Edição 33 - Memorial da América Latina

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GOVERNADOR<br />

JOSÉ SERRA<br />

VICE-GOVERNADOR<br />

ALBERTO GOLDMAN<br />

SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />

DA AMÉRICA LATINA<br />

CONSELHO CURADOR<br />

PRESIDENTE<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

SECRETÁRIO DE CULTURA<br />

JOÃO SAYAD<br />

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />

GERALDO JOSÉ RODRIGUES ALCKMIN FILHO<br />

REITORA DA USP<br />

SUELY VILELA SAMPAIO<br />

REITOR DA UNICAMP<br />

FERNANDO FERREIRA COSTA<br />

REITOR DA UNESP<br />

HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />

PRESIDENTE DA FAPESP<br />

CELSO LAFER<br />

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />

JURANDIR FERNANDES<br />

DIRETORIA EXECUTIVA<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

FERNANDO LEÇA<br />

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />

DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />

ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />

FERNANDO CALVOZO<br />

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />

SÉRGIO JACOMINI<br />

CHEFE DE GABINETE<br />

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

HUBERT ALQUÉRES<br />

DIRETOR INDUSTRIAL<br />

TEIJI TOMIOKA<br />

DIRETOR FINANCEIRO<br />

CLODOALDO PELISSIONI<br />

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS<br />

LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />

Número <strong>33</strong><br />

ISSN 0103-6777<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />

DIRETOR<br />

FERNANDO LEÇA<br />

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE<br />

LEONOR AMARANTE<br />

COLABORADORA DE EDIÇÃO<br />

ANA CANDIDA VESPUCCI<br />

PRODUÇÃO<br />

HENRIQUE DE ARAUJO<br />

DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS<br />

FELIPE DE OLIVEIRA<br />

DOUGLAS MALUTA<br />

LUANA DE ALMEIDA<br />

COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />

Fábio Invamoto, Fabio Pagan, Fernando Flambart,<br />

Henrique Manreza, Isabel Pérez Pérez, Ignacy Sachs,<br />

José Sebastião Witter, Márcia Rosetto, Paulo Goulart,<br />

Renata Pallottini, Tânia Rabello, Tomás de Albuquerque<br />

Lapa, Walter Louzán, Walter Nomura, Ulpiano T.<br />

Bezerra de Meneses.<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso<br />

Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis<br />

Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis<br />

Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar<br />

Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto<br />

Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa,<br />

Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral<br />

<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade,<br />

664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />

Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />

Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email:<br />

pub.memorial@gmail.com. Os textos são de inteira<br />

responsabli<strong>da</strong>de dos autores, não refletindo o<br />

pensamento <strong>da</strong> revista. É expressamente proibi<strong>da</strong> a<br />

reprodução, por qualquer meio, do conteúdo <strong>da</strong><br />

revista.<br />

EDITORIAL<br />

04<br />

URBANISMO<br />

06<br />

QUADRINHOS<br />

12<br />

TEATRO<br />

19<br />

SOCIOLOGIA<br />

26<br />

ANALISE<br />

32<br />

TECNOLOGIA<br />

38<br />

ECONOMIA<br />

42<br />

AGENDA<br />

49<br />

DEBATE<br />

50<br />

ARTES<br />

60<br />

3<br />

FERNANDO LEÇA<br />

TOMÁS A. LAPA<br />

WALTER LOUZÁN<br />

RENATA PALLOTTINI<br />

PAULO GOULART<br />

TÂNIA RABELLO<br />

JOSÉ S. WITTER<br />

MÁRCIA ROSETTO<br />

IGNACY SACHS<br />

ISABEL PÉREZ PÉREZ<br />

ULPIANO B. MENESES<br />

LEONOR AMARANTE


Na edição anterior já abor<strong>da</strong>mos o<br />

fator Obama e voltamos ao assunto, nesse<br />

espaço, apenas para fazer eco à constatação<br />

geral de que o carisma e a habili<strong>da</strong>de<br />

do presidente se evidenciaram mais<br />

uma vez na recente Cúpula <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s,<br />

em Trin<strong>da</strong>d e Tobago. Agradou, sobretudo,<br />

a sua disposição para o diálogo, que<br />

marca uma clara e elogiável diferença.<br />

O <strong>Memorial</strong> também está ampliando<br />

suas relações. Além dos contatos com<br />

instituições de outros países, está empenhado<br />

em estreitar laços com os demais<br />

Estados brasileiros. O intuito é cumprir<br />

a missão para o qual foi concebido de, a<br />

par <strong>da</strong> integração latino-americana, valorizar<br />

a diversi<strong>da</strong>de cultural do País, focalizando<br />

suas expressões mais autênticas.<br />

Por outro lado, ao tirar partido <strong>da</strong>s<br />

novas tecnologias, a Fun<strong>da</strong>ção está abrindo<br />

novos canais de comunicação com o<br />

público. Instalou telões com informações<br />

sobre o conteúdo de ca<strong>da</strong> um de seus espaços,<br />

sem, contudo, abrir mão do contato<br />

humano que seus jovens monitores<br />

proporcionam.<br />

Esta edição de Nossa <strong>América</strong>,<br />

portanto, acompanha os novos tempos.<br />

Abor<strong>da</strong> vários temas atuais, inclusive a crise<br />

global. Para começar, destaca as particulari<strong>da</strong>des<br />

de Quito, capital do Equador,<br />

que se distingue de outros centros urbanos<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> Hispânica por sua inteligente<br />

forma de preservar a história arquitetônica.<br />

Quem explica quais são as distinções<br />

desse interessante conjunto urbanístico e<br />

arquitetônico é Tomás Lapa, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Pernambuco.<br />

Um dos ícones <strong>da</strong>s histórias latino-americanas<br />

em quadrinhos, Mafal<strong>da</strong><br />

completa 45 anos. A graça e o caráter<br />

mor<strong>da</strong>z e crítico <strong>da</strong> menininha cria<strong>da</strong> por<br />

Quino faz dela unanimi<strong>da</strong>de entre os aficionados<br />

pelo gênero. Quem desven<strong>da</strong><br />

os segredos dessa personagem e o traço<br />

de seu autor é Walter Louzán, também<br />

argentino, e especialista no assunto.<br />

Outro sucesso no cenário latinoamericano,<br />

o Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa<br />

em São Paulo, é colocado sob o<br />

olhar crítico de uma jornalista e um historiador.<br />

Para investigar a razão de tamanho<br />

sucesso de público e mídia, Nossa<br />

<strong>América</strong> convidou a cubana Izabel Pérez<br />

Pérez, editora <strong>da</strong> revista Arte Cubano, e<br />

o historiador brasileiro Ulpiano Bezerra<br />

de Meneses. Sob óticas diferentes os<br />

dois fazem um diagnóstico do conceito<br />

museológico empregado pela instituição.<br />

Mesmo depois de ter parte de seu<br />

território devastado por três furacões, o<br />

governo cubano decidiu manter a Bienal<br />

de Havana que chega à sua décima edição<br />

somando 25 anos de arte contemporânea.<br />

O Brasil se fez presente com artistas de<br />

vários Estados. A editora <strong>da</strong> Nossa <strong>América</strong>,<br />

Leonor Amarante, esteve na mostra,<br />

recebeu a Me<strong>da</strong>lha de Cultura de Cuba e<br />

escreve sobre essa edição comemorativa.<br />

O sucesso do II Festival Ibero-<br />

Americano de Teatro do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> prova a pertinência de<br />

um evento destinado ao intercâmbio e<br />

à difusão cultural. Foram várias companhias<br />

teatrais <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e<br />

de Portugal e Espanha, além de mesas<br />

e debates, mostrando que a troca de<br />

experiências é muito bem-vin<strong>da</strong>. Renata<br />

Pallottini, dramaturga e ensaísta, e o<br />

ator Paulo Goulart, registram em Nossa<br />

<strong>América</strong> suas experiências como participantes<br />

do evento.<br />

Ca<strong>da</strong> país <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> tem<br />

problemas. Alguns mais sérios que outros.<br />

É o caso <strong>da</strong> Guatemala, que não se<br />

livrou <strong>da</strong>s seqüelas de uma longa guerra<br />

civil, nem do machismo que foi tônica<br />

em todo o Continente. Suas mulheres<br />

são literalmente massacra<strong>da</strong>s. Algumas se<br />

insurgem, a exemplo de Sonia E. Lopez<br />

Alvarez, que luta pelos direitos humanos.<br />

A jornalista Tânia Rabello esteve lá e<br />

conta o que ocorre de fato.<br />

Futebol é assunto sério. Ain<strong>da</strong> mais<br />

agora que vem sendo tratado nos meios<br />

acadêmicos. O historiador José Sebastião<br />

Witter explica nas páginas de Nossa <strong>América</strong><br />

como e porque o esporte que o Brasil<br />

ajudou a difundir internacionalmente tornou-se<br />

um fenômeno de massas.<br />

O que também vem se disseminando<br />

rapi<strong>da</strong>mente é o emprego <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de<br />

para promover conhecimento. As<br />

bibliotecas virtuais têm se propagado em<br />

todo o mundo e o <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> não perdeu tempo. Está com seu<br />

acervo digitalizado. A bibliotecária Márcia<br />

Rossetto, responsável pela implantação<br />

<strong>da</strong> BV@L, explica todo o processo e<br />

sua importância na vi<strong>da</strong> moderna.<br />

A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> pode se sair<br />

melhor dessa crise internacional do que<br />

o resto do mundo? Na opinião do economista<br />

Ignacy Sachs, perito em desenvolvimento<br />

sustentado, com certeza sim.<br />

Desde que atente para suas riquezas naturais<br />

e enten<strong>da</strong> como aproveitar o potencial<br />

econômico de seu meio ambiente.<br />

Ele deu um longo depoimento sobre o<br />

assunto com exclusivi<strong>da</strong>de para o <strong>Memorial</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e que Nossa<br />

<strong>América</strong> registra nesta edição.<br />

Fernando Leça<br />

Presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

4 5


URBANISMO<br />

QUITO<br />

PONTE ENTRE PASSADO<br />

E PRESENTE<br />

PRESERVAÇÃO COMO<br />

MARCA DA CIDADE<br />

TOMÁS A. LAPA<br />

O<br />

que dizer de uma ci<strong>da</strong>de tão especial,<br />

sobre a qual já se escreveu<br />

tanto, sem incorrer em lugares<br />

comuns? Devem ser os olhos do<br />

urbanista, a descrever a capital do<br />

Equador, ou vale a pena deixar<br />

fluir as impressões do visitante que se depara com<br />

esse majestoso conjunto urbano, extraordinariamente<br />

conservado até nossos dias? Quem visita Quito<br />

pela primeira vez e começa pelo bairro Mariscal, na<br />

zona norte <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, com modernas zonas residenciais,<br />

restaurantes, comércio e locais de divertimento,<br />

e dirige-se ao centro histórico, terá impressões<br />

distintas e, certamente, contrastantes. Depois de deixar<br />

para trás trechos em estilos modernos sem traços<br />

marcantes, terá a inusita<strong>da</strong> surpresa<br />

de deparar-se com a grandiosa massa<br />

edifica<strong>da</strong>, densa e uniforme, que se<br />

estende por inumeráveis quadras na<br />

direção sul <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Quito está perfila<strong>da</strong> entre montanhas,<br />

dentre as quais se destacam Pichincha,<br />

a oeste, e Panecillo, ao sul. No<br />

centro histórico, que ocupa uma área<br />

de 320 ha, além do casario, admiravelmente<br />

bem conservado, as igrejas, os<br />

conventos, os palácios, praças e largos<br />

dão testemunho do papel estratégico<br />

que a ci<strong>da</strong>de desempenhou na rota de<br />

transporte <strong>da</strong> prata <strong>da</strong>s minas de Potosi<br />

e do Peru, em direção ao Caribe.<br />

Outras ci<strong>da</strong>des históricas <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> já encantaram visitantes do<br />

mundo todo, pelo fausto <strong>da</strong> decoração<br />

de suas igrejas e conventos, pela profusão<br />

de detalhes <strong>da</strong> estatuária e <strong>da</strong>s talhas doura<strong>da</strong>s<br />

e pela uniformi<strong>da</strong>de de seus con-<br />

juntos urbanos. Nas ci<strong>da</strong>des coloniza<strong>da</strong>s<br />

pelos portugueses, em geral destaca-se o<br />

harmonioso jogo entre o traçado e a implantação<br />

<strong>da</strong>s edificações que se amol<strong>da</strong>m<br />

ao sítio, onde a vegetação encarrega-se de<br />

tecer um pano de fundo verde. Nas ci<strong>da</strong>des<br />

coloniza<strong>da</strong>s pelos espanhóis, destacase<br />

a regulari<strong>da</strong>de do traçado, onde a Plaza<br />

Mayor funciona como ponto central de<br />

um ver<strong>da</strong>deiro tabuleiro de xadrez. No<br />

primeiro caso, Olin<strong>da</strong> dentre tantas ilustra<br />

muito bem o jogo sutil que se estabelece<br />

entre o sítio natural e a paisagem<br />

cultural. No segundo caso, Quito dentre<br />

outras ilustra o êxito obtido pelo tipo<br />

de ocupação urbana promovido pelos<br />

conquistadores espanhóis. Vejamos então<br />

que elementos conferem à ci<strong>da</strong>de de<br />

Quito um status tão especial.<br />

Antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos espanhóis,<br />

o local havia sido um ponto de confluência<br />

comercial cerimonial dos povos<br />

6 7<br />

FOTO: REPRODUÇÃO<br />

Vista geral do centro <strong>da</strong><br />

capital equatoriana.


Passagem centenária<br />

nos leva a um outro século.<br />

indígenas e capital de um reino pré-colombiano.<br />

Contam os habitantes locais<br />

que, desde remotas épocas, os povos<br />

indígenas sabiam que o sítio coincidia<br />

com a linha que marca a passagem de um<br />

hemisfério para outro e que, na designação<br />

qui, conti<strong>da</strong> na palavra Quito, há uma<br />

referência a meio, ou metade.<br />

Por volta do século XV, Tupac<br />

Yupanqui fundou no local um vilarejo<br />

que foi incorporado ao império inca.<br />

Em 1534, Sebastián de Benalcázar fundou<br />

a vila de São Francisco de Quito,<br />

alça<strong>da</strong> à sede de Bispado, em 1545, e<br />

Real Audiência <strong>da</strong> Coroa Espanhola, em<br />

1575. Em 1830, Quito tornou-se capital<br />

<strong>da</strong> República do Equador.<br />

Até a segun<strong>da</strong> metade do século<br />

XIX, predominaram na ci<strong>da</strong>de os traços<br />

<strong>da</strong> arquitetura colonial espanhola.<br />

Em 1870, porém, por ordem do presidente<br />

Gabriel Garcia Moreno, os novos<br />

edifícios a serem construídos seguiram<br />

o gosto neoclássico.<br />

Quando se busca a explicação para<br />

que os centros históricos de algumas ci<strong>da</strong>des<br />

latino-americanas tenham conservado<br />

sua uni<strong>da</strong>de, em geral verifica-se o<br />

adormecimento em que estiveram mergulha<strong>da</strong>s<br />

por longo tempo. Foi assim com<br />

o centro histórico de São Luís do Maranhão<br />

que, após o período áureo de progresso<br />

trazido pelo comércio do babaçu<br />

e do arroz, atravessou praticamente todo<br />

o século XX num ritmo modorrento. Foi<br />

assim com o Pelourinho de Salvador que,<br />

por falta de meios dos habitantes pobres<br />

do local, não sofreu transformações nos<br />

tipos arquitetônicos nem na morfologia<br />

do lugar. Da mesma maneira, aconteceu<br />

com Olin<strong>da</strong>, que permaneceu à sombra<br />

do Recife como ci<strong>da</strong>de dormitório,<br />

abrigando uma população de residentes<br />

muito apegados ao lugar.<br />

FOTO: REPRODUÇÃO<br />

8 9<br />

FOTO: REPRODUÇÃO


Cúpulas <strong>da</strong> igreja<br />

Companhia de Jesus,<br />

em Quito.<br />

Em Quito não foi diferente,<br />

pois, a partir de 1930, grande parte dos<br />

habitantes do Centro deslocou suas<br />

residências para novas áreas ao norte<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, fazendo com que muitas<br />

edificações do centro histórico fossem<br />

abandona<strong>da</strong>s e, em segui<strong>da</strong>, ocupa<strong>da</strong>s<br />

por uma população composta de pessoas<br />

pobres e migrantes do campo. Até<br />

este ponto, estamos diante do processo<br />

de transformação e evolução urbana<br />

que a maioria <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des atravessa.<br />

No entanto, outros fatos contribuíram<br />

para não só assegurar a permanência<br />

do patrimônio edificado como também<br />

para colocar em prática um processo<br />

exemplar de reabilitação e de gestão <strong>da</strong><br />

conservação urbana.<br />

Os abalos sísmicos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 1970 foram um sinal de alerta<br />

para o risco de destruição do precioso<br />

patrimônio edificado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Em 1978, o centro histórico de Quito<br />

foi declarado pela Unesco como<br />

Patrimônio Cultural <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />

e reconhecido como o maior centro<br />

histórico, o menos alterado e o melhor<br />

FOTO: REPRODUÇÃO<br />

preservado <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s. Não obstante,<br />

esse reconhecimento não bastou para<br />

reverter o processo de degra<strong>da</strong>ção que<br />

já se arrastava havia déca<strong>da</strong>s.<br />

No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990,<br />

vários segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de equatoriana<br />

mobilizaram-se para encontrar<br />

uma forma de conservação do centro<br />

histórico que atendesse aos interesses<br />

dos gestores municipais, dos investidores<br />

privados, dos residentes e dos comerciantes<br />

locais. Em 1994, foi cria<strong>da</strong> a<br />

Empresa do Centro Histórico de Quito<br />

(ECH), uma autarquia de economia<br />

mista, cujo objetivo é gerir o processo<br />

de conservação urbana e promover o<br />

desenvolvimento socioeconômico <strong>da</strong><br />

área. Essa condição permite que administre<br />

seus próprios fundos e estabeleça<br />

parcerias com empresas do setor<br />

privado de modo a atrair investimentos<br />

e tornar o centro histórico atraente<br />

para residentes, empresas e turistas.<br />

O processo de reabilitação do<br />

centro histórico de Quito, que contou<br />

com apoio do setor de cultura <strong>da</strong><br />

Unesco, teve início em 1997 e esten-<br />

deu-se até 2002. Em segui<strong>da</strong>, um programa<br />

ambicioso, encetado em 2003,<br />

retirou <strong>da</strong>s ruas cerca de 6 mil camelôs<br />

para alojá-los a alguns passos dos locais<br />

de origem, em oito centros comerciais,<br />

onde os visitantes dispõem de<br />

centenas de lojas, de restaurantes, de<br />

banheiros e de segurança.<br />

Atualmente, flanar pelas ruas estreitas<br />

e pitorescas do centro histórico<br />

não implica mais em estado de alerta.<br />

Quito respira outra vez ares de tranqüili<strong>da</strong>de.<br />

Desobstruí<strong>da</strong> dos camelôs<br />

que atravancavam as ruas e calça<strong>da</strong>s e <strong>da</strong><br />

insegurança <strong>da</strong> violência que <strong>da</strong>í decorria,<br />

voltou a oferecer para muitos uma<br />

atmosfera propícia à habitação, ao comércio,<br />

aos serviços e à contemplação<br />

de uma paisagem cultural que está não<br />

somente no limiar de dois hemisférios,<br />

mas que também faz uma ponte entre<br />

passado e presente.<br />

Tomás de Albuquerque Lapa é professor no<br />

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento<br />

Urbano- UFPE.<br />

10 11<br />

FOTO:TOMÁS DE ALBUQUERQUE LAPA


PERSONAGEM<br />

UNIVERSAL<br />

WALTER LOUZÁN<br />

QUADRINHOS<br />

MAFALDA<br />

45 ANOS DE IRREVERÊNCIA<br />

“<br />

Ela não é apenas uma personagem<br />

de histórias em quadrinhos, talvez<br />

seja a personagem dos anos 70 <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de argentina”. Assim definiu<br />

