Azevedo, Tânia Maris de; Rowell, Vania Morales - CCE - UFSC
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UMA PROPOSTA DE LÍNGUA MATERNA INSTRUMENTAL PARA O<br />
ENSINO FUNDAMENTAL<br />
<strong>Tânia</strong> <strong>Maris</strong> <strong>de</strong> AZEVEDO<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias do Sul<br />
<strong>Vania</strong> <strong>Morales</strong> ROWELL<br />
Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />
Resumo: É inquestionável a relação existente entre a linguagem e a estruturação do<br />
pensamento. É inquestionável, também, que a linguagem, principalmente a verbal, é,<br />
senão o principal, um dos principais veículos <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> conhecimento em todas as<br />
áreas. Diante disso, faz-se necessário repensar o ensino <strong>de</strong> língua materna no Ensino<br />
Fundamental, uma vez que o enfoque dado até hoje à disciplina <strong>de</strong> Língua Portuguesa<br />
não tem contribuído para facilitar a aprendizagem nas <strong>de</strong>mais disciplinas que compõem<br />
o currículo <strong>de</strong>sse nível <strong>de</strong> ensino. Assim, o que se propõe é redimensionar o<br />
planejamento da disciplina <strong>de</strong> Língua Portuguesa, conferindo-lhe um caráter<br />
instrumental na direção do <strong>de</strong>senvolvimento das competências lingüísticas atinentes à<br />
compreensão e produção oral e escrita dos textos que servem <strong>de</strong> base para a aquisição<br />
<strong>de</strong> conhecimentos nas outras disciplinas curriculares do Ensino Fundamental, <strong>de</strong> 5ª a 8ª<br />
série. Conseqüência natural <strong>de</strong>sse processo é a capacitação dos professores <strong>de</strong> língua<br />
materna – quer nas licenciaturas, quer em termos <strong>de</strong> formação continuada –, para que<br />
possam atuar com eficácia no sentido da instrumentalização lingüística dos educandos,<br />
concebidos como sujeitos conhecedores que efetivamente são.<br />
Palavras-chave: aquisição <strong>de</strong> conhecimento; ensino instrumental <strong>de</strong> língua materna;<br />
formação <strong>de</strong> professores.<br />
Introdução<br />
O ensino <strong>de</strong> língua materna, hoje, parece estar um tanto <strong>de</strong>sfocado em relação ao<br />
seu objetivo, principalmente no que se refere ao Ensino Fundamental: à metalinguagem<br />
é conferido o status <strong>de</strong> protagonista, quando <strong>de</strong>veria, no máximo, ser coadjuvante.<br />
O estudo da língua tem se reduzido à memorização <strong>de</strong> regras gramaticais<br />
aplicadas a uma única modalida<strong>de</strong>, a língua escrita, em uma única variante, a padrãoculta.<br />
A língua é tratada como uma dobra sobre si mesma no sentido <strong>de</strong> que o estudo da<br />
estrutura e da forma é visto como suficiente e até mesmo essencial para que, como<br />
conseqüência natural e necessária, o sujeito aprenda a produzir e compreen<strong>de</strong>r<br />
eficientemente textos/discursos reais, aqueles inseridos em situações cotidianas <strong>de</strong><br />
comunicação, quer escolares, quer não.<br />
Obviamente, e a experiência é testemunha disto, essa conseqüência não é assim<br />
tão natural e, menos ainda, necessária. Muito pelo contrário, a “aprendizagem” da<br />
metalinguagem parece até distanciar o aprendiz das tarefas <strong>de</strong> compreensão leitora e <strong>de</strong><br />
produção <strong>de</strong> textos/discursos. O estudo da gramática normativa acaba por inibir e<br />
limitar a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção do aluno, pois este tem sempre a impressão <strong>de</strong> não saber<br />
escrever, como se a língua escrita fosse uma modalida<strong>de</strong> a que somente os gran<strong>de</strong>s
literatos têm acesso, longe, portanto, do uso corrente advindo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s<br />
cotidianas. Tanto é assim que é comum ouvir, nos mais diversos meios e nas mais<br />
diferentes profissões – inclusive na <strong>de</strong> professor –, profissionais afirmando<br />
categoricamente não saber “colocar suas idéias no papel” e ter dificulda<strong>de</strong> para ler um<br />
texto mais especializado e mais complexo.<br />
É preciso lembrar que a criança chega à escola como usuário da língua e com<br />
uma competência comunicativa <strong>de</strong> base já bastante <strong>de</strong>senvolvida em nível oral, além <strong>de</strong><br />
contar com uma imaginação prodigiosa e extremamente fértil em termos <strong>de</strong><br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação e potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> recursos lingüísticos para<br />
aprimorar sua expressão verbal.<br />
A escola, na contramão <strong>de</strong>sse processo, introduz a criança no mundo do código<br />
escrito, <strong>de</strong>sprezando o que ela já domina lingüisticamente e impondo a ela um registro<br />
<strong>de</strong>svinculado do seu contexto <strong>de</strong> uso. Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> sentido – como letras,<br />
sílabas, palavras e mesmo orações – são trabalhadas num universo totalmente artificial,<br />
impondo ao sujeito aprendiz a condição do “não saber”, da plena ignorância, como se o<br />
falante já não dominasse estruturalmente mecanismos básicos <strong>de</strong> uso da língua. A<br />
língua escrita é colocada ao aluno como uma ilustre <strong>de</strong>sconhecida, sem qualquer<br />
vínculo com a língua que ele já usa, e usa proficientemente em várias situações<br />
enunciativas.<br />
Por outro lado, as <strong>de</strong>mais disciplinas curriculares tratam a aquisição do<br />
conhecimento em suas áreas, cada uma no seu nicho, como retenção <strong>de</strong> conteúdos<br />
temáticos, <strong>de</strong> informações específicas, sem que haja consciência <strong>de</strong> que a linguagem é o<br />
principal veículo <strong>de</strong> interação, por meio da qual se dá a construção do conhecimento, e a<br />
língua a ferramenta maior <strong>de</strong> acesso às informações e <strong>de</strong> processamento/sistematização<br />
<strong>de</strong>las rumo à construção dos saberes.<br />
Essa falta <strong>de</strong> consciência faz com que os professores que atuam com as outras<br />
disciplinas que compõem o currículo do Ensino Fundamental não se percebam como<br />
também professores <strong>de</strong> língua materna, como se o processo <strong>de</strong> apreensão e apropriação<br />
do conhecimento não fosse mediado pela língua.<br />
É nesse contexto que se circunscreve o presente trabalho cujo objetivo é o <strong>de</strong><br />
propor uma abordagem instrumental para o ensino <strong>de</strong> Língua Portuguesa no Ensino<br />
Fundamental (mais especificamente, <strong>de</strong> 5ª a 8ª série), ou seja, uma abordagem que<br />
conceba a língua como “ferramenta” para a aquisição <strong>de</strong> conhecimentos em todas as<br />
áreas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o acesso à informação até a estruturação do pensamento e dos diferentes<br />
raciocínios que cada área impõe ao sujeito conhecedor.<br />
São diferentes textos, diferentes estruturas, diversos campos semânticos a serem<br />
dominados e mobilizados para que o sujeito possa transitar pelas várias áreas e pelos<br />
múltiplos tipos <strong>de</strong> conhecimento. São requeridas do aprendiz diferentes habilida<strong>de</strong>s<br />
