceram: a ferrovia, o telégrafo, as<br />

técnicas de administração, as armas portáteis de repetição, o canhão<br />

de retrocarga, a metralhadora, o arame farpado, a trincheira etc. Após<br />

as guerras de secessão americana e de unificação da Alemanha, o<br />

novo paradigma parecia estabelecido e, até à Primeira Guerra Mundial,<br />

só fez se firmar.<br />

A mobilização nacional, segundo alguns, constituíra a verdadeira<br />

Revolução nos Assuntos Militares observada na Revolução Francesa.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

59


José Augusto Abreu de Moura<br />

O decreto da “Levée en Masse” (23 de agosto de 1793) institucionalizara<br />

a já presente mobilização de corações e mentes dos franceses para a<br />

defesa de la Nation, o conceito que galvanizava as massas e proporcionava<br />

voluntários mal-contados mas orgulhosos.<br />

Cento e vinte anos depois, o progresso do registro civil, da administração<br />

pública, das comunicações e dos transportes fazia com que<br />

uma necessidade de recompletamento sentida pelo alto-comando resultasse<br />

num telegrama chegando à casa do convocado, determinando<br />

o dia de seu comparecimento a um quartel, onde recebia equipamento<br />

e armamento previamente preparado, integrava uma Unidade que pegava<br />

um trem e ia para a área onde seria empregada. O revanchismo<br />

da Guerra Franco-Prussiana e o “tradicional élan do soldado francês”,<br />

divulgados de forma estudada, cuidavam dos corações e mentes.<br />

A tecnologia havia materializado a mobilização nacional, tornando-a<br />

um paradigma seguido por todos os países europeus, o que fazia mecânica,<br />

e até fácil, a reposição das imensas perdas humanas causadas<br />

pela guerra de trincheiras.<br />

Talvez, porém, o paradigma mais terrível firmado na guerra tenha<br />

sido o do envolvimento das estruturas nacionais, em virtude da grande<br />

dependência das Forças Armadas e das operações militares em relação<br />

à estrutura econômica e social dos Estados – agora, tais estruturas,<br />

aí incluída a população civil, passaram a constituir objetivos militares.<br />

Havia, porém, ao fim da guerra, o sentimento entre militares de<br />

vários países de que aquela carnificina não se deveria repetir, e isso motivava<br />

a busca de alternativas para que a próxima guerra fosse diferente.<br />

No mar também – a partir dos padrões da Marinha a vela, o<br />

combate naval havia evoluído, com a revolução naval do século XIX,<br />

para o emprego de linhas de batalha, com navios de ferro portando<br />

canhões de grande calibre e forças ligeiras (navios menores com funções<br />

auxiliares no combate). Esse paradigma foi firmado na Guerra<br />

Russo-Japonesa, confirmado na batalha da Jutlândia e assim continuou<br />

após a Grande guerra.<br />

Houve, porém, duas novidades importantes: uma com visível e<br />

perturbadora repercussão na estratégia – o submarino, empregado<br />

contra o tráfego mercante, reeditou o corsário e mostrou a capacidade<br />

devastadora que as modernas tecnologias proporcionaram às<br />

campanhas de negação do uso do mar; a outra, menos importante,<br />

guardava para o futuro o mistério de seu potencial: no dia de Natal<br />

60 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

de 1914, os ingleses realizaram o primeiro ataque aeronaval da<br />

História – contra a base de zepelins de Cuxhaven – a partir de<br />

três navios improvisados que lançaram e recolheram sete aviões.<br />

Até ao fim do conflito a Marinha britânica possuía cerca de<br />

doze navios para essa finalidade.<br />

3. As Teorias do Poder Aéreo<br />

Para a Aviação Civil, o período entre guerras foi a época<br />

em que a Humanidade procurou compensar o atraso de dez mil<br />

anos de civilização bidimensional: desbravaram-se o Saara e os<br />

oceanos, criaram-se os primeiros serviços de correio e transporte<br />

aéreo, fizeram-se convenções internacionais normativas e, ao<br />

final, tínhamos a espinha dorsal que até hoje sustenta os serviços<br />

aéreos.<br />

Para a Aviação Militar, foi a época dos ativistas do Poder<br />

Aéreo – uns poucos participantes da Primeira Guerra Mundial<br />

que, impressionados com as possibilidades do avião, se preocuparam<br />

em dotar seus países da melhor forma de empregá-lo, o que<br />

implicava na mudança de alguns dos paradigmas firmados. Como<br />

esses paradigmas eram muito fortes, os mais exaltados desses<br />

precursores enfrentaram problemas em suas instituições.<br />

3.1 Giulio Douhet<br />

Sem dúvida, o mais radical dos teóricos do Poder Aéreo via o<br />

avião como uma forma de envolver no conflito a totalidade da nação<br />

– estruturas e população civil – e, paradoxalmente, torná-la<br />

mais curta e menos onerosa em vidas. Tornou-se o primeiro e principal<br />

formulador do que ficou conhecido como bombardeio estratégico<br />

– o voltado contra as capacidades da nação inimiga prosseguir<br />

na guerra – e seu pensamento foi resumido por David MacIsaac da<br />

seguinte maneira:<br />

– a guerra moderna não faz qualquer distinção entre combatentes<br />

e não combatentes;<br />

– não é mais possível realizar ofensivas bem sucedidas empregando<br />

forças de superfície;<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

61


José Augusto Abreu de Moura<br />

– as vantagens da velocidade e da elevação no cenário<br />

tridimensional da guerra aérea tornam impossível realizar qualquer<br />

medida defensiva contra uma estratégia aérea ofensiva;<br />

– por esses motivos, uma nação deve estar preparada desde o<br />

começo para lançar bombardeios em grande escala contra os centros<br />

populacionais, o governo e a indústria do inimigo. Atacar primeiro e<br />

atacar pesadamente para destruir o moral da população civil inimiga,<br />

deixando o governo inimigo sem outra opção além de pedir a paz;<br />

– para fazer isso é necessário, antes de tudo, possuir uma força<br />

aérea independente, dotada de aviões de bombardeio de longo alcance<br />

e mantida num permanente estado de prontidão.<br />

Tal linha de raciocínio pressupõe a possibilidade de dissuasão, o<br />

que foi considerado no período abordado por este ensaio e se popularizou<br />

durante a Guerra Fria, com a extensão nuclear dos conceitos de Douhet.<br />

3.2 Hugh Trenchard<br />

Trenchard não era um teórico; pode-se dizer que era um prático.<br />

Oficial do Exército Britânico, teve sua grande capacidade reconhecida<br />

e aproveitada. Aprendeu a voar já como major, quando se<br />

formou o Corpo Aéreo do Exército, e o comandou na França de 1915<br />

a 1918, quando foi escolhido para organizar e comandar a nova Arma,<br />

a Força Aérea Real (RAF), cargo que exerceu até 1929, tendo, portanto,<br />

oportunidade de moldá-la às suas idéias, construídas com a<br />

experiência de combate.<br />

Trenchard nunca advogou a tese de que os bombardeios podiam<br />

por si mesmos, sozinhos, ganhar a guerra; achava que o enfraquecimento<br />

do moral do inimigo era uma espécie de pré-requisito<br />

para que os exércitos pudessem avançar com uma oposição bem<br />

mais fraca. Na guerra, devido à insuficiência de interceptadores,<br />

argumentava que a primeira tarefa da Aviação era atacar os aeroportos<br />

alemães para mantê-los fora do ar e, assim, proporcionar<br />

continuidade às operações militares. Enfatizava o bombardeio estratégico<br />

em vários níveis – de depósitos de suprimentos e pontes<br />

até siderúrgicas e minas de carvão – e considerava que seus efeitos<br />

psicológicos eram superiores aos materiais na proporção de <strong>20</strong> para 1.<br />

62 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

Era contra o bombardeio indiscriminado de áreas residenciais, embora<br />

admitisse o ataque a áreas industriais, ainda que em regiões urbanas.<br />

Para ele, os bombardeios deveriam atingir o maior número possível de<br />

fábricas e não necessariamente destruir umas poucas, pois assim, o<br />

pânico se espalharia mais na população e induziria ao absenteísmo,<br />

maximizando os efeitos estratégicos da ação.<br />

3.3 William (Billy) Mitchell<br />

Mitchell também aprendeu a voar como major, já com 38 anos,<br />

e era observador americano na França quando os EUA entraram na<br />

guerra em 1917, tendo lá estabelecido e comandado o Corpo Aéreo<br />

do Exército Americano. Conheceu muito bem Hugh Trenchard, que<br />

se tornou seu mentor.<br />

Considerava importante o bombardeio estratégico, mas, ao contrário<br />

de Douhet, dava grande valor às aeronaves de combate e, em<br />

sua concepção, o enfrentamento entre as forças aéreas oponentes<br />

ocupava lugar de destaque.<br />

Mitchell era um estudioso de Estratégia e causava-lhe exasperação<br />

a falta de atenção das autoridades com o desenvolvimento do<br />

Poder Aéreo, segundo ele, a única forma de dar ao país a vitória na<br />

guerra, que previa como inevitável. Dentre os choques que travou<br />

com as estruturas, dois são dignos de menção.<br />

Em 1921, sentindo-se ridicularizado pela Marinha por ter expressado<br />

a opinião de que um encouraçado, que custava mil vezes mais que<br />

um avião, podia ser afundado por um desses engenhos, desafiou a força<br />

naval para um teste. O teste foi realizado e o resultado foi o afundamento<br />

do encouraçado alemão Ostfriedland.<br />

Em dezembro de 1925, foi submetido à Corte Marcial por ter<br />

chamado de incompetentes os líderes da Marinha e do Exército. Essa<br />

Corte Marcial, que durou sete semanas, se converteu na realidade<br />

em um seminário sobre Estratégia e sua teoria do Poder Aéreo, na<br />

qual ele predisse que:<br />

– a próxima guerra seria global;<br />

– os EUA enfrentariam o Japão;<br />

– os acontecimentos da futura guerra contra o Japão, no Pacífico,<br />

inclusive, o ataque a Pearl Harbour e às Filipinas;<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