Umberto Eco, seu primeiro<br />

editor na Itália, a menina que este<br />

ano comemora 45 anos desde a sua primeira publicação<br />

periódica, em setembro de 1964. Uma<br />

menina que ensinou to<strong>da</strong> uma geração de argentinos<br />

não somente a ler, mas também a ver o mundo<br />

com desconfiança e insatisfação próprias dos<br />

adultos. Uma menina que, em meio aos desgostos<br />

habituais <strong>da</strong> infância (a nata no leite, a maldita<br />

sopa...), encontrava tempo para tentar melhorar<br />

o mundo, mesmo que fosse apenas aplicando a<br />

maquiagem <strong>da</strong> sua mãe sobre o globo terrestre. ILUSTRAÇÕES:<br />

12 13<br />

REPRODUÇÃO


Uma personagem que transcendeu<br />

o universo dos quadrinhos para se<br />

transformar em símbolo de to<strong>da</strong> uma<br />

geração, um ícone, em selos de correio e<br />

em letras de músicas.<br />

Vamos começar esclarecendo alguns<br />

pontos: Mafal<strong>da</strong> (sem sobrenome,<br />

embora o autor alguma vez tenha deixado<br />

escapar que começava com M), nasceu<br />

em 15 de março de 1962, para servir<br />

de “apoio publicitário” para a campanha<br />

de lançamento de uma linha de eletrodomésticos.<br />

Os jornais, percebendo seu<br />

propósito comercial, rejeitaram a meia<br />

dúzia de tiras desenha<strong>da</strong>s por Quino,<br />

onde nossa heroína apareceu pela primeira<br />

vez. A campanha foi cancela<strong>da</strong> e<br />

o autor arquivou as tiras até 1964, quando<br />

três delas foram publica<strong>da</strong>s em Gregorio,<br />

suplemento humorístico <strong>da</strong> revista<br />

Leoplán (tais tiras nunca foram incluí<strong>da</strong>s<br />

nas compilações dos quadrinhos).<br />

Em 29 de setembro de 1964, a pedido<br />

de Julián Delgado, amigo de Qui-<br />

no, Mafal<strong>da</strong> se mudou para o jornal semanal<br />

Primera Plana e passou a escrever<br />

uma página ímpar na história dos quadrinhos.<br />

Esse ano também foi rico em<br />

história: devido à pressão dos Estados<br />

Unidos crescia o número de adesões de<br />

países americanos ao bloqueio contra<br />

Cuba, enquanto a comissão Warner tornava<br />

pública a versão oficial do assassinato<br />

do presidente Kennedy, os palestinos<br />

fun<strong>da</strong>vam a OLP, Jean-Paul Sartre<br />

recusava o Prêmio Nobel de Literatura,<br />

ao mesmo tempo em que Martin Luther<br />

King recebia o <strong>da</strong> Paz, os Beatles dominavam<br />

as para<strong>da</strong>s musicais e mu<strong>da</strong>vam<br />

definitivamente a história <strong>da</strong> cultura pop<br />

no mundo. Na Argentina, em meio à<br />

críticas <strong>da</strong> oposição e acusações vela<strong>da</strong>s<br />

de “vazio de poder” <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s,<br />

governava o radical Arturo Illia.<br />

Mafal<strong>da</strong> foi publica<strong>da</strong> em Primera<br />

Plana até março de 1965, quando se<br />

mudou para o jornal El Mundo, onde<br />

permaneceu até o fechamento do mes-<br />

mo, em 22 de dezembro de 1967. Aí<br />

surgiram os primeiros amigos <strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong>,<br />

que até então protagonizava as<br />

tiras apenas com seus pais. No dia 19 de<br />

janeiro de 1965 aparece Felipe, um ano<br />

mais velho que Mafal<strong>da</strong>, um “sonhador<br />

tranquilo”, segundo Umberto Eco. Tímido,<br />

preguiçoso, detesta escola e lições<br />

de casa, mas adora quadrinhos, especialmente<br />

os do Zorro. De acordo com<br />

Quino, o personagem foi inspirado no<br />

jornalista Jorge Timossi, que tinha “dentes<br />

de coelho engraçados”. No final de<br />

março do mesmo ano apareceu Manolito<br />

(Manuel Goreiro), filho do dono do<br />

armazém do bairro. Ele funciona como<br />

contraponto às idéias modernizadoras e<br />

aos gostos de Mafal<strong>da</strong>, e como caricatura<br />

do imigrante espanhol pouco inteligente<br />

e na<strong>da</strong> imaginativo (exceto para imaginar<br />

seu futuro como dono de uma rede de<br />

supermercados); representante <strong>da</strong>s idéias<br />

capitalistas e conservadoras, ele e Susanita<br />

são os únicos personagens que sabem<br />

o que querem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

No dia 6 de junho de 1965 Susana<br />

Clotilde Chirusi aparece pela primeira<br />

vez, “beatificamente doente, de espírito<br />

maternal e narcotiza<strong>da</strong> por sonhos<br />

pequeno-burgueses”, para Eco. Mafal<strong>da</strong><br />

chegou a dizer que ca<strong>da</strong> vez que ela falava<br />

“parecia o Prêmio Nobel <strong>da</strong> classe<br />

média”. De acordo com seu autor: “ela<br />

é uma cópia de sua mãe. Seu maior desejo<br />

na vi<strong>da</strong> é ser mãe e se casar com<br />

um homem bonito e rico”. Pouco depois,<br />

no verão de 1966, surge Miguelito<br />

(Miguel Pitti), que Mafal<strong>da</strong> conhece<br />

durante suas férias na praia.Um ano<br />

mais moço que seus amigos, Miguelito<br />

é egocêntrico, quase tão sonhador<br />

quanto Felipe e dono de uma inocência<br />

à prova de tudo. Às vezes deixa<br />

transparecer algumas idéias autoritárias,<br />

influenciado por seu querido avô,<br />

antigo seguidor de Mussolini.<br />

Quando a publicação de El Mundo<br />

foi interrompi<strong>da</strong>, a mãe de Mafal<strong>da</strong><br />

estava grávi<strong>da</strong> de Guille, o único<br />

personagem que cresce no decorrer <strong>da</strong><br />

publicação <strong>da</strong>s tiras. Nasceu em 21 de<br />

março de 1968, segundo uma carta de<br />

apresentação de Mafal<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> no<br />

semanário 7 Días, que passou a publicar<br />

a história de 2 de junho do mesmo<br />

ano até seu final. Desinibido e terno,<br />

o que é amplificado por sua linguagem<br />

infantil, Guille gosta de rabiscar<br />

as paredes, <strong>da</strong> chupeta on the rocks e de<br />

Brigitte Bardot. O último personagem<br />

14 15


a entrar na galeria é Libertad, uma menina<br />

miú<strong>da</strong>, filha de uma tradutora de<br />

francês. Seu nome e tamanho servem<br />

de base para várias pia<strong>da</strong>s de cunho<br />

político. É mais politiza<strong>da</strong> que Mafal<strong>da</strong><br />

e tanto ela quanto seus pais são socialistas<br />

convictos.<br />

Em 25 de Junho de 1973, depois<br />

de 1928 tiras publica<strong>da</strong>s e de uma grande<br />

quanti<strong>da</strong>de de desenhos complementares,<br />

Mafal<strong>da</strong> e seus amigos despedem-se<br />

definitivamente do público. Depois disso,<br />

Quino resgatará seus personagens<br />

esporadicamente para eventos privados<br />

(casamento de amigos, despedi<strong>da</strong>s, um<br />

encarte discográfico que não teve tempo<br />

de ser encartado) e públicos (campanhas<br />

de saúde, um selo postal, a Declaração<br />

dos Direitos <strong>da</strong> Criança de Unicef, etc.).<br />

Joaquín Salvador Lavado Tejón,<br />

filho de republicanos an<strong>da</strong>luzes emigrados,<br />

nasceu em Mendoza, Argentina,<br />

em 1932. Ele mesmo conta que a decisão<br />

de ser desenhista foi toma<strong>da</strong> muito<br />

cedo, com três anos de i<strong>da</strong>de, quando<br />

viu “o que poderia sair de um lápis”. O<br />

lápis em questão estava na mão de seu<br />

tio Joaquín Tejón, que uma noite ficou<br />

tomando conta do menino enquanto<br />

seus pais iam ao cinema.<br />

Sua mãe, que o tinha de convencer<br />

a ir à escola, o deixava desenhar sobre a<br />

mesa <strong>da</strong> cozinha, contanto que depois a<br />

lavasse com água e sabão. Quando um<br />

tio distante teve a má ideia de ironizar<br />

sua decisão de ser desenhista de histórias<br />

em quadrinhos, conquistou um ódio<br />

sem perdão de Joaquinito, que tinha uns<br />

10 anos na época.<br />

Voltou para Buenos Aires em<br />

1954, ci<strong>da</strong>de na qual tinha tentado se<br />

radicar sem êxito e viver do desenho alguns<br />

anos antes, e pouco a pouco, com<br />

a aju<strong>da</strong> do irmão, ele conseguiu se estabelecer.<br />

Chegou a publicar em seis semanários<br />

simultaneamente.<br />

Dez anos mais tarde, já casado<br />

com Alicia Colombo, Quino começa a<br />

publicar Mafal<strong>da</strong>. Já constavam de seu<br />

currículo um livro (Mundo Quino) e uma<br />

exposição individual. Publicou as tiras<br />

durante quase dez anos, diariamente<br />

durante alguns períodos, semanalmente<br />

em outros. Decidiu deixar de desenhálas,<br />

em suas próprias palavras, “porque<br />

tinha de me esforçar muito para não<br />

ser repetitivo, sofria com ca<strong>da</strong> entrega.<br />

Por respeito aos leitores, a meus personagens<br />

e devido a minha maneira de<br />

sentir o trabalho, decidi não as desenhar<br />

mais e continuar com o humor que nunca<br />

deixei de fazer”. Humor inteligente,<br />

ácido, refinado e crítico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e<br />

suas convenções. Para Quino, a pene-<br />

tração de Mafal<strong>da</strong> em outras culturas é<br />

surpreendente: ”As tiras <strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong> são<br />

basea<strong>da</strong>s em tópicos argentinos, e sempre<br />

me pergunto como é que as podem<br />

entender em outras culturas”, declarou<br />

certa vez a um jornal espanhol.<br />

Para muitos, seria uma grande injustiça<br />

que Quino permanecesse na memória<br />

e na história dos quadrinhos apenas<br />

como o criador do universo de Mafal<strong>da</strong><br />

e seus amigos. Uma explicação proposta<br />

por Eco seria mais correta para uma<br />

hipotética futura enciclopédia: “Quino:<br />

desenhista e moralista do século XX. Em<br />

seus cartoons nos oferece uma conotação<br />

lunática e surrealista sobre os aspectos<br />

cotidianos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> íntima de seu tempo;<br />

também criou uma historinha popular na<br />

sua época, chama<strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong>”.<br />

A personagem recebeu diversas<br />

homenagens <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que a viu nascer:<br />

um mural na passagem entre as estações<br />

Peru e Catedral no metrô de Buenos Aires,<br />

uma placa comemorativa no edifício<br />

onde residia Quino enquanto a desenhava<br />

(e onde a história se passa), no número<br />

16 17


371 <strong>da</strong> rua Chile, no bairro de San Telmo,<br />

e uma praça batiza<strong>da</strong> com seu nome.<br />

No crime conhecido como “O<br />

massacre de São Patrício”, no qual membros<br />

<strong>da</strong> repressão arma<strong>da</strong> assassinaram<br />

três sacerdotes e dois seminaristas, os assassinos<br />

colocaram sobre a de suas vítimas<br />

um pôster retirado de um dos quartos,<br />

onde Mafal<strong>da</strong> aparece mostrando<br />

um cassetete <strong>da</strong> polícia e dizendo “este é<br />

o pau para amassar ideologias”.<br />

Julio Cortázar, convi<strong>da</strong>do a <strong>da</strong>r<br />

sua opinião sobre a personagem, disse<br />

o seguinte: “Não tem importância<br />

o que eu penso sobre a Mafal<strong>da</strong>. O<br />

importante é o que a Mafal<strong>da</strong> pensa<br />

sobre mim”. De Gabriel García Márquez:<br />

“Depois de ler Mafal<strong>da</strong> me dei<br />

conta que o melhor caminho para a<br />

felici<strong>da</strong>de é a quinoterapia”. De Umberto<br />

Eco: “Considerando que nossos<br />

filhos se preparam para ser, por esco-<br />

lha nossa, uma multidão de Mafal<strong>da</strong>s,<br />

não seria imprudente tratar a Mafal<strong>da</strong><br />

com o respeito que um personagem<br />

real merece”. (Hoje um mundo que<br />

parece estar em grande parte dominado<br />

por Manolitos e Susanitas contradiz<br />

o filósofo italiano). O próprio<br />

Quino, quando questionado sobre<br />

quais seriam as preocupações de Mafal<strong>da</strong><br />

se ela opinasse sobre a atuali<strong>da</strong>de,<br />

disse: “Ela ficaria preocupa<strong>da</strong> pelo<br />

excesso de esperanças coloca<strong>da</strong>s em<br />

Barack Obama, presidente dos Estados<br />

Unidos, e pelo sabor estranho que<br />

os tomates têm atualmente”.<br />

Walter Louzán é tradutor argentino, especialista<br />

em histórias em quadrinhos.<br />

TEATRO<br />

IbERO - AMéRICA<br />

EM CENA<br />

DRAMATURGIA<br />

COMO INTEGRAÇÃO<br />

Mais do que a repercussão característica<br />

dos eventos de grande<br />

porte, o sucesso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

edição do Festival Ibero-Americano<br />

de Teatro sediado pelo<br />

<strong>Memorial</strong> sinaliza a pertinência<br />

de uma iniciativa destina<strong>da</strong> à difusão cultural.<br />

Treze companhias <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, de Portugal<br />

e Espanha se alternaram, por uma semana, no palco<br />

do Auditório Simón Bolívar, com a casa lota<strong>da</strong>.<br />

Os espetáculos foram complementados por mesas,<br />

debates e exposições sobre os vários aspectos que<br />

envolvem a dramaturgia e mobilizaram tanto um<br />

público aficionado quanto estu<strong>da</strong>ntes e espectadores<br />

curiosos em aproveitar a rara oportuni<strong>da</strong>de de<br />

acompanhar a cena teatral de países irmãos e ouvir<br />

18 19


Cena <strong>da</strong> peça M³,<br />

dos espanhóis<br />

Fernando e Jorge<br />

Sánchez-Cabezudo.<br />

as experiências e os desafios que envolvem<br />

essa forma milenar arte.<br />

A mostra que contou com a presença<br />

de grandes nomes <strong>da</strong> área, como<br />

o diretor paulista José Celso Martinez<br />

Correa e o dramaturgo cubano Abelardo<br />

Estorino, ganha nas páginas de Nossa<br />

<strong>América</strong> duas outras contribuições.<br />

Renata Pallottini, também presente na<br />

ocasião, narra as etapas de sua paixão<br />

pela produção teatral hispano-americana,<br />

desde que descobriu ain<strong>da</strong> nos anos<br />

50 do século XX, que “havia vi<strong>da</strong> inteligente<br />

nos países vizinhos”.<br />

Paulo Goulart, outro amante<br />

confesso do teatro, avalia em um<br />

texto escrito especialmente para esta<br />

edição, a importância de sua participação<br />

no festival, no qual encenou a<br />

peça O Homem Inesperado, junto com a<br />

mulher Nicette Bruno.<br />

Um dos objetivos do festival é<br />

aglutinar e confrontar a produção dos<br />

países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, e de Portugal<br />

e Espanha. Muitas <strong>da</strong>s produções trazem<br />

em suas tramas diferenças e semelhanças<br />

que se repetem nos países <strong>da</strong><br />

região. Com isso, o Festival contribui<br />

para enriquecer ain<strong>da</strong> mais a experiência<br />

entre artistas e companhias teatrais.<br />

Com Medea, de Abelardo Estorino,<br />

o mais aclamado dramaturgo de Cuba, a<br />

afirmação <strong>da</strong> crítica e pesquisadora de<br />

teatro Neide Veneziano se confirma.<br />

Para ela “a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> ferve com<br />

uma estética corporal, diferentemente<br />

<strong>da</strong> Europa, onde o teatro é centrado no<br />

texto”. Estorino criou sua Medeia alegórica,<br />

forte, sobretudo em sua coreografia<br />

corporal e em seu delírio.<br />

A peça inaugural, A Noite dos<br />

Palhaços Mudos, obra do cartunista Laerte,<br />

foi encena<strong>da</strong> com a Cia La Mínima.<br />

Como resultado, tivemos uma<br />

arte que rechaça to<strong>da</strong> uma aura mágica<br />

e fala de pessoas que habitam a ci<strong>da</strong>de<br />

e levam a vi<strong>da</strong> tentando fazer o público<br />

rir, e por isso, são perseguidos por<br />

uma seita que pretende eliminá-los.<br />

O teatro atormentado de Nelson<br />

Rodrigues não ficou de fora. O universo<br />

rodrigueano que transcende o teatro<br />

e nos faz refletir sobre as misérias humanas,<br />

colocou em cena dois de seus<br />

textos épicos: Viúva, Porém Honesta,<br />

com o grupo Gatu, e direção de Eloísa<br />

Vitz, e Senhora dos Afogados, com a<br />

Cia Firma de Teatro, e direção de José<br />

Henrique de Paula. Em ambas fica reforçado<br />

o aspecto alegórico e <strong>da</strong>ntesco<br />

sempre presentes nas obras do mítico e<br />

controvertido Nelson Rodrigues.<br />

Se ir ao teatro ain<strong>da</strong> pode ser<br />

sinônimo de divertimento, foi isso<br />

que o público encontrou na peça M³,<br />

comédia –show, dos espanhóis Fernando<br />

e Jorge Sánchez-Cabezudo. Ao<br />

contrário <strong>da</strong> tendência característica<br />

de companhias <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> de<br />

FOTO: DIvULgAÇÃO<br />

se criar em grupo e colocar muita gente<br />

em cena, aqui o único personagem<br />

dá conta de uma atmosfera claustrofóbica<br />

e kafkaniana ao viver situações<br />

absur<strong>da</strong>s e surpreendentes.<br />

O desenvolvimento do teatro no<br />

Continente se dá via colonizadores,<br />

portugueses e espanhóis. Basta dizer<br />

que já nas caravelas dos descobridores<br />

portugueses se faziam representações<br />

teatrais, como observa o escritor Carlos<br />

Francisco Moura, em seu livro Teatro<br />

a Bordo de Naus Portuguesas. As peças<br />

eram sempre rechea<strong>da</strong>s de diálogos e<br />

comédias, folias e chicota<strong>da</strong>s, e tinham,<br />

sobretudo, a finali<strong>da</strong>de de entreter a<br />

tripulação nas longas travessias. Como<br />

afirma Moura “era também uma forma<br />

de difundir nas novas terras descobertas,<br />

as tradições, os cultos e costumes<br />

dos portugueses”. No ideário do teatro<br />

universal, várias peças falam, de<br />

forma humora<strong>da</strong>, sobre as conquistas,<br />

como o espetáculo Ptolomeu e sua<br />

Viagem de Circum-Navegação, de Tchlé<br />

Figueira, com o grupo Art´Imagem e<br />

20 21<br />

FOTO: DIvULgAÇÃO<br />

A Noite dos Palhaços Mudos,<br />

obra do cartunista Laerte.