lingüísticas para a construção dos diversos saberes atinentes a cada forma <strong>de</strong> conhecer e<br />
cabe à escola, a cada professor e, mais especificamente, ao professor <strong>de</strong> língua materna<br />
a instrumentalização lingüística do aluno para a construção do conhecimento.<br />
O que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>remos aqui são algumas concepções acerca do ensino e do ensino<br />
<strong>de</strong> língua materna, algumas formas <strong>de</strong> conceber a língua como instrumento <strong>de</strong> interação<br />
humana e mediadora da aquisição <strong>de</strong> conhecimentos. Portanto, não filiaremos este<br />
trabalho a nenhuma teoria lingüística em especial, mas a <strong>de</strong>terminadas posturas que,<br />
transpostas ao ensino, possam dar conta da real função da língua na construção do<br />
conhecimento. Se houver necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicitar alguns pressupostos teóricos,<br />
certamente, estes estarão vinculados às chamadas teorias enunciativas, pois cremos que<br />
125
o uso da língua e sua função na interlocução <strong>de</strong>vam ser a tônica do processo educativo<br />
em se tratando do ensino da língua materna.<br />
Como já foi dito, o Ensino Fundamental não é lugar <strong>de</strong> discussões<br />
metalingüísticas e muito menos <strong>de</strong> prescrições gramaticais, mas, se o objetivo é<br />
proporcionar ao aluno situações que o levem a construir conhecimentos e formar<br />
conceitos, nesse nível <strong>de</strong> ensino, a língua portuguesa <strong>de</strong>ve ser tratada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os seus<br />
diversos usos, quer em termos <strong>de</strong> leitura, quer <strong>de</strong> produção, e o aporte teórico que po<strong>de</strong><br />
alicerçar essa concepção <strong>de</strong> ensino só po<strong>de</strong>rá ser aquele inscrito na perspectiva<br />
enunciativa da lingüística.<br />
Dados os limites <strong>de</strong>sse estudo, não se tem a pretensão <strong>de</strong> propor soluções<br />
<strong>de</strong>finitivas para o problema <strong>de</strong>tectado, mas apenas elencar algumas reflexões que<br />
po<strong>de</strong>rão contribuir para que o ensino <strong>de</strong> língua materna assuma sua principal função no<br />
Ensino Fundamental: a <strong>de</strong> municiar o aprendiz com os mecanismos lingüísticos<br />
necessários à compreensão e produção dos diversos gêneros discursivos presentes no<br />
cotidiano <strong>de</strong> qualquer cidadão e daqueles gêneros <strong>de</strong> que se valem as <strong>de</strong>mais disciplinas<br />
curriculares para tratar o conhecimento.<br />
1. Alguns conceitos <strong>de</strong> base<br />
No momento em que se concebe a linguagem como responsável pela<br />
estruturação do pensamento, e a língua como veículo <strong>de</strong>ssa estruturação e, portanto,<br />
como instrumento fundamental à aquisição <strong>de</strong> conhecimento, faz-se mister discutir,<br />
mesmo que breve e superficialmente – dadas as limitações impostas pela configuração<br />
<strong>de</strong>ste trabalho –, alguns conceitos que se põem na base <strong>de</strong> uma proposta <strong>de</strong> ensino<br />
instrumental da língua materna.<br />
Não há como pensar o ensino <strong>de</strong> língua sem pensar antes no ensino como<br />
educação formal. E falar sobre a educação formal requer uma breve reflexão sobre o<br />
conceito <strong>de</strong> homem em suas relações com os conceitos <strong>de</strong> natureza, cultura, socieda<strong>de</strong>.<br />
O homem só difere dos outros animais por ser capaz <strong>de</strong>, pela interação com seus<br />
semelhantes, agir sobre a natureza no sentido <strong>de</strong> transformá-la <strong>de</strong> acordo com suas<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência e, também, por ser o único a preservar o fruto <strong>de</strong>ssas<br />
constantes transformações – a cultura – ao longo da história, para que as gerações<br />
futuras possam se valer <strong>de</strong>las sem ter que refazer o caminho já trilhado.<br />
O ser humano distingue-se dos outros animais e assume a condição <strong>de</strong> sujeito,<br />
principalmente, por ser o ÚNICO:<br />
− dotado <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>, o que lhe possibilita abstrair, distanciar-se da “realida<strong>de</strong>” a<br />
ponto <strong>de</strong>, por meio da percepção, compreensão, interpretação, representar-se e<br />
representar o mundo;<br />
− capaz <strong>de</strong>, por sua alterida<strong>de</strong> constitutiva, constituir-se na intersubjetivida<strong>de</strong> e autoreferir-se,<br />
por meio da linguagem;<br />
− a manter sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das alterações físico-químicas, afetivas, <strong>de</strong><br />
personalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caráter que ocorrem com ele ao longo da vida;<br />
− a po<strong>de</strong>r refletir sobre si mesmo, pois é dotado <strong>de</strong> consciência – consciência esta que lhe<br />
permite inclusive ter consciência da existência <strong>de</strong> seu próprio inconsciente, <strong>de</strong> sua<br />
experiência pessoal intransferível;<br />
126
− a concretizar a idéia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, por ser capaz <strong>de</strong> conceber e fazer escolhas e po<strong>de</strong>r<br />
operar essas escolhas <strong>de</strong>ntro dos meios interno e externo, avaliando-as e avaliando sua<br />
própria operacionalização. 1<br />
Essas potencialida<strong>de</strong>s do ser humano que o diferenciam dos outros animais e o<br />
tornam único têm na base – e, ao mesmo tempo, como principal instrumento <strong>de</strong><br />
atualização, <strong>de</strong> concretização – sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem, a competência humana <strong>de</strong><br />
constituir-se, constituir o outro e constituir seu mundo na e pela linguagem.<br />
Para abstrair, compreen<strong>de</strong>r, interpretar, representar-se e representar o mundo,<br />
referir e auto-referir-se, preservar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, refletir sobre si mesmo, sobre seu<br />
conhecimento e sobre suas próprias formas <strong>de</strong> conhecer e apren<strong>de</strong>r, bem como para<br />
realizar, tornar concreta a idéia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, exercendo sua cidadania, o homem se vale<br />
da linguagem, e, mais especificamente, do sistema lingüístico que põe em uso.<br />
A condição social do homem, a interação com os <strong>de</strong>mais da mesma espécie, bem<br />
como a preservação da cultura construída só é possível porque o homem possui uma<br />
linguagem, uma forma <strong>de</strong> simbolizar, <strong>de</strong> representar, <strong>de</strong> abstrair dos fenômenos<br />
conceitos que perduram por meio da linguagem.<br />
Da relação do homem, como sujeito conhecedor que é, com a natureza e com os<br />
outros sujeitos, relação <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada pelos conflitos que a sobrevivência cotidiana<br />
impõe, surge o processo <strong>de</strong> educação informal que, novamente via linguagem, é o<br />
gran<strong>de</strong> responsável pela preservação da cultura e pela consolidação da socieda<strong>de</strong>.<br />
A educação informal tem por características: (a) a não-sistematicida<strong>de</strong>, uma vez<br />
que não é planejada nem regida por preceitos didático-pedagógicos; (b) a<br />
espontaneida<strong>de</strong>, já que acontece na justa proporção da necessida<strong>de</strong>, nos diferentes<br />
grupos e relações sociais, à medida que os conflitos surgem como elementos<br />
perturbadores da estabilida<strong>de</strong> do indivíduo/grupo; e (c) a circunstancialida<strong>de</strong>, visto que<br />
o processo não tem local e hora marcados, efetiva-se conforme a exigência das situações<br />
problematizadoras.<br />
Por meio do processo educativo informal, são transmitidos valores, crenças,<br />
mitos, enfim, regras <strong>de</strong> convivência <strong>de</strong> um grupo, <strong>de</strong> geração em geração.<br />
A educação é o vetor <strong>de</strong> transmissão da cultura enquanto que esta <strong>de</strong>fine o quadro<br />
institucional da educação e ocupa um lugar essencial em seus conteúdos. A educação,<br />
afirma-se, ocupa uma posição central no sistema <strong>de</strong> valores e os valores são os pilares em<br />
que se apóia a educação. Postas a serviço das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do ser<br />
humano, a educação e a cultura tornam-se, quer uma, quer outra, meios e fins <strong>de</strong>ste mesmo<br />
<strong>de</strong>senvolvimento. 2<br />
Da exigência <strong>de</strong> organizar e disseminar conhecimentos, <strong>de</strong> modo a torná-los<br />
comuns a grupos maiores e mesmo à socieda<strong>de</strong> como um todo, surge a educação formal,<br />
ou ensino. Com ambiente e horários <strong>de</strong>terminados, com profissionais especializados,<br />
com material apropriado e programas curriculares estabelecidos, a educação formal,<br />
diferentemente da informal, assume a configuração <strong>de</strong> processo: (a) sistemático –<br />
metódica e metodologicamente organizado para propiciar a aquisição do conhecimento<br />
produzido –, (b) programado – com objetivos e ações planejados previamente e<br />
conteúdos hierarquicamente dispostos ao longo <strong>de</strong> um currículo – e (c) situado<br />
artificialmente – em oposição à circunstancialida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fine o processo <strong>de</strong> educação<br />
1 SANTOS, PEREIRA e AZEVEDO, 2004, p. 14-15.<br />
2 NANCZHAO, 1998, p. 257.<br />
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informal, a educação formal tem tempos e espaços <strong>de</strong>finidos; ocorre por meio da criação<br />
<strong>de</strong> ambientes <strong>de</strong> aprendizagem, antecipando necessida<strong>de</strong>s e conflitos.<br />
A educação formal passa a ser, então, um simulacro do processo educativo<br />
informal, no sentido <strong>de</strong> que tenta reproduzir situações conflitivas na forma <strong>de</strong> situações<br />
<strong>de</strong> aprendizagem, para que o sujeito conhecedor tenha acesso ao conhecimento social e<br />
historicamente produzido.<br />
Todo o processo educativo, seja ele formal ou informal, só é possível por meio<br />
da linguagem e, mais especificamente, da língua oral ou escrita. Conhecimentos<br />
matemáticos, físicos, químicos, geográficos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> terem uma<br />
linguagem própria, um sistema <strong>de</strong> formalização e representação, são veiculados pela<br />
educação, formal ou não, por meio do sistema lingüístico, da linguagem verbal, oral ou<br />
escrita. Os questionamentos, as explicações, as <strong>de</strong>finições, os exercícios didáticos têm<br />
na linguagem verbal sua forma <strong>de</strong> expressão e o meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração/compreensão <strong>de</strong><br />
símbolos, figuras e gráficos pertinentes às diversas áreas do conhecimento. Qualquer<br />
que seja a forma <strong>de</strong> educação, da mais sistemática a mais espontânea, tem como veículo<br />
mais utilizado a língua, justamente por ser ela o meio mais viável <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong><br />
informações e <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong>las rumo à formação <strong>de</strong> conceitos e,<br />
conseqüentemente, à construção do conhecimento.<br />
Falando em conhecimento, este é outro conceito <strong>de</strong> base a ser aqui discutido,<br />
pois <strong>de</strong> como o compreen<strong>de</strong>mos e enten<strong>de</strong>mos o ato <strong>de</strong> conhecer <strong>de</strong>corre a concepção<br />
<strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> língua proposta.<br />
O conhecimento é visto aqui como o resultado, o produto do processamento, da<br />
organização, enfim, da sistematização do conjunto <strong>de</strong> informações a que somos<br />
expostos a todo instante ou a que nos expomos quando temos um problema a<br />
solucionar. Essas informações chegam a nós <strong>de</strong> várias formas e por diversas vias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o que é percebido sensorialmente até o que é intelectualmente captado ou acessado.<br />
O que ocorre é que essas informações por si só não se constituem meios para a<br />
solução <strong>de</strong> problemas, precisam ser inter-relacionadas para assumir a configuração <strong>de</strong><br />
conhecimento construído e, então, po<strong>de</strong>r ser adaptadas, ressignificadas e aplicadas,<br />
como instrumentos <strong>de</strong> resolução, a situações que se colocam como problemas.<br />
O conhecimento só é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações<br />
e inserido nos contextos <strong>de</strong>stas. As informações constituem parcelas dispersas <strong>de</strong> saber. [...]<br />
[A] informação é uma matéria-prima que o conhecimento <strong>de</strong>ve dominar e integrar. 3<br />
O conhecimento resulta, por conseguinte, <strong>de</strong> uma ação do sujeito sobre o objeto<br />
a ser conhecido. Não há, pois, transmissão <strong>de</strong> conhecimento, mas reconstrução,<br />
ressignificação do objeto <strong>de</strong> conhecimento pelo sujeito por meio da ação, da interação,<br />
que se faz, por sua vez, pela linguagem.<br />
É a partir <strong>de</strong> um acontecimento que se institui como <strong>de</strong>safio/problema ao sujeito<br />
que o processo <strong>de</strong> conhecer entra em ação, ou seja, que o sujeito, pela interação com<br />
outros sujeitos e com as informações – objeto <strong>de</strong> conhecimento –, constrói uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
relações entre essas informações e <strong>de</strong>las com a situação-problema, interpretando-as e<br />
convertendo-as em possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solução ou <strong>de</strong> minimização do problema instituído.<br />
O produto <strong>de</strong>sse processo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da efetiva solução do problema, é<br />
o que se concebe como conhecimento, uma vez que essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações estabelecida<br />
foi incorporada pelo sujeito e po<strong>de</strong>rá ser o alicerce <strong>de</strong> novas relações na busca <strong>de</strong> outras<br />
3 MORIN, 2002, p. 16 e 18.<br />
128
soluções para outras situações conflitivas. A cada evento que se apresenta ao sujeito<br />
cognoscente, ele localiza e mobiliza o que já assimilou a respeito, ressignifica e<br />
reconstrói o conhecimento que já possui e, buscando novas informações, realizando<br />
novas interações, incorpora novas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações ao seu conhecimento prévio,<br />
ampliando-o, redimensionando-o e/ou sedimentando-o para a solução <strong>de</strong> novos<br />
problemas.<br />
Assim, sucessiva e recursivamente, o conhecimento vai sendo construído,<br />
aprofundado, alargado, e o sujeito vai se tornando mais autônomo, mais senhor <strong>de</strong> suas<br />
interpretações e ações sobre o mundo e sobre si mesmo.<br />
Como diz Luckesi (1989, p. 47-48),<br />
o conhecimento é o produto <strong>de</strong> um enfrentamento do mundo realizado pelo ser humano que<br />
só faz plenamente sentido na medida em que o produzimos e o retemos como um modo <strong>de</strong><br />
enten<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>, que nos facilite e nos melhore o modo <strong>de</strong> viver, e não, pura e<br />
simplesmente, como uma forma enfadonha e <strong>de</strong>sinteressante <strong>de</strong> memorizar fórmulas<br />
abstratas e inúteis para nossa vivência e convivência no e com o mundo.<br />
Des<strong>de</strong> essa perspectiva, o objeto <strong>de</strong> conhecimento não se apresenta ao sujeito<br />
como um reflexo do real a ser assimilado, mas como um objeto a que o sujeito precisa<br />
atribuir sentido. Por isso, o conhecimento é sempre, como diz Morin (2002), tributário<br />
da interpretação, logo, da subjetivida<strong>de</strong>, isto é, construído individual e transitoriamente,<br />
não admitindo o caráter <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> tácita e imutável.<br />
A linguagem assume no processo <strong>de</strong> conhecer pelo menos três funções: a <strong>de</strong><br />
veicular a interação do sujeito cognoscente com o objeto <strong>de</strong> conhecimento,<br />
possibilitando sua apropriação; a <strong>de</strong> estruturar e organizar o conhecimento resultante<br />
<strong>de</strong>ssa interação; e a <strong>de</strong> tornar consciente ao sujeito todo esse processo.<br />
[...] o homem transforma e é transformado nas relações produzidas em uma <strong>de</strong>terminada<br />
cultura. Mas a sua relação com o meio não se dá <strong>de</strong> forma direta, ela é mediada por<br />
sistemas simbólicos que representam a realida<strong>de</strong>; e a linguagem, que se interpõe entre o<br />
sujeito e o objeto <strong>de</strong> conhecimento, é o principal sistema <strong>de</strong> todos os grupos humanos. 4<br />
Quando o sujeito se questiona sobre algo, quando mobiliza o que já conhece a<br />
respeito do que está investigando e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aí, estabelece novas relações a fim <strong>de</strong> se<br />
apropriar <strong>de</strong>sse objeto <strong>de</strong> investigação e, ainda, quando consegue tomar consciência do<br />
caminho percorrido para <strong>de</strong>svendar o objeto que se lhe põe à frente, bem como do<br />
resultado <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svelamento, o faz por meio da linguagem, seja ela verbal ou não.<br />
Como diz Vygotsky, a linguagem dá forma ao pensamento, estruturando-o. É por meio<br />
da linguagem que o sujeito interpreta, constrói, reconstrói, ressignifica, redimensiona e<br />
socializa o conhecimento.<br />
Para Luria (1987, p. 202),<br />
4 BEZERRA, 2002, p. 38.<br />
a presença da linguagem e <strong>de</strong> suas estruturas lógico-gramaticais permite ao homem tirar<br />
conclusões com base em raciocínios lógicos, sem ter que se dirigir cada vez à experiência<br />
sensorial imediata. A presença da linguagem permite ao homem realizar a operação<br />
<strong>de</strong>dutiva sem se apoiar nas impressões imediatas e se limitando àqueles meios <strong>de</strong> que<br />
dispõe a própria linguagem. Esta proprieda<strong>de</strong> da linguagem cria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência<br />
das formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivo e <strong>de</strong>dutivo), que<br />
constituem as formas fundamentais da ativida<strong>de</strong> intelectual produtiva humana.<br />
129
Se a linguagem é o instrumento fundamental do processo <strong>de</strong> conhecer e se o<br />
conhecer pressupõe o apren<strong>de</strong>r, a linguagem <strong>de</strong>sempenha na aprendizagem função<br />
igualmente essencial, como mediadora das relações entre o sujeito e o objeto a<br />
conhecer.<br />
Nesse sentido, quando se pensa uma proposta para o ensino <strong>de</strong> língua materna,<br />
outro conceito <strong>de</strong> base a ser repensado é o <strong>de</strong> aprendizagem. É preciso saber como se<br />
enten<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> aprendizagem, como se apren<strong>de</strong>, para po<strong>de</strong>r conceber uma<br />
proposta <strong>de</strong> ensino, uma vez que o ensino só tem sentido se pensado da perspectiva do<br />
apren<strong>de</strong>r.<br />
Não há espaço aqui para analisarmos todas as formas <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
restringir-nos-emos, pois, à aprendizagem formal, sistematizada, escolar.<br />
Se o ato <strong>de</strong> conhecer pressupõe a construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informações<br />
interconectadas, faz-se necessário apren<strong>de</strong>r a tecer essa re<strong>de</strong>. A aprendizagem, aqui, é<br />
vista como o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> competências/habilida<strong>de</strong>s essenciais ao ato <strong>de</strong><br />
conhecer como as <strong>de</strong> observar, comparar, classificar, analisar, sintetizar, interpretar,<br />
criticar, <strong>de</strong>scobrir, estabelecer relações. Outra vez, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> tais<br />
competências/habilida<strong>de</strong>s tem como principal ferramenta a linguagem e,<br />
essencialmente, a linguagem verbal. Des<strong>de</strong> a mais simples observação até a construção<br />
da mais complexa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações tem na verbalização o maior instrumento <strong>de</strong><br />
representação/sistematização/consolidação.<br />
Segundo Piaget, apren<strong>de</strong>r é diferente <strong>de</strong> conhecer. Apren<strong>de</strong>r, para o autor, é<br />
saber realizar, ao passo que conhecer é compreen<strong>de</strong>r e distinguir as relações necessárias,<br />
é atribuir significado às coisas. Nesse sentido, apren<strong>de</strong>r diz respeito mais aos<br />
procedimentos e às estratégias empregadas pelo sujeito para agir sobre o objeto <strong>de</strong><br />
conhecimento e <strong>de</strong>cifrá-lo ou ressignificá-lo.<br />
Novamente, aqui, torna-se essencial a consciência sobre esses procedimentos:<br />
apren<strong>de</strong>r a apren<strong>de</strong>r, pois, é fundamental para o aprimoramento das estratégias<br />
pressupostas pelo conhecer. A meta-aprendizagem, assim como a metacognição, é<br />
fundamental para assegurar ao sujeito a autonomia do seu <strong>de</strong>senvolvimento, uma vez<br />
que lhe permite otimizar processos e redimensionar estratégias em função do objeto a<br />
conhecer.<br />
A aprendizagem resulta <strong>de</strong> construções efetivadas pelo sujeito cognoscente por<br />
meio <strong>de</strong> estágios <strong>de</strong> reflexão, remanejamento e remontagem das percepções que<br />
ocorrem na ação sobre o mundo e na interação com outras pessoas 5 . A aprendizagem é<br />
resultado <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> interação entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto,<br />
por uma integração ativada pelas ações do sujeito 6 .<br />
