Edição 33 - Memorial da América Latina
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GOVERNADOR<br />
JOSÉ SERRA<br />
VICE-GOVERNADOR<br />
ALBERTO GOLDMAN<br />
SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />
JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />
FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />
DA AMÉRICA LATINA<br />
CONSELHO CURADOR<br />
PRESIDENTE<br />
JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />
SECRETÁRIO DE CULTURA<br />
JOÃO SAYAD<br />
SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />
GERALDO JOSÉ RODRIGUES ALCKMIN FILHO<br />
REITORA DA USP<br />
SUELY VILELA SAMPAIO<br />
REITOR DA UNICAMP<br />
FERNANDO FERREIRA COSTA<br />
REITOR DA UNESP<br />
HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />
PRESIDENTE DA FAPESP<br />
CELSO LAFER<br />
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />
JURANDIR FERNANDES<br />
DIRETORIA EXECUTIVA<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
FERNANDO LEÇA<br />
DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />
DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />
ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />
DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />
FERNANDO CALVOZO<br />
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />
SÉRGIO JACOMINI<br />
CHEFE DE GABINETE<br />
JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
HUBERT ALQUÉRES<br />
DIRETOR INDUSTRIAL<br />
TEIJI TOMIOKA<br />
DIRETOR FINANCEIRO<br />
CLODOALDO PELISSIONI<br />
DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS<br />
LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />
Número <strong>33</strong><br />
ISSN 0103-6777<br />
REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />
DIRETOR<br />
FERNANDO LEÇA<br />
EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE<br />
LEONOR AMARANTE<br />
COLABORADORA DE EDIÇÃO<br />
ANA CANDIDA VESPUCCI<br />
PRODUÇÃO<br />
HENRIQUE DE ARAUJO<br />
DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS<br />
FELIPE DE OLIVEIRA<br />
DOUGLAS MALUTA<br />
LUANA DE ALMEIDA<br />
COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />
Fábio Invamoto, Fabio Pagan, Fernando Flambart,<br />
Henrique Manreza, Isabel Pérez Pérez, Ignacy Sachs,<br />
José Sebastião Witter, Márcia Rosetto, Paulo Goulart,<br />
Renata Pallottini, Tânia Rabello, Tomás de Albuquerque<br />
Lapa, Walter Louzán, Walter Nomura, Ulpiano T.<br />
Bezerra de Meneses.<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso<br />
Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis<br />
Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis<br />
Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar<br />
Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto<br />
Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa,<br />
Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />
NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral<br />
<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade,<br />
664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />
Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />
Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email:<br />
pub.memorial@gmail.com. Os textos são de inteira<br />
responsabli<strong>da</strong>de dos autores, não refletindo o<br />
pensamento <strong>da</strong> revista. É expressamente proibi<strong>da</strong> a<br />
reprodução, por qualquer meio, do conteúdo <strong>da</strong><br />
revista.<br />
EDITORIAL<br />
04<br />
URBANISMO<br />
06<br />
QUADRINHOS<br />
12<br />
TEATRO<br />
19<br />
SOCIOLOGIA<br />
26<br />
ANALISE<br />
32<br />
TECNOLOGIA<br />
38<br />
ECONOMIA<br />
42<br />
AGENDA<br />
49<br />
DEBATE<br />
50<br />
ARTES<br />
60<br />
3<br />
FERNANDO LEÇA<br />
TOMÁS A. LAPA<br />
WALTER LOUZÁN<br />
RENATA PALLOTTINI<br />
