Pré-visualização - Livraria Livrododia
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és um animal, viscovitz<br />
da autoria de alessandro boffa
título original<br />
Sei una bestia, Viskovitz<br />
autor<br />
Alessandro Boffa<br />
edição<br />
1000 exemplares<br />
design e paginação<br />
© Ilídio J.B. Vasco<br />
www.ilidiojbvasco.com<br />
tradução<br />
Tiago Guerreiro da Silva<br />
revisão<br />
Marisa Mendonça<br />
impressão:<br />
ISBN: 978-972-8979-38-6<br />
depósito legal:<br />
© 1998, Garzanti Editorespa / 2000 Garzanti Libri spa<br />
© LIVRARIA LIVRODODIA, 2010<br />
Printed by A3 - - Artes Gráficas Fevereiro de 2010<br />
LIVRODODIA EDITORES<br />
Av. General Humberto Delgado, nº 6 – A<br />
2560 -272 Torres Vedras | PORTUGAL<br />
geral@livrododia.com.pt<br />
www.livrododia.com.pt<br />
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meio, incluindo fotocópias, microfilme, suporte analógico ou digital.
A Sybil
prólogo<br />
Tínhamos ficado sozinhos sobre aquela crosta de gelo à deriva na<br />
noite polar. Viskovitz virou -se e disse -me:<br />
«Gostava que metesses preto no branco a nossa conversa.»<br />
«Não é possível”, respondi. “Não sou nem tipógrafo, nem escritor.<br />
Sou um pinguim. E para mim “meter preto no branco” significa, acima<br />
de tudo, fazer outros pinguins».<br />
No entanto, um mês depois, aqui estou eu, imóvel, com um ovo<br />
debaixo da pança, a recordar.<br />
Tinha sido eu a puxar a conversa…<br />
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Como é que vai a vida, Viskovitz?<br />
Não há nada mais aborrecido que a vida, nada mais deprimente que<br />
a luz do sol, nada mais falso que a realidade. Para mim cada despertar<br />
era uma morte, viver era morrer.<br />
«Acorda, Visko, estamos em Maio!», gritou a Jana. «Acabarão por<br />
apanhar as melhores bolotas.»<br />
Estiquei -me com imensa tristeza e contra a minha vontade abri<br />
um olho. É que apesar de tudo era necessário viver.<br />
«Um momento», disse com custo, «o tempo para me descongelar.»<br />
Era o fim de uma letargia de oito meses. Acordava no cinzento<br />
além, no outro mundo dos ratos -do -pomar.<br />
Na obscuridade da toca entrevia sombras ratiformes, caminhando<br />
solenemente e vacilando entre os corpos acumulados dos dormentes<br />
em direcção à saída daquele sepulcro, almas de antepassados<br />
que como eu transmigravam na vigília.<br />
Encaracolei -me num canto e todo o meu corpo ossudo rangeu.<br />
Comecei a reconhecer os traços familiares dos membros da minha<br />
estirpe, netos e bisnetos, avós e bisavós, filhos, pais e sogros. Alguns<br />
escondidos debaixo da longa cauda peluda ainda passavam pelas brasas<br />
e, grunhindo, abandonavam -se àquele devastante prazer.<br />
À medida que o metabolismo engrenava, começavam a sentir -se<br />
as dores nas articulações, a desidratação, a aflição de cada única célula.<br />
Era a agonia do despertar, de um tormento que teria durado outros<br />
quatro meses até à nova letargia. Naqueles momentos é só a fome<br />
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és um animal, viskovitz · Alessandro Boffa<br />
que te dá força para te pores de novo em pé, saber que se não engordas<br />
não poderás dormir. «Força, Visko», disse -me, «com a tua idade<br />
ainda podes esperar racionalmente outras três letargias e essas, velho<br />
rato -do -pomar, seria uma pena perdê -las.»<br />
Como um zombie, levantei -me sobre o corpo sem sangue e lenhoso,<br />
privado de gorduras e de alma, empurrei -o desajeitadamente<br />
em direcção à luz e, perante a claridade, lacrimejei.<br />
«Estás magro como um alfinete, Visko. Vamos às bolotas!»,<br />
gritou -me a Jana. Era há anos a companheira à qual fui fiel, não por<br />
uma inclinação monógama que nós, ratos -do -pomar, francamente<br />
não temos, mas por preguiça e desejo de aborrecimento. Era a fêmea<br />
mais feia e deprimente de toda a comunidade, a mais maçadora e<br />
tola. Escolhi -a mesmo por isso. Porque só uma vida feita de aborrecimentos<br />
e frustrações nos predispõe a sonhos belos e grandiosos. E<br />
são esses momentos que contam. Se o além, ou seja a vigília, é o inferno,<br />
a vida, ou seja o sonho, será o paraíso. E não o contrário.<br />
Não tinha vontade de me aventurar pelos ramos, por isso fisguei<br />
um par de bolotas caídas no solo e com prudente lentidão desci os<br />
meus ossos do tronco. Cambaleei até um daqueles frutos, com as patinhas<br />
libertei -o da cúpula e afundei os molares no cotilédone maduro.<br />
Senti -me logo melhor.<br />
A minha toca era um ex -ninho de pica -pau escavado num carvalho,<br />
uma sessiliflora. A minha família herdava -a há várias gerações.<br />
Era a árvore mais frutífera do bosque e bastava limpá -la a fundo para<br />
aguentar até ao Outono. Os meus filhos já trabalhavam preguiçosamente<br />
estendidos sobre os ramos. Com satisfação paterna apreciei o<br />
seu indolente baloiçar, o seu olho cerrado, a sua refractariedade em<br />
relação à vida. Depois comecei a dirigir -me para a margem do lago.<br />
Porque uma coisa que precisamos de fazer quando estamos acordados,<br />
para além de engordar e procurar aborrecimentos, é armazenar<br />
material onírico para a próxima letargia. Por isso, nós, ratos -do-<br />
-pomar, vagabundeamos sempre pelos sítios mais fascinantes:<br />
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