63


José Augusto Abreu de Moura<br />

– os navios-aeródromos não poderiam fazer frente à aviação<br />

baseada em terra;<br />

– um forte Poder Aéreo era a única forma de enfrentar com<br />

êxito tal situação.<br />

4. O Desenvolvimento do Poder Aéreo<br />

Como não poderia deixar de ser, além das visões dos pioneiros,<br />

citadas no item anterior, o desenvolvimento do Poder Aéreo teve como<br />

condicionante básico uma estratégia nacional dos países.<br />

4.1 Na Alemanha, a Opção pela Quantidade<br />

Segundo o historiador Marcio Scalércio, da PUC-RJ, Hitler tinha<br />

os objetivos expansionistas definidos no Mein Kampf, e a consciência<br />

de que eles tinham que ser atingidos durante sua gestão, pois<br />

não acreditava que outro líder posterior aceitasse tais desafios. Assim,<br />

o rearmamento alemão foi extremamente rápido, horrorizando o<br />

Estado-Maior Geral (EMG), que contava com um exército adequadamente<br />

equipado e organizado não antes de 1943.<br />

Causa estranheza o fato de a Luftwaffe, que já era uma força<br />

singular e comandada pelo segundo homem na hierarquia nazista,<br />

não ter pleiteado um papel mais independente, tendo-se resignado a<br />

prover, no esquema operacional da “blitzkrieg”, um apoio às forças<br />

blindadas que era equivalente ao de uma artilharia móvel de muito<br />

longo alcance.<br />

O Führer, que interferia bastante na estrutura militar, além de<br />

dispensar muita coisa considerada necessária pelo EMG, estava disposto<br />

a gastar generosamente com carros de combate e aviões, que<br />

via, do ponto de vista político, como armas de terror, além de serem<br />

parte de um sistema de armas – a “blitzkrieg” – que prometia decisões<br />

militares rápidas, o que era coerente sua orientação.<br />

Havia um grande defensor do papel independente da Força, o<br />

General Wever, mas ele morreu em 1936 e, nessa época, os pilotos<br />

alemães estavam aprendendo importantes lições na Guerra Civil Espanhola:<br />

era extremamente difícil localizar e atingir alvos com alguma<br />

precisão, exceto os maiores; e o moral da população civil era menos<br />

frágil do que supunham os defensores do bombardeio estratégico.<br />

64 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

Além disso, os protótipos dos quadrimotores não foram bem sucedidos<br />

e verificou-se que os bimotores poderiam ser construídos a um<br />

custo mais baixo e mais rapidamente, o que acrescentava a vantagem<br />

de a taxa de crescimento do número de aeronaves causar maior<br />

impressão aos inimigos em potencial.<br />

Em conseqüência, decidiu-se investir no bombardeiro de mergulho,<br />

a partir de um conceito americano: abandonar a idéia da criação<br />

de uma força de bombardeiros pesados e investir na construção<br />

de bombardeiros bimotores.<br />

Havia também outras razões: na época (1937-1938), os inimigos<br />

prováveis da Alemanha eram a Tchecoslováquia e a França, que<br />

podiam ser alcançadas por bombardeios médios; além disso, a estratégia<br />

alemã incluía a conquista de outros países passo a passo, de<br />

modo a utilizar seus recursos, o que não era compatível com a destruição<br />

de suas indústrias e comunicações, o que ocorreria com a<br />

aplicação do conceito de bombardeio estratégico.<br />

Assim, a força de bombardeiros foi constituída de uma grande<br />

quantidade de bombardeiros médios – Heinkel e Dornier – e uma<br />

pequena quantidade de bombardeiros de mergulho – Stuka. Estes,<br />

ainda que proporcionassem alguma precisão, não permitiam o apoio<br />

aproximado, sendo empregados contra alvos a alguma distância por<br />

trás da linha de frente.<br />

Desta maneira, a Luftwaffe se considerava equipada para fazer<br />

a sua parte – cooperar com o Exército – desde que a força aérea<br />

inimiga fosse neutralizada ou destruída logo no início da campanha, o<br />

que fazia parte dos planos.<br />

4.2 Na Inglaterra, a Versão Trenchard dos Princípios de Douhet<br />

A criação da RAF em 1918, como a primeira força aérea independente<br />

no mundo, havia sido conseqüência de um estudo realizado<br />

ao calor dos ataques realizados contra Londres pelos Zepelins e pelos<br />

aviões alemães Gotta que, em 1917, haviam inaugurado a era do<br />

bombardeio estratégico. Na época do Armistício, os ingleses planejavam<br />

criar uma força de bombardeiros de longo raio de ação, cuja<br />

primeira missão seria destruir a região do Ruhr, em 1919.<br />

Essa propensão inglesa ao bombardeio estratégico foi corroborada<br />

nos anos 19<strong>20</strong> pelo livro de Douhet e, nos anos 1930, pela propaganda<br />

nazista que propalava a capacidade destruidora da Luftwaffe<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

65


José Augusto Abreu de Moura<br />

– o principal inimigo após 1933. Tais fatos fizeram com que a Inglaterra<br />

adotasse uma estratégia de dissuasão, criando uma força de<br />

bombardeiros capazes de transportar grandes cargas de bombas a<br />

grandes distâncias e dando prioridade à construção desses aviões.<br />

Isso parecia a melhor defesa porque, não havendo uma defesa possível,<br />

como prescrevia Douhet, contra uma ofensiva de bombardeio<br />

estratégico, o jeito seria evitá-la ameaçando o terror com mais terror.<br />

É bem verdade que a RAF passou boa parte do período entre<br />

guerras lutando ferozmente para manter sua independência e relutava<br />

em desviar recursos da tarefa de bombardeio estratégico, pela<br />

qual era responsável, para as de apoio ao Exército e à Marinha. Isso<br />

fez com que a ofensiva aérea fosse supervalorizada, o que era coerente<br />

com a orientação implantada por Trenchard, de que esse seria<br />

o principal papel da força aérea.<br />

Vale dizer que, em 1937, a Marinha reassumiu o controle do<br />

pequeno esquadrão aéreo da Esquadra, mas não investiu muitos recursos<br />

nele, que continuou dotado de aviões de baixo desempenho,<br />

destinados basicamente às tarefas anti-submarino e de busca aérea.<br />

A Inglaterra possuía um órgão que definia as prioridades de<br />

defesa – o Comitê de Necessidades de Defesa (DRC) – do qual<br />

faziam parte os representantes dos ministérios civis e os das Forças<br />

Armadas, e ele foi, durante bastante tempo favorável à prioridade<br />

acima citada, contudo, em 1936 ou 1937, quando se percebeu a impossibilidade<br />

de obter a paridade numérica em bombardeiros com a<br />

Luftwaffe, o representante do Tesouro no Comitê começou a forçar<br />

a busca de outra alternativa – o que Douhet achava impossível, mas<br />

a tecnologia indicava – um sistema de defesa aérea baseado no radar.<br />

A insistência desse civil acabou vencendo e, em 1938, veio a<br />

decisão de dar prioridade à construção do citado sistema e dos aviões,<br />

bem a tempo de aproveitar os novos interceptadores Spitfire,<br />

cuja produção estava sendo iniciada.<br />

4.3 O Avião como Sucessor do Canhão Naval (EUA)<br />

A Marinha americana se beneficiou do entrevero com o General<br />

Mitchell. A comprovação prática de que os aviões eram capazes<br />

de afundar encouraçados possibilitou a definição do conceito<br />

operacional básico da Aviação Naval, cuja busca estava consumindo<br />

esforços dos estrategistas e dos táticos: Dentro da concepção<br />

mahaniana, o navio-aeródromo substituiria o encouraçado, e o avião<br />

66 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

seria o lançador de explosivos nos navios capitais inimigos, ou seja,<br />

substituiria o canhão naval de grande calibre, a principal arma no<br />

paradigma da linha de batalha, só que com um alcance muito maior.<br />

Como os canhões têm como especificações importantes não só<br />

o alcance, mas também a cadência de tiro e a capacidade de destruição<br />

dos projetis, os porta-aviões deveriam ter a capacidade de relançar<br />

os aviões armados com rapidez e estes deveriam ser capazes de<br />

portar armamento eficaz contra navios – bombas e torpedos.<br />

Além disso – e aqui vai a adesão sem preconceitos a outras<br />

opiniões de Mitchell – seria necessário, às forças navais, dispor de<br />

interceptadores para defesa aérea, além da defesa antiaérea, constituída<br />

pela artilharia de tiro rápido, isto porque, além de poderem operar<br />

dentro do raio de ação da Aviação de ataque baseada em terra,<br />

elas poderiam ter que enfrentar, no mar, uma marinha que houvesse<br />

tido a mesma idéia – e esse era exatamente o caso: a partir de 1932,<br />

uma guerra no Pacífico contra o Japão, cuja Marinha também desenvolvia<br />

semelhante conceito de Aviação Naval, passava a ser tema<br />

dos jogos de guerra na Escola de Guerra Naval americana. O Almirante<br />

Niemitz dirá mais tarde que, com exceção dos aviadores suicidas,<br />

todas as alternativas estratégicas empregadas pelos japoneses<br />

haviam sido jogadas antes da guerra.<br />

Assim, enquanto a Marinha inglesa, pioneira nas operações<br />

aeronavais, continuava com a concepção tradicional, a Marinha americana<br />

passou a explorar um novo campo de emprego do Poder Aéreo.<br />

Esta foi, segundo alguns autores, uma das principais revoluções<br />

dos assuntos militares evidenciadas no segundo conflito mundial.<br />

Embora os americanos não houvessem constituído uma Força<br />

Aérea independente – só viriam a fazê-lo após a Segunda Guerra<br />

Mundial – alguns estudiosos produziram pareceres aproximados aos<br />

princípios de Douhet sobre as vantagens da ofensiva aérea. Assim, a<br />

Força Aérea do Exército americano acabou desenvolvendo aviões<br />

que ultrapassavam as necessidades do apoio operacional às forças<br />

terrestres e tinham, claramente, capacidade de realizar o bombardeio<br />

estratégico, como foi o caso do B-17.<br />

4.4 No Japão, o Admirador de Mitchell<br />

O Japão tinha duas Forças Armadas que, além de possuírem forças<br />

aéreas próprias, faziam guerras separadas e disputavam prestígio,<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