direção de José Leitão. Centra<strong>da</strong> num<br />

tom de comédia o texto tem uma linguagem<br />

direta e conta histórias de Ptolomeu<br />

Rodrigues, um aventureiro dos<br />

sete mares, natural de Cabo Verde, que<br />

narra suas proezas sexuais vivi<strong>da</strong>s ao<br />

longo de suas viagens.<br />

O teatro popular tem seu espaço<br />

garantido dentro <strong>da</strong> dramaturgia brasileira<br />

e um público cativo. O Cordel do<br />

Amor Sem Fim, de Cláudia Barral, iluminou<br />

o palco do Auditório Simón Bolívar<br />

ao contar a história de Carminha<br />

que gosta de José, que deseja Teresa,<br />

que espera por Antonio, para desespe-<br />

ro de Ma<strong>da</strong>lena. A trama, que se passa<br />

dentro de um ônibus urbano em movimento,<br />

agarra o público pela capaci<strong>da</strong>de<br />

verbal <strong>da</strong> personagem.<br />

No conjunto, as obras que movimentaram<br />

o palco do <strong>Memorial</strong> podem<br />

ser considera<strong>da</strong>s exemplos do caleidoscópio<br />

formado pela fragmentação<br />

de tendências que ocupam os teatros<br />

latino-americanos. Daí a importância<br />

do Festival que, como todos os grandes<br />

eventos do gênero, deu a oportuni<strong>da</strong>de<br />

para o público se atualizar e compreender<br />

os novos conceitos que regem a dramaturgia<br />

contemporânea.<br />

EL TEATRO LATINOAMERICANO<br />

EN bRASIL<br />

A feiticeira Medea,<br />

encena<strong>da</strong> pela Cia Hubert<br />

de Cuba, com direção de<br />

Abelardo Estorino. Cordel do Amor Sem Fim,<br />

drama encenado dentro de um ônibus,<br />

com a Troupe Cia Sinhá Zozima.<br />

FOTO: DIvULgAÇÃO<br />

Minha história de amor com o<br />

teatro latino-americano vem de muito<br />

longe. Desde antes do tempo em que<br />

eu me senti ca<strong>da</strong> vez mais latina, ca<strong>da</strong><br />

vez mais americana, e ca<strong>da</strong> vez mais<br />

estarreci<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> maneira acintosa<br />

como nós, o Brasil, desconhecíamos<br />

a literatura dramática dos nossos mais<br />

próximos vizinhos.<br />

Lembro-me que, na déca<strong>da</strong> de 50<br />

(do século passado ! ), envolvi<strong>da</strong> acidentalmente<br />

com uma revista de poesia<br />

venezuelana que se chamava Lírica Hispana<br />

, travei conhecimento com o texto<br />

dramático de Román Chalbaud (depois<br />

cineasta) e me atrevi a traduzir Réquiem<br />

por un Eclipse , peça de cunho marca-<br />

<strong>da</strong>mente lírico que, na época, me encantou.<br />

O texto provindo <strong>da</strong> Venezuela<br />

foi encenado por amadores e, se mais<br />

não fez, pelo menos me introduziu no<br />

conhecimento <strong>da</strong> existência de vi<strong>da</strong> inteligente<br />

na dramaturgia dos nossos<br />

irmãos latino-americanos.<br />

Mais tarde, em 1969 , já professora<br />

<strong>da</strong> Escola de Arte Dramática e <strong>da</strong><br />

Escola de Comunicações e Artes <strong>da</strong><br />

USP, chefiando uma delegação de estu<strong>da</strong>ntes<br />

que ia ao Festival de Teatro de<br />

Manizales, na Colômbia, pude assistir<br />

a um espetáculo impressionante: Topografia<br />

de un Desnudo, texto de autoria de<br />

Jorge Díaz, chileno , que fora obrigado<br />

a exilar-se na Espanha. O espetáculo<br />

22 23<br />

FOTO: DIvULgAÇÃO


provinha <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>d Católica de<br />

Chile e, surpresa ! – tratava de um assunto<br />

brasileiro, a sinistra “operação<br />

mata-mendigos” que, no começo <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de sessenta, tinha sido leva<strong>da</strong> a<br />

cabo pelo governador <strong>da</strong> Guanabara<br />

de então, Carlos Lacer<strong>da</strong>.<br />

Naturalmente, alertado pelas<br />

notícias de jornais que, aqui, eram<br />

minimiza<strong>da</strong>s, Jorge Diaz escreveu seu<br />

texto, narrando a história de um determinado<br />

mendigo, e de seu entorno,<br />

que era descrito com extremo talento<br />

até o sacrifício final.<br />

Estava comigo nessa viagem a<br />

diretora Teresa Aguiar que, como eu,<br />

se encantou com o espetáculo. Chegando<br />

ao Brasil , procedi a fazer a<br />

tradução, a seu pedido, e ela enviou<br />

o texto para a Censura Federal, como<br />

era obrigatório então, em plena ditadura.<br />

O texto, como também era de<br />

praxe, dormiu por 15 anos em Brasília,<br />

até que, em 1985, conseguimos a<br />

sua liberação, para que Teresa pudesse<br />

dirigir a encenação.<br />

Topografia de um Desnudo estreou<br />

no Teatro do Centro de Convivência de<br />

Campinas, num espetáculo totalmente<br />

revolucionário, como o pedia o texto<br />

e a imaginação <strong>da</strong> diretora. Foi depois<br />

para o Teatro Ruth Escobar, em São<br />

Paulo, com justo êxito .<br />

Recentemente, o diretor peruano<br />

Hugo Villavicenzio me pediu o texto<br />

para uma leitura dramática. Assim foi<br />

feito e, depois, o grupo – chamado<br />

exatamente Conexão <strong>Latina</strong> – efetivou<br />

a montagem, no teatro Fábrica, em São<br />

Paulo, renovando a visão do problema,<br />

sempre atual, dos mendigos e moradores<br />

de rua do mundo todo.<br />

Atualmente, um longa-metragem,<br />

também dirigido por Teresa<br />

Aguiar está pronto para ser lançado.<br />

E tudo partiu de uma visão surpreendente,<br />

nos Andes colombianos, por<br />

obra de um chileno exilado, <strong>da</strong> tragé-<br />

dia carioca que, aqui no Brasil, fomos<br />

obrigados a silenciar.<br />

No entretanto, outra coincidência<br />

feliz me levou, em 1988, a ser convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

para <strong>da</strong>r classes na Escuela Internacional<br />

de Cine y TV , <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

de San Antonio de los Baños, Cuba.<br />

Era o início de uma longa convivência<br />

com artistas e escritores cubanos, paralelamente<br />

a alunos que provinham dos<br />

mais remotos países do mundo – Índia,<br />

Burkina-Fasso , Guiné-Bissau , Vietnã,<br />

Japão – e também de vários países <strong>da</strong><br />

nossa <strong>América</strong>, alguns dos quais quase<br />

não falavam espanhol.<br />

Foi assim que entrei em contato<br />

com escritores de teatro cubanos:<br />

Virgilio Piñera e seu teatro do absurdo<br />

avant la letre, Carlos Felipe, e seu<br />

interessantíssimo personagem, Yarini,<br />

( Réquiem por Yarini) que tanto se tem<br />

mostrado e tantos mistérios ain<strong>da</strong> tem<br />

a mostrar e o mais surpreendente ain<strong>da</strong>,<br />

José R. Brene, um marinheiro de<br />

profissão, que criou uma <strong>da</strong>s mais populares<br />

peças cubanas do século, Santa<br />

Camila de La Habana Vieja .<br />

Lembro-me que a visão dessa<br />

peça, tão habanera e tão popular me fez<br />

pensar em Gianfrancesco Guarnieri,<br />

que, por esse tempo, estava inaugurando<br />

finalmente no Brasil uma linha de produção<br />

dramatúrgica que unia exatamente<br />

essas três necessi<strong>da</strong>des: a do tea tro<br />

acessível ao público comum, a do teatro<br />

predominantemente brasileiro e a do teatro<br />

de participação política.<br />

Muitos anos se têm passado sobre<br />

a minha constante inclinação pela<br />

arte que nos congrega, a nós todos,<br />

latinos e hispano-americanos. E esse<br />

entusiasmo não morre e não morrerá.<br />

Nossa participação no II Festival<br />

Ibero-Americano de Teatro, foi de uma<br />

integração muito agradável, alegre e ao<br />

mesmo tempo, é claro, cultural!<br />

Quero ressaltar que nossa atuação<br />

em O Homem Inesperado, de Yasmina<br />

Reza, tem esse poder de envolver<br />

quem assiste.<br />

A magia do teatro faz com que<br />

todo o público viaje em nossa companhia,<br />

já que a ação se passa na cabine<br />

de um trem,(uma viagem de Paris à<br />

Frankfurt) e numa integração poética e<br />

mágica, todo o público está ali conosco,<br />

participando, rindo, se emocionando<br />

e se surpreendendo com essa relação<br />

anárquica e diverti<strong>da</strong>.<br />

Quero ressaltar que é uma autora<br />

francesa e que a encenação, com Emílio<br />

de Mello na direção, e to<strong>da</strong> a equipe,<br />

criou um espetáculo brasileiro, sem perder<br />

suas características universais.<br />

Somos dois atores e mais de vinte<br />

personagens que, como na literatura<br />

ca<strong>da</strong> qual imagina à sua maneira!<br />

Foi uma viagem incrível com cerca<br />

de 900 pessoas viajando conosco na<br />

magia do teatro.<br />

24 25<br />

FOTO: DIvULgAÇÃO<br />

3<br />

ALEGRIA E CULTURA NO MEMORIAL<br />

Renata Pallottini é poeta, dramaturga, ensaísta<br />

e tradutora. Paulo Goulart é ator de teatro e de televisão.<br />

Paulo Goulart e Nicette Bruno,<br />

encenam O Homem Inesperado,<br />

de Yamina Reza.


SOCIOLOGIA<br />

FUTURO SEM COR<br />

PARA QUEM NASCEU<br />

MULHER<br />

DA SUBMISSÃO À<br />

MILITÂNCIA NA GUATEMALA<br />

TÂNIA RABELLO<br />

Distante <strong>da</strong> imagem de cartãopostal<br />

que retrata as mulheres<br />

latino-americanas de feição indígena,<br />

rostos iluminados pelo<br />

sol, com as belas roupas típicas,<br />

carregando seus bebês nas<br />

costas presos por faixas artesanais, e vendendo<br />

um rico artesanato, na Guatemala a reali<strong>da</strong>de<br />

não é tão colori<strong>da</strong> para quem teve por destino<br />

nascer com sexo feminino. É duro o cotidiano<br />

dessas mulheres em particular, e do povo<br />

indígena como um todo. Majoritário no país -<br />

mais de 50 por cento - e, por várias razões, muito<br />

pouco miscigenado, ele mantém seus traços<br />

culturais, e preserva os mais de 20 idiomas falados,<br />

a alimentação, a arte, a música e os trajes.<br />

Os restos materiais <strong>da</strong> civilização<br />

de seus antepassados, os maias, com<br />

palácios, templos e espaços cerimoniais,<br />

que foram alvo <strong>da</strong> conquista dos<br />

astecas no século XV e, logo depois,<br />

dos espanhóis, são objeto de visitação<br />

turística em diferentes pontos do país.<br />

Em linhas gerais, hoje os descendentes<br />

desse povo milenar vivem em comuni<strong>da</strong>des<br />

e zonas rurais, nas quais praticam<br />

a agricultura, ou trabalham nas culturas<br />

extensivas de café, cana e algodão<br />

<strong>da</strong> fatia mais privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> população,<br />

esta, geralmente de origem espanhola.<br />

As mulheres indígenas também vivem<br />

do que fazem, ou melhor, do que tecem:<br />

mantas colori<strong>da</strong>s, os xales, as faixas,<br />

blusas, saias e outras vestes de características<br />

muito próprias vendi<strong>da</strong>s nas ci<strong>da</strong>des<br />

ou nos povoados. Como Antigua, um<br />

grande mercado para o artesanato, ci<strong>da</strong>de<br />

histórica tomba<strong>da</strong>, mostruário <strong>da</strong> opulência<br />

que a Espanha colheu e plantou na<br />

<strong>América</strong>, depois que acabou de destruir<br />

26 27<br />

FOTOS: REPRODUÇÃO<br />

O baixo índice de miscigenação<br />

responde pela preservação<br />

dos laços culturais.


Para assegurar a subsistência, ocupações pouco qualifica<strong>da</strong>s e mal-remunera<strong>da</strong>s.<br />

a civilização anterior. Em centros urbanos<br />

maiores as mulheres ingressam ain<strong>da</strong><br />

como prestadoras de diferentes serviços,<br />

exercem trabalhos de balconistas, emprega<strong>da</strong>s<br />

domésticas e operárias. A Guatemala<br />

tem uma situação econômica difícil.<br />

Mais <strong>da</strong> metade <strong>da</strong> população vive abaixo<br />

<strong>da</strong> linha <strong>da</strong> pobreza. Frequentemente as<br />

mulheres têm de assegurar a subsistência<br />

<strong>da</strong> família e, assim, aceitar ocupações<br />

pouco qualifica<strong>da</strong>s e mal-remunera<strong>da</strong>s.<br />

É justamente nas periferias <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des<br />

onde são obriga<strong>da</strong>s a se radicar por<br />

falta de recursos financeiros que a vi<strong>da</strong><br />

se torna arrisca<strong>da</strong>. É onde elas mais são<br />

vítimas de um ver<strong>da</strong>deiro massacre silencioso<br />

que há anos ocorre em to<strong>da</strong> a Guatemala<br />

- assim como ocorre em alguns<br />

outros países latino-americanos, em outra<br />

escala. Os números variam muito, no<br />

entanto, tem-se conta de que pelo menos<br />

uma mulher morre por dia no país de maneira<br />

violenta, assassinatos muitas vezes<br />

antecedidos por violações sexuais e outras<br />

formas de tortura. Documento <strong>da</strong> Anistia<br />

Internacional de setembro de 2008 informava<br />

que, em 2007, pelo menos 590 mulheres<br />

foram assassina<strong>da</strong>s na Guatemala,<br />

conforme informações <strong>da</strong> polícia <strong>da</strong>quele<br />

país. Embora a explicação para o fenômeno<br />

passe inicialmente pela ação criminosa<br />

de traficantes de drogas e gangues que<br />

vivem, sobretudo, nas periferias <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des,<br />

a razão mais profun<strong>da</strong>, segundo especialistas,<br />

é a de que a Guatemala, assim<br />

como as nações latino-americanas, tem<br />

uma socie<strong>da</strong>de com forte viés machista.<br />

O machismo, por si só, explica em<br />

parte a violência sexual. Adicione-se a isso<br />

o fato de a Guatemala ter saído, há pouco<br />

mais de uma déca<strong>da</strong>, de uma Guerra Civil<br />

que durou 36 anos e que tinha como uma<br />

<strong>da</strong>s estratégias de dominação do Estado<br />

contra os insurgentes a violência sexual.<br />

Já em 1999, três anos depois do fim <strong>da</strong><br />

guerra civil que assolou o país a partir de<br />

1960, a relatora especial <strong>da</strong> ONU sobre<br />

a Violência Contra as Mulheres, Radhika<br />

Coomaraswamy, afirmava: “A natureza<br />

aparentemente endêmica <strong>da</strong>s violações<br />

em tempos de guerra foi institucionaliza<strong>da</strong><br />

por meio <strong>da</strong> prostituição força<strong>da</strong><br />

e <strong>da</strong> escravidão <strong>da</strong>s mulheres civis”.<br />

Em depoimento prestado especialmente<br />

para a revista Nossa <strong>América</strong>,<br />

Sonia E. López Alvares, do Centro para<br />

La Acción Legal en Derechos Humanos<br />

(CALDH, www.caldh.org, com sede<br />

na Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Guatemala), cita o relato<br />

Memorias del Silencio, explicando o<br />

porquê <strong>da</strong> violência sexual : “Uma prática<br />

generaliza<strong>da</strong> e sistemática realiza<strong>da</strong><br />

por agentes do Estado, constituindo-se<br />

numa ver<strong>da</strong>deira arma de terror, uma<br />

grave violação dos direitos humanos e<br />

do direito internacional humanitário”.<br />

“As vítimas diretas foram principalmente<br />

mulheres e meninas, mas também<br />

foram ultrajados meninos e homens.<br />

Pelo seu modus operandi, as violações<br />

sexuais originaram o êxodo de mulheres<br />

e a dispersão de comuni<strong>da</strong>des inteiras,<br />

rompimento de laços conjugais e sociais,<br />

isolamento social e vergonha comunitária,<br />

provocaram abortos e infanticídios;<br />

impediram matrimônios e nascimentos<br />

dentro do grupo, facilitando a destruição<br />

dos grupos indígenas”, continua<br />

Sonia, alertando que “o Estado <strong>da</strong> Guatemala<br />

tem uma grande dívi<strong>da</strong> histórica<br />

com os povos originários <strong>da</strong> Guatemala,<br />

pois sua ação delibera<strong>da</strong> durante os<br />

anos de guerra civil foi responsável por<br />

desestruturar e romper o tecido social”.<br />

“Os fatos de termos um sistema<br />

patriarcal e sermos uma socie<strong>da</strong>de pósconflito<br />

realmente fizeram com que, ao<br />

machismo que já existia, se somassem<br />

a discriminação e uma per<strong>da</strong> de valores.<br />

Ou seja, o machismo na Guatemala<br />

não conhece valores, nem limites sociais,<br />

étnicos e culturais, por isso não mede<br />

suas consequências”, diz outra ativista<br />

de direitos humanos Norma Cruz, que<br />

iniciou na Guatemala, em 2001, as ativi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ción Sobrevivientes<br />

28 29


Vi<strong>da</strong> difícil<br />

no campo e na<br />

periferia <strong>da</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>des.<br />

(www.sobrevivientes.org), em prol <strong>da</strong>s<br />

mulheres vítimas <strong>da</strong> violência naquele<br />

país. Além disso, boa parte <strong>da</strong> população<br />

civil ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong> arma<strong>da</strong>, fruto também<br />

do prolongado conflito interno, o que<br />

facilita a ocorrência de atitudes violentas.<br />

A situação <strong>da</strong> mulher guatemalteca<br />

é complexa, acredita Norma Cruz.<br />

“Ela sofre os efeitos <strong>da</strong> pobreza, <strong>da</strong> exclusão<br />

e <strong>da</strong> discriminação”, diz. “Tudo<br />

isso permeado pela impuni<strong>da</strong>de, por<br />

uma socie<strong>da</strong>de sitia<strong>da</strong> pelo crime organizado<br />

e uma severa debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

instituições do Estado guatemalteco.”<br />

No pensamento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de machista,<br />

complementa Sonia E. López Alvares,<br />

essas manifestações de violência<br />

evidenciam as relações historicamente<br />

assimétricas entre mulheres e homens,<br />

“numa socie<strong>da</strong>de estrutura<strong>da</strong> sobre a<br />

base <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> opressão e<br />

<strong>da</strong> discriminação contra as mulheres.”<br />

Com o fim <strong>da</strong> Guerra Civil e a assinatura<br />

dos Acordos de Paz, em 1996,<br />

porém, os diversos povos indígenas que<br />

coexistem no país elevaram sua voz para<br />

reclamar sobre sua situação de opressão e<br />

submissão. O que não tornou, porém, as<br />

coisas mais fáceis, já que, segundo Sonia,<br />

esses acordos ain<strong>da</strong> não significaram, na<br />

prática, nenhum avanço para os povos originários<br />

<strong>da</strong> Guatemala. “O compromisso<br />

do Estado com a luta dos povos indígenas<br />

e particularmente com as mulheres maias<br />

tem sido bastante difícil”, reafirma Sonia.<br />

Tanto que, em 31 de março último,<br />

houve uma grande manifestação nas ruas<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Guatemala para exigir do<br />

atual governo federal, presidido por Álvaro<br />

Colom, o efetivo cumprimento <strong>da</strong>queles<br />

acordos, particularmente os Acordos<br />

sobre Identi<strong>da</strong>de e Direitos dos Povos<br />

Indígenas, assinados na mesma ocasião,<br />

14 anos atrás. “Na elaboração dos acordos<br />

houve a participação ativa <strong>da</strong>s mulheres<br />

indígenas, que conseguiram incluir<br />

no texto suas deman<strong>da</strong>s por uma participação<br />

mais ativa na socie<strong>da</strong>de e maior<br />

poder de decisão”, complementa Sonia.<br />

Norma Cruz acredita que têm havido<br />

alguns avanços <strong>da</strong>s instituições governamentais,<br />

por exemplo no Congresso<br />

<strong>da</strong> República, que no ano passado aprovou<br />

a Lei do Femicídio, e recentemente a<br />

Lei de Trata, que tipifica alguns aspectos<br />

de violência sexual e do tráfico ilícito de<br />

pessoas e mulheres. “Além disso, no caso<br />

específico de violência contra a mulher,<br />

no ano passado quatro casos de assassinatos<br />

de mulheres chegaram ao efetivo<br />

julgamento e, na Polícia Civil, temos contado<br />

com o real compromisso <strong>da</strong> atual<br />

diretora com casos de mulheres violenta<strong>da</strong>s”,<br />

diz Norma, que iniciou sua luta há<br />

oito anos, após ter sua filha viola<strong>da</strong> pelo<br />

próprio pai, seu ex-marido, e deparar-se<br />

com todo tipo de preconceito <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>-<br />

Excluí<strong>da</strong>s por sua condição de classe, de gênero e étnica.<br />

de, incluindo principalmente dificul<strong>da</strong>des<br />

de punir o agressor no âmbito <strong>da</strong> Justiça.<br />

“Este fato lamentável me levou<br />

a conhecer as limitações <strong>da</strong> Justiça,<br />

os níveis de impuni<strong>da</strong>de e tudo o que<br />

vive uma sobrevivente <strong>da</strong> violência,<br />

além dos custos não somente financeiros,<br />

mas, sobretudo, humanos para<br />

ter acesso à Justiça na Guatemala.”<br />

Sonia, <strong>da</strong> CDHL, cita também<br />

o fato de Rigoberta Menchú ter recebido<br />

o Prêmio Nobel <strong>da</strong> Paz em<br />

1992 por sua luta em favor dos povos<br />

indígenas <strong>da</strong> Guatemala como<br />

um avanço e grande motivo de orgulho<br />

para as ativistas de direitos humanos<br />

no país, e, sobretudo, as ativistas<br />

dos direitos <strong>da</strong>s mulheres. “Significou<br />

um reconhecimento a sua luta como<br />

mulher e como indígena quiché,<br />

além de uma motivação para nós.”<br />

Tais avanços citados por Norma<br />

e Sônia ain<strong>da</strong> são, porém, a ponta<br />

do iceberg. “A luta é difícil na Guatemala<br />

porque as mulheres vivem<br />

uma tripla opressão”, explica Norma.<br />

“Elas são excluí<strong>da</strong>s por sua condição<br />

de classe, por sua condição de gênero<br />

e por sua condição étnica”, continua.<br />

“Diante disso, sobretudo as mulheres<br />

maias têm de ser triplamente rebeldes:<br />

frente aos homens, frente ao sistema<br />

e frente às próprias mulheres do<br />

interior de suas comuni<strong>da</strong>des que as<br />

tentam sufocar e torná-las invisíveis.”<br />

Tânia Rabello é jornalista de O Estado<br />

de S.Paulo.<br />

30 31


ANÁLISE<br />

GOOOOOL!<br />

FUTEbOL é COISA SéRIA<br />

O ESPORTE DAS<br />

MULTIDÕES<br />

JOSÉ SEBASTIÃO WITTER<br />

Falar sobre futebol é falar sobre o fenômeno<br />

sócio-ecônomico-político<br />

mais significativo dos séculos XX e<br />

XXI. Basta pensar logo de pronto<br />

nas cifras financeiras a que se referem<br />

os dirigentes desse esporte em<br />

todo o mundo. É algo que vem sendo muito discutido<br />

em todos os níveis e em to<strong>da</strong>s as esferas, e não só<br />

do poder. Quando falo do poder falo dos governos<br />

de diferentes países quando o assunto são os macro<br />

eventos, como as Copas do Mundo, as Copas Européias,<br />

Asiáticas, Americanas ou Africanas; mas também<br />

<strong>da</strong>queles homens que dirigem federações esportivas<br />

<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de e ain<strong>da</strong> dos dirigentes de clubes.<br />

Hoje, quando se usa a expressão<br />

“falar de futebol é falar de coisa séria”,<br />

quase ninguém a considera algo inusitado,<br />

mas quando foi cunha<strong>da</strong> (quem<br />

sabe por quem?) era olha<strong>da</strong> com espanto.<br />

Afinal o futebol não era considerado<br />

um esporte de realce ou até mesmo a<br />

ser respeitado, ou melhor, era visto, no<br />

Brasil com certeza, como algo marginal.<br />

Nem era assunto a ser tratado em revistas<br />

acadêmicas. Atualmente passou a<br />

ser tema muito tratado em to<strong>da</strong>s as universi<strong>da</strong>des<br />

e é objeto de teses de mestrado<br />

e doutorado. Desde sempre achei<br />

que falar de futebol era falar de assunto<br />

importante porque dele tratar era cui<strong>da</strong>r<br />

do sentimento coletivo, de algo que explicava<br />

o ‘povo’ e sua ‘paixão’.<br />

Durante muito, muito tempo, o<br />

Brasil foi qualificado como o “país do<br />

futebol”. Era como nós queríamos ser<br />

vistos, e sobre isso muito se escrevia,<br />

ain<strong>da</strong> porque a circulação <strong>da</strong> informação<br />

era de outra ordem. Os assuntos todos<br />

demoravam a circular e o futebol era<br />

tema tratado em um parágrafo, quando<br />

muito, pelos grandes jornais. Era algo<br />

secundário mesmo.<br />

O Século XX se incumbiu de modificar<br />

isso e, em especial, depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Mundial e com o advento<br />

<strong>da</strong>s imagens via televisão.<br />

Quando se fala de futebol é preciso<br />

ter em mente o que são, na atuali<strong>da</strong>de<br />

mais que sempre, mas ‘desde sempre’,<br />

os jogadores de futebol. Os futebolistas<br />

são ver<strong>da</strong>deiros ídolos. Eles acabam de<br />

tal forma envolvidos, por tudo que os<br />

cercam, que se transformam (com seus<br />

clubes) em uma ‘metáfora religiosa’.<br />

32 <strong>33</strong><br />

FOTOS: REPRODUÇÃO


Hilário Franco Junior, em seu recente<br />

livro A Dança dos Deuses - Futebol,<br />

Socie<strong>da</strong>de, Cultura foi muito feliz ao destacar:<br />

“Os jogadores são ídolos, a camisa<br />

e a bandeira do clube, ‘manto sagrado’,<br />

os gols aparentemente ilógicos, espíritas,<br />

gestos religiosos (ortodoxos ou não)<br />

cercam todo ambiente futebolístico. As<br />

defesas incríveis são ‘milagrosas’, e seus<br />

autores, ‘santos’. O Maracanã é o ‘templo<br />

sagrado do futebol brasileiro’, o velho<br />

estádio do Barcelona (Les Corts) era<br />

chamado ‘catedral’, como hoje o ‘estádio<br />

<strong>da</strong> Luz’, do Benfica. Sintetiza tudo isso<br />

um cartaz exibido por um torcedor durante<br />

a Copa de 1994, ‘USA learn! Soccer<br />

is religion’ (Apren<strong>da</strong>m Estados Unidos!<br />

Futebol é religião).”<br />

Vamos também pensar como essa<br />

‘metáfora’ e até a religiosi<strong>da</strong>de são vivi<strong>da</strong>s<br />

na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e em decorrência<br />

no Brasil. Atualmente a gente tem que<br />

pensar que o futebol não tem fronteiras<br />

e se algo é global em “tempos de globalização”,<br />

esse algo é o futebol.<br />

Vamos restringir o espaço geográfico<br />

às dimensões <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, pensando<br />

do México à Argentina, somente<br />

para efeitos específicos desses comentários.<br />

Logo somos obrigados a pensar em<br />

<strong>da</strong>tas marcantes: 1930, 1950, 1962 e 1970.<br />

A primeira é o marco inicial dos campeonatos<br />

do Mundo. Tudo começou na <strong>América</strong><br />

do Sul e dentro dela em Montevidéu,<br />

no Uruguai. O ano de 1950, outro marco<br />

sul - americano: Copa do Mundo no<br />

Maracanã, no Rio de Janeiro – Brasil. E,<br />

desde então, o Maracanã virou o templo<br />

do futebol, a comprovar a ideia <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong>de<br />

que envolve o esporte.<br />

Se a Copa uruguaia foi o início<br />

de tudo, a brasileira foi a maior tragédia<br />

vivi<strong>da</strong> por um país no mundo contemporâneo.<br />

Embora fosse um evento esportivo,<br />

a derrota do Brasil, em pleno<br />

Maracanã e para o Uruguai é algo tão<br />

marcante que os brasileiros ain<strong>da</strong> vivem<br />

o acontecimento e sofrem a ca<strong>da</strong> disputa<br />

esportiva entre Brasil e Uruguai.<br />

É preciso levar em conta que à medi<strong>da</strong><br />

que o tempo passa e as gerações se sucedem<br />

a situação se altera. Os jovens<br />

não só não têm as mesmas sensações<br />

vivi<strong>da</strong>s pelos seus antecessores, como<br />

nem mesmo têm a mesma paixão pelo<br />

próprio futebol. E os jogadores brasileiros<br />

têm sido infinitamente melhores que<br />

os uruguaios não só nas disputas entre<br />

as seleções, mas também entre os clubes<br />

de ca<strong>da</strong> país. Entretanto, os grandes rivais<br />

do Brasil, tanto jogadores como a<br />

seleção, são os argentinos. Até mesmo<br />

se pensarmos tão somente em aspectos<br />

comerciais, os jogadores brasileiros são<br />

os mais buscados pelos europeus, árabes,<br />

norte-americanos, africanos... . E não só<br />

jogadores, os técnicos também.<br />

Não ousaria <strong>da</strong>r um número, mas<br />

são muitos os atletas futebolistas que<br />

deixam o Brasil anualmente. E para disputar<br />

todos os campeonatos e de to<strong>da</strong>s<br />

as categorias. Na maioria, deixam o país<br />

quando ain<strong>da</strong> são desconhecidos; ao<br />

contrário do que sucedia até o último<br />

quartel do século XX, quando só os craques<br />

renomados saíam do país.<br />

Mas, se 1950 foi uma <strong>da</strong>ta a marcar<br />

o Brasil pela derrota, o ano de 1962<br />

foi o <strong>da</strong> confirmação de uma geração<br />

vitoriosa. E, de certa forma, a consagração<br />

de muitos dos craques brasileiros<br />

que haviam <strong>da</strong>do ao Brasil, a primeira<br />

grande vitória: a de 1958. E uma vitória<br />

conquista<strong>da</strong> lá na Suécia, fora de casa,<br />

como é jargão no futebol.<br />

A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> (em especial a<br />

<strong>América</strong> do Sul) começava a viver a hegemonia<br />

do Brasil. A ascensão do país<br />

na área futebolística e a liderança indiscutível,<br />

no entanto, aconteceria com a<br />

Copa de 1970, disputa<strong>da</strong> no México e<br />

que <strong>da</strong>ria o tricampeonato ao Brasil.<br />

34 35


O Brasil vivia um período de exceção<br />

política, com uma ditadura militar,<br />

que se aproveitou desse feito para<br />

melhor se situar no governo e ser mais<br />

bem aceita pelo povo. Aliás, como<br />

aconteceria na Argentina em 1978.<br />

O uso do futebol, por qualquer<br />

governante, mas em especial pelos regimes<br />

de exceção é uma marca em todo<br />

continente centro e sul-americano. Não<br />

cabe aqui este debate.<br />

Todo o continente latino-americano<br />

é muito ligado ao fenômeno futebol.<br />

Tanto a <strong>América</strong> Central como a<br />

<strong>América</strong> do Sul têm nele um referencial<br />

indiscutível e as seleções nacionais encerram<br />

em si o sentimento patriótico e<br />

seus jogadores são heróis e representam<br />

sempre a própria Pátria. Um livro recentemente<br />

editado no Brasil pela Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras – A Guerra do Futebol,<br />

de Ryszard Kapuscinski – um excelente<br />

jornalista polonês, relata uma gerra-relâmpago<br />

entre El Salvador e Honduras,<br />

em 1969, quando a disputa entre as duas<br />

seleções deu motivo a uma ver<strong>da</strong>deira<br />

guerra; que felizmente durou muito<br />

pouco, mas marcou época.<br />

Desde um incidente mais marcante<br />

como este até as ‘brigas’ entre torci<strong>da</strong>s,<br />

em quaisquer dos países onde sejam<br />

disputados, campeonatos regionais ou<br />

mundiais demonstram a paixão pelo esporte.<br />

Muitas vezes um fanatismo, que,<br />

mais uma vez, nos conduz à metáfora<br />

religiosa de Hilário Franco Junior.<br />

Na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> como, aliás,<br />

em todo mundo, é indiscutível que o futebol<br />

é não só uma paixão, mas também<br />

o ver<strong>da</strong>deiro ‘esporte <strong>da</strong>s multidões’,<br />

como já foi qualificado, em determinado<br />

momento de sua história.<br />

Não é tema que se esgote, mas<br />

que levanta numerosas questões, e envolve<br />

to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des humanas e em<br />

todos os quadrantes de nosso mundo.<br />

José Sebastião Witter é professor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de<br />

Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong><br />

USP, e ministrou o primeiro curso de História<br />

do Futebol na mesma universi<strong>da</strong>de.<br />

36 37


TECNOLOGIA<br />

bIbLIOTECA DO MEMORIAL<br />

INFORMATIZADA<br />

DEMOCRATIZAÇÃO<br />

DA INFORMAÇÃO<br />

MARCIA ROSETTO<br />

Nos últimos anos do século XX as<br />

tecnologias multimídia trouxeram<br />

mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> mesma magnitude<br />

que as promovi<strong>da</strong>s pelos processos<br />

de impressão instituídos no século<br />

XV com Gutemberg. Tais mu<strong>da</strong>nças<br />

ampliaram-se ain<strong>da</strong> mais quando foi aberta a<br />

rede Internet para o uso público, o que exigiu novos<br />

padrões para o tratamento <strong>da</strong> informação e protocolos<br />

de comunicação compatíveis com a deman<strong>da</strong><br />

crescente por informações em meio eletrônico, paulatinamente,<br />

consoli<strong>da</strong>dos por bibliotecas, arquivos,<br />

museus e serviços de informação. A organização de<br />

Bibliotecas Virtuais, Eletrônicas e Digitais fez parte<br />

desse processo, e hoje existem numerosas possibili<strong>da</strong>des<br />

de oferta de informações com essas tecnologias<br />

cria<strong>da</strong>s para esse fim e inseri<strong>da</strong>s nas<br />

agen<strong>da</strong>s de importantes universi<strong>da</strong>des,<br />

institutos de pesquisas e na implementação<br />

de políticas nacionais e internacionais.<br />

Várias definições foram concebi<strong>da</strong>s<br />

para Biblioteca Virtual e Digital, muito<br />

utiliza<strong>da</strong>s como sinônimos de Biblioteca<br />

Eletrônica. Esse tipo de biblioteca tem<br />

por objetivo promover o acesso remoto<br />

a conteúdos e serviços tradicionais de<br />

bibliotecas com a integração de recursos<br />

e serviços eletrônicos disponibilizados<br />

em redes de computadores, interagindo<br />

o usuário, a informação em formato<br />

digital e as redes eletrônicas. São ain<strong>da</strong><br />

muito jovens para terem uma definição<br />

permanente, e caberá aos profissionais<br />

de informação <strong>da</strong>s novas gerações <strong>da</strong>rem<br />

continui<strong>da</strong>de aos estudos e elaborar<br />

uma definição compatível com o mundo<br />

digital em construção.<br />

As bibliotecas virtuais/digitais são<br />

ambientes complexos, que exigem o uso<br />

de padrões e procedimentos internacionais<br />

e contemplam os seguintes aspectos:<br />

o propósito <strong>da</strong> instalação de uma<br />

biblioteca nesses moldes; a seleção e o<br />

gerenciamento de conteúdos adequados;<br />

a criação de meta/<strong>da</strong>dos de acordo com<br />

os padrões internacionais; tecnologias de<br />

informação, hardware, software e workflow;<br />

definição de serviços a serem oferecidos;<br />

organização e gestão de biblioteca<br />

virtual/digital; e governança.<br />

Além disso, é importante que os governos<br />

e as instituições reconheçam a importância<br />

estratégica desses mecanismos<br />

e estimulem a instalação desses recursos<br />

como agentes essenciais na promoção <strong>da</strong><br />

educação, <strong>da</strong> paz e dos valores humanos,<br />

conforme identificado em programas de<br />

inclusão social e digital propostos pela<br />

Unesco. A concepção de uma biblioteca<br />

virtual/digital deve ser realiza<strong>da</strong> como<br />

um instrumento para propiciar o acesso<br />

universal a conhecimentos e informações<br />

constituídos em meio digital e também<br />

em meios tradicionais, mas antes de tudo<br />

deve constituir-se numa ferramenta para<br />

a democratização <strong>da</strong> informação e para a<br />

conexão de culturas em to<strong>da</strong>s as fronteiras<br />

geográficas e sociais.<br />

Considerando esses fatores e as<br />

iniciativas já realiza<strong>da</strong>s até o presente mo-<br />

38 39<br />

FOTO: REPRODUÇÃO


mento em níveis internacional, regional e<br />

local, a Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> desenvolveu o Projeto para a criação<br />

<strong>da</strong> Biblioteca Virtual <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

– BV@L. O propósito é estabelecer<br />

conteúdos em meio digital com o objetivo<br />

de divulgar e promover o acesso em nível<br />

internacional às informações, ao conhecimento<br />

e à herança cultural <strong>da</strong> região, bem<br />

como ampliar a divulgação do conhecimento<br />

gerado pela própria Fun<strong>da</strong>ção que<br />

tem como principal missão promover a<br />

difusão cultural, política, econômica e social<br />

dos países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> tem como uma<br />

<strong>da</strong>s principais características a diversi<strong>da</strong>de<br />

cultural e, alia<strong>da</strong> ao potencial <strong>da</strong>s riquezas<br />

naturais e ao patrimônio existente na<br />

região, considerou-se essencial a difusão<br />

desses recursos e a promoção de seu<br />

acesso tanto para as pessoas que vivem<br />

Lançamento <strong>da</strong> biblioteca eletrônica <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

nesses países, como também para outras<br />

regiões em nível mundial. O desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> Biblioteca Virtual <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> – BV@L como instrumento de<br />

convergência de informações e conhecimento<br />

pode contribuir nesse processo e<br />

<strong>da</strong>r maior visibili<strong>da</strong>de junto aos circuitos<br />

de comunicação nacionais e internacionais<br />

e colaborar na formulação de políticas<br />

públicas e institucionais.<br />

Trata-se de um ferramental sem<br />

similari<strong>da</strong>de na região e, com o apoio<br />

institucional <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de Amparo<br />

à Pesquisa do Estado de São Paulo<br />

– Fapesp e adoção <strong>da</strong>s metodologias e<br />

tecnologias <strong>da</strong> Bireme, a Fun<strong>da</strong>ção do<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> pôde, por<br />

meio desse projeto, adicionar um importante<br />

canal de compartilhamento de<br />

informações na Rede Internet.<br />

A BV@L tem como principais objetivos<br />

disseminar informação e conhecimento<br />

sobre a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, nos aspectos<br />

<strong>da</strong>s humani<strong>da</strong>des, ciências e artes<br />

produzidos pelo <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong>; organizar e divulgar recursos de<br />

informação sobre a região, disponíveis<br />

em seu acervo e na Internet em nível<br />

nacional, regional e internacional; aplicar<br />

mecanismos qualificados de acesso, recuperação<br />

e disseminação <strong>da</strong> produção<br />

cultural, artística e técnico-científica gera<strong>da</strong><br />

por ativi<strong>da</strong>des de ensino, pesquisa<br />

e extensão cultural de instituições representativas<br />

na área; dispor interface em<br />

português, espanhol e inglês.<br />

As principais fontes de informação<br />

disponibiliza<strong>da</strong>s são: bases de <strong>da</strong>dos<br />

bibliográficos e vídeos especializados na<br />

área, com links para documentos digitalizados<br />

quando disponível; pesquisa por<br />

temas especialmente organizados para<br />

facilitar a busca pelo usuário; diretório<br />

de países <strong>da</strong> região com descrição e informações<br />

previamente seleciona<strong>da</strong>s de<br />

sites na Internet; diretórios de sites sobre<br />

Artes, Arquivos, Bibliotecas, Fun<strong>da</strong>ções,<br />

Governo, Instituições, Literatura, Mu-<br />

FOTO: MEMORIAL<br />

seus, Publicações eletrônicas, entre outros,<br />

com foco nos países e na <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> em geral; e diretório de eventos<br />

realizados pela Fun<strong>da</strong>ção para a promoção<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Vários são os segmentos digitalizados.<br />

A começar <strong>da</strong> base de <strong>da</strong>dos que<br />

reúne os registros bibliográficos do acervo<br />

disponível na Biblioteca Latino-americana<br />

Victor Civita, com mais de 25 mil<br />

registros <strong>da</strong> coleção especializa<strong>da</strong> e que se<br />

constitui de livros, periódicos, folhetos,<br />

catálogos e recortes de jornais. Também<br />

constam a documentação doa<strong>da</strong> pela crítica<br />

de arte Aracy Amaral e a coleção do<br />

Ilam - Instituto Latino-Americano – Coleção<br />

André Franco Montoro, doa<strong>da</strong> ao<br />

<strong>Memorial</strong>, com cerca de 10.000 itens.<br />

Há também a base de <strong>da</strong>dos que<br />

reúne os registros bibliográficos <strong>da</strong> coleção<br />

de vídeos disponível na Biblioteca,<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 2 mil registros<br />

de ficção e documentários (fitas VHS e<br />

DVD´s) <strong>da</strong> produção cinematográfica<br />

mundial e, principalmente, latino-americana,<br />

incluindo produções que marcaram<br />

época como filmes de Cantinflas,<br />

musicais argentinos estrelados por Carlos<br />

Gardel, e chancha<strong>da</strong>s brasileiras.<br />

Estão reunidos ain<strong>da</strong> os registros<br />

bibliográficos <strong>da</strong> coleção <strong>da</strong>s publicações<br />

edita<strong>da</strong>s pelo <strong>Memorial</strong>, também disponíveis<br />

na Biblioteca, perto de180 registros<br />

de livros, folhetos, artigos de periódicos e<br />

catálogos. As publicações que já estão em<br />

formato digital encontram-se “linka<strong>da</strong>s”<br />

nos registros bibliográficos respectivos.<br />

Igualmente disponíveis estão os<br />

registros bibliográficos <strong>da</strong> Coleção Biblioteca<br />

Ayacucho, edita<strong>da</strong> pela Venezuela<br />

desde 1974, e uma <strong>da</strong>s principais<br />

coleções sobre a cultura latino-americana<br />

cria<strong>da</strong> pela Fun<strong>da</strong>ção Biblioteca<br />

Ayacucho. Trata-se de uma coleção<br />

clássica, que contempla obras sobre o<br />

passado e a época contemporânea do<br />

legado cultural <strong>da</strong> região e elabora<strong>da</strong><br />

por especialistas renomados nas dife-<br />

rentes temáticas abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s. A Biblioteca<br />

do <strong>Memorial</strong> tem a coleção, com<br />

mais de 200 volumes.<br />

Outra base de <strong>da</strong>dos reúne os registros<br />

bibliográficos <strong>da</strong> Coleção Brasiliana.<br />

O acervo <strong>da</strong> Biblioteca, ao ser<br />

constituído em 1989, ano <strong>da</strong> criação <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

contou com a inserção dessa importante<br />

Coleção Brasiliana, 5ª. série <strong>da</strong> Biblioteca<br />

Pe<strong>da</strong>gógica Brasileira publica<strong>da</strong> pela Editora<br />

Nacional. Inicia<strong>da</strong> em 1931, dispõe<br />

de ensaios sobre a formação histórica e<br />

social do Brasil, estudos de figuras nacionais<br />

e problemas brasileiros.<br />

Já o Diretório Países na BV@L reúne<br />

informações sobre ca<strong>da</strong> um dos países<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Abrange uma breve<br />

descrição sobre eles e uma relação de<br />

sites selecionados na rede Internet sobre<br />

Artes, Arquivos, Bibliotecas, Fun<strong>da</strong>ções,<br />

Governo, Instituições, Literatura, Museus,<br />

Publicações, Turismo, Universi<strong>da</strong>des, entre<br />

outros. O Diretório também reúne<br />

sites selecionados na rede Internet sobre<br />

a região <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. As informações<br />

estão organiza<strong>da</strong>s e indexa<strong>da</strong>s sob<br />

temas previamente definidos como, por<br />

exemplo, Artes, Arquivos, Bibliotecas. Os<br />

registros dos sites estão indexados propiciando<br />

condições de busca na biblioteca<br />

virtual pelos países e temas específicos.<br />

E há ain<strong>da</strong> o Diretório de Eventos,<br />

com os eventos promovidos pela<br />

Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

e informações sobre a programação, desde<br />

a criação <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção em 1989. Seu<br />

objetivo é propiciar uma visualização de<br />

exposições, concertos, shows, mostras de<br />

filmes e lançamentos, entre outros, indexados<br />

de forma a permitir a busca por<br />

nomes, <strong>da</strong>tas, e temas específicos.<br />

Marcia Rosetto é especialista em Ciência <strong>da</strong><br />

Informação, diretora técnica de serviço de processamento<br />

<strong>da</strong> USP, e responsável pela implantação<br />

<strong>da</strong> biblioteca virtual do <strong>Memorial</strong>.<br />

40 41


ECONOMIA<br />

A DESFORRA DOS<br />

TRÓPICOS<br />

RUMO À BIOCIVILIZAÇÃO<br />

DEPOIMENTO DE<br />

IGNACYS SACHS<br />

O Brasil, e em grande parte o continente<br />

latino-americano, tem tudo<br />

para sair dessa crise por cima. Um<br />

precedente histórico aconteceu na<br />

crise dos anos trinta. Um dos mais<br />

belos capítulos de Formação Econômica<br />

do Brasil, de Celso Furtado, trata exatamente<br />

dessa questão. No entanto, o que ocorreu nos anos<br />

trinta foi, podemos dizer, um acidente <strong>da</strong> história. Porque<br />

o país estava em uma situação de total penúria de<br />

divisas, portanto não podia importar, mas ao mesmo<br />

tempo o governo de Vargas continuava a financiar os<br />

cafeicultores comprando e queimando o café. Era uma<br />

política keynesiana sem saber o que Keynes falava. Isso<br />

gerou uma poupança que foi investi<strong>da</strong> em indústria<br />

substituta <strong>da</strong>s importações. Foi assim<br />

que no bojo <strong>da</strong> crise o Brasil começou<br />

a crescer, do ponto de vista industrial, e<br />

o mesmo aconteceu na Colômbia, talvez<br />

também na Argentina e no México.<br />

Ou seja, desta vez o desafio é não deixar<br />

ao acaso, mas fazer disso um elemento<br />

<strong>da</strong> estratégia para sair <strong>da</strong> crise por cima.<br />

O que significa em vez de pensar que<br />

será suficiente socializar as per<strong>da</strong>s comprando<br />

os ativos podres, zerar a corri<strong>da</strong><br />

e voltar o taxímetro, pensando sobre<br />

o que nós queremos mu<strong>da</strong>r nessa crise.<br />

Eu vejo três mu<strong>da</strong>nças possíveis e<br />

factíveis. Primeiro, <strong>da</strong>r uma ênfase ain<strong>da</strong><br />

maior à rede universal de serviços sociais<br />

de educação, saúde, saneamento, quem<br />

sabe habitação popular. Isso porque essa<br />

rede tem um impacto positivo sobre o ní-<br />

vel de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> população, sem a mediação<br />

do mercado. Dois: ampliar o perímetro<br />

<strong>da</strong>quilo que no Brasil se chama economia<br />

solidária dentro do mercado, ou seja, aumentar<br />

o alcance <strong>da</strong>quelas ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />

que não resultam na apropriação<br />

individual do lucro, como cooperativas,<br />

associações, oficinas, e outras formas de<br />

empreendedorismo coletivo. Três: acentuar<br />

ain<strong>da</strong> mais aquele diálogo que existe<br />

entre empresários e representantes dos<br />

autônomos, a agricultura familiar, os micro<br />

e pequenos empreendimentos, ou<br />

seja, tentar construir sinergias positivas<br />

entre o arquipélago <strong>da</strong>s grandes empresas<br />

e o oceano <strong>da</strong>s pequenas ativi<strong>da</strong>des que<br />

é a reali<strong>da</strong>de social brasileira. Então são<br />

três elementos que modificam a estrutura.<br />

Quarto: <strong>da</strong>r maior ênfase à estratégia para<br />

42 43<br />

FOTO: HEnRIQUE MAnREzA / 28mm


aquilo que eu chamaria de agen<strong>da</strong> verde e<br />

amarela, ou seja, ver até onde se pode caminhar<br />

na construção de uma biocivilização<br />

moderna basea<strong>da</strong> no aproveitamento<br />

múltiplo <strong>da</strong>s biomassas; biomassas terrestres,<br />

biomassas aquáticas. Porque biomassa<br />

é alimento humano, é ração animal, é<br />

adubo verde, é energia, é material de construção;<br />

é todo o leque de fibras, plásticos e<br />

bio-produtos produzidos pelas bio-refinarias<br />

do amanhã, são fármacos e cosméticos.<br />

Até onde se pode caminhar com isso?<br />

Qual o potencial de produção de biomassa<br />

de um país como o Brasil e de um continente<br />

como a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>? Eu acredito<br />

que é possível ir longe, e muitos debates<br />

que hoje são polarizados, como por exemplo,<br />

se hoje o Brasil produz biocombustível<br />

vai provocar fome no mundo, e etc. A<br />

meu ver, essa questão pode ser supera<strong>da</strong><br />

colocando-se primeiro, no centro <strong>da</strong> preocupação,<br />

não a justaposição de cadeias<br />

de mono-produção como: aqui deve ser<br />

alimentos, lá energia, e etc. E sim pensando<br />

em sistemas integrados de produção<br />

de alimentos e energia, a<strong>da</strong>ptados aos<br />

diferentes biomas do continente latinoamericano.<br />

Primeira maneira de superar<br />

tais contradições. A segun<strong>da</strong>, é caminhar<br />

o mais rapi<strong>da</strong>mente possível para a segun<strong>da</strong><br />

geração dos biocombustíveis, que são<br />

o etanol celulósico... Ou seja, onde todos<br />

os resíduos vegetais vão se transformar na<br />

matéria-prima <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> bio-energia<br />

e portanto vai haver complementari<strong>da</strong>des<br />

e não competição por recursos e espaços.<br />

Começar a trabalhar sobre a terceira<br />

geração dos biocombustíveis que provavelmente<br />

serão as algas e as micro-algas.<br />

Portanto, em vez de se deixar encurralar<br />

por esse debate, superá-lo com essa visão<br />

sistêmica, mas colocando claramente que<br />

os dois desafios do século são as mu<strong>da</strong>nças<br />

climáticas e o tremendo déficit social<br />

que se acumulou ao longo dos séculos e<br />

ao longo <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s; quer dizer,<br />

o déficit de oportuni<strong>da</strong>des de trabalho decente,<br />

no sentido que a organização inter-<br />

nacional do trabalho dá a esse termo, ou<br />

seja, não só um salário razoável, mas condições<br />

de trabalho que não atentem contra<br />

a saúde do trabalhador e relações de trabalho<br />

que não atentem contra a digni<strong>da</strong>de<br />

do trabalhador. Então são dois objetivos,<br />

e o problema é ver como encontrar soluções<br />

para atendê-los simultaneamente. E<br />

isso me faz retomar a ideia do aproveitamento<br />

múltiplo de biomassa, sempre<br />

que se tome o cui<strong>da</strong>do de potencializar<br />

as vantagens comparativas naturais do<br />

trópico; é a desforra do trópico eu costumo<br />

dizer, porque há tanto tempo se<br />

dizia que o trópico é um obstáculo, e ele<br />

passa a ser uma vantagem comparativa,<br />

sabendo potencializar essa vantagem<br />

por meio <strong>da</strong> pesquisa e <strong>da</strong> organização<br />

social apropria<strong>da</strong> do processo produtivo.<br />

Não é produzir biomassa, é usar o<br />

potencial <strong>da</strong> produção de biomassa para<br />

gerar um grande número de empregos<br />

decentes, apoiando-se certamente na<br />

agricultura familiar que é, pode-se dizer,<br />

o que ain<strong>da</strong> institui o maior potencial<br />

provável de geração de empregos, não<br />

só a agricultura familiar, mas o desenvolvimento<br />

rural, porque o desenvolvimento<br />

rural é mais do que a agricultura<br />

propriamente dita; e até as tecnologias<br />

modernas, falo aqui sobre o seu controle,<br />

as tecnologias modernas permitem<br />

até descentralizar uma grande quanti<strong>da</strong>de<br />

de ativi<strong>da</strong>des secundárias e terciárias,<br />

graças, por exemplo, à informática. Estamos<br />

vivendo uma fase de desenvolvimento<br />

tecnológico que permite superar<br />

a questão de economias de escala e de<br />

descentralizar produções industriais.<br />

Portanto, quando falo de um novo ciclo<br />

de desenvolvimento rural como um<br />

elemento crucial desta estratégia não<br />

estou falando de agricultura, estou falando<br />

de agricultura, de uma parte do<br />

processamento dos produtos agrícolas<br />

e florestais in loco, com um modelo<br />

muito sedutor proposto por um grande<br />

agrônomo indiano de uma organização<br />

industrial de dois níveis, ou seja, lá perto<br />

do local onde foi produzi<strong>da</strong> a biomassa<br />

se faz seu processamento de maneira a<br />

diminuir o mais possível seu volume e<br />

depois encaminha-se esse volume reduzido<br />

do produto já processado numa<br />

primeira fase para um segundo nível de<br />

processamento, microdestilaria e uma<br />

destilaria central para refinar o produto.<br />

Portanto, um novo ciclo de desenvolvimento<br />

rural que permite talvez dizer que<br />

uma <strong>da</strong>s grandes ilusões do século vinte<br />

foi a ideia de que tudo aquilo que é rural<br />

é obsoleto, pertence ao passado e deve<br />

ser superado o mais rápido possível.<br />

Não acredito que a humani<strong>da</strong>de tenha<br />

condições de avançar no caminho <strong>da</strong><br />

urbanização como está fazendo em escala<br />

mundial. Um relatório <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s<br />

recente disse que, há uns dois anos atrás,<br />

aproxima<strong>da</strong>mente cinqüenta por cento<br />

<strong>da</strong> população mundial já está urbaniza<strong>da</strong>;<br />

continuando, não há progresso fora <strong>da</strong> urbanização.<br />

A afirmação é um tanto enganadora,<br />

porque me recuso a aceitar como<br />

definição de urbano, aqueles que estão<br />

encurralados nas favelas, por exemplo. E<br />

na África Subsaariana são setenta e cinco<br />

por cento dessa população dita urbana,<br />

no melhor dos casos pessoas candi<strong>da</strong>tas<br />

à urbanização; no melhor dos casos, em<br />

uma visão otimista, elas estão no purgatório.<br />

Agora, elas terão que ser aju<strong>da</strong><strong>da</strong>s a<br />

sair desse purgatório. Isso vai custar caro.<br />

Quando se diz , os europeus já passaram<br />

por essa urbanização, os Estados Unidos<br />

também, e assim por diante, eu repito:<br />

em condições diferentes, e por meio de<br />

procedimentos que eu espero não se reproduzam.<br />

Primeiro, 90 milhões de camponeses<br />

foram enviados para as <strong>América</strong>s<br />

na segun<strong>da</strong> metade do século XIX e no<br />

começo do século XX, e 90 milhões de<br />

camponeses representavam uma proporção<br />

grande <strong>da</strong> população rural e sedentária;<br />

segundo, muitos milhões de camponeses<br />

morreram em duas guerras mundiais,<br />

a gripe espanhola contribuiu depois <strong>da</strong><br />

Primeira Guerra Mundial, e durante e<br />

depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial tivemos<br />

os campos de concentração e os<br />

gulags. Eu espero que esses métodos não<br />

se reproduzam, ain<strong>da</strong> porque não dá para<br />

imaginar para onde se poderiam enviar<br />

algumas centenas de milhões de camponeses<br />

chineses e indianos, paquistaneses e<br />

indonésios do mundo de hoje. Os nossos<br />

refugiados do campo chegavam às ci<strong>da</strong>des<br />

na época <strong>da</strong> industrialização fordista,<br />

onde as indústrias empregavam muita<br />

mão-de-obra, isso também está superado.<br />

Não é que a indústria esteja encolhendo,<br />

mas está se desenvolvendo por intermédio<br />

de aumentos de produtivi<strong>da</strong>de não de<br />

emprego. Portanto, juntando-se tudo isso<br />

sem pensarmos em um modelo de desenvolvimento<br />

territorial... Não gosto <strong>da</strong> dicotomia<br />

rural-urbano porque trata-se de um<br />

contínuo, e no desenvolvimento territorial<br />

dito rural existem aglomerações que são<br />

pequenas e médias ci<strong>da</strong>des; sendo assim,<br />

não pensar em um novo modelo territorial<br />

seria um erro. Tanto mais que o Brasil<br />

é menos urbanizado do que Europa. Existe<br />

um livro de José Eli <strong>da</strong> Veiga, Ci<strong>da</strong>des<br />

Imaginárias, que mostra que o IBGE exagerou<br />

porque usou um critério não muito<br />

convincente do que é o urbano e do que<br />

é o rural. Aplicado os critérios <strong>da</strong> OCDE<br />

chega-se à conclusão que mais de um terço<br />

<strong>da</strong> população brasileira é ain<strong>da</strong> rural.<br />

Essa é, portanto, minha visão de<br />

uma saí<strong>da</strong> por cima. Penso que o país<br />

44 45<br />

FOTO: REPRODUÇÃO


tem alguns elementos importantes para<br />

caminhar nessa direção. Primeiro, entrou<br />

na crise com um sistema bancário privado<br />

menos atingido do que muitos países e<br />

com um sistema público de financiamento<br />

arrumado e forte. Poucos países têm o<br />

privilégio de ter um BNDES, ao lado dele<br />

uma Caixa Federal, um Banco do Nordeste<br />

e um Banco do Brasil. Trata-se de<br />

um elemento importante. Além disso, o<br />

país já está tentando discutir o problema<br />

<strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s sinergias positivas entre<br />

o mundo <strong>da</strong>s empresas priva<strong>da</strong>s e o dos<br />

pequenos produtores, tem no meio disso<br />

um sistema com vantagens e defeitos, mas<br />

que existe, portanto é um outro elemento<br />

importante. Eu acho que esse debate está<br />

mais avançado no Brasil do que em muitos<br />

outros países; por exemplo, a atuação<br />

do Instituto Ethos. Agora, há dois pontos<br />

vulneráveis: o país não escapou <strong>da</strong> epidemia,<br />

que atingiu praticamente o mundo<br />

todo nesses últimos trinta anos, <strong>da</strong> contrareforma<br />

neoliberal. Ou seja, perdeu sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de pensar no longo prazo, de<br />

pensar o projeto nacional, de planejar no<br />

sentido forte <strong>da</strong> palavra. O segundo ponto<br />

frágil, é que a herança de estruturas agrárias<br />

anacrônicas, não foi ain<strong>da</strong> superado.<br />

Basta ver a dispari<strong>da</strong>de que existe entre a<br />

participação <strong>da</strong> agricultura no PIB e a influência<br />

do lobby ruralista no Congresso,<br />

para se <strong>da</strong>r conta de que ain<strong>da</strong> temos coisas<br />

para corrigir. Mas somando tudo isso<br />

eu acredito que há condições de sair por<br />

cima. E já que estou falando no <strong>Memorial</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> eu acredito que vários<br />

outros países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> estão, em<br />

níveis diferentes, na mesma situação que o<br />

Brasil, ou seja, têm um enorme potencial<br />

de recursos renováveis por serem aproveitados,<br />

têm uma dotação de recursos<br />

naturais mais razoável que outros continentes,<br />

têm solos agricultáveis, e água.<br />

O Brasil, claro, tem o polígono <strong>da</strong>s secas,<br />

mas em grande parte do país hoje a disponibili<strong>da</strong>de<br />

de recursos hídricos é ain<strong>da</strong><br />

uma boa disponibili<strong>da</strong>de. Portanto temos,<br />

por exemplo, a possibili<strong>da</strong>de de avançar<br />

muito mais no aproveitamento dos recursos<br />

biológicos. A Secretaria <strong>da</strong> Pesca, por<br />

exemplo, trabalha com a hipótese de que<br />

a piscicultura poderia, no Brasil, atingir<br />

dentro de um número razoável, não muito<br />

grande de anos, algo como 20 milhões<br />

de tonela<strong>da</strong>s. Vinte milhões de tonela<strong>da</strong>s<br />

de peixe, mesmo que para 200 milhões de<br />

brasileiros, salve algum erro, fazem cem<br />

quilos per capita, impossível de consumir,<br />

uma boa reserva para exportação. E<br />

essa é a hipótese baixa, porque a hipótese<br />

alta, com a qual trabalha a Secretaria<br />

<strong>da</strong> Pesca, é de 80 milhões de tonela<strong>da</strong>s e<br />

80 milhões de tonela<strong>da</strong>s <strong>da</strong>ria para 8 bilhões<br />

de ci<strong>da</strong>dãos, dos bípedes que vivem<br />

no mundo seriam 10 quilos per capita, só<br />

do Brasil. Enfim, o potencial desses recursos<br />

renováveis é muito grande. Outro<br />

exemplo, são os 5 milhões e meio, se não<br />

me engano, de hectares <strong>da</strong>quilo que se<br />

chama de florestas planta<strong>da</strong>s, ou seja, de<br />

plantações arbóreas de espécies úteis. Eu<br />

pessoalmente veria muito bem a possibili<strong>da</strong>de<br />

de se acrescentar um zero a esses 5<br />

milhões e meio de hectares: arvores para<br />

papel e celulose, árvores para derivados<br />

de madeira, árvores para produção do etanol<br />

celulósico, árvores para produzir em<br />

condições ecologicamente controla<strong>da</strong>s o<br />

carvão vegetal verde para as siderúrgicas, e<br />

assim por diante. Portanto, acho que, sem<br />

cair em ufanismos, sem dizer que isso se<br />

fará só porque esse potencial existe; estou<br />

querendo dizer que é um potencial a ser<br />

estu<strong>da</strong>do, trabalhado, a se definir as tecnologias<br />

mais apropria<strong>da</strong>s, sempre com<br />

esses dois objetivos de construir uma estratégia<br />

de desenvolvimento socialmente<br />

includente e ambientalmente sustentável.<br />

Que essas possibili<strong>da</strong>des existem, existem<br />

no Brasil e existem em vários outros<br />

de países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Por isso, eu<br />

tentaria resgatar duas ou três idéias do debate<br />

latino-americano nelas, a primeira é<br />

relembrar um documento importante que<br />

foi um modelo latino-americano produ-<br />

zido pela Fun<strong>da</strong>ção Bariloche argentina,<br />

como uma resposta ao pessimismo do<br />

Clube de Roma. Depois <strong>da</strong>quela publicação<br />

sobre limites ao crescimento, do<br />

Clube de Roma, em 71, houve na ver<strong>da</strong>de<br />

duas respostas importantes, uma foi especialmente<br />

de Bariloche, porque Bariloche<br />

mostrou a importância <strong>da</strong> valorização social,<br />

<strong>da</strong> organização social e <strong>da</strong> distribuição<br />

<strong>da</strong> ren<strong>da</strong>. A segun<strong>da</strong> crítica ao Clube<br />

de Roma foi feita na universi<strong>da</strong>de inglesa<br />

de Sussex, se me lembro bem o livro se<br />

chamava Malthus Com Um Computador Na<br />

Mão. Ele mostrava que naquele modelo<br />

do Clube de Roma não havia uma noção<br />

de progresso técnico suficientemente presente,<br />

portanto esse é um elemento do<br />

pensamento latino-americano que merece<br />

ser resgatado. Outro elemento do pensamento<br />

latino-americano que pode servir<br />

de ponto de parti<strong>da</strong> para reflexões muito<br />

interessantes, é um livro de um economista<br />

chileno Oswaldo Sunkel. O livro de<br />

Sunkel se chama Desarrollo Desde Adentro,<br />

ou seja, nem um crescimento extravertido<br />

que sacrifica tudo no altar <strong>da</strong> globalização,<br />

nem uma autarquia impossível e um fechamento<br />

<strong>da</strong> economia, e sim uma reflexão<br />

que começa com a análise do que se tem,<br />

do potencial do mercado interno, e que<br />

postula relações externas mais seletivas.<br />

Creio que com o que eu disse há<br />

elementos para que se o <strong>Memorial</strong> quiser<br />

avançar na organização de um debate<br />

latino-americano sobre essa saí<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> crise por cima, há pontos de parti<strong>da</strong>.<br />

Ignacys Sachs é economista polonês naturalizado<br />

francês, morou no Brasil de 1941 a<br />

1954. Autor de mais de vinte livros sobre<br />

desenvolvimento e meio ambiente.<br />

46 47<br />

FOTO: REPRODUÇÃO


IMPACTO DA CRISE<br />

NA AMéRICA LATINA<br />

EXPECTATIVAS REALISTAS<br />

O auditório <strong>da</strong> Biblioteca Victor<br />

Civita foi pequeno para acomo<strong>da</strong>r o público<br />

que compareceu em fins de março<br />

ao seminário Crise Econômica Mundial:<br />

impactos na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. A importância<br />

do tema e a alta qualificação dos<br />

palestrantes atraíram de empresários a<br />

estu<strong>da</strong>ntes. O embaixador Rubens Barbosa<br />

abriu a primeira mesa A Crise e as<br />

Relações Exteriores na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

com uma exposição realista quanto às<br />

consequências de uma crise desse nível,<br />

afirmando que o Brasil ain<strong>da</strong> pode vir a<br />

apresentar um quadro mais grave do que<br />

o que já se desenhou. Em sua opinião,<br />

o grande problema para os países latinoamericanos<br />

é a dependência de recursos<br />

externos, o que requer uma política de<br />

redução de tarifas e de aprofun<strong>da</strong>mento<br />

dos acordos regionais que já vigoram. Ele<br />

também fez previsões otimistas: “Daqui<br />

a 10, 15 anos, o mercado brasileiro será<br />

a solução para os países <strong>da</strong> região.” Na<br />

sequência, o economista Carlos Antonio<br />

Luque, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, repassou<br />

a origem <strong>da</strong> crise, cujo epicentro<br />

foi o mercado hipotecário norte-ameri-<br />

“O grande problema para os<br />

países latino-americanos<br />

é a dependência de recursos externos”.<br />

Rubens Barbosa<br />

cano, para também expor como e porque<br />

o Brasil conta com bases macroeconômicas<br />

mais sóli<strong>da</strong>s, a ponto de se proteger.<br />

O embaixador Carlos Henrique Cardim,<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília, também defendeu<br />

a integração regional como uma<br />

forma de superação. Coordenado por<br />

Celso Lafer, o seminário contou também<br />

com a mesa redon<strong>da</strong> A Economia Latino-Americana<br />

e a Crise Mundial, cuja<br />

abertura coube ao embaixador Rubens<br />

Ricupero, que acredita em uma recuperação,<br />

“mais cedo ou mais tarde”, diante<br />

do volume de dinheiro injetado nos mercados.<br />

A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, segundo ele,<br />

como sempre vivenciou as fases cíclicas<br />

<strong>da</strong> economia mundial; já que suas<br />

economias estão muito liga<strong>da</strong>s à dos<br />

Estados Unidos, evidentemente que<br />

sai afeta<strong>da</strong>. Mas conta com um sistema<br />

financeiro mais bem estruturado, o<br />

que favorece sua posição. Participaram<br />

ain<strong>da</strong> dessa ro<strong>da</strong><strong>da</strong> de exposições, Ruy<br />

Martins Altenfelder Silva, <strong>da</strong> Fiesp; Andréa<br />

Calabi, economista; e Ruy Correa<br />

Altafim, <strong>da</strong> USP; e a coordenação foi<br />

de Yoshiaki Nakano, <strong>da</strong> FGV.<br />

Em parceira com a Secretaria de Educação,<br />

e apoio <strong>da</strong> FDE e Imesp, o <strong>Memorial</strong><br />

lança a coleção com biografias<br />

de líderes <strong>da</strong>s guerras de indepêndencia<br />

hispano-americanas : <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> na<br />

Hora <strong>da</strong> Independência; Simón Bolívar, San<br />

48 49<br />

FOTO: FABIO PAgAn<br />

AGENDA<br />

FUNDADORES DA AMéRICA LATINA<br />

A Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

e o Instituto Cervantes firmaram<br />

uma parceria para um programa de ensino<br />

de espanhol à distância. Trata-se de<br />

um modelo semipresencial, desenvolvido<br />

pelo Cervantes, em que os alunos<br />

interagirão em ambiente virtual, mas<br />

Martín, Bernardo O’Higgins, José Martí<br />

e José Artigas. Além dos textos, ca<strong>da</strong><br />

volume traz um glossário, mapas do<br />

período e ilustrações produzi<strong>da</strong>s, na<br />

maior parte <strong>da</strong>s vezes, por artistas do<br />

século XIX.<br />

ENSINO DE ESPANHOL à DISTâNCIA<br />

Este ano de 2009 será todo festivo. É que<br />

o <strong>Memorial</strong> está completando 20 anos. As<br />

comemorações começaram já em fevereiro,<br />

quando foi inaugura<strong>da</strong> a mostra retrospectiva<br />

<strong>da</strong>s principais exposições realiza<strong>da</strong>s<br />

ao longo desse tempo reunindo obras de<br />

vários expoentes <strong>da</strong>s artes plásticas latinoamericanas.<br />

No dia do aniversário, 18 de<br />

março, o <strong>Memorial</strong> realizou uma cerimô-<br />

NOSSA AMéRICA: NOVOS PONTOS DE VENDA<br />

A revista Nossa <strong>América</strong> está mais próxima<br />

do grande público. Depois <strong>da</strong> regularização<br />

de sua periodici<strong>da</strong>de (passou<br />

a trimestral), a publicação conquistou<br />

novos pontos de ven<strong>da</strong>s. Além <strong>da</strong> Lo-<br />

MEMORIAL VINTE ANOS<br />

também terão ativi<strong>da</strong>des aos sábados, em<br />

dependências do Anexo dos Congressistas.<br />

Com a colaboração dos consulados<br />

latino-americanos, o programa, além do<br />

ensino do idioma, deve envolver os alunos<br />

com a arte, a cultura e a história do<br />

Continente.<br />

nia durante a qual hasteou as bandeiras de<br />

todos os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, com a<br />

presença dos respectivos cônsules e outras<br />

autori<strong>da</strong>des, um ato simbólico de integração<br />

regional. À noite, um show de Elba Ramalho,<br />

com entra<strong>da</strong> franca, lotou o Auditório<br />

Simón Bolívar. Os festejos continuam até<br />

o final do ano com programação especial.<br />

Para saber, acesse o site do <strong>Memorial</strong>.<br />

jinha do <strong>Memorial</strong>, e a possibili<strong>da</strong>de de<br />

ser adquiri<strong>da</strong> por meio de assinatura, o<br />

<strong>Memorial</strong> está ampliando a rede de pontos<br />

de ven<strong>da</strong>. A relação completa está<br />

no site do <strong>Memorial</strong>.


DEBATE<br />

UM MUSEU<br />

DIFERENCIADO<br />

LÍNGUA PORTUGUESA<br />

EM TEMPLO ELETRÔNICO<br />

ISABEL PÉREZ PÉREZ<br />

Visitar o Brasil para assistir aos debates<br />

<strong>da</strong> última edição <strong>da</strong> Bienal de<br />

São Paulo foi uma decisão difícil,<br />

pois significava interromper durante<br />

dez dias meu trabalho com um<br />

projeto editorial complexo. E ain<strong>da</strong><br />

que a Bienal paulista tenha me surpreendido pouco,<br />

uma feliz sugestão transformou essa experiência<br />

de atravessar o continente em uma experiência vital,<br />

imprescindível: conhecer o Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa.<br />

Após duas déca<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong> profissional no<br />

mundo <strong>da</strong>s artes visuais, você passa a ter uma ideia<br />

pré-concebi<strong>da</strong> sobre como um museu funciona,<br />

quais são os códigos com os quais se estrutura e organiza<br />

a informação, sejam esses museus de belas artes,<br />

arte contemporânea, história ou ciências naturais.<br />

Portanto, eu esperava um museu tradicional,<br />

talvez com um pouco de alarde<br />

e sofisticação. No entanto, o impacto<br />

foi contundente: o Museu <strong>da</strong> Língua<br />

Portuguesa é resultado <strong>da</strong> fusão impecável<br />

entre um substrato conceitual<br />

inteligente, a tecnologia mais moderna<br />

e a integração de um público que passa<br />

horas cativo em suas salas. À primeira<br />

vista pode-se pensar que to<strong>da</strong> essa<br />

aparelhagem técnica poderia confundir<br />

ou contaminar o principal objetivo do<br />

local, mas na ver<strong>da</strong>de acontece o contrário.<br />

O museu subverte o suposto<br />

“impacto digital” e coloca a tecnologia<br />

em função do pressuposto essencial...<br />

educar no âmbito <strong>da</strong>s letras por meio<br />

<strong>da</strong> emoção, prender o espectador apelando<br />

a seus sentidos.<br />

O idioma português possui um<br />

ritmo e um charme particular que nos<br />

envolve e agasalha, mesmo quando<br />

não o compreendemos totalmente<br />

nem o conhecemos bem. As horas<br />

que passei dentro do museu significaram<br />

uma experiência intelectual de êxtase<br />

para os sentidos, onde a língua é a<br />

obra de arte suprema. Daí talvez tenha<br />

surgido o interesse comum de italianos,<br />

espanhóis e outras nações do continente<br />

em fun<strong>da</strong>r museus desta envergadura,<br />

com um conceito contemporâneo,<br />

onde tudo mu<strong>da</strong> ou está sujeito à mu<strong>da</strong>nças<br />

de acordo com as expectativas<br />

do visitante, e onde o programa comunicativo<br />

está mais direcionado a<br />

uma ver<strong>da</strong>deira compreensão <strong>da</strong> língua<br />

que a seu aprendizado.<br />

O protagonismo adquirido pelas<br />

palavras neste meio reforça a fascinação<br />

que as letras exercem sobre nós;<br />

grafismos e sonori<strong>da</strong>des nos rodeiam a<br />

50 51<br />

FOTOS: FERnAnDO FLAMBART


partir <strong>da</strong> entra<strong>da</strong>, por meio <strong>da</strong> lindíssima<br />

árvore <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> um deles com<br />

um poder único, com vi<strong>da</strong> interior própria<br />

que, quando soma<strong>da</strong>s, sobrepostas<br />

ou contrapostas, formam algo mais<br />

forte e poderoso, capaz de se transformar<br />

em significados múltiplos e infinitos.<br />

O resultado é esse espaço surpreendente,<br />

DNA <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />

em que o dinamismo e a veloci<strong>da</strong>de,<br />

o lúdico e o histórico tecem uma trama<br />

de infinitas ressonâncias culturais.<br />

Percebemos então que não se trata<br />

apenas de um museu para a língua:<br />

estamos em um recinto que refrata to<strong>da</strong><br />

a cultura brasileira, como se fosse uma<br />

matriz na qual percebemos a complexi<strong>da</strong>de<br />

de suas misturas e contrastes, de<br />

suas diferenças e miragens, a própria<br />

alma desta nação que entra por nossos<br />

poros, nos penetra e envolve. Neste contexto<br />

a música e os sons desempenham<br />

um papel fun<strong>da</strong>mental, como reverberações<br />

excepcionais <strong>da</strong>s misturas étnicas<br />

que formam o conjunto <strong>da</strong> população<br />

brasileira: pouquíssimos indígenas, afrodescendentes,<br />

europeus de to<strong>da</strong>s as latitudes,<br />

e tantos e tantos estrangeiros que<br />

chegaram a esta terra para formar um<br />

caleidoscópio particular. A linguagem<br />

cotidiana, vulgar, culta: tudo forma uma<br />

identi<strong>da</strong>de cuja matéria-prima é a palavra.<br />

Palavra como sentido, como prática,<br />

como sonho, sinal distintivo, como<br />

uma amálgama social, como história,<br />

uma identi<strong>da</strong>de mutante e móvel.<br />

Infinitas como o próprio desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> língua são as possibili<strong>da</strong>des<br />

propostas pelo museu, onde<br />

parece que o único limite é imposto<br />

pelo próprio espectador. Justamente<br />

por provocar experiências e não se<br />

limitar a expor objetos, fotocópias,<br />

documentos ou imagens, os visitantes<br />

trabalham com computadores, interagem,<br />

divertem-se, assombram-se e se<br />

emocionam <strong>da</strong> mesma forma com que<br />

vêm participando ao longo dos anos<br />

<strong>da</strong> construção <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />

sempre em mu<strong>da</strong>nça dinâmica. A língua<br />

se apresenta como nosso melhor<br />

retrato, nossa pátria mais profun<strong>da</strong>.<br />

A utilização au<strong>da</strong>z <strong>da</strong> tecnologia<br />

propicia o âmbito ideal para esta união<br />

entre idioma, cultura e identi<strong>da</strong>de. Até<br />

para os menos familiarizados com a<br />

“nova mídia”, essa experiência se transforma<br />

em uma festa de sensibili<strong>da</strong>de<br />

onde a língua materna, que educa e<br />

protege, também inspira, distrai, constrói<br />

e desconstrói saberes. Ambiente<br />

dinâmico não só por ser eletrônico,<br />

onde salta à vista um interesse expresso<br />

de dirigentes e curadores de propiciar<br />

a compreensão exata, complexa,<br />

cruza<strong>da</strong>, contraditória de uma cultura<br />

híbri<strong>da</strong>, magistralmente resolvido por<br />

meio de recursos contemporâneos e<br />

originais. Provavelmente este espaço<br />

siga os princípios <strong>da</strong>s grandes exposições<br />

de arte ou <strong>da</strong>s bienais, onde o espectador<br />

não só se propõe a conhecer<br />

a obra de um determinado autor, mas<br />

também a transgredir os limites <strong>da</strong> mera<br />

contemplação rumo a uma dimensão<br />

mais participativa, viva, atuante. Talvez<br />

isso também se deva ao fato de que<br />

os organizadores tenham destinado<br />

um espaço privilegiado <strong>da</strong> instalação a<br />

exposições transitórias, contemplando<br />

escritores transcendentais <strong>da</strong> língua<br />

portuguesa.<br />

Não é por acaso que este seja o<br />

museu mais visitado do Brasil, atendendo<br />

a mais de mil pessoas por dia e<br />

– durante um ano, com um amplo programa<br />

educativo para diversas escolas<br />

(em torno de oito por dia), pessoas de<br />

terceira i<strong>da</strong>de, projetos de reeducação.<br />

A natureza de seus propósitos e a concepção<br />

e apresentação refina<strong>da</strong> e inteligente<br />

de seus conteúdos colocaram o<br />

Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa entre as<br />

instituições mais importantes do país.<br />

Pode parecer em um primeiro<br />

momento que esta vocação lúdica está<br />

marca<strong>da</strong> por um entretenimento banal,<br />

limitando as propostas do museu a jogos<br />

de vídeo-game concebidos a partir <strong>da</strong><br />

língua. Entretanto, esta visão não poderia<br />

estar mais equivoca<strong>da</strong>. A curadoria e<br />

seleção de todos os autores, as vozes, as<br />

imagens, estiveram nas mãos de pessoas<br />

especialmente cultas e sensíveis, que conhecem<br />

a potência sonora de ca<strong>da</strong> palavra<br />

de ca<strong>da</strong> poeta que escolheram. Desta<br />

forma o público se orienta para uma<br />

compreensão cosmogônica <strong>da</strong>s palavras<br />

impressas nos livros, concebendo-as agora<br />

como dispositivos ativos e dinâmicos<br />

que não só propiciam o entendimento do<br />

mundo, de uns e outros, como também<br />

do próprio idioma falado.<br />

Soube que as crianças ficam orgulhosas<br />

ao ver sua língua materna como<br />

um universo precioso e inesgotável, com<br />

infinitas possibili<strong>da</strong>des de combinação,<br />

capazes de fazê-las passar to<strong>da</strong> uma tar-<br />

52 53


de – e to<strong>da</strong> uma vi<strong>da</strong> – sem se aborrecer.<br />

Sem ser uma especialista em temas filológicos,<br />

e menos ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />

atrevo-me a afirmar que quando<br />

<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção deste museu, o Brasil em<br />

particular e todos os falantes do planeta<br />

em geral, vislumbraram novos significados<br />

e possibili<strong>da</strong>des para o ensino dos<br />

idiomas. A prova disso são os extraordinários<br />

trabalhos empreendidos pelos<br />

estu<strong>da</strong>ntes após visitar suas salas.<br />

Sem querer descrever ca<strong>da</strong> um<br />

dos espaços ou salas do museu, aos<br />

quais já foram dedicados muitos artigos<br />

e resenhas, gostaria apenas de<br />

focar algum comentário sobre outro<br />

ponto original desse projeto, a<br />

extraordinária tela de 106 metros de<br />

comprimento, na qual são realiza<strong>da</strong>s<br />

11 projeções simultâneas, formando<br />

uma montagem que faz lembrar uma<br />

estação de trem, uma plataforma <strong>da</strong><br />

qual se vê passar – sempre participando<br />

– cultura, música, cozinha, <strong>da</strong>nças,<br />

formação, identi<strong>da</strong>des, costumes, em<br />

centenas de imagens sobre cenas do<br />

cotidiano brasileiro, acompanha<strong>da</strong>s de<br />

textos, entrevistas, depoimentos com<br />

trilha sonora dos maiores compositores<br />

brasileiros como Chico Buarque,<br />

Caetano Veloso, Maria Bethânia.<br />

Da mesma forma, porém com<br />

uma forma mais “alucinógena”, também<br />

nos é apresenta<strong>da</strong> a sala de projeções<br />

em três paredes simultaneamente,<br />

com textos de poetas brasileiros, ima-<br />

gens e luzes. Nesse recinto é impossível<br />

não se emocionar, para além <strong>da</strong><br />

compreensão integral <strong>da</strong> amálgama<br />

de timbres, vozes, registros, em uma<br />

experiência sensitiva onde as formas<br />

se modificam mutuamente e assim<br />

sucessivamente através de um infinito<br />

cosmos de vocábulos, formas, canções,<br />

figuras, poesias. Os conceitos<br />

de identi<strong>da</strong>de, pátria, gênese se misturam<br />

e flexionam entre o passado, o<br />

presente e o futuro.<br />

Não se trata de uma grande<br />

quanti<strong>da</strong>de de música brasileira conheci<strong>da</strong>,<br />

mas de uma sutil e profun<strong>da</strong><br />

seleção onde se alternam melodias de<br />

diferentes períodos, de diferentes ritmos,<br />

reverberantes e díspares, onde a<br />

palavra é a protagonista principal. Al-<br />

gumas vezes ressaltam-se os papéis e<br />

potências <strong>da</strong>s vogais, outras o vigor do<br />

indígena, do forasteiro, tudo isso em<br />

uma fermentação, em uma espécie de<br />

antropofagia, de cartografia dos sons<br />

que o Brasil incorporou ao seu idioma<br />

por meio <strong>da</strong>s letras. Não existem casuali<strong>da</strong>des<br />

nem gratui<strong>da</strong>des nesta lúci<strong>da</strong><br />

e engenhosa seleção, trata-se de uma<br />

concepção do estudo profundo e <strong>da</strong><br />

acui<strong>da</strong>de, editado como um filme quadro<br />

a quadro, ca<strong>da</strong> um deles com um<br />

enquadramento e iluminação precisos,<br />

como uma força única destina<strong>da</strong> a ativar<br />

o movimento e se transformar em<br />

significado e energia.<br />

O edifício do museu está situado<br />

em um contexto singular <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

do lado <strong>da</strong> estação ferroviária <strong>da</strong> Luz,<br />

um dos exemplos mais impressionantes<br />

de art déco do país, para onde centenas<br />

de imigrantes vindos do Porto<br />

de Santos afluíam para se dirigirem ao<br />

interior do país. Em frente está a Pinacoteca<br />

do Estado de São Paulo que<br />

possui uma <strong>da</strong>s mais importantes coleções<br />

do século XIX e de arte contemporânea<br />

e que se transformou em<br />

um espaço notável dentro <strong>da</strong> capital,<br />

recebendo as exposições internacionais<br />

mais importantes. Alguns metros<br />

mais à frente está o antigo Dops, local<br />

onde os militantes políticos eram presos<br />

e torturados, que hoje se transformou<br />

em um museu contemporâneo<br />

que abriga no an<strong>da</strong>r térreo uma parte<br />

tenebrosa <strong>da</strong> negra história <strong>da</strong> ditadura<br />

brasileira. Ao lado está a Sala<br />

São Paulo, para concertos, onde reside<br />

a Orquestra Sinfônica do Estado,<br />

num edifício restaurado onde era a<br />

antiga estação de trens Sorocabana,<br />

que constitui um ponto de destaque<br />

na arquitetura brasileira.<br />

Pe<strong>da</strong>gógico, dramático e surpreendente<br />

é esse Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa,<br />

onde o convite para compreender<br />

e aprender o idioma nos submerge<br />

em um túnel no qual confluem todos<br />

os tempos, e em um surpreendente<br />

exercício de fonética é possível voltar<br />

para a gênese e a identi<strong>da</strong>de essencial<br />

de uma cultura singular.<br />

Isabel Pérez Pérez é cubana editora <strong>da</strong> revista<br />

Arte Cubano.<br />

54 55


MUSEU VIRTUAL<br />

é O MUSEU DO FUTURO?<br />

A terceira regra <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de: as novas tecnologias virtuais ten<strong>da</strong>m a<br />

complementar -- em vez de substituir -- as tecnologias existentes”<br />

(Steve Woolgar).<br />

No seu terceiro ano de vi<strong>da</strong>, o<br />

Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa consoli<strong>da</strong><br />

justificado sucesso de público e já<br />

constitui uma referência obrigatória no<br />

campo. Por certo, poderiam ser aponta<strong>da</strong>s<br />

limitações e insuficiências e eu diria<br />

mesmo alguns caminhos problemáticos,<br />

mas o saldo geral é positivo e o mérito<br />

é inegável. No entanto, a renovação<br />

tecnológica que ele trouxe à museografia,<br />

corrobora<strong>da</strong> pela adesão também<br />

frutuosa de seu irmão caçula, o Museu<br />

do Futebol, fizeram com que ganhasse<br />

força, principalmente entre museólogos,<br />

a idéia de que o “museu tradicional” já<br />

está obsoleto e deve ceder o passo ao<br />

“museu virtual”. Em suma, ao invés<br />

de incorporar ao arsenal desse museu<br />

tradicional os extraordinários recursos<br />

cibernéticos e todo o potencial <strong>da</strong> linguagem<br />

digital, o que se propõe é uma<br />

substituição radical. Não se propõe um<br />

instrumental expositivo novo, mas a<br />

concepção de uma nova natureza e de<br />

novos procedimentos e objetivos para a<br />

instituição. Esta questão é muito grave e<br />

cheia de desdobramentos para ser trata<strong>da</strong><br />

resumi<strong>da</strong>mente. Entretanto, selecionei<br />

três questões que poderiam ao menos<br />

balizar o vasto campo do debate.<br />

A primeira e essencial questão é<br />

a <strong>da</strong> desnecessi<strong>da</strong>de onerosa do museu<br />

com acervo: a informação, não as coisas,<br />

é que caracterizaria os novos compromissos.<br />

De minha parte, continuo<br />

acreditando que o compromisso legitimador<br />

do museu é com a inteligibili<strong>da</strong>de<br />

do mundo e, como dizia a antropóloga<br />

inglesa Mary Douglas, procurar sentido<br />

no mundo envolve interpretá-lo como<br />

sensível. De fato, até que o projeto póshumano<br />

se realize, a condição humana<br />

se define ain<strong>da</strong> como corporal. É o nosso<br />

modo de ser no mundo: como dizem<br />

os especialistas nos estudos <strong>da</strong> cultura<br />

material, não apenas temos um corpo,<br />

mas somos um corpo. As mediações<br />

materiais, portanto, são condição de<br />

vi<strong>da</strong> biológica, psíquica e social . Ain<strong>da</strong><br />

se justifica, portanto, haver em nossa<br />

socie<strong>da</strong>de uma plataforma especificamente<br />

dedica<strong>da</strong> a suscitar ou aprofun<strong>da</strong>r<br />

a consciência do universo material<br />

em que estamos mergulhados, mas que,<br />

por sua indispensável onipresença, passa<br />

em branco na maior parte. Ora, creio<br />

que uma <strong>da</strong>s principais funções do museu<br />

é desnaturalizar essa dimensão material<br />

do mundo, isto é, mostrá-lo como<br />

produto <strong>da</strong> ação humana, dos interesses<br />

humanos, dos conflitos, valores e aspirações<br />

humanas -- aí se incluindo a natureza<br />

culturaliza<strong>da</strong>. A desmaterialização,<br />

porém, convém à nova ordem sócioeconômica-cultural<br />

do capitalismo avançado<br />

e vem provocando transformações<br />

radicais, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de como espaço ao diagnóstico<br />

médico ou à terceirização dos<br />

nossos cinco sentidos, culminando no<br />

sistema financeiro.<br />

Nessa ótica, algumas polari<strong>da</strong>des<br />

neo-cartesianas vieram à luz e<br />

precisariam ser desfeitas, a principal<br />

sendo a dicotomia material/imaterial.<br />

Antes de mais na<strong>da</strong>, como os antropólogos<br />

têm reiterado, o paradoxo <strong>da</strong><br />

cultura material (de que os artefatos<br />

são parte considerável, mas não a totali<strong>da</strong>de)<br />

é que o imaterial só pode se<br />

expressar por intermédio do material .<br />

Assim, em última instância, todo patrimônio<br />

cultural é imaterial: pois não são<br />

os valores e significados imateriais que<br />

definem, por exemplo, até aquele patrimônio<br />

de “pedra e cal”, cuja materiali<strong>da</strong>de,<br />

intrinsecamente, consiste apenas<br />

de atributos fisico-químicos? Inversamente,<br />

um saber-fazer não é uma forma<br />

de memória corporal, portanto de<br />

base material? O filósofo francês Bernard<br />

Stiegler criou a expressão “materialismo<br />

espiritualista” para identificar<br />

aquele materialismo que não diz que o<br />

espírito é redutível à matéria, mas que<br />

a matéria é condição do espírito em todos<br />

os sentidos <strong>da</strong> palavra condição.<br />

Por certo, os museus frequentemente<br />

fetichizaram os objetos -- por<br />

isso mesmo, os museus de arte tiveram<br />

dificul<strong>da</strong>de para li<strong>da</strong>r com a arte conceitual,<br />

a arte efêmera, as performances, a<br />

body art e to<strong>da</strong> a estética que relativiza o<br />

suporte material. Mas na outra ponta,<br />

seu desempenho deixou a desejar:<br />

Edwards, Phillips e Gosden, com uma<br />

argumentação muito rigorosa, acusam<br />

os museus de to<strong>da</strong>s as categorias de estarem<br />

se transferindo para o “imaterial”<br />

56 57


por comodismo e inércia (e não por convicção<br />

ou estratégia), sem mesmo terem<br />

explorado suficientemente as dimensões<br />

<strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana<br />

expressa nos acervos “tradicionais”.<br />

Uma segun<strong>da</strong> questão refere-se<br />

ao desinteresse por objetivos cognitivos<br />

nas exposições (se é que se continua a<br />

admitir que o museu tem responsabili<strong>da</strong>des<br />

com o conhecimento e a formação<br />

crítica). Não se trata de uma tendência<br />

ou limitação natural <strong>da</strong> tecnologia<br />

digital (pelo contrário!), mas <strong>da</strong> reprodução<br />

acrítica e descontextualiza<strong>da</strong> dessa<br />

tecnologia, além do mais centra<strong>da</strong> na<br />

informação, mais que no conhecimento.<br />

Como fica patente na Internet, por<br />

exemplo, privilegia-se a simultanei<strong>da</strong>de,<br />

o sincrônico, o que impede ou dificulta<br />

compreender as implicações <strong>da</strong> duração<br />

ou <strong>da</strong> sequência. A reflexão não se dá<br />

bem com o instantâneo. Como na estética<br />

do videoclipe, valoriza-se exclusivamente<br />

a imersão e é só neste “exclusivamente”<br />

que está o problema. Pois a<br />

imersão redutora, sem posterior emersão,<br />

pode conduzir ao afogamento. No<br />

campo do conhecimento e <strong>da</strong> formação<br />

crítica, que exigem distância e tempo, é<br />

o que tem acontecido. A percepção se<br />

dilui na sensação, o que é sem dúvi<strong>da</strong><br />

prazeroso e positivo, mas compromete<br />

a consciência <strong>da</strong> mediação sensorial<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> -- raiz de inteligibili<strong>da</strong>de, como<br />

acima se disse. Além do mais, quando<br />

a bateria de sensações é excludente de<br />

alternativas, até a interativi<strong>da</strong>de pode ser<br />

enganosa e corre o risco de mascarar<br />

passivi<strong>da</strong>de intelectual sob a aparência<br />

de ativi<strong>da</strong>de gestual.<br />

A socióloga italiana Elena Esposito<br />

observa como nos encontramos<br />

num dilema: a coleção e o museu se<br />

caracterizam por armazenamento sem<br />

mídia de acesso; a Internet, ao con-<br />

trário, por extraordinário acesso sem<br />

armazenamento, nenhum depósito.<br />

Seria o único caminho escolher um<br />

destes extremos? Em especial quando<br />

o museu ain<strong>da</strong> é um espaço especificamente<br />

capaz de potenciar mutuamente<br />

o cognitivo e o afetivo.<br />

Terceira e última questão. Ca<strong>da</strong><br />

vez mais encontro fun<strong>da</strong>mentos para<br />

acreditar que o museu deveria ser o lugar<br />

<strong>da</strong>s perguntas, muito mais que <strong>da</strong>s<br />

respostas. Sua principal função educacional<br />

seria ensinar a fazer perguntas. O<br />

mundo virtual está plenamente capacitado<br />

para esta função. Entretanto, não é o<br />

que vem acontecendo, na prática. Antes<br />

de mais na<strong>da</strong>, também no museu virtual<br />

tem dominado o paradigma do conhecimento<br />

observacional, em detrimento<br />

do discursivo. E as “experiências” que<br />

ele propõe são predominantemente instrumentais.<br />

Dessa forma, o museu exerce<br />

um papel homologatório, abastecido<br />

na maior parte de respostas prontas.<br />

De novo, sob a aparência <strong>da</strong> interativi<strong>da</strong>de,<br />

continua-se a propor enganosamente<br />

que ver é o melhor caminho do<br />

conhecer. (O multisensorialismo ain<strong>da</strong><br />

é hierarquizado pela visão). O grande<br />

pensador <strong>da</strong> tecnologia, Gilbert Simondon,<br />

há tempos formulava a esperança<br />

de que a máquina pudesse ser dota<strong>da</strong> de<br />

uma certa margem de indeterminação,<br />

tornando-se “sensível” a uma informação<br />

externa. Por que não incorporar tal<br />

perspectiva desde já?<br />

Seja como for, onde é que, como<br />

introdução ao mundo virtual, se aprende<br />

a fazer perguntas e controlar -- epistemologicamente,<br />

sobretudo -- as respostas?<br />

Onde se ensina o fio de Ariadne<br />

que nos aju<strong>da</strong>ria a li<strong>da</strong>r com o labirinto<br />

do hipertexto? Uma imagem publica<strong>da</strong><br />

há tempos num cartum <strong>da</strong> Revista Fapesp<br />

(cujo autor ora me escapa) sintetiza<br />

o que pretendi aqui dizer. Num laboratório,<br />

um enorme computador ocupa<br />

todo o espaço disponível, soltando fu-<br />

maça por vários poros e ejetando uma<br />

longuíssima folha de resultados, que se<br />

espalha por todos os cantos. Dois cientistas<br />

se abrem num sorriso de satisfação.<br />

Um deles se dirige ao colega: -- Que<br />

maravilha, agora temos to<strong>da</strong>s as respostas!<br />

Responde o outro: -- Que bom, mas<br />

quais eram mesmo as perguntas?<br />

Ulpiano T. Bezerra de Meneses é filósofo,<br />

historiador e ex-diretor do Museu Paulista<br />

<strong>da</strong> USP.<br />

Fotos: Fernando Flambart<br />

58 59


ARTES<br />

DEPOIS DO<br />

VENDAVAL<br />

O SUCESSO DA DÉCIMA BIENAL DE HAVANA<br />

SÓLIDO PROJETO<br />

CULTURAL DE 25 ANOS<br />

LEONOR AMARANTE<br />

No marco de seus 25 anos, a Bienal de<br />

Havana chega à sua décima edição<br />

com irreverências não imagina<strong>da</strong>s<br />

pelo público acostumado com os<br />

esteriótipos de um regime socialista.<br />

As balas dos poderosos canhões<br />

<strong>da</strong> Fortaleza Militar La Cabaña ganham cor rosa<br />

pink pelo coletivo canadense Atsa; metralhadoras se<br />

transformam em guitarras nas mãos do grupo punk<br />

indonésio/australiano Punkasila; um corpo nu de<br />

mulher é acupunturado pelo mexicano Gomes Peña,<br />

uma espécie de “demônio” insatisfeito que capta a<br />

reali<strong>da</strong>de como ela é. Ca<strong>da</strong> uma de suas agulha<strong>da</strong>s<br />

representa a humilhação imposta pelo governo norte-americano<br />

aos que tentam atravessar a fronteira<br />

mexicana; uma mana<strong>da</strong> de elefantes, em escala real,<br />

esculpi<strong>da</strong> em fibra, instala-se em lugares<br />

sagrados para os cubanos, como a<br />

praça <strong>da</strong> Revolução, onde se encontra o<br />

barco Granma no qual Fidel e seu grupo<br />

chegaram a Cuba em 1959; em outro<br />

ponto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, dois militares, em<br />

guar<strong>da</strong>, deixam seus postos e entram na<br />

performance brasileira Galeria Cilindro,<br />

uma pintura coletiva e em movimento,<br />

orquestra<strong>da</strong> pelo brasileiro Júlio Leite,<br />

<strong>da</strong> Paraíba e <strong>da</strong> qual participaram Walter<br />

Nomura, Alberto Dantas <strong>da</strong> Silva, Renato<br />

H. Barbosa, Tomás Musso, Floriana<br />

Breyer, e Fábio Invamoto. Enquanto<br />

os artistas atuam por fora <strong>da</strong> galeria, os<br />

dois guar<strong>da</strong>s se colocam dentro e se soltam<br />

numa pintura-grafismo.<br />

As obras descritas acima dão<br />

uma ideia do universo revolucionário<br />

<strong>da</strong> Bienal de Havana, um dos mais<br />

singulares dentro do contexto do cir-<br />

cuito de arte internacional. Os temas<br />

propostos ao longo de dez edições<br />

não se concentram nos valores especificamente<br />

estéticos <strong>da</strong>s artes visuais,<br />

funcionam muito mais pela intensi<strong>da</strong>de<br />

interior, pela problemática humana<br />

e libertária, adensados pela literatura<br />

crítica de seus seminários.<br />

A ca<strong>da</strong> edição pode-se sentir o<br />

caminhar constante <strong>da</strong> procura, <strong>da</strong>s descobertas<br />

e <strong>da</strong>s transformações. Do ponto<br />

de vista estrutural, a Bienal de Havana,<br />

que começou em 1984, como um projeto<br />

cultural do governo, é uma <strong>da</strong>s exposições<br />

mais sóli<strong>da</strong>s do calendário <strong>da</strong>s artes visuais.<br />

Com forte viés para o teórico, nunca<br />

se deixou levar pelo intelectualismo analítico,<br />

ou o pessimismo ontológico. Dosando<br />

vertentes de esquer<strong>da</strong> e de direita, um<br />

dos méritos <strong>da</strong> Bienal é colocar em circulação<br />

a produção de países do chamado<br />

60 61<br />

FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />

Júlio Leite, autor <strong>da</strong><br />

Galeria Cilindro.


Artistas <strong>da</strong> Galeria Cilindro<br />

em ação e a instalação final<br />

no Morro de La Cabaña.<br />

terceiro mundo, muito antes <strong>da</strong> globalização<br />

tomar conta do planeta. O despertar<br />

desse universo periférico fez mais viva a<br />

linguagem <strong>da</strong>s artes visuais.<br />

Para manter sua quali<strong>da</strong>de a Bienal<br />

conta com um corpo fixo de curadores<br />

que viajam pelos quatro cantos do mundo.<br />

Nelson Herrara Ysla, que atua desde a primeira<br />

edição; Íbis Hernadez, responsável<br />

pela escolha dos brasileiros, além de Margarita<br />

Sanchez Prieto, José Manuel Noce<strong>da</strong>,<br />

Jorge Antonio Fernandez Torres, Margarita<br />

González Lorente, José Fernandez<br />

Portal e Dannys Montes de Oca More<strong>da</strong>.<br />

Não se pode falar dos 25 anos <strong>da</strong><br />

Bienal de Havana sem citar Llilian Llanes,<br />

curadora junto com Nelson Ysla <strong>da</strong>s primeiras<br />

edições. Dinâmica e batalhadora<br />

é, sem dúvi<strong>da</strong>, uma <strong>da</strong>s responsáveis pela<br />

consoli<strong>da</strong>ção e pelo respeito alcançados<br />

pela Bienal de Havana ao longo dos anos,<br />

FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />

e pela colocação de alguns artistas <strong>da</strong> Ilha<br />

no cenário internacional.<br />

Nesta edição comemorativa, que<br />

tem como tema Integração e Resistência<br />

na Era Global a Bienal,a exposição bate<br />

seu próprio recorde em número de artistas.<br />

São mais de 300 vindos de 54 países e<br />

que se espalham por 100 pontos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

entre eles o Centro de Arte Contemporáneo<br />

Wifredo Lam, Centro de Desarrollo<br />

de las Artes Visuales, Convento de<br />

San Francisco de Assis, Fortaleza de San<br />

Carlos de La Cabana, Lasa- laboratório<br />

artístico de San Agustín, Museu Nacional<br />

de Bellas Artes e Pavilhão Cuba.<br />

Se hoje há um número considerável<br />

de países participantes, na primeira<br />

edição as portas estavam abertas somente<br />

para a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e Caribe. Na edição<br />

seguinte abriu-se para a produção<br />

chinesa, africana e a do Oriente Médio,<br />

FOTO: wALTER nOMURA<br />

FOTO: REPRODUÇÃO<br />

62 63<br />

No ano dos cinquenta anos <strong>da</strong><br />

Revolução Cubana, e vinte e<br />

cinco <strong>da</strong> Bienal de Havana, o<br />

grupo canadensa Atsa, interfere<br />

nas balas de canhão <strong>da</strong> Fortaleza<br />

de San Carlos de La Cabaña.


Acima: grafismo quase<br />

publicitário do japonês<br />

Shigeo Fuku<strong>da</strong>.<br />

Abaixo: obra do artista<br />

chinês Wang Qingsong,<br />

na curadoria de Tereza de<br />

Arru<strong>da</strong>.<br />

quando esses países não<br />

tinham, praticamente,<br />

nenhum protagonismo<br />

nas bienais<br />

de Veneza e na de<br />

São Paulo. Muito<br />

menos na Documenta<br />

de Kassel,<br />

na Alemanha.<br />

Hoje, enquanto<br />

algumas bienais<br />

mostram sinais<br />

de cansaço e outras<br />

se envolvem em escân<strong>da</strong>los<br />

financeiros, a Bienal<br />

de Havana segue firme,<br />

mesmo depois<br />

de parte <strong>da</strong> Ilha ser<br />

devasta<strong>da</strong> por três<br />

furacão que deixaram<br />

um prejuízo de<br />

10 bilhões de dólares,<br />

cifra astronômica para<br />

um país de 11 milhões de habitantes.<br />

Catástrofe que em outros países seria<br />

motivo mais que suficiente para o cancelamento<br />

<strong>da</strong> Bienal, nem por isso Cuba<br />

deixou e fazer sua.<br />

Seguindo a tendência mundial, as<br />

instalações dominam essa edição. O artista<br />

cubano, Kcho, com sua inquietude<br />

epidérmica, toma conta do fosso do forte<br />

Cabana com seu acampamento, Briga<strong>da</strong><br />

Cultural Marta Machado, lotado de artistas<br />

que recrutou para participar com ele<br />

<strong>da</strong> recuperação <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> Juventude devasta<strong>da</strong><br />

pelos furacões. Ele ain<strong>da</strong> entrou<br />

no campo <strong>da</strong> performance incendiando<br />

um barco suspenso na praça do Convento<br />

de San Framcisco de Asís.<br />

Do Brasil, a sala de Paulo Brusky,<br />

de Pernambuco, sinaliza a necessi<strong>da</strong>de de<br />

valorização <strong>da</strong>s contribuições que as artes<br />

plásticas recebem de outras áreas. Já a Galeria<br />

Cilindro, do paraibano Julio Leite movimentou<br />

artistas e estu<strong>da</strong>ntes de arte que,<br />

montados em bicicletas, instalaram sua galeria,<br />

em pontos diferentes de Havana. Depois<br />

de três dias de pintura coletiva e uma<br />

infini<strong>da</strong>de cromática deu lugar às cama<strong>da</strong>s<br />

de gestos autorais, a galeria transformou-se<br />

em uma instalação, com os macacões presos<br />

na parede e as bicicletas flutuando no<br />

teto de uma <strong>da</strong>s roton<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Cabaña.<br />

No Convento San Francisco de<br />

Asís, Flamínio Jallageas e Patrícia Gerber<br />

FOTO: REPRODUÇÃO<br />

se destacam na coletiva. Ele com seus<br />

objetos suspensos no ar e ela com uma<br />

performance na fonte <strong>da</strong> praça onde<br />

transformou a água em sangue. Da Ásia,<br />

o japonês Shigeo Fuku<strong>da</strong> mostra que conhece<br />

a alma do desenho, seus detalhes<br />

e, por essas ver<strong>da</strong>des, trata seu trabalho<br />

como um gesto lúdico. O coletivo Os<br />

Novos Ricos, do México, usam a técnica<br />

“ imagem puxa imagem”, e forram<br />

as paredes de sua sala de CDs piratas,<br />

colocando-se no centro de uma polêmica<br />

internacional. Esse repetir à exaustão<br />

expõe um ideário vivo dos fantasmas que<br />

assombram um capitalismo sem caráter.<br />

Em sua décima edição, a Bienal de<br />

Havana que completa 25 anos no ano<br />

em que sua gestora, a Revolução Cubana,<br />

chega aos 50, consegue superar um<br />

dos maiores desafios de sua história. Em<br />

meio a uma crise econômica mundial e<br />

soma<strong>da</strong> aos prejuízos provocados pelos<br />

furacões, Cuba dá uma lição de serie<strong>da</strong>de<br />

e perseverança. Rubén del Valle Lantarón,<br />

presidente do Conselho <strong>da</strong>s Artes Plásticas<br />

e <strong>da</strong> Bienal de Havana diz que diante<br />

<strong>da</strong>s priori<strong>da</strong>des para se levantar áreas devasta<strong>da</strong>s,<br />

parecia um contrasenso realizar<br />

a Bienal. “Sem hesitar o governo cubano<br />

decidiu assumir o evento, no entanto, reforçando<br />

ain<strong>da</strong> mais nosso princípio de<br />

austeri<strong>da</strong>de e racionali<strong>da</strong>de.” Para colocar<br />

de pé a maior edição de sua história, mais<br />

de 300 artistas de 54 países, to<strong>da</strong>s as áreas<br />

culturais liga<strong>da</strong>s ao Ministério <strong>da</strong> Cultura<br />

foram convoca<strong>da</strong>s. A reação desafiadora<br />

do governo cubano sensibilizou alguns<br />

outros países que o apoiaram de alguma<br />

forma. Para encarar situações tão adversas,<br />

Cuba já está em debate para continuar<br />

desenvolvendo projetos artísticos em<br />

situações críticas. Na<strong>da</strong> mais natural para<br />

um país que tem um projeto cultural sólido<br />

e definido, e onde o valor <strong>da</strong> cultura<br />

tem dimensões históricas.<br />

Leonor Amarante é jornalista, crítica de arte<br />

e editora <strong>da</strong> Revista Nossa <strong>América</strong>.<br />

Acima os performáticos:<br />

Tania Bruguera de Cuba<br />

e Peña Gomez do México.<br />

Abaixo, o cubano Kcho<br />

e seu acampamento<br />

Marta Machado.<br />

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FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />

FOTO: REPRODUÇÃO

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