A aprendizagem, por <strong>de</strong>corrência, só acontece à proporção que o aluno age sobre<br />
os conteúdos específicos e, <strong>de</strong>safiado por situações problematizadoras, tem suas<br />
próprias estruturas <strong>de</strong> pensamento previamente construídas ou em construção. E, ainda,<br />
pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> competências/habilida<strong>de</strong>s, mantém uma relação ativa como o<br />
conhecimento, relação essa que produz transformações no sujeito cognoscente e no<br />
próprio objeto cognoscível.<br />
No entanto, a aprendizagem não po<strong>de</strong> ser vista como um fenômeno unicamente<br />
individual. Se o ser humano é aqui entendido como um ser essencialmente social, só se<br />
po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a aprendizagem como resultado <strong>de</strong> um constante processo <strong>de</strong><br />
interação, não apenas do sujeito com o objeto a conhecer, mas do sujeito com outros<br />
5 MORAES, 2000, p. 200.<br />
6 Id. Ib.<br />
130
sujeitos. No caso específico do ensino formal, a aprendizagem <strong>de</strong>corre<br />
fundamentalmente das interações aluno-professor e aluno-aluno.<br />
Segundo Wood 7 , a teoria vigotskiana atribui ao sucesso alcançado pela<br />
cooperação a base da aprendizagem e do <strong>de</strong>senvolvimento. A instrução, tanto formal<br />
como informal, em contextos sociais variados, realizada por colegas, familiares, amigos<br />
e professores dotados <strong>de</strong> maior conhecimento, é o principal veículo <strong>de</strong> transmissão<br />
cultural do conhecimento. O conhecimento encontra-se inscrito nas ações, no trabalho,<br />
nas brinca<strong>de</strong>iras, na tecnologia, na literatura, nas artes e na fala dos membros <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong>. E apenas por meio da interação com os representantes <strong>de</strong> vários grupos<br />
sociais e culturais é que o sujeito po<strong>de</strong>rá adquirir, incorporar e <strong>de</strong>senvolver<br />
posteriormente aquele conhecimento. Ou seja, é através das múltiplas inter-relações que<br />
o indivíduo mantém com os diferentes grupos sociais que vai construindo seu<br />
conhecimento e incorporando valores, crenças e atitu<strong>de</strong>s que compõem a cultura e que,<br />
por sua vez, fazem-na perpetuar-se.<br />
O ato <strong>de</strong> conhecer pressupõe uma ação do sujeito sobre o objeto <strong>de</strong><br />
conhecimento, no sentido <strong>de</strong> compreendê-lo e <strong>de</strong>cifrá-lo, processos que, por sua vez,<br />
implicam o ato <strong>de</strong> refletir, já que nem todo o objeto <strong>de</strong> conhecimento está disponível<br />
sensorialmente. É pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar simbolicamente, ou seja, pela<br />
linguagem, que o sujeito consegue abstrair, logo, analisar, hipotetizar, <strong>de</strong>duzir,<br />
generalizar, transferir, projetar, acessar e processar informações, sistematizando-as e<br />
incorporando-as na forma <strong>de</strong> conhecimento construído.<br />
É pela linguagem que o homem se apropria do conhecimento. E é pelo<br />
questionamento sobre a realida<strong>de</strong> (esta concebida como um ponto <strong>de</strong> vista do sujeito,<br />
logo, individualmente percebida e compreendida) que o conhecedor conhece. Portanto,<br />
é a língua que permite ao sujeito assumir uma atitu<strong>de</strong> investigativa sobre o mundo,<br />
questioná-lo e questionar o conhecimento produzido, e, assim, construir sobre ele seus<br />
pontos <strong>de</strong> vista. É a língua o principal instrumento <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> consciência do mundo<br />
pelo sujeito.<br />
Para Wittgenstein e Foucault, a linguagem é atributiva, isso é, não há qualquer<br />
correspondência estrita (necessária, em termos filosóficos) entre as palavras<br />
(linguagem) e as coisas (mundo), mas que é pela linguagem que damos sentido às coisas<br />
(ao mundo).<br />
Conhecer nada mais é do que atribuir sentido ao que se nos apresenta; conhecer,<br />
portanto, pressupõe a linguagem para tal atribuição <strong>de</strong> sentido. É por meio da linguagem<br />
que o sujeito conhecedor age sobre o objeto a conhecer e, nessa ação, construindo<br />
hipóteses e generalizações, confere sentido a ele, apropriando-se <strong>de</strong>sse objeto e tomando<br />
consciência do próprio processo <strong>de</strong> conhecê-lo, o que, conseqüentemente, lhe permitirá<br />
<strong>de</strong>cifrar novos objetos cognocíveis e implementar novas formas <strong>de</strong> conhecer.<br />
De acordo com Vygotsky (1998), quando trata do processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong><br />
conceitos, o signo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento mediador nesse<br />
processo, afigura-se como sua síntese, uma vez que se torna a exteriorização, a<br />
abstração, a formalização do próprio conceito formado. A linguagem, nesse sentido,<br />
assume papel mediador e estruturante no processo <strong>de</strong> conhecer. É por meio <strong>de</strong>la, e mais<br />
especificamente por meio da língua, que significamos e representamos o mundo que se<br />
nos dá a conhecer.<br />
7 1996, p. 45.<br />
131
É a língua a responsável pela transformação do conhecimento em saber e em<br />
saber-fazer, visto que ela possibilita a socialização <strong>de</strong> informações e o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s que o raciocinar pressupõe. É pela proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> referir pela língua que<br />
o sujeito se constitui, instaura o outro e constitui o mundo que o cerca.<br />
As concepções até aqui discutidas formam o alicerce sem o que não seria<br />
possível <strong>de</strong>linear uma proposta para o ensino <strong>de</strong> língua materna no Ensino Fundamental.<br />
Somente quando se tem por base e se acredita que a função da língua é a <strong>de</strong> mediar o<br />
processo <strong>de</strong> conhecer em qualquer área po<strong>de</strong>-se propor que o ensino <strong>de</strong> língua<br />
configure-se como uma instrumentalização ao ato <strong>de</strong> transformar informações em<br />
conhecimento e, posteriormente, outra vez por meio da língua, transformar esse<br />
conhecimento construído em ferramenta para a solução <strong>de</strong> problemas que o viver e o<br />
conviver impõem.<br />
Assim sendo, é hora <strong>de</strong> repensarmos o ensino da língua materna <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa<br />
perspectiva: algumas concepções, algumas diretrizes, alguns redimensionamentos.<br />
2. Português instrumental: a língua a serviço da construção <strong>de</strong> saberes no Ensino<br />
Fundamental<br />
Se a educação formal é tida aqui como uma simulação dos processos <strong>de</strong> ensino e<br />
aprendizagem <strong>de</strong>senvolvidos pela educação informal, o ensino da língua materna não<br />
po<strong>de</strong>ria ser concebido <strong>de</strong> outra forma. Assim, o ensino da língua portuguesa <strong>de</strong>veria<br />
seguir na direção da aquisição da linguagem oral, no sentido <strong>de</strong> que essa modalida<strong>de</strong> da<br />
língua é apreendida e aprendida em seu uso, pela interação do sujeito com outros que já<br />
a <strong>de</strong>tém. Ensinar língua materna, então, significa expor o sujeito aprendiz a diferentes<br />
situações <strong>de</strong> emprego da língua, seja na modalida<strong>de</strong> escrita para aprendê-la, seja na<br />
modalida<strong>de</strong> oral para aperfeiçoá-la.<br />
Hoje, as aulas <strong>de</strong> língua portuguesa estão direcionadas prioritariamente à<br />
aquisição e ao <strong>de</strong>senvolvimento da língua escrita, quer em termos <strong>de</strong> compreensão<br />
leitora, quer no que se refere à produção <strong>de</strong> textos. A língua oral é relegada a um<br />
segundo plano ou nem sequer trabalhada, sendo inclusive “atrofiado” seu uso no<br />
ambiente escolar, já que as interlocuções são limitadas e rigidamente supervisionadas, e<br />
as intervenções dos professores sobre a oralida<strong>de</strong> dos alunos vão exclusivamente no<br />
sentido da correção e, ainda, da correção com critérios do nível culto da modalida<strong>de</strong><br />
escrita.<br />
Além disso, o ensino do português está muito longe <strong>de</strong> priorizar as situações <strong>de</strong><br />
uso efetivo da língua a ser aprendida/aprimorada; a <strong>de</strong>scrição ou mesmo a normatização<br />
do sistema lingüístico é o foco dos currículos na Educação Básica. A língua como<br />
objeto <strong>de</strong> ensino é uma língua atemporal, fora <strong>de</strong> contexto, portanto, <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong><br />
qualquer função, mas plenamente recheada <strong>de</strong> regras e normas, cuja infração é sempre<br />
motivo <strong>de</strong> punição; é a língua sobre si mesma e por si mesma, sem qualquer vínculo<br />
com as possibilida<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> emprego e, menos ainda, sem qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
criação sobre ou <strong>de</strong> rompimento do sistema que é tido como restritivo e coercitivo; é<br />
uma língua fossilizada, sem ninguém que a atualize, que a realize, que atribua sentido a<br />
ela.<br />
Ora, sabe-se bem que o sentido não está na língua, como entida<strong>de</strong> virtual, mas no<br />
contexto <strong>de</strong> uso das formas da língua; é o discurso, como diz Ducrot, que doa sentido, é<br />
na parole saussuriana que o dizer se faz dito e, portanto, pleno <strong>de</strong> sentido. Então, como<br />
132
conceber um ensino <strong>de</strong> língua que a artificializa, que suprime <strong>de</strong>la o que lhe confere<br />
sentido? Como esperar que o aluno aprenda a usar uma língua, a sua língua, ensinando<br />
suas formas e estruturas <strong>de</strong>scontextualizadas, fora da situação enunciativa que a faz<br />
“fazer” sentido?<br />
Diante disso e da crença <strong>de</strong> que a língua é, além do principal instrumento <strong>de</strong><br />
interlocução dos seres humanos, o principal elemento mediador na formação <strong>de</strong><br />
conceitos e, conseqüentemente, da construção <strong>de</strong> saberes pelos sujeitos, o que se propõe<br />
aqui é quase o inverso disso. É um ensino <strong>de</strong> língua materna (em que as modalida<strong>de</strong>s<br />
oral e escrita tenham o mesmo status e sejam constante e concomitantemente<br />
trabalhadas) cujas bases sejam as situações enunciativas, os contextos <strong>de</strong> interlocução,<br />
os diferentes objetivos dos locutores, os diversos perfis dos interlocutores.<br />
Nossos professores <strong>de</strong> língua – seja por formação profissional, seja por falta <strong>de</strong> formação –<br />
são muito atraídos pela <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> língua e pelo ensino <strong>de</strong> gramática. Sempre fazemos<br />
sucesso na formação <strong>de</strong> professores quando discutimos as características formais e <strong>de</strong> estilo<br />
<strong>de</strong> um texto ou gênero, a partir <strong>de</strong> nossos instrumentos. Por outro lado, nossos alunos não<br />
precisam ser gramáticos <strong>de</strong> texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem sofisticada.<br />
Ao contrário, no Brasil, com seus acentuados problemas <strong>de</strong> iletrismo, a necessida<strong>de</strong> dos<br />
alunos é <strong>de</strong> terem acesso letrado a textos (<strong>de</strong> opinião, literários, científicos, jornalísticos,<br />
informativos, etc.) e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem fazer uma leitura crítica e cidadã <strong>de</strong>sses textos. 8<br />
Por isso, acredita-se que os gêneros discursivos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a abordagem <strong>de</strong> Bakhtin,<br />
possam se constituir meios eficientes para o ensino da língua materna numa perspectiva<br />
mais enunciativa e funcional.<br />
A proposta <strong>de</strong>sse autor vem ao encontro da função que se atribui aqui ao ensino<br />
<strong>de</strong> língua materna no Ensino Fundamental, ou seja, a <strong>de</strong> instrumento do processo <strong>de</strong><br />
aquisição/construção <strong>de</strong> conhecimentos em todas as <strong>de</strong>mais disciplinas que compõem o<br />
currículo <strong>de</strong>sse nível <strong>de</strong> ensino.<br />
Como diz Bakhtin,<br />
todos os diversos campos da ativida<strong>de</strong> humana estão ligados ao uso da linguagem.<br />
Compreen<strong>de</strong>-se perfeitamente que o caráter e as formas <strong>de</strong>sse uso sejam tão multiformes<br />
quanto os campos da ativida<strong>de</strong> humana, o que, é claro, não contradiz a unida<strong>de</strong> nacional <strong>de</strong><br />
uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma <strong>de</strong> enunciados 9 (orais e escritos)<br />
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes <strong>de</strong>sse ou daquele campo da ativida<strong>de</strong><br />
humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada<br />
referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela<br />
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima <strong>de</strong> tudo, por<br />
sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a<br />
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são<br />
igualmente <strong>de</strong>terminados pela especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado campo da comunicação.<br />
Evi<strong>de</strong>ntemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo <strong>de</strong> utilização da<br />
língua elabora seus tipos relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados, os quais <strong>de</strong>nominados<br />
gêneros do discurso. 10<br />
Cada área do conhecimento – e, por conseguinte, no referido processo <strong>de</strong><br />
simulação, cada disciplina do currículo – possui formas específicas <strong>de</strong> expressar seus<br />
8 ROJO, p. 27.<br />
9 Conceito situado pelo próprio autor no campo da parole saussuriana, significa o ato <strong>de</strong> enunciar, <strong>de</strong> exprimir,<br />
transmitir pensamentos, sentimentos, etc. Bakhtin, segundo seu tradutor, usa indiscriminadamente os termos<br />
enunciado e enunciação, sem distingüi-los.<br />
10 BAKHTIN, 2003, p. 261-262. Grifos do autor.<br />
133
aciocínios e conceitos: <strong>de</strong>finições, explicações, justificativas, questionamentos,<br />
fórmulas, gráficos, mapas, esquemas, enfim, uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
gêneros discursivos aplicados às finalida<strong>de</strong>s e necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada área e <strong>de</strong> cada<br />
conceito trabalhado, analisado.<br />
O sujeito aprendiz é exposto a essa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros discursivos sem<br />
que nenhuma instrumentalização lingüística lhe seja fornecida. A i<strong>de</strong>ologia escolar tem<br />
a falsa impressão <strong>de</strong> que o fundamental a ser ensinado é o conteúdo temático <strong>de</strong> cada<br />
área, como se esse conteúdo não fosse veiculado por um conjunto <strong>de</strong> seqüências<br />
discursivas próprias da área e que requerem domínio, por parte do sujeito cognoscente,<br />
para que possam ser compreendidas e, então, aprendido, transferido e aplicado o<br />
conteúdo que é por elas transmitido.<br />
Des<strong>de</strong> essa perspectiva, à educação formal cabe não só ensinar o conhecimento<br />
produzido em cada área mas também instrumentalizar o aprendiz para que tenha acesso<br />
a esses conhecimentos e seja capaz <strong>de</strong> apropriar-se <strong>de</strong>les para construir seus próprios<br />
conceitos e produzir novos conhecimentos.<br />
Particularmente, à disciplina <strong>de</strong> Língua Portuguesa fica uma dupla tarefa: a <strong>de</strong><br />
instrumentalizar o aluno para compreen<strong>de</strong>r e produzir os gêneros discursivos cotidianos,<br />
orais ou escritos, dos mais informais aos mais formais; e a <strong>de</strong> instrumentalizá-lo<br />
também para operar, quer em termos <strong>de</strong> leitura, quer <strong>de</strong> produção, com os gêneros<br />
utilizados pelas outras disciplinas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aqueles próprios das várias áreas do<br />
conhecimento até os que são didaticamente usados pelas disciplinas para acesso e<br />
construção do conhecimento produzido, a saber: os relatórios, resumos, resenhas,<br />
esquemas, etc.<br />
Ainda conforme Bakhtin,<br />
em cada campo existem e são empregados gêneros que correspon<strong>de</strong>m às condições<br />
específicas <strong>de</strong> dado campo; é a esses gêneros que correspon<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminados estilos. Uma<br />
<strong>de</strong>terminada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e <strong>de</strong>terminadas<br />
condições <strong>de</strong> comunicação discursiva, específicas <strong>de</strong> cada campo, geram <strong>de</strong>terminados<br />
gêneros, isto é, <strong>de</strong>terminados tipos <strong>de</strong> enunciados estilísticos, temáticos e composicionais<br />
relativamente estáveis. 11<br />
Nesse sentido, o que se propõe aqui é que a função, a finalida<strong>de</strong>, a situação<br />
enunciativa <strong>de</strong>terminem a forma, os mecanismos lingüístico-gramaticais e textuais a<br />
serem trabalhados, ensinados nas aulas <strong>de</strong> língua materna, e não o contrário como vem<br />
sendo feito. Que a hierarquização dos conteúdos a serem trabalhados no Ensino<br />
Fundamental, principalmente nas últimas quatro séries, em Língua Portuguesa, seja feita<br />
com base nos gêneros discursivos veiculados nas outras disciplinas do currículo e que<br />
seja assumida pela disciplina <strong>de</strong> língua materna a função instrumental que tem em<br />
relação às outras que compõem o currículo.<br />
Não se postula que seja abolido o estudo da forma em função da análise<br />
enunciativo-discursiva, mas que esta seja priorizada e norteie o ensino daquela.<br />
Acredita-se que tanto os recursos textuais (mecanismos que asseguram coerência e<br />
coesão nos níveis macro e microestrutural) quanto os aspectos gramaticais sejam<br />
tratados em função do gênero analisado, <strong>de</strong> acordo com o que é requerido pela situação<br />
enunciativa.<br />
De acordo com Rojo,<br />
11 BAKHTIN, 2003, p.266.<br />
134
toda prática <strong>de</strong> linguagem se dá numa situação (<strong>de</strong> comunicação, <strong>de</strong> enunciação, <strong>de</strong><br />
produção ou circulação) que é própria <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada esfera social, em um dado<br />
tempo e espaço históricos. Esta esfera neste tempo/espaço admite <strong>de</strong>terminados<br />
participantes (com relações específicas), temas e modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> mídia, e<br />
não outros. Estes participantes articulam seus enunciados em gêneros específicos <strong>de</strong>ssa<br />
esfera e as proprieda<strong>de</strong>s composicionais e estilísticas <strong>de</strong>sses enunciados em gêneros (forma<br />
composicional, formas lingüísticas) serão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das relações entre estes<br />
participantes. Em especial, das apreciações <strong>de</strong> valor que estes façam sobe o tema e sobre<br />
seus interlocutores. 12<br />
Cabe ao professor <strong>de</strong> língua materna criar situações-problema que <strong>de</strong>safiem o<br />
aprendiz não só a compreen<strong>de</strong>r como também a produzir diferentes gêneros discursivos,<br />
isto é, situações conflitivas cuja resolução <strong>de</strong>penda da produção/compreensão <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminados gêneros. Só assim os alunos perceberão a importância <strong>de</strong> aprimorar-se<br />
lingüisticamente para po<strong>de</strong>r interagir em diferentes contextos e com diversos objetivos e<br />
interlocutores e tirar o máximo proveito <strong>de</strong>ssas interações.<br />
Falamos apenas através <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos<br />
enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas <strong>de</strong> construção do todo.<br />
Dispomos <strong>de</strong> um rico repertório <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> discurso orais (e escritos). Em termos<br />
práticos, nós os empregamos <strong>de</strong> forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos<br />
po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sconhecer inteiramente sua existência. [...] até mesmo no bate-papo mais<br />
<strong>de</strong>scontraído e livre nós moldamos nosso discurso por <strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong> gênero, às<br />
vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas [...]. Esses<br />
gêneros do discurso nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna,<br />
a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática. 13<br />
Bakhtin acrescenta ainda que a língua materna – sua composição vocabular e<br />
sua estrutura gramatical – não é apreendida por nós a partir <strong>de</strong> dicionários e gramáticas<br />
mas <strong>de</strong> enunciações concretas que ouvimos e reproduzimos nas diferentes situações<br />
discursivas, com os interlocutores que nos ro<strong>de</strong>iam. Assimilamos as formas da língua<br />
somente nas e pelas enunciações. As formas da língua e as formas típicas dos<br />
enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa<br />
consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. 14<br />
Apren<strong>de</strong>r a falar, <strong>de</strong> acordo com o mesmo autor, significa apren<strong>de</strong>r a construir<br />
enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda,<br />
por palavras isoladas). Há, segundo ele, entre os gêneros do discurso e as formas<br />
gramaticais e <strong>de</strong>stes com o discurso uma relação <strong>de</strong> inter-<strong>de</strong>pendência em termos <strong>de</strong><br />
organização: os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma<br />
forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). 15<br />
Não entraremos aqui nos meandros da discussão lingüística existente entre tipos<br />
textuais e gêneros discursivos (ou como quer Marcuschi, gêneros textuais). Não é<br />
objetivo <strong>de</strong>ste texto apresentar uma discussão teórica e terminológica sobre esse<br />
assunto, no entanto, Marcuschi (2002) faz uma distinção interessante entre esses<br />
conceitos e pensamos ser pertinente apresentá-la aqui, pois cremos ser possível aliar,<br />
12 ROJO, p. 16-17.<br />
13 BAKHTIN, 2003, p. 282-283.<br />
14 Id. ib.<br />
15 Id. ib.<br />
135
como ferramentas pedagógicas para o ensino <strong>de</strong> língua materna, tipos textuais e gêneros<br />
do discurso.<br />
O autor 16 diz usar a expressão tipo textual para <strong>de</strong>signar uma espécie <strong>de</strong><br />
construção teórica <strong>de</strong>finida pela natureza lingüística <strong>de</strong> sua composição (aspectos<br />
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) e afirma que esses tipos abrangem<br />
categorias como a narração, a exposição, a argumentação, a <strong>de</strong>scrição e a injunção.<br />
Já a expressão gêneros textuais (ou o que chamamos aqui gêneros discursivos) é<br />
usada como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que<br />
encontramos em nossa vida e que apresentam características sócio-comunicativas<br />
<strong>de</strong>finidas por conteúdos, proprieda<strong>de</strong>s funcionais, estilo e composição característica.<br />
Os gêneros, segundo ele, são inúmeros, e alguns exemplos seriam o telefonema, a carta<br />
comercial, a carta pessoal, o romance, o bilhete, a reportagem jornalística, o horóscopo,<br />
o artigo científico, a resenha, etc.<br />
Por estar didaticamente muito bem posto, reproduziremos o quadro elaborado<br />
pelo autor 17 para expressar essa distinção.<br />
TIPOS TEXTUAIS GÊNEROS TEXTUAIS<br />
1. construtos teóricos <strong>de</strong>finidos por pro-prieda<strong>de</strong>s<br />
lingüísticas intrínsecas;<br />
2. constituem seqüências lingüísticas ou seqüências<br />
<strong>de</strong> enunciados e não são textos empíricos;<br />
3. sua nomeação abrange um conjunto limita-do<br />
<strong>de</strong> categorias teóricas <strong>de</strong>terminadas por<br />
aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas,<br />
tempo verbal;<br />
4. <strong>de</strong>signações teóricas dos tipos: narração,<br />
argumentação, <strong>de</strong>scrição, injunção e<br />
exposição.<br />
1. realizações lingüísticas concretas <strong>de</strong>finidas por<br />
proprieda<strong>de</strong>s sócio-comunicativas;<br />
2. constituem textos empiricamente realizados<br />
cumprindo funções em situações<br />
comunicativas;<br />
3. sua nomeação abrange um conjunto aberto e<br />
praticamente ilimitado <strong>de</strong> <strong>de</strong>signações<br />
concretas <strong>de</strong>terminadas pelo canal, estilo,<br />
conteúdo, composição e função;<br />
4. exemplos <strong>de</strong> gêneros: telefonema, sermão, carta<br />
comercial, carta pessoal, romance, bilhete,<br />
aula expositiva, reunião <strong>de</strong> condomínio,<br />
horóscopo, receita culinária, bula <strong>de</strong> remédio,<br />
lista <strong>de</strong> compras, cardápio, instruções <strong>de</strong> uso,<br />
outdoor, inquérito policial, resenha, edital <strong>de</strong><br />
concurso, piada, conversação espontânea,<br />
conferência, carta eletrônica, bate-papo virtual,<br />
aulas virtuais, etc.<br />
Se no ambiente escolar, e mesmo fora <strong>de</strong>le, o conhecimento se manifesta por<br />
diferentes gêneros discursivos e se é papel da disciplina <strong>de</strong> língua materna<br />
instrumentalizar o aluno para o livre trânsito entre esses gêneros para que possa se<br />
apropriar do conhecimento produzido pela humanida<strong>de</strong> e, então, exercer plenamente sua<br />
cidadania, acreditamos ser possível, no ensino <strong>de</strong> língua portuguesa, aliar, mesmo que<br />
somente como instrumentos didáticos – uma vez que as bases teóricas que dão origem à<br />
distinção feita por Marcuschi sejam em muitos pontos divergentes – esses dois pontos<br />
<strong>de</strong> vista apresentados pelo autor.<br />
Os tipos <strong>de</strong> texto, tanto quanto os aspectos gramaticais da língua, vêm sendo<br />
trabalhados no ensino como fins em si mesmos. É comum vermos professores<br />
16<br />
2002, p. 22-23.<br />
17<br />
Id, p. 23.<br />
136
<strong>de</strong>stinarem gran<strong>de</strong> parte do período letivo ao ensino <strong>de</strong> narrações e <strong>de</strong>scrições<br />
(principalmente no Ensino Fundamental), suas estruturas, seus elementos, seus subtipos<br />
e, a par disso, categorizações e classificações lexicais e sintáticas, forçando ambientes<br />
<strong>de</strong> compreensão e produção <strong>de</strong> textos que se “enquadrem” nessa tipologia, como se um<br />
texto real fosse puramente narrativo ou <strong>de</strong>scritivo.<br />
Nossa proposta é que, partindo das situações enunciativas que dão origem aos<br />
diversos gêneros discursivos (quer aqueles presentes no cotidiano, quer aqueles <strong>de</strong> que<br />
se valem as <strong>de</strong>mais disciplinas curriculares), analisando a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada gênero, seu<br />
estilo, seu conteúdo, os tipos <strong>de</strong> texto (ou, mais especificamente, as seqüências<br />
discursivas que os constituem) sejam trabalhados para explicitar a composição<br />
característica <strong>de</strong> cada gênero, sua construção composicional, como <strong>de</strong>fine Bakhtin.<br />
Nesse sentido, tanto a tipologia textual quanto os aspectos gramaticais – que<br />
passam a ser vistos como mecanismos <strong>de</strong> coesão e coerência textuais, portanto <strong>de</strong> um<br />
prisma <strong>de</strong>scritivo e não mais prescritivo – serão trabalhados em função dos gêneros<br />
discursivos ensinados, ou seja, o uso da língua em contextos similares aos reais<br />
<strong>de</strong>terminará o estudo do sistema lingüístico.<br />
Conforme o próprio Bakhtin 18 ,<br />
A língua como sistema possui uma imensa reserva <strong>de</strong> recursos puramente lingüísticos para<br />
exprimir o direcionamento formal: recursos lexicais, morfológicos [...], sintáticos [...].<br />
Entretanto, eles só atingem direcionamento real no todo <strong>de</strong> um enunciado concreto.<br />
Uma instrumentalização lingüística com essa configuração parece-nos ser capaz<br />
<strong>de</strong> facilitar ao aluno seu processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> conceitos, a aquisição <strong>de</strong><br />
conhecimentos e, conseqüentemente, a construção dos saberes indispensáveis à sua<br />
inserção na socieda<strong>de</strong> como verda<strong>de</strong>iro cidadão.<br />
Visto que o aluno, quando chega à escola, já domina a língua materna, o papel<br />
do ensino da língua, mesmo da modalida<strong>de</strong> escrita, <strong>de</strong>ve ser o <strong>de</strong> instigar, provocar e<br />
promover uma tomada <strong>de</strong> consciência dos mecanismos e processos lingüísticos que o<br />
sujeito já usa e <strong>de</strong> outros disponíveis no sistema lingüístico, quer oral, quer escrito, no<br />
sentido <strong>de</strong> possibilitar a ele um uso mais efetivo e eficaz <strong>de</strong>sses recursos no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> competências/habilida<strong>de</strong>s necessárias à aquisição do conhecimento.<br />
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