67


José Augusto Abreu de Moura<br />

prioridades e verbas com algum açodamento, normalmente com predominância<br />

do Exército.<br />

A Marinha japonesa, de orientação nitidamente mahaniana,<br />

foi a única, além da americana, a vislumbrar a substituição do<br />

encouraçado pelo porta-aviões. Sua força aeronaval teve como um<br />

dos principais organizadores (para alguns, seu verdadeiro fundador)<br />

o futuro Almirante Yamamoto que, no início dos anos vinte,<br />

serviu por dois anos nos EUA, onde foi auxiliar do adido naval,<br />

estudou em Harvard e se tornou grande admirador de Mitchell, cujas<br />

idéias procurou implementar em sua Marinha. Assim, a esquadra<br />

japonesa que, nos anos trinta do século XX, também considerava a<br />

US Navy uma possível adversária no futuro, procurou preparar-se<br />

à sua imagem e semelhança, com as limitações impostas pela menor<br />

capacidade do Japão e tomando medidas em várias áreas para<br />

compensar, ainda que em parte, o “gap” de poder que as separava.<br />

Dentre essas medidas constou a de despertar o interesse pela Aviação<br />

Naval, a fim de formar o maior número possível de pilotos,<br />

aspecto avaliado como crítico.<br />

5. Os Resultados<br />

Como seria de se esperar, o grande exame vestibular ocorrido<br />

entre 1939 e 1945 refletiu os efeitos das incorreções da preparação dos<br />

poderes aéreos diante da sorte da guerra.<br />

Para os alemães, tudo funcionou bem até à queda da França,<br />

mas a Batalha da Inglaterra dizimou sua força de bombardeiros. A<br />

crença inicial, de que a operação a partir das bases na França ocupada<br />

compensaria o curto raio de ação de seus debilmente armados<br />

bombardeiros bimotores e dos interceptadores que os escoltavam,<br />

não se verificou, evidenciando a falta que fazia uma Aviação estratégica<br />

constituída de bombardeiros com maior capacidade de carga,<br />

maior raio de ação e, principalmente, maior capacidade defensiva.<br />

A essa altura, a Alemanha não podia fazer muita coisa, e desistiu<br />

da invasão da Inglaterra – que, afinal, não constava do projeto<br />

político original – antes que sua força aérea se debilitasse tanto que<br />

comprometesse as operações seguintes – estas sim, que constavam<br />

do Mein Kampf, e onde seria empregada a “blitzkrieg” já testada,<br />

melhorada com novos carros de combate e a experiência adquirida.<br />

68 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

Para os ingleses, o que os salvou na Batalha da Inglaterra foi o<br />

sistema de defesa aérea com radares, que ficara pronto exatamente<br />

em 1940. Os interceptadores, então pouco numerosos, foram<br />

superexigidos, merecendo a conhecida frase elogiosa de Churchill. A<br />

dissuasão dos bombardeiros havia fracassado e as poucas incursões<br />

realizadas contra a Alemanha só tiveram como conseqüência a interferência<br />

de Hitler junto à Luftwaffe para realizar ataques de represália<br />

contra cidades, desviando esforços dos objetivos realmente estratégicos<br />

– fábricas de aviões, centros de treinamento de pilotos<br />

etc., o que, se não foi um efeito negligenciável, estava longe de ser o<br />

propósito para o qual a força de bombardeiros havia sido criada.<br />

A Aviação de apoio às forças terrestres, negligenciada ao contrário<br />

da dos alemães, foi deficiente no início da guerra, contribuindo<br />

para a derrota do exército na Grécia e em Creta.<br />

Apesar da prioridade que haviam recebido, no início da guerra,<br />

os bombardeiros ingleses, que operavam à noite, não obtinham resultados<br />

esperados devido à falta de precisão nos ataques. Com a entrada<br />

dos EUA na guerra, a ofensiva aérea foi aos poucos sendo<br />

fortalecida pelos pesados bombardeios da Força Aérea do Exército<br />

americano que, sendo diurnos, conseguiam precisão um pouco melhor.<br />

Mesmo assim, os efeitos dessas ações eram considerados pequenos<br />

em face do poder industrial alemão e, em 1943, a defesa das<br />

cidades alemãs estava infligindo perdas inaceitavelmente altas aos<br />

aviões anglo-americanos.<br />

Justamente quando parecia que os bombardeios teriam que<br />

ser suspensos, apareceu uma arma salvadora – o P-51 Mustang,<br />

interceptador americano medíocre que, ao receber o motor do<br />

Spitfire, conseguiu desempenho superior ao dos interceptadores<br />

alemães com o raio de ação de um bombardeiro, o que permitiu<br />

fazer a escolta desses aviões e engajar a defesa aérea. Seguiu-se a<br />

alteração dos objetivos para as fábricas de aviões e as usinas de<br />

óleo sintético essenciais à Luftwaffe que, desta maneira, foi praticamente<br />

destruída.<br />

Vemos, assim, que a primeira vitória da campanha de bombardeios<br />

estratégicos foi a destruição da Força Aérea alemã, o que,<br />

certamente, não era um de seus objetivos originais, e foi determinante<br />

para a realização do desembarque na Normandia, operação básica<br />

para a vitória aliada.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

69


José Augusto Abreu de Moura<br />

O esquadrão aéreo da esquadra inglesa fez milagres apesar<br />

da má qualidade de seus aviões, se notabilizando pelo ataque à Base<br />

Naval italiana de Taranto, mas a falta de maiores investimentos<br />

nessa capacidade foi sentida em diversas ações, como as realizadas<br />

ao largo de Creta, em 1941, quando a total superioridade aérea<br />

da Luftwaffe resultou na perda de três cruzadores, seis contratorpedeiros<br />

e em avarias graves em dois encouraçados e um portaaviões,<br />

também nesse ano, quando um encouraçado e um cruzador<br />

de batalha foram afundados, na Malásia, por aviões japoneses e, no<br />

ano seguinte, após a queda de Singapura, quando a Esquadra do<br />

Oriente, a quem cabia a defesa da Índia e do Ceilão teve que se<br />

refugiar em portos africanos para não ser destruída pela Aviação<br />

Embarcada japonesa.<br />

Os porta-aviões ingleses eram apenas navios que lançavam e<br />

recolhiam aviões e estavam longe de serem substitutos dos<br />

encouraçados. Para se ter uma idéia, em 1939, um navio-aeródromo<br />

inglês de primeira linha levava somente de 24 a 30 aeronaves, enquanto<br />

os japoneses e americanos levavam de 80 a 100, e que podiam<br />

ser estacionados, reabastecidos e rearmados no convés de vôo,<br />

ao contrário dos ingleses, que só podiam fazê-lo no hangar, o piso<br />

abaixo, de onde tinham que ser levados ao convôo para a decolagem<br />

e deste trazidos após o pouso. Isso indica que o tempo para<br />

relançamento de uma nova vaga não havia sido considerado em<br />

suas especificações.<br />

Os americanos, para quem a defesa aérea do território nacional<br />

não constituía um problema, não possuíam, no início da guerra,<br />

bons interceptadores, nem mesmo a Marinha, que teve dificuldades<br />

com os “Zero” japoneses mas, com sua notória capacidade<br />

industrial, em pouco tempo se recuperaram. Não tiveram, contudo,<br />

graves problemas trazidos por orientação estratégica inadequada<br />

porque, após o período de perplexidade dos anos vinte do<br />

século passado, souberam adaptar-se às contingências da época,<br />

sem dogmatismos.<br />

Os japoneses fizeram o que podiam, mas estavam por demais<br />

exigidos com uma custosa guerra terrestre da qual não conseguiram<br />

se livrar, além da guerra naval onde seu destino foi decidido. Seu<br />

material era adequado às operações realizadas mas, ao que parece,<br />

haviam iniciado a formação de pilotos navais com certo atraso, e seu<br />

70 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06


José Augusto Abreu de Moura<br />

número não foi suficiente para sustentar as operações após as grandes<br />

perdas aéreas sofridas até sua segunda ofensiva naval, na Batalha<br />

de Midway.<br />

5. Conclusão<br />

No geral, a Segunda Guerra Mundial parece ter aprovado as<br />

iniciativas que não se limitaram aos dogmas e que alijaram os preconceitos<br />

para, com base em análises sérias, estabelecer as estratégias<br />

mais convenientes às necessidades e possibilidades do país.<br />

Há casos emblemáticos como o da Inglaterra, que venceu a<br />

batalha contra os bombardeiros alemães devido à opinião de um civil<br />

– o representante do Tesouro no DRC e o da Marinha americana,<br />

que colocou de lado as diatribes de Mitchell e aproveitou suas idéias<br />

tirando grande proveito.<br />

As idéias de Douhet referentes ao aspecto absoluto do bombardeio<br />

estratégico não foram demonstradas na prática. O moral das<br />

populações não caiu a ponto de forçar governos à rendição e, no caso<br />

da Alemanha, apesar do importante efeito cumulativo de cinco anos<br />

de bombardeio sobre suas indústrias, o efeito do bombardeio estratégico<br />

que teve mais importância para a vitória aliada foi de natureza<br />

militar, ou mesmo operacional: a destruição da Luftwaffe, que possibilitou<br />

o desembarque na Normandia.<br />

Posteriormente, os princípios de Douhet voltaram à baila com o<br />

advento da arma nuclear e, dessa vez, felizmente, só serviram para<br />

dissuasão, pois as “armas feitas para não usar” nunca foram realmente<br />

usadas após Nagasaki. Mais recentemente, foram<br />

implementados sob nova roupagem – a do “Choque e Pavor”, na<br />

guerra do Iraque, num cenário em que a enorme disparidade de forças<br />

favoreceu o atacante.<br />

O autor é Capitão-de-Mar-e-Guerra da reserva da Marinha de Guerra<br />

e Mestre em História Militar pela UNIRIO, em parceria com<br />

o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB).<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 59-71, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