PAULO GOULART<br />
TÂNIA RABELLO<br />
JOSÉ S. WITTER<br />
MÁRCIA ROSETTO<br />
IGNACY SACHS<br />
ISABEL PÉREZ PÉREZ<br />
ULPIANO B. MENESES<br />
LEONOR AMARANTE
Na edição anterior já abor<strong>da</strong>mos o<br />
fator Obama e voltamos ao assunto, nesse<br />
espaço, apenas para fazer eco à constatação<br />
geral de que o carisma e a habili<strong>da</strong>de<br />
do presidente se evidenciaram mais<br />
uma vez na recente Cúpula <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s,<br />
em Trin<strong>da</strong>d e Tobago. Agradou, sobretudo,<br />
a sua disposição para o diálogo, que<br />
marca uma clara e elogiável diferença.<br />
O <strong>Memorial</strong> também está ampliando<br />
suas relações. Além dos contatos com<br />
instituições de outros países, está empenhado<br />
em estreitar laços com os demais<br />
Estados brasileiros. O intuito é cumprir<br />
a missão para o qual foi concebido de, a<br />
par <strong>da</strong> integração latino-americana, valorizar<br />
a diversi<strong>da</strong>de cultural do País, focalizando<br />
suas expressões mais autênticas.<br />
Por outro lado, ao tirar partido <strong>da</strong>s<br />
novas tecnologias, a Fun<strong>da</strong>ção está abrindo<br />
novos canais de comunicação com o<br />
público. Instalou telões com informações<br />
sobre o conteúdo de ca<strong>da</strong> um de seus espaços,<br />
sem, contudo, abrir mão do contato<br />
humano que seus jovens monitores<br />
proporcionam.<br />
Esta edição de Nossa <strong>América</strong>,<br />
portanto, acompanha os novos tempos.<br />
Abor<strong>da</strong> vários temas atuais, inclusive a crise<br />
global. Para começar, destaca as particulari<strong>da</strong>des<br />
de Quito, capital do Equador,<br />
que se distingue de outros centros urbanos<br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> Hispânica por sua inteligente<br />
forma de preservar a história arquitetônica.<br />
Quem explica quais são as distinções<br />
desse interessante conjunto urbanístico e<br />
arquitetônico é Tomás Lapa, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
Federal de Pernambuco.<br />
Um dos ícones <strong>da</strong>s histórias latino-americanas<br />
em quadrinhos, Mafal<strong>da</strong><br />
completa 45 anos. A graça e o caráter<br />
mor<strong>da</strong>z e crítico <strong>da</strong> menininha cria<strong>da</strong> por<br />
Quino faz dela unanimi<strong>da</strong>de entre os aficionados<br />
pelo gênero. Quem desven<strong>da</strong><br />
os segredos dessa personagem e o traço<br />
de seu autor é Walter Louzán, também<br />
argentino, e especialista no assunto.<br />
Outro sucesso no cenário latinoamericano,<br />
o Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa<br />
em São Paulo, é colocado sob o<br />
olhar crítico de uma jornalista e um historiador.<br />
Para investigar a razão de tamanho<br />
sucesso de público e mídia, Nossa<br />
<strong>América</strong> convidou a cubana Izabel Pérez<br />
Pérez, editora <strong>da</strong> revista Arte Cubano, e<br />
o historiador brasileiro Ulpiano Bezerra<br />
de Meneses. Sob óticas diferentes os<br />
dois fazem um diagnóstico do conceito<br />
museológico empregado pela instituição.<br />
Mesmo depois de ter parte de seu<br />
território devastado por três furacões, o<br />
governo cubano decidiu manter a Bienal<br />
de Havana que chega à sua décima edição<br />
somando 25 anos de arte contemporânea.<br />
O Brasil se fez presente com artistas de<br />
vários Estados. A editora <strong>da</strong> Nossa <strong>América</strong>,<br />
Leonor Amarante, esteve na mostra,<br />
recebeu a Me<strong>da</strong>lha de Cultura de Cuba e<br />
escreve sobre essa edição comemorativa.<br />
O sucesso do II Festival Ibero-<br />
Americano de Teatro do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> prova a pertinência de<br />
um evento destinado ao intercâmbio e<br />
à difusão cultural. Foram várias companhias<br />
teatrais <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e<br />
de Portugal e Espanha, além de mesas<br />
e debates, mostrando que a troca de<br />
experiências é muito bem-vin<strong>da</strong>. Renata<br />
Pallottini, dramaturga e ensaísta, e o<br />
ator Paulo Goulart, registram em Nossa<br />
<strong>América</strong> suas experiências como participantes<br />
do evento.<br />
Ca<strong>da</strong> país <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> tem<br />
problemas. Alguns mais sérios que outros.<br />
É o caso <strong>da</strong> Guatemala, que não se<br />
livrou <strong>da</strong>s seqüelas de uma longa guerra<br />
civil, nem do machismo que foi tônica<br />
em todo o Continente. Suas mulheres<br />
são literalmente massacra<strong>da</strong>s. Algumas se<br />
insurgem, a exemplo de Sonia E. Lopez<br />
Alvarez, que luta pelos direitos humanos.<br />
A jornalista Tânia Rabello esteve lá e<br />
conta o que ocorre de fato.<br />
Futebol é assunto sério. Ain<strong>da</strong> mais<br />
agora que vem sendo tratado nos meios<br />
acadêmicos. O historiador José Sebastião<br />
Witter explica nas páginas de Nossa <strong>América</strong><br />
como e porque o esporte que o Brasil<br />
ajudou a difundir internacionalmente tornou-se<br />
um fenômeno de massas.<br />
O que também vem se disseminando<br />
rapi<strong>da</strong>mente é o emprego <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de<br />
para promover conhecimento. As<br />
bibliotecas virtuais têm se propagado em<br />
todo o mundo e o <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> não perdeu tempo. Está com seu<br />
acervo digitalizado. A bibliotecária Márcia<br />
Rossetto, responsável pela implantação<br />
<strong>da</strong> BV@L, explica todo o processo e<br />
sua importância na vi<strong>da</strong> moderna.<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> pode se sair<br />
melhor dessa crise internacional do que<br />
o resto do mundo? Na opinião do economista<br />
Ignacy Sachs, perito em desenvolvimento<br />
sustentado, com certeza sim.<br />
Desde que atente para suas riquezas naturais<br />
e enten<strong>da</strong> como aproveitar o potencial<br />
econômico de seu meio ambiente.<br />
Ele deu um longo depoimento sobre o<br />
assunto com exclusivi<strong>da</strong>de para o <strong>Memorial</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e que Nossa<br />
<strong>América</strong> registra nesta edição.<br />
Fernando Leça<br />
Presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />
<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
4 5
URBANISMO<br />
QUITO<br />
PONTE ENTRE PASSADO<br />
E PRESENTE<br />
PRESERVAÇÃO COMO<br />
MARCA DA CIDADE<br />
TOMÁS A. LAPA<br />
O<br />
que dizer de uma ci<strong>da</strong>de tão especial,<br />
sobre a qual já se escreveu<br />
tanto, sem incorrer em lugares<br />
comuns? Devem ser os olhos do<br />
urbanista, a descrever a capital do<br />
Equador, ou vale a pena deixar<br />
fluir as impressões do visitante que se depara com<br />
esse majestoso conjunto urbano, extraordinariamente<br />
conservado até nossos dias? Quem visita Quito<br />
pela primeira vez e começa pelo bairro Mariscal, na<br />
zona norte <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, com modernas zonas residenciais,<br />
restaurantes, comércio e locais de divertimento,<br />
e dirige-se ao centro histórico, terá impressões<br />
distintas e, certamente, contrastantes. Depois de deixar<br />
para trás trechos em estilos modernos sem traços<br />
marcantes, terá a inusita<strong>da</strong> surpresa<br />
de deparar-se com a grandiosa massa<br />
edifica<strong>da</strong>, densa e uniforme, que se<br />
estende por inumeráveis quadras na<br />
direção sul <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Quito está perfila<strong>da</strong> entre montanhas,<br />
dentre as quais se destacam Pichincha,<br />
a oeste, e Panecillo, ao sul. No<br />
centro histórico, que ocupa uma área<br />
de 320 ha, além do casario, admiravelmente<br />
bem conservado, as igrejas, os<br />
conventos, os palácios, praças e largos<br />
dão testemunho do papel estratégico<br />
que a ci<strong>da</strong>de desempenhou na rota de<br />
transporte <strong>da</strong> prata <strong>da</strong>s minas de Potosi<br />
e do Peru, em direção ao Caribe.<br />
Outras ci<strong>da</strong>des históricas <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> já encantaram visitantes do<br />
mundo todo, pelo fausto <strong>da</strong> decoração<br />
de suas igrejas e conventos, pela profusão<br />
de detalhes <strong>da</strong> estatuária e <strong>da</strong>s talhas doura<strong>da</strong>s<br />
e pela uniformi<strong>da</strong>de de seus con-<br />
juntos urbanos. Nas ci<strong>da</strong>des coloniza<strong>da</strong>s<br />
pelos portugueses, em geral destaca-se o<br />
harmonioso jogo entre o traçado e a implantação<br />
<strong>da</strong>s edificações que se amol<strong>da</strong>m<br />
ao sítio, onde a vegetação encarrega-se de<br />
tecer um pano de fundo verde. Nas ci<strong>da</strong>des<br />
coloniza<strong>da</strong>s pelos espanhóis, destacase<br />
a regulari<strong>da</strong>de do traçado, onde a Plaza<br />
Mayor funciona como ponto central de<br />
um ver<strong>da</strong>deiro tabuleiro de xadrez. No<br />
primeiro caso, Olin<strong>da</strong> dentre tantas ilustra<br />
muito bem o jogo sutil que se estabelece<br />
entre o sítio natural e a paisagem<br />
cultural. No segundo caso, Quito dentre<br />
outras ilustra o êxito obtido pelo tipo<br />
de ocupação urbana promovido pelos<br />
conquistadores espanhóis. Vejamos então<br />
que elementos conferem à ci<strong>da</strong>de de<br />
Quito um status tão especial.<br />
Antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos espanhóis,<br />
o local havia sido um ponto de confluência<br />
comercial cerimonial dos povos<br />
6 7<br />
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
Vista geral do centro <strong>da</strong><br />
capital equatoriana.
Passagem centenária<br />
nos leva a um outro século.<br />
indígenas e capital de um reino pré-colombiano.<br />
Contam os habitantes locais<br />
que, desde remotas épocas, os povos<br />
indígenas sabiam que o sítio coincidia<br />
com a linha que marca a passagem de um<br />
hemisfério para outro e que, na designação<br />
qui, conti<strong>da</strong> na palavra Quito, há uma<br />
referência a meio, ou metade.<br />
Por volta do século XV, Tupac<br />
Yupanqui fundou no local um vilarejo<br />
que foi incorporado ao império inca.<br />
Em 1534, Sebastián de Benalcázar fundou<br />
a vila de São Francisco de Quito,<br />
alça<strong>da</strong> à sede de Bispado, em 1545, e<br />
Real Audiência <strong>da</strong> Coroa Espanhola, em<br />
1575. Em 1830, Quito tornou-se capital<br />
<strong>da</strong> República do Equador.<br />
Até a segun<strong>da</strong> metade do século<br />
XIX, predominaram na ci<strong>da</strong>de os traços<br />
<strong>da</strong> arquitetura colonial espanhola.<br />
Em 1870, porém, por ordem do presidente<br />
Gabriel Garcia Moreno, os novos<br />
edifícios a serem construídos seguiram<br />
o gosto neoclássico.<br />
Quando se busca a explicação para<br />
que os centros históricos de algumas ci<strong>da</strong>des<br />
latino-americanas tenham conservado<br />
sua uni<strong>da</strong>de, em geral verifica-se o<br />
adormecimento em que estiveram mergulha<strong>da</strong>s<br />
por longo tempo. Foi assim com<br />
o centro histórico de São Luís do Maranhão<br />
que, após o período áureo de progresso<br />
trazido pelo comércio do babaçu<br />
e do arroz, atravessou praticamente todo<br />
o século XX num ritmo modorrento. Foi<br />
assim com o Pelourinho de Salvador que,<br />
por falta de meios dos habitantes pobres<br />
do local, não sofreu transformações nos<br />
tipos arquitetônicos nem na morfologia<br />
do lugar. Da mesma maneira, aconteceu<br />
com Olin<strong>da</strong>, que permaneceu à sombra<br />
do Recife como ci<strong>da</strong>de dormitório,<br />
abrigando uma população de residentes<br />
muito apegados ao lugar.<br />
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
8 9<br />
FOTO: REPRODUÇÃO
Cúpulas <strong>da</strong> igreja<br />
Companhia de Jesus,<br />
em Quito.<br />
Em Quito não foi diferente,<br />
pois, a partir de 1930, grande parte dos<br />
habitantes do Centro deslocou suas<br />
residências para novas áreas ao norte<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, fazendo com que muitas<br />
edificações do centro histórico fossem<br />
abandona<strong>da</strong>s e, em segui<strong>da</strong>, ocupa<strong>da</strong>s<br />
por uma população composta de pessoas<br />
pobres e migrantes do campo. Até<br />
este ponto, estamos diante do processo<br />
de transformação e evolução urbana<br />
que a maioria <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des atravessa.<br />
No entanto, outros fatos contribuíram<br />
para não só assegurar a permanência<br />
do patrimônio edificado como também<br />
para colocar em prática um processo<br />
exemplar de reabilitação e de gestão <strong>da</strong><br />
conservação urbana.<br />
Os abalos sísmicos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />
de 1970 foram um sinal de alerta<br />
para o risco de destruição do precioso<br />
patrimônio edificado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Em 1978, o centro histórico de Quito<br />
foi declarado pela Unesco como<br />
Patrimônio Cultural <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />
e reconhecido como o maior centro<br />
histórico, o menos alterado e o melhor<br />
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
preservado <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s. Não obstante,<br />
esse reconhecimento não bastou para<br />
reverter o processo de degra<strong>da</strong>ção que<br />
já se arrastava havia déca<strong>da</strong>s.<br />
No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990,<br />
vários segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de equatoriana<br />
mobilizaram-se para encontrar<br />
uma forma de conservação do centro<br />
histórico que atendesse aos interesses<br />
dos gestores municipais, dos investidores<br />
privados, dos residentes e dos comerciantes<br />
locais. Em 1994, foi cria<strong>da</strong> a<br />
Empresa do Centro Histórico de Quito<br />
(ECH), uma autarquia de economia<br />
mista, cujo objetivo é gerir o processo<br />
de conservação urbana e promover o<br />
desenvolvimento socioeconômico <strong>da</strong><br />
área. Essa condição permite que administre<br />
seus próprios fundos e estabeleça<br />
parcerias com empresas do setor<br />
privado de modo a atrair investimentos<br />
e tornar o centro histórico atraente<br />
para residentes, empresas e turistas.<br />
O processo de reabilitação do<br />
centro histórico de Quito, que contou<br />
com apoio do setor de cultura <strong>da</strong><br />
Unesco, teve início em 1997 e esten-<br />
deu-se até 2002. Em segui<strong>da</strong>, um programa<br />
ambicioso, encetado em 2003,<br />
retirou <strong>da</strong>s ruas cerca de 6 mil camelôs<br />
para alojá-los a alguns passos dos locais<br />
de origem, em oito centros comerciais,<br />
onde os visitantes dispõem de<br />
centenas de lojas, de restