O PAPA NEGRO ERNESTO MEZZABOTTA
O PAPA NEGRO ERNESTO MEZZABOTTA
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Saiamos daquele amontoado de palácios suntuosos de torrões feudais, de sombrios edifícios<br />
reais, que constituem a ossatura mais esplêndida da antiga cidade de Paris; deixemos as sombras<br />
das torres de Notre-Dame, eterna maravilha da arte; saiamos das escuras ruas onde se projetam<br />
as sombras da Bastilha, do Chatelet, do convento de São Domingos, esses antros terríveis onde a<br />
justiça secular e a justiça eclesiástica preparam os seus processes mais atrozes.<br />
A medida que caminhamos para os muros da cidade, a população vai sendo menos basta, as<br />
casas cada vez mais raras e mais baixas. Em certos pontos atravessamos espaços completamente<br />
desertos.<br />
É que o terreno é pouco, e grande a procura nas ruas mais centrais de Paris; e aí, em volta do<br />
Palácio Real, dos Tribunais de Justiça, do Hotel de Ville e dos mercados, em volta de todas as<br />
manifestações da vida de cidade, as casas multiplicaram-se e ergueram-se para o céu, pelo desejo<br />
de encerrar o maior número de pessoas no mais pequeno espaço possível.<br />
Mas, nas proximidades dos muros da cidade, há muitos terrenos, a população é menos abundante<br />
e está mais espalhada; e por isso quem ali edifica, alarga-se à sua vontade, ocupando para uma<br />
mansarda, que sirva de hospedaria, o terreno que em outra qualquer parte bastaria para nele<br />
edificar um palácio. E apesar disso, ainda se vêem muitos terrenos por edificar e cobertos de<br />
plantas parasitas.<br />
Ao sinal de apagar lume, que correspondia pouco mais ou menos ao toque de Ave-maria, por<br />
toda a parte reinava a escuridão e o silêncio. As casas dos nobres, únicas que não são obrigadas a<br />
observar aquela disposição da polícia, ficam todas colocadas no centro; junto dos muros<br />
vagueiam livremente os ladrões, os assassinos e outros malfeitores, para quem as trevas e a<br />
solidão são os melhores auxiliares das suas obras.<br />
Ai do viandante que sozinho e sem armas se aventurar por tais lugares!. . . Se levar consigo<br />
alguma cousa, ainda será um tanto feliz, porque os malfeitores contentar-se-ão com tirar-lhe<br />
tudo, e deixá-lo meio morto de medo e de frio, mas sem o esfaquearem; mas se o desgraçado<br />
tivesse a má ventura de não levar consigo dinheiro, ou alguma pequena jóia, que pudesse pagar<br />
aos senhores ladrões o incômodo que tiveram, então a cousa seria mais séria: poderia contar com<br />
uma boa dose de pancadas e ainda por cima talvez com um mergulho nas geladas águas do Sena,<br />
que tantos vivos engole e não restitui senão cadáveres.<br />
Todavia nós vamos entrar nesses lugares perigosos: protegidos pela deusa que vela pelos<br />
romancistas, atravessaremos esses lugares infamados e iremos sair pela porta que fica em frente<br />
da dupla cadeia, e dos guardas que dormitam em volta do fogo da guarita, tremendo com a idéia<br />
de terem de afrontar a umidade e o frio, que lá vai fora.<br />
O demônio familiar que nos acompanha murmura-nos um nome ao ouvido, e então nós, apesar<br />
de nos gabarmos de espíritos fortes, e posto que sejamos mais instruídos — e não o dizemos por<br />
vaidade — do que a maior parte da gente daquele século, estremecemos ao ouvir a terrível<br />
palavra, por mais baixo que ela foi pronunciada.<br />
— O quê!. . . é possível!<br />
— Com certeza; é lá mesmo.<br />
— Mas nós encontraremos lá os archeiros do grande preboste, a guardar os cadáveres. . .<br />
— Isso sim!... ao cair da noite os archeiros consultaram-se em voz baixa, olharam em redor, e<br />
com uma conformidade que faz muita honra à disciplina, escaparam-se para a cidade... Os<br />
archeiros são homens, e como tais têm muito medo das feiticeiras e dos mortos!...<br />
— Mas eu ouvi dizer que a última feiticeira foi queimada anteontem por ordem do Parlamento,<br />
na praça de Greve, à vista do nosso augusto e amado soberano o grande Rei Francisco I!<br />
— Ora histórias!. . . Se ela fosse uma verdadeira feiticeira, podes ter a certeza de que não a<br />
teriam queimado; ela havia de encontrar meio de se escapar à fogueira, auxiliada pelo compadre<br />
diabo; mas provavelmente puseram a assar alguma pobre velha, que não tinha culpa nem pecado.<br />
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