71


A Dinâmica do Processo<br />

Civilizatório<br />

Manuel Cambeses Júnior<br />

Manuel Cambeses Júnior<br />

A base de tudo é o homem, a sua visão de mundo e a sociedade<br />

que cria. O homem e a sociedade humana têm em si variáveis e<br />

processos que podem nos permitir explicar a civilização ou o domínio<br />

crescente do homem sobre aquilo que o cerca.<br />

Nossa tarefa, contudo, extrapola a visão do historiador ou do<br />

antropólogo ao tentar dar essa explicação. É fácil tanto para um<br />

como para outro explicar por que Atenas ou Esparta colocava o<br />

seu mundo na Grécia, ou Roma colocava o seu mundo no Mar Mediterrâneo,<br />

ou por que se chegou a uma época em que o mundo está<br />

colocado no planeta Terra.<br />

Para eles, o entendimento deste pressuposto tenderia a restabelecer,<br />

de forma estranha e paradoxal, o mundo de Ptolomeu. A<br />

Terra, todos nós sabemos, não é mais, conceitualmente, na astronomia,<br />

como foi por longo tempo, o centro do Universo. Os astros não<br />

giram em torno da Terra e isto foi provado por Copérnico, há quatro<br />

séculos. Entretanto, cada vez mais, nos últimos quatro séculos, a<br />

Terra, em sua totalidade, tem sido ocupada pelas mesmas questões<br />

e tem sido arrebatada pelas mesmas idéias. E de idéias que, em seu<br />

interior, carregam o processo civilizatório. Na verdade, a Terra tem<br />

sido, cada vez mais, o centro de tudo, ao ser progressivamente ocupada<br />

pela civilização.<br />

Para nós, que olhamos sob o prisma das relações entre<br />

dualidades, por isto a Terra se tem transformado, crescentemente,<br />

em um campo de luta, em que se digladiam, de um lado, a intransigência<br />

e suas aliadas: o mercado e a desordem natural; e, de outro lado, a<br />

razão e suas forças principais: o planejamento e a ordem construída.<br />

Este é o fenômeno. É a civilização. Não é a globalização.<br />

Diferentemente daquilo que tem sido propagado, a prevalência<br />

das mesmas teses no mesmo espaço e a sua luta têm explicitado,<br />

crescentemente, as dualidades primitivas das sociedades humanas:<br />

a do centro com a periferia, e a da barbárie com a cultura.<br />

Entretanto, é de fundamental importância o entendimento de que es-<br />

72 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06


Manuel Cambeses Júnior<br />

tes contrários sempre formam uma única unidade. Existe, permanentemente,<br />

uma unidade dos contrários.<br />

Essa é a verdadeira explicação, porque a disputa desse espaço,<br />

que é finito, que é limitado, tem sido feita, nos últimos quatrocentos anos,<br />

com muito maior vigor e rapidez, pelas partes que compõem o todo.<br />

Entretanto, chegar a esse estágio no processo civilizatório requereu<br />

um permanente embate do homem com o universo. A conquista<br />

é uma ação de cooptação. Mas também é a afirmação de uma<br />

dominação. Há uma tese original – o homem – mas, também, há a<br />

sua antítese – o universo. Um para o outro.<br />

A mediação entre esses contrários foi, até à época das luzes, o<br />

trabalho; hoje, é a ciência. As contradições permanecem intocadas.<br />

Nem o trabalho, nem a ciência desvelam o ignoto. As perguntas iniciais<br />

permanecem sem respostas. Entretanto, é inegável que o homem<br />

se aproximou do Absoluto, desde que se levantou sobre as patas posteriores<br />

e andou em alguma planície desse, na época, para ele, imenso<br />

planeta. E isto se tornou possível porque assumiu a posição de<br />

ordenador de seu contraditório: a natureza – materialização primeira<br />

do universo. O homem, desde que racionalizou, se inconformou. E<br />

desde que se inconformou, defrontou-se com a intransigência.<br />

As razões dessa aproximação com o Absoluto são várias. Uma,<br />

no entanto, é unânime, em todos os pensadores que discutem o progresso<br />

humano: a vida social e a sua acompanhante permanente, a<br />

vida política. E estas têm, como sua última criatura: o Estado-Nação.<br />

A idéia de Estado-Nação é um pensamento muito elaborado.<br />

Seu entendimento pressupõe o caminhar por uma linha ininterrupta<br />

de idéias, através do espaço e do tempo, que ligam as hordas às<br />

grandes potências. O Estado-Nação constitui o resultado das soluções<br />

silenciosas e progressivas das questões que surgiram da convivência<br />

humana. Querer, num ensaio, estabelecer o preciso momento<br />

e a melhor via em que se deram essas soluções, é buscar o<br />

inalcançável. Entretanto, a forma dessas soluções sempre foi a mesma:<br />

o pacto. Seja aquele resultante da imposição do mais poderoso e<br />

que, portanto, decorre da racionalização de desvantagens; seja aquele<br />

que advém da composição de vontades, e que, portanto, resulta da<br />

racionalização de vantagens.<br />

O pacto é, antes de tudo, um produto da razão. A linha que<br />

liga as hordas à sociedade atual – à civilização – é um contínuo de<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

73


Manuel Cambeses Júnior<br />

pactos, sendo, talvez, a mais visível expressão da razão. O Estado-<br />

Nação é a última estação dessa linha ininterrupta de acordos. Não<br />

a última, mas a última conhecida. Não a definitiva, mas a última<br />

praticada. Conhecer o Estado-Nação é conhecer a história da razão<br />

e de seus pactos.<br />

O entendimento de que o Estado-Nação resulta da razão é<br />

importantíssimo. O homem, em sua inteireza, se defronta internamente<br />

com muitas dualidades. As mais importantes para a sua<br />

existência são, em nossa opinião: o inconformismo versus a resignação,<br />

e a razão versus a emoção. Conceituamos a resignação e<br />

a emoção como formadores da intransigência, enquanto consideramos<br />

o inconformismo e a razão como os estimuladores da conquista<br />

do universo, pelo gênero humano. Sintetizamos, assim, o<br />

processo. E essa síntese nos acompanhará ao longo deste ensaio.<br />

A idéia de Estado Nacional resulta, portanto, da posição<br />

ordenadora do homem. Entretanto, essa posição ordenadora se processa<br />

por ondas sucessivas. Pode-se observar passagens da História<br />

da civilização, onde se verifica empiricamente a formulação proposta<br />

e que foi por nós nomeada como teoria do retardo.<br />

Em síntese, há ações que desencadeiam a desordem e há ações<br />

que restabelecem uma nova ordem, em um novo patamar. Ruptura<br />

e equilíbrio transitório, estes se alternam. Nada pode explicar melhor<br />

a marcha do processo civilizatório do que o aceite da teoria do<br />

retardo e das rupturas que nela estão consignadas e que resultam<br />

da ação ordenadora do homem, fruto de seu inconformismo. A uma<br />

ruptura processada segue-se uma nova ordem. Esta nova ordem é<br />

início de uma nova desordem. De certa forma, isto se expressa nas<br />

idéias contidas nos versos abaixo:<br />

Pérsia era o Centro, Grécia era a periferia.<br />

Pérsia era culta, Grécia era bárbara. Veio o tempo;<br />

Grécia era o centro, Roma era a periferia.<br />

Grécia era culta, Roma era bárbara. Veio o tempo;<br />

Roma era o centro, Bizâncio era a periferia.<br />

Roma era culta, Bizâncio era bárbara. Veio o tempo;<br />

Bizâncio era o centro, os árabes estavam na periferia.<br />

Bizâncio era culta, os árabes eram bárbaros. Veio o tempo;<br />

Os árabes estavam no centro, a Península Ibérica era a<br />

periferia.<br />

74 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06


Manuel Cambeses Júnior<br />

Os árabes eram cultos, a Península Ibérica era bárbara.<br />

Veio o tempo;<br />

A Península Ibérica era o centro, a Inglaterra era a periferia.<br />

A Península Ibérica era culta, a Inglaterra era bárbara.<br />

Veio o tempo;<br />

A Inglaterra era o centro, a América era a periferia.<br />

A Inglaterra era culta, a América era bárbara. Veio o tempo;<br />

A América é o centro. A América é culta. O tempo virá...<br />

Esses versos, além de mostrarem, de forma singela, o predomínio<br />

sempre transitório no processo civilizatório, mostram, de forma<br />

inequívoca, a ruptura e o estabelecimento de uma nova ordem, sucessivas<br />

vezes, no decorrer deste processo.<br />

A simplificação estabelecida permite ainda concluir que a dinâmica<br />

do processo civilizatório, que aqui foi nomeado como teoria do<br />

retardo, pode ser assim resumida: toda periferia busca o centro e<br />

toda a barbárie busca a cultura.<br />

O centro exerce sobre a periferia dois papéis: o de repulsor e o<br />

de articulador. O centro não tem a dinâmica, que é atributo exclusivo<br />

da periferia. O centro deve ser sempre visto como um castelo sitiado.<br />

O papel de repulsor do centro repousa na capacidade que desenvolve<br />

de repelir o que aqui nomearemos de forças de atração ou<br />

de avanço, e que resultam da busca do centro pela periferia. Dentre<br />

essas, podemos citar: a migração, o comércio, o fluxo de idéias etc.<br />

Quanto mais bem sucedido for o centro na repulsão dessas forças, na<br />

transformação delas em forças centrífugas, maior sucesso poderá<br />

ter o centro em permanecer centro.<br />

O papel de articulador do centro reside na capacidade que desenvolve<br />

de organizar as forças caóticas que existem na periferia, no<br />

sentido de compô-las, objetivando minimizar sua resultante, buscando<br />

uma soma zero, o que, em muito, pode também contribuir para seu<br />

papel de repulsor.<br />

Já a cultura, esta exerce, sobre a barbárie, dois outros papéis: o<br />

de atrator e o de organizador.<br />

A função de atrator da cultura, algo imanente, é o que movimenta<br />

as sociedades, fornece a dinâmica ao processo e provoca a atração da<br />

periferia para o centro. A função de organizador dá, à cultura, a capacidade<br />

de vetorizar a barbárie, de acordo com seus interesses.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

75


Manuel Cambeses Júnior<br />

A ruptura se processa quando a barbárie atinge o centro com<br />

força suficiente para se impor. Não se trata, portanto, de algo que resulte<br />

de um determinismo. Nem toda periferia está fadada a chegar ao<br />

centro, nem toda a barbárie está vocacionada para chegar à cultura.<br />

Trata-se de um fenômeno de natureza similar ao da fecundação. A<br />

busca não é a materialização. Assim como só o mais competente<br />

espermatozóide é que pode aspirar fecundar o óvulo, assim, também,<br />

só a mais competente barbárie é que pode aspirar provocar ruptura.<br />

Não é a periferia que rompe o centro; é a barbárie mais competente.<br />

Da análise procedida verifica-se que a barbárie mais competente<br />

tem duas características claras: em primeiro lugar, um alto grau<br />

de coesão social e uma posição contestatória da cultura dominante.<br />

Para se chegar ao centro se tem de ter coesão social e se tem de ser<br />

contestatório. Periferias alinhadas nunca chegaram ao centro.<br />

Outro ponto muito importante é o fato de que o centro nem<br />

sempre é a cultura, pois essa só consegue preencher, plenamente,<br />

suas funções atratora e organizadora no centro, ou melhor dizendo,<br />

quando a antiga periferia passa a ser o novo centro. É por isso que o<br />

começo de um novo centro é sempre na barbárie. Por isso é que a<br />

cultura do antigo centro sempre é absorvida pelo novo centro.<br />

Esse choque entre periferia e centro, que é a condição para o<br />

sucesso do processo civilizatório, exige, do lado da barbárie, uma ação<br />

ordenadora para processar a ruptura, e um alto grau de coesão social.<br />

E essa ação ordenadora resulta dos pactos que se processam no<br />

âmbito das sociedades periféricas. Resulta, hoje, dada a complexidade<br />

das questões postas, de acordos que só poderão se processar no<br />

âmbito do Estado-Nação.<br />

Esta é a razão pela qual enfatizamos neste ensaio o tema do<br />

Estado-Nação, também chamado por alguns de Estado Nacional. Por<br />

que Estado-Nação? Por que não simplesmente Estado? Ou por que<br />

não simplesmente Nação? Porque nem Nação, nem Estado são a<br />

mais elaborada ordenação humana na vida política e nem sozinhos<br />

foram capazes de alterar, nos últimos quatrocentos anos, as relações<br />

no centro e na cultura. E nem o serão nos próximos cem anos. Isto<br />

porque o conceito de Nação é uma abstração contemplativa, apesar<br />

de mobilizadora, e o conceito de Estado é uma abstração mobilizadora,<br />

apesar de contemplativa. Mas, no Estado-Nação, contemplação e<br />

mobilização se juntam, tornando possível a realização coletiva, tan-<br />

76 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06


Manuel Cambeses Júnior<br />

to de um, como de outro, tornando possível a construção de um<br />

Projeto Nacional. O Estado Nacional Moderno se explicita por um<br />

Projeto Nacional.<br />

De certa forma, essas colocações recuperam a visão de Hegel<br />

(1770-1831) em sua inteireza. Como o filósofo apresentou, a evolução<br />

histórica resulta da solução da tensão entre opostos, que se dá de<br />

forma repentina. Desaparecendo os opostos, desaparecia, na visão<br />

do filósofo, a tensão. Isto é óbvio, se só existem duas partes. Poderia,<br />

então, ser a conclusão de quem estivesse trabalhando sob a ótica<br />

hegeliana, ao tratar da dualidade centro e periferia, ou da dualidade<br />

barbárie e cultura, que existiriam soluções na tensão entre esses opostos.<br />

Ao se tratar dessas dualidades, as duas partes são múltiplas, o<br />

que garante a permanente tensão e, conseqüentemente, a imortalidade<br />

da história. Síntese feita, antítese colocada. Novo centro, nova<br />

periferia. Nova cultura, nova barbárie.<br />

Em todo processo social é o sonho que o move. Após a queda do<br />

Muro de Berlim, um velho maniqueísmo recolheu-se. Aquele que começou<br />

vendo o mundo como um embate entre girondinos e jacobinos e<br />

acabou por vê-lo como um embate entre Leste e Oeste. Pode-se discutir,<br />

agora, a questão central do processo civilizatório, sem as pressões<br />

de hipóteses preestabelecidas. Hegel afirmava que a razão universal<br />

ou o espírito universal era a mola propulsora da História. Marx<br />

achava que não era esse ente espiritual o demiurgo das transformações<br />

e que Hegel havia posto as coisas de cabeça para baixo. Para<br />

Marx, as condições materiais de vida eram decisivas para o processo<br />

histórico. Dessa forma, Marx dizia que não eram os pressupostos espirituais<br />

numa sociedade que levavam a modificações materiais, mas sim<br />

o oposto: as condições materiais é que determinavam, em última instância,<br />

as espirituais. Ao assim fazê-lo, Marx reduzia o sonho humano<br />

ao simples olhar econômico, pois só contemplava a busca econômica<br />

como a única responsável pelas modificações em todos os outros setores<br />

e, conseqüentemente, pelo rumo da História.<br />

Entretanto, a simplificação marxista poderia explicar as revoluções<br />

do seu tempo, o século XIX. Como a Física newtoniana explicava<br />

parcela restrita dos fenômenos da natureza, aquela que se dá no<br />

exclusivo mundo da mecânica clássica, a visão marxista poderia explicar<br />

as questões sociais do seu tempo, o tempo de transição da<br />

primeira para a segunda revolução industrial.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

77


Manuel Cambeses Júnior<br />

Cumpre, entretanto, recuperar Hegel. O sonho, fruto do espírito,<br />

é o impulsionador da História. E este sonho é muito mais claro e<br />

muito mais forte na periferia e na barbárie. O que Hegel colocava em<br />

sua filosofia era a permanente dinâmica. Existe uma dinâmica social.<br />

E a origem desta dinâmica é o sonho coletivo. Sonho que resulta e se<br />

processa no âmbito de uma sociedade. Diferentemente do que Marx<br />

havia colocado, o maior choque, o grande responsável pelo processo<br />

civilizatório, é o que se processa entre sociedades e não aquele que<br />

se dá dentro de uma sociedade. O maior dos choques é o que se dá<br />

entre o sonho coletivo de uma sociedade emergente e a intransigência,<br />

ou seja, tudo aquilo que se opõe à dinâmica social. Em outras palavras,<br />

a intransigência nada mais é do que a ação do centro contra a<br />

periferia, da cultura contra a barbárie.<br />

Para nós brasileiros, que somos considerados bárbaros e periféricos,<br />

é chegada a hora de assumirmos a dinâmica que esses atributos<br />

nos impõe. E esta dinâmica se vetoriza com um Projeto Nacional.<br />

Poderemos ser ou não ser. Mas teremos de tentar. Se o conseguirmos<br />

daremos ao processo civilizatório um novo espaço em ser.<br />

Espaço este, onde ibéricos, negros, índios, holandeses, mais antigamente,<br />

e japoneses, alemães e italianos, mais proximamente, se sentiram<br />

latinos e recuperaram para o Lácio o fio condutor da História.<br />

O autor é Coronel-Aviador da reserva da Força Aérea,<br />

Membro-correspondente do Centro de Estudos Estratégicos<br />

da Escola Superior de Guerra, Membro Titular do Instituto<br />

de Geografia e História Militar do Brasil e Pesquisador do INCAER.<br />

78 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 72-78, jan./abr. <strong>20</strong>06


Araken Hipólito da Costa<br />

O Renascimento<br />

Araken Hipólito da Costa<br />

No seio da cultura ocidental, a Renascença surgiu a partir de<br />

1450, constituindo um processo que se notabilizou por buscar e favorecer<br />

tudo o que aperfeiçoasse o homem intelectual e praticamente.<br />

O indivíduo é visto como valor absoluto, a natureza como o seu reino,<br />

a História como sua criação e a Arte como expressão de sua superioridade<br />

sobre os demais seres da criação. A razão torna-se a instância<br />

privilegiada de busca de sentido para coisas em geral. A fé vai<br />

perdendo sua exclusividade e a filosofia declara sua autonomia diante<br />

da teologia.<br />

Os homens da ciência passaram a não aceitar mais o despotismo<br />

da filosofia e da teologia. Defendiam a tese de que o tipo de<br />

conhecimento tem seu método próprio e, por conseqüência, sua autonomia.<br />

Foi assim que se inventou a imprensa, se descobriu a pólvora<br />

pírica e se chegou às Américas. Em 1548, Copérnico lançou a<br />

teoria do heliocentrismo. E, com uma hipótese revolucionária, que<br />

contrariava a concepção geral então vigente, põe o sol como centro<br />

do universo e faz a Terra girar ao redor dele. Esta teoria implicava<br />

em que o homem não habitava o lugar central do cosmos, mas um<br />

planeta subsidiário; a própria encarnação do Verbo não se terá dado<br />

no centro do universo. Para os pensadores cristãos da época, isto<br />

era um tanto desconcertante.<br />

Verdade é que as novas idéias propostas por Copérnico não<br />

tiveram a repercussão que podiam ter. Todavia, prepararam o caminho<br />

para a tese de Galileu Galilei que, no século seguinte, provocou<br />

grande celeuma. Os defensores das novas teorias eram matemáticos.<br />

Reduziam a realidade às dimensões desta ciência, que desconhece<br />

a qualidade e as demais categorias que não sejam a quantidade.<br />

Fizeram, sem dúvida, grandes descobertas, mas também deixaram<br />

de lado grandes valores, já solidamente adquiridos.<br />

O movimento protestante é iniciado por Martinho Lutero, que, a<br />

partir de 1517, quis reformar o Credo e as instituições cristãs, apresentando<br />

três pontos capitais:<br />

a) a justificação pela fé, sem as obras;<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 79-81, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

79


Araken Hipólito da Costa<br />

b) a Bíblia, única fonte de fé, sujeita ao livre exame;<br />

c) a negação de intermediários entre Deus e o crente.<br />

Psicologicamente, o que trouxe a reforma ao Ocidente foi o<br />

individualismo. O espírito do livre exame, em nome do qual se operou<br />

a insurreição contra a autoridade religiosa, em matéria escriturística,<br />

exorbitou do terreno religioso e alcançou todos os demais. Ao reinado<br />

do dogma, sucedeu o reinado da opinião. À autoridade da Igreja,<br />

sucedeu a do crente. A obediência à lei, substituiu-se pelo domínio da<br />

vontade. Ao organismo medieval, o individualismo moderno. Todas<br />

as manifestações da atividade humana no Ocidente, com destaque<br />

nas Artes Plásticas durante os séculos que mediaram entre a reforma<br />

e os nossos dias, estão dominados por essa primazia crescente do<br />

indivíduo sobre a sociedade.<br />

Foi, entretanto, o Renascimento, que fez da volta ao pensamento,<br />

às formas estéticas e aos modelos políticos antigos uma das novas<br />

civilizações. Assim, tinham de lutar por uma nova forma de expressão,<br />

diferente da clássica, assim como da medieval, mas relacionada<br />

a ambas e devedora de ambas.<br />

Uma das descobertas mais significativas da História da Arte foi<br />

o método de criar ilusão de profundidade numa superfície plana –<br />

chamado perspectiva, que veio a ser a base da pintura européia nos<br />

quinhentos anos seguintes. A perspectiva implica em que as relações<br />

existentes são puramente matemáticas. Através dela, percebemos já<br />

uma noção cara ao mundo moderno: a correta concepção da realidade<br />

é matemática, onde as relações qualitativas, presentes na antigüidade<br />

e no medievo, cedem lugar às quantitativas. Como o olhar do<br />

pintor está fora do quadro retratado, analogamente o olhar do sujeito<br />

passa a conhecer a realidade, tornando-se referência.<br />

A descoberta da tinta a óleo pelo pintor flamengo Van Eyck<br />

(1422) tornou-se por excelência o meio da Renascença, pois permitiu<br />

o aumento das opções de cores, com suaves nuances de tonalidades,<br />

o que permitia aos pintores representar texturas e simular formas em<br />

três dimensões.<br />

Neste período, os artistas deixaram de pintar na madeira, por<br />

ser uma base pesada, desconfortável e de preparo demorado. Eles<br />

passaram a trabalhar sobre uma tela esticada numa estrutura leve: o<br />

chassi, que facilitava o seu transporte e era um meio mais fácil de<br />

alcançar a burguesia que surgia.<br />

80 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 79-81, jan./abr. <strong>20</strong>06


Araken Hipólito da Costa<br />

Cabe ressaltar a importância da pintura desta época em registrar<br />

os momentos históricos, religiosos e políticos, tornando-se um<br />

meio imprescindível para a leitura do transcurso da História. A pintura<br />

era também utilizada como reprodução da anatomia humana, sendo<br />

motivo de estudos pelos alunos nas Escolas de Medicina.<br />

Com a invenção do espelho em Florença, manifesta-se o<br />

aparecimento de um novo gênero que ultrapassa a temática religiosa:<br />

o auto-retrato. Os pintores renascentistas começaram por<br />

se concentrar na possibilidade mais evidente de individualização,<br />

ou seja, o rosto.<br />

O termo homem da renascença veio a significar um indivíduo<br />

de talentos múltiplos, que irradiava saber. Seu protótipo foi Leonardo<br />

Da Vinci (1452-1519), que chegou mais perto deste ideal. Leonardo<br />

fez mais que qualquer outro para criar o conceito de gênio-artista.<br />

Aliás, o termo fama surge no Renascimento. Quando deu início ao<br />

seu primeiro projeto, o artista era considerado um artesão servil. Ao<br />

acentuar permanentemente os aspectos intelectuais da Arte e da<br />

criatividade, Leonardo transformou o status do artista, segundo suas<br />

palavras, em Senhor e Deus.<br />

Leonardo da Vinci era pintor, escultor, arquiteto, engenheiro,<br />

inventor, cientista. Homem de grandes idéias, nem sempre realizadas.<br />

Há muitas obras suas inacabadas. Carreira de apenas trinta quadros.<br />

O mais famoso quadro do pintor: Monalisa ou La Gioconda<br />

(1503-1506) incorporava todas as descobertas renascentistas de perspectiva,<br />

anatomia, composição e, sobretudo, a magia do sfumato, da<br />

luz suave e atenuada, destituída de qualquer dureza, o que provoca<br />

um sem-número de sentimentos do observador.<br />

O autor é Coronel-Aviador da reserva da Força Aérea e artista plástico.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 79-81, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

81


Ivan Fialho<br />

Mentalidade de Defesa no Brasil<br />

Ivan Fialho<br />

O desenvolvimento de uma mentalidade ou cultura de defesa<br />

no âmbito da sociedade brasileira constitui-se numa variável independente<br />

fundamental, na busca da valorização da segurança e da<br />

defesa nacionais – condição básica para propiciar a concepção e<br />

implementação de um Sistema Nacional de Defesa, que disponha<br />

de efetiva capacidade dissuasória para neutralizar ou minimizar as<br />

vulnerabilidades estratégicas do País.<br />

O poder militar brasileiro está há vários anos aquém da estatura<br />

político-estratégica do País, justamente pela baixa prioridade<br />

que os governos vêm dando à segurança e à defesa, a qual se traduz<br />

em dotações orçamentárias insuficientes e instáveis.<br />

Uma das maneiras de tentar reverter essa situação é uma<br />

ação concertada e sistemática do Ministério da Defesa e dos Comandos<br />

das Forças junto aos formadores de opinião no meio político,<br />

na intelectualidade e na mídia.<br />

A Escola Superior de Guerra, consciente desse problema, realizou<br />

um seminário sobre o tema, em setembro de <strong>20</strong>05, com a participação<br />

do historiador José Murilo de Carvalho, do Almirante-de-<br />

Esquadra R1 Mário César Flores e do Jornalista e Professor Oliveiros<br />

Ferreira, cujas principais idéias são abordadas neste artigo.<br />

A própria Política de Defesa Nacional (PDN) expressa<br />

que “após um longo período sem que o Brasil participe de conflitos<br />

que afetem diretamente o território nacional, a percepção das ameaças<br />

está desvanecida para muitos brasileiros”. Noutra passagem,<br />

orienta que “o desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio<br />

da sociedade brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da<br />

importância das questões que envolvam ameaças à soberania, aos<br />

interesses nacionais e à integridade territorial do Brasil”.<br />

Muitas dificuldades se levantam para esse propósito. É preciso,<br />

inicialmente, reconhecer que a ausência de mentalidade de defesa<br />

tem várias explicações de natureza histórica e política:<br />

– não há percepção de ameaça militar externa; a da Argentina,<br />

há muito, foi superada, o que gerou desinteresse pela defesa;<br />

82 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 82-85, jan./abr. <strong>20</strong>06


Ivan Fialho<br />

– o País não entra em guerra há muito tempo (a última vez em<br />

que houve invasão do território brasileiro foi em 1864, durante a Guerra<br />

do Paraguai);<br />

– nossas guerras foram lutadas fora do território nacional (Segunda<br />

Guerra Mundial; Primeira Guerra Mundial, esta com participação<br />

irrelevante);<br />

– por muitos anos, no século passado, houve contaminação entre<br />

conceitos de defesa externa e de segurança interna, sendo esta<br />

vista por largos setores da mídia e dos intelectuais como repressão<br />

política, o que por sua vez gerou forte preconceito contra os militares;<br />

– esse preconceito, por outro lado, deriva, principalmente, das<br />

interferências militares na vida nacional, o que, a propósito, hoje não<br />

mais acontece, dado o processo de crescente profissionalização das<br />

Forças Armadas;<br />

– nossa política externa, endossada pela sociedade e pelo mundo<br />

político, não tem prestigiado sua dimensão estratégica, como o<br />

fazem os países que pesam no cenário internacional;<br />

– o despreparo das elites – o que o preconceito e o desinteresse<br />

aportam suas influências – e vice-versa – é parte das deficiências<br />

das elites brasileiras, que deixam de oferecer à defesa nacional uma<br />

atenção adequada e competente;<br />

– o desinteresse e o despreparo chegam a ponto de freqüentemente<br />

as Forças Armadas serem conhecidas, apenas, por suas atividades<br />

subsidiárias – atividades realmente importantes, especialmente nas áreas<br />

mais carentes e vazias, mas que não devem desvirtuar a atividade principal<br />

que é o preparo para a defesa externa;<br />

– os assuntos de defesa não empolgam a sociedade e por isso<br />

não geram votos nem atraem a atenção dos políticos que se concentram<br />

em questões de apelo eleitoral.<br />

Ora, um País com a 14ª economia do mundo, com inclinações<br />

para a liderança regional e que aspira maior projeção internacional, de<br />

maior responsabilidade, inclusive um assento permanente no Conselho<br />

de Segurança da ONU, precisa valorizar sua própria Segurança e Defesa.<br />

Aliás, segundo o Prof. Murilo de Carvalho, é um contra-senso<br />

essa pretensão, pois o País não dispõe de Forças Armadas com o<br />

“status” pretendido, sendo que essa incongruência pode servir de poderoso<br />

argumento em favor da ênfase na defesa.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 82-85, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

83


Ivan Fialho<br />

Para o Jornalista Oliveiros Ferreira, a defesa compete ao Estado,<br />

porque é o único grupo que pode reunir os meios necessários para<br />

a preservação do país que representa; já a segurança compete ao<br />

Estado e à sociedade.<br />

Acrescenta que “é necessário recuperar na sociedade brasileira,<br />

o sentido de ´Segurança Nacional´ ,que se confunde também,<br />

com a segurança dos cidadãos diante do avanço do crime<br />

sob todas as suas formas. Será mais fácil aproveitar a ´insegurança´<br />

total em que vivemos, para mostrar aos cidadãos de boa<br />

vontade que cuidar do fortalecimento de Segurança, antes de<br />

tudo, significa incorporar as grandes massas à civilização, sob<br />

a direção de um pronto suporte, que tenha claro o que deseja<br />

para o País.Falar em defesa, no momento em que as Forças Armadas,<br />

cotidianamente, são postas à margem pelo governo e<br />

incompreendidas em sua missão, é malhar em ferro frio. Ao contrário,<br />

a idéia de segurança nacional permite congregar em torno<br />

dela, como se idéia-força fosse, aqueles que se desiludiram<br />

da política depois de vinte anos em que a palavra Democracia<br />

perdeu seu sentido e o Estado está se desfazendo aos poucos,<br />

induzido pelo próprio governo a que sustenta”.<br />

Não se pode esquecer, por outro lado, que a discussão da criação<br />

de uma mentalidade de defesa não pode ser separada do papel<br />

das Forças Armadas no Brasil e no mundo de hoje, além do consenso<br />

social sobre segurança e defesa.<br />

Em outras palavras, o problema envolve revisões estruturais,<br />

com a definição de preocupações, vulnerabilidades e prioridades – o<br />

que transcende o sistema de defesa e exige a contribuição política e,<br />

até mesmo, o de foros civis capazes de opinar além do aumento dos<br />

recursos orçamentários, provavelmente lento, por muitos anos. De<br />

qualquer forma, é preciso planejar e deslanchar a solução para que<br />

se inicie o resgate da segurança e da defesa do ostracismo que as<br />

vem caracterizando.<br />

Para o bem do País, é preciso interromper a lógica circular<br />

do desinteresse/desconhecimento/baixa prioridade/autonomia<br />

disfuncional/irrelevância/desinteresse/desconhecimento e por aí vai,<br />

num processo que fragiliza o preparo do sistema militar, seu potencial<br />

interno e, principalmente, seu papel de respaldo à inserção<br />

ativa da presença brasileira na ordem internacional (segundo o<br />

84 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 82-85, jan./abr. <strong>20</strong>06


Ivan Fialho<br />

Almirante-de-Esquadra Mário César Flores, citando o livro que prefaciou<br />

– “Política Externa e de Defesa: a Síntese Imperfeita”, do<br />

Diplomata João Paulo Soares Alsino).<br />

O autor é Coronel da reserva do Exército Brasileiro e membro<br />

do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 82-85, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

85


Sergio Xavier Ferolla<br />

O Fomento da Indústria de Defesa<br />

como Fator de Preparo da<br />

Mobilização Nacional<br />

Sergio Xavier Ferolla<br />

Os abrangentes conceitos sobre Mobilização Nacional há muito<br />

sedimentados nos Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de<br />

Guerra, carecem de uma formatação viável, considerando-se as atuais<br />

e peculiares condicionantes do nosso País. O modelo, ainda vigente,<br />

para o Sistema Nacional de Mobilização, baseou-se na solução<br />

adotada pelos Estados Unidos da América do Norte, quando da<br />

deflagração da Segunda Guerra Mundial, sendo, portanto, incompatível<br />

com a realidade tecnológica e industrial brasileira, em especial,<br />

como decorrência da acentuada presença de empresas estrangeiras.<br />

Um fator importante para a inserção de tecnologias de interesse<br />

das Forças Armadas no parque industrial é a autonomia decisória<br />

das empresas e o interesse em absorver tais tecnologias para aplicação<br />

local e na inovação dos seus produtos e processos. No Brasil, em<br />

particular, pelas políticas adotadas, é destacada a participação de empresas<br />

transnacionais e assim sendo, raramente a inteligência nacional<br />

é chamada para a geração de produtos destinados aos grandes<br />

mercados, popular e profissional. Tais empresas, trabalhando sob a<br />

direção de suas matrizes no país de origem, utilizam suas filiais, em<br />

geral, para a produção de alguns materiais e componentes, seguindo<br />

uma estratégia de maximização de lucros e interesses corporativos,<br />

de forma a otimizar as transações intra-empresas do mesmo grupo.<br />

Esse é um aspecto peculiar no atual contexto, observando-se<br />

mais uma internacionalização nas transações do que, propriamente, a<br />

tão propalada globalização, já que, fora dessa cadeia intra-empresas,<br />

persistem os bloqueios e as dificuldades de colocação para alguns<br />

produtos nacionais, com oportunidades de competir em condições vantajosas,<br />

nos atrativos e rentáveis mercados do Hemisfério Norte.<br />

Dessa forma, a política de abertura econômica indiscriminada,<br />

apregoada como panacéia pelos Organismos internacionais manipulados<br />

pelos países industrialmente desenvolvidos e, incompreensível<br />

e passivamente aceita por influentes segmentos da elite brasileira,<br />

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Sergio Xavier Ferolla<br />

tem propiciado a preponderância de um vetor comercial/exportador<br />

com orientação norte-sul, com a redução do espaço até então ocupado<br />

pelas empresas locais, devido às importações resultantes do processo<br />

desigual de competição, bem como da diminuição da produção local de<br />

componentes, partes e peças para os produtos ofertados pelas empresas<br />

alienígenas que atuam em nosso mercado doméstico.<br />

Sob uma falsa ótica de modernidade, nosso país passa a não ter<br />

argumentos para proteger suas próprias empresas que, para prosseguirem<br />

atuando, também se valem das vantagens da importação sobre a<br />

produção local, impondo uma política industrial divergente dos reais<br />

interesses nacionais. Boa parcela das empresas brasileiras e de capital<br />

nacional, quando muito, investem na aquisição das informações<br />

tecnológicas ainda disponíveis no exterior, bem como na aquisição de<br />

máquinas e equipamentos para os novos processos que lhes são fornecidos,<br />

sobrevivendo assim por pequenos ciclos produtivos, já que adquirem<br />

fora do país o “know-how” (como fazer), mas sendo-lhes negado<br />

o “know-why” (por que fazer), quase sempre restrito aos laboratórios<br />

das grandes organizações transnacionais.<br />

Formatar um novo modelo de Mobilização Nacional é tarefa, a<br />

nosso ver prioritária, considerando-se o complexo cenário internacional<br />

e o momento de dificuldades e de transição política por que passa nosso<br />

País. Porém, no bojo de um projeto e para que resultem diretrizes<br />

balizadoras e passiveis de implementação, nos setores tecnológico e<br />

industrial, faz-se essencial um formal compromisso de apoio dos Organismos<br />

governamentais de fomento e financiamento, especialmente a<br />

FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos) e o BNDES (Banco<br />

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).<br />

Se a preocupação com os equipamentos e a qualificação profissional<br />

dos efetivos militares é condição essencial para o sucesso nas<br />

operações militares, a dependência de armamentos e acessórios produzidos<br />

no exterior pode inviabilizar a ação continuada das Forças Armadas,<br />

em conflitos de prolongada duração. Por essa razão, em especial,<br />

os Comandos militares sempre inseriram em seus planejamentos<br />

estratégicos a busca de uma auto-suficiência nacional, tanto para a<br />

manutenção do material e dos armamentos, como para a fabricação de<br />

partes e peças de interesse das Forças.<br />

Para tal, necessitam contar com instalações logísticas adequadas<br />

e, principalmente, com um parque industrial não sujeito aos mecanismos<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 86-90, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

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Sergio Xavier Ferolla<br />

de controle e bloqueios do exterior, uma vez que somente empresas de<br />

capital nacional poderão ser consideradas mobilizáveis para fins de<br />

Defesa, quando da possibilidade de ocorrência de conflitos militares.<br />

Além dessa condição primordial, deve ser assegurada às empresas,<br />

uma continuada capacitação tecnológica e produtiva, para que possam<br />

fazer frente aos constantes aperfeiçoamentos, mantendo a garantia da<br />

qualidade dos produtos, em suas áreas de especialização. Uma aquisição<br />

programada, mesmo de pequenos lotes, devido à rotineira carência<br />

de recursos orçamentários, os quais chamaríamos lotes educativos, é<br />

uma das formas eficazes de viabilizar a permanente mobilização dessas<br />

estratégicas e diversificadas empresas.<br />

São premissas importantes, que deveriam constar como diretrizes<br />

do governo para uma Política e programas de Defesa e, como<br />

ação imediata, julgamos essencial que o MD, coordenando o trabalho<br />

das Forças, viabilize a elaboração de catálogo das empresas<br />

homologadas como produtoras de componentes, equipamentos e<br />

materiais de interesse, nos moldes do trabalho elaborado pelo Centro<br />

Técnico Aeroespacial (Catálogo de Empresas do Setor<br />

Aeroespacial do Brasil – CESAER). O recente lançamento do<br />

“Diretório da Indústria de Defesa”, já representou um avanço<br />

significativo em prol dos objetivos maiores.<br />

Aspecto importante e condicionante básica a ser observada é a<br />

certificação das empresas e dos produtos, de forma que a relação possa,<br />

em futuro próximo, servir, inclusive, como forma de qualificação<br />

das mesmas para os processos licitatórios, excluindo, “a priori”, os<br />

aventureiros que surgem por ocasião das aquisições, perturbando e,<br />

quase sempre, prejudicando aqueles que investiram em desenvolvimentos<br />

e engenharia dos produtos e dos processos, objetivando a qualidade<br />

final e o atendimento dos requisitos operacionais especificados.<br />

Dentro de suas limitadas possibilidades, as Forças Singulares,<br />

há muito, desenvolvem esforços em busca da capacitação nacional<br />

nos campos científico, tecnológico e industrial. Marinha, Exército e<br />

Aeronáutica, com seus Centros de Pesquisas e Parques Logísticos,<br />

têm gerado tecnologias e desenvolvido produtos que são transferidos<br />

às indústrias nacionais, para a produção em série.<br />

Nessa verdadeira batalha, não bastasse a carência de recursos<br />

materiais e humanos, surge, rotineiramente, o difícil óbice da superação<br />

dos bloqueios tecnológicos, impostos pelas potências hegemônicas,<br />

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Sergio Xavier Ferolla<br />

os quais retardam e oneram os projetos de concepção local, obrigando<br />

o desmembramento dos trabalhos de desenvolvimento em tarefas que<br />

deveriam se limitar à simples aquisição, uma vez que materiais, componentes<br />

e dispositivos especiais, não acessíveis localmente e são ardilosamente<br />

bloqueados no mercado internacional. Como conseqüência, a<br />

reação dos setores operacionais é, algumas vezes, de impaciência e<br />

descrédito na engenharia nacional, pugnando pela simples compra imediata<br />

no exterior. O resultado dessa solução simplista é, não só, a criação<br />

de uma dependência de fornecedores pouco confiáveis como também<br />

e, principalmente, o enfraquecimento do parque industrial doméstico,<br />

agravando a evasão de divisas e a perda de preciosos e qualificados<br />

postos de trabalho.<br />

Com uma visão de mais longo prazo, além das necessidades rotineiras<br />

dos produtos de interesse da Defesa, resta-nos, também, priorizar<br />

aqueles setores ainda sob controle nacional e buscar investir em segmentos<br />

estratégicos, que de forma direta e ou indireta, gerarão subsídios<br />

para a participação da tecnologia e da empresa brasileira em produtos<br />

mais elaborados, capacitando-as para competirem no complexo e<br />

seletivo mercado que a nova realidade internacional tem proporcionado,<br />

assim como para a produção complementar dos itens mais sofisticados<br />

de interesse das aplicações militares.<br />

Esse modelo foi aplicado na Europa, na década dos 60, quando os<br />

países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico<br />

(OCDE), na época, analisando a defasagem do seu parque industrial,<br />

frente, particularmente, aos Estados Unidos, concluíram pela necessidade<br />

da fixação de objetivos estratégicos, de médio e longo prazo,<br />

que servissem de estímulo a um desenvolvimento regional auto-sustentado.<br />

Hoje, os resultados podem ser avaliados, com a moderna indústria<br />

européia ofertando, por exemplo, seus aviões Airbus, Caças de<br />

última geração e seus foguetes Ariane, novos materiais, sofisticada<br />

eletrônica e tantos outros produtos de elevado conteúdo tecnológico,<br />

além de avançados equipamentos e sistemas de interesse militar. Tais<br />

investimentos prosseguem, com os Estados nacionais destinando, para<br />

os Programas de Defesa, consideráveis parcelas dos recursos alocados<br />

para seus desenvolvimentos nos setores de C&T.<br />

Os programas de sucesso da Marinha, do Exército e da Aeronáutica,<br />

que já surtiram resultados concretos, segundo o modelo descrito,<br />

atestam sua validade e, como mostrado, não é outro o caminho<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 86-90, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

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Sergio Xavier Ferolla<br />

ainda seguido pelos países industrializados, em plena era do propalado<br />

modelo neoliberal, que falsamente prega a não participação do Estado<br />

na economia, cabendo, apenas, à livre iniciativa a responsabilidade<br />

pelos investimentos em tecnologia e na indústria.<br />

Os ainda modestos gastos do Brasil não podem ser colocados<br />

como termo de comparação com as potências industriais, mas os<br />

resultados já obtidos propiciaram especial significado em nosso parque<br />

industrial. São exemplos estimulantes, os benefícios auferidos<br />

com o Programa Espacial; a EMBRAER; a fabricação de navios e<br />

submarinos; a indústria eletrônica profissional, produzindo radares e<br />

demais equipamentos de comunicações e proteção ao vôo; o desenvolvimento<br />

do motor a álcool; os armamentos convencionais e mísseis<br />

com tecnologia 100% doméstica; além do domínio da tecnologia<br />

nuclear pela Marinha, que assegurou ao nosso país o domínio do ciclo<br />

de produção do urânio enriquecido para os reatores Angra I e II;<br />

entre muitos outros.<br />

São conquistas que, se corretamente divulgadas e submetidas<br />

ao crivo imparcial da sociedade, mostrariam a capacidade de realização<br />

da gente brasileira e que enchem de orgulho os anônimos cientistas,<br />

engenheiros e técnicos, civis e militares, guerreiros que, com as<br />

armas da inteligência e da dedicação, superaram dificuldades materiais<br />

e bloqueios absurdos, somando esforços com os combatentes de<br />

terra, mar e ar, a fim de assegurar, com a missão que lhes foi atribuída,<br />

a liberdade, o progresso e a soberania da nação brasileira.<br />

O Ten.-Brig.-do-Ar Ref. Sergio Xavier Ferolla é Aviador,<br />

Engenheiro e Ministro Aposentado do Superior Tribunal Militar.<br />

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Milton Mauro Mallet Aleixo<br />

Reflexos Lentos, porém<br />

Descoordenados<br />

Milton Mauro Mallet Aleixo<br />

Nos anos de 1970, 71 e 72, no Centro de Formação de Pilotos<br />

Militares (CFPM), na cidade de Natal, eu era Instrutor de Vôo.<br />

No nosso grupo de Instrutores, na maioria tenentes, havia os oriundos<br />

do 5º Grupo de Aviação, ali mesmo de Natal (como eu), e os que<br />

vieram de Fortaleza, da Aviação de Caça.<br />

No primeiro ano, 1970, tudo era novidade. Era quando o Instrutor<br />

aprendia os segredos do ofício. Havia as dificuldades de iniciante, muito<br />

susto, mas a gente procurava destacar o lado cômico do cotidiano, as<br />

situações inusitadas. E isso acontecia “de montão”.<br />

Cada Instrutor recebia, no início da instrução, quatro Alunos.<br />

Era preciso aprender rapidamente as diferenças entre o temperamento<br />

de cada um, tudo isso na base do autodidatismo. Havia, no<br />

entanto, uns poucos que se revelavam difíceis de conduzir. Eu tive<br />

um desses no meu plantel.<br />

Era um “alemãozão” esquisitão, que me fez passar uns belos<br />

sustos. Numa dessas ocasiões, eu estava de serviço de Oficial-de-<br />

Dia, quando meu Chefe (mui amigo!) mandou um colega para ficar<br />

temporariamente no meu lugar, para que eu fizesse uma missão<br />

com o alemão.<br />

E logo que missão! Era uma tal de P1, quarenta minutos de<br />

parafusos até o Aluno aprender a fazer. Se eu morresse, minha mulher<br />

teria ficado encrencada, pois eu não poderia estar voando, já que<br />

estava de serviço de Oficial-de-Dia, ou seja, tinha que dar certo.<br />

Esse mesmo Aluno já tinha sido contemplado por mim com algumas<br />

Fichas, que eram lidas pelo Oficial de Operações do Esquadrão<br />

para a galera de Instrutores, nas reuniões das sextas-feiras, pelo<br />

tom enfático com o qual descreviam as manobras. Exemplo: “Orientado<br />

a fazer uma curva de grande inclinação, o Aluno quase<br />

entrou em parafuso, tendo repetido inúmeras vezes a mesma situação<br />

ante os olhares estupefatos do Instrutor”. Outro exemplo:<br />

“Solicitado a fazer um oito sobre cruzamento, não conseguia<br />

corrigir o vento. Esforçou-se, debalde”.<br />

Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 91-92, jan./abr. <strong>20</strong>06<br />

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Milton Mauro Mallet Aleixo<br />

Mas, voltando aos parafusos. Foram muitos, perdi a conta. A<br />

cada um deles, um susto. Minha prancheta de perna, que eu guardara<br />

atrás da minha cadeira, veio parar voando, várias vezes, na<br />

minha frente.<br />

De medo, minhas pernas tremiam no “palonier”. Pensei ter chegado<br />

a minha vez. No fim dos quarenta minutos estávamos, os dois,<br />

vivos; menos mal. Mas a Ficha registrou o resultado da missão: “O<br />

aluno apresenta reflexos lentos, porém descoordenados”.<br />

Não, ele não foi desligado, pelo menos dessa vez. No Conselho<br />

de Instrução (de Vôo), o Comandante do Centro de Formação decidiu:<br />

– Continua.<br />

E, antes que eu tivesse meu pedido para falar interrompido<br />

por um “cutelo” desferido pelo meu Comandante de Esquadrão,<br />

ele prosseguiu:<br />

– Continua, e com o mesmo Instrutor.<br />

Pobre de mim!<br />

O autor é Coronel-Aviador da reserva da Força Aérea Brasileiro.<br />

92 Id. em Dest., Rio de Janeiro, (<strong>20</strong>) : 91-92, jan./abr. <strong>20</strong>06


COLEÇÃO AERONÁUTICA DO INCAER<br />

SÉRIE<br />

HISTÓRIA GERAL DA AERONÁUTICA BRASILEIRA<br />

VOL. 1 – Dos Primórdios até 19<strong>20</strong>.<br />

VOL. 2 – De 1921 às Vésperas da Criação do Ministério da Aeronáutica.<br />

VOL. 3 – Da Criação do Ministério da Aeronáutica ao Final da Segunda Guerra<br />

Mundial.<br />

VOL. 4 – Janeiro de 1946 a Janeiro de 1956 – Após o Término da Segunda Guerra<br />

Mundial até a Posse do Dr. Juscelino Kubitschek como Presidente da<br />

República.<br />

SÉRIE<br />

HISTÓRIA SETORIAL DA AERONÁUTICA BRASILEIRA<br />

1 – Santos-Dumont e a Conquista do Ar - Aluízio Napoleão<br />

2 – Santos-Dumont and the Conquest of the Air - Aluízio Napoleão<br />

3 – Senta a Pua! - Rui Moreira Lima<br />

4 – Santos-Dumont – História e Iconografia - Fernando Hippólyto da Costa<br />

5 – Com a 1ª ELO na Itália - Fausto Vasques Villanova<br />

6 – Força Aérea Brasileira 1941-1961 – Como eu a vi - J. E. Magalhães Motta<br />

7 – A Última Guerra Romântica – Memórias de um Piloto de Patrulha - Ivo<br />

Gastaldoni (ESGOTADO)<br />

8 – Asas ao Vento - Newton Braga<br />

9 – Os Bombardeiros A-<strong>20</strong> no Brasil - Gustavo Wetsch<br />

10 – História do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica - Flávio José Martins<br />

11 – Ministros da Aeronáutica 1941-1985 - João Vieira de Sousa<br />

12 – P-47 B4 – O Avião do Dorneles - J. E. Magalhães Motta<br />

13 – Os Primeiros Anos do 1º/14 GAv - Marion de Oliveira Peixoto<br />

14 – Alberto Santos-Dumont - Oscar Fernández Brital (ESGOTADO)<br />

15 – Translado de Aeronaves Militares - J. E. Magalhães Motta<br />

16 – Lockheed PV-1 “Ventura” - J. E. Magalhães Motta<br />

17 – O Esquadrão Pelicano em Cumbica – 2º/10º GAv - Adéele Migon<br />

18 – Base Aérea do Recife – Primórdios e Envolvimento na 2ª Guerra Mundial -<br />

Fernando Hippólyto da Costa<br />

19 – Gaviões de Penacho - Lysias Rodrigues<br />

<strong>20</strong> – CESSNA AT-17 - J. E. Magalhães Motta<br />

21 – A Pata-Choca - José de Carvalho<br />

22 - Os Primórdios da Atividade Espacial na Aeronáutica - Ivan Janvrot Miranda


SÉRIE<br />

ARTE MILITAR E PODER AEROESPACIAL<br />

1 – A Vitória pela Força Aérea - A. P. Seversky<br />

2 – O Domínio do Ar - Giulio Douhet<br />

3 – A Evolução do Poder Aéreo - Murillo Santos<br />

4 – Aeroportos e Desenvolvimento - Adyr da Silva (ESGOTADO)<br />

5 – O Caminho da Profissionalização das Forças Armadas - Murillo Santos<br />

6 – A Psicologia e um novo Conceito de Guerra - Nelson de Abreu O’ de Almeida<br />

7 – Emprego Estratégico do Poder Aéreo - J. E. Magalhães Motta<br />

8 – Da Estratégia – O Patamar do Triunfo - Ivan Zanoni Hausen<br />

SÉRIE<br />

CULTURA GERAL E TEMAS DO INTERESSE DA AERONÁUTICA<br />

1 – A Linha, de Mermoz, Guillaumet, Saint-Exupéry e dos seus companheiros<br />

de Epopéia - Jean-Gérard Fleury<br />

2 – Memórias de um Piloto de Linha - Coriolano Luiz Tenan<br />

3 – Ases ou Loucos? - Geraldo Guimarães Guerra<br />

4 – De Vôos e de Sonhos - Marina Frazão<br />

5 – Anesia - Augusto Lima Neto<br />

6 – Aviação de Outrora - Coriolano Luiz Tenan<br />

7 – O Vermelhinho – O Pequeno Avião que Desbravou o Brasil -Ricardo Nicoll<br />

8 – Eu vi, vivi ou me contaram - Carlos P. Aché Assumpção<br />

9 – Síntese Cronológica da Aeronáutica Brasileira (1685-1941) - Fernando<br />

Hippólyto da Costa<br />

10 – O Roteiro do Tocantins - Lysias A. Rodrigues<br />

11 – Crônicas... no Topo - João Soares Nunes<br />

12 – Piloto de Jato - L. S. Pinto e Geraldo Souza Pinto<br />

13 – Vôos da Alma - Ivan Reis Guimarães<br />

14 – Voando com o Destino - Ronald Eduardo Jaeckel (no prelo)<br />

Pedidos ao:<br />

INSTITUTO HISTÓRICO-CULTURAL DA AERONÁUTICA<br />

Praça Marechal Âncora, 15-A, Centro - Rio de Janeiro - RJ<br />

Cep: <strong>20</strong>021-<strong>20</strong>0 - Tel: (21) 2101-4966 / 2101-6125<br />

Internet: www.<strong>incaer</strong>.aer.mil.br e-mail: <strong>incaer</strong>@maerj.gov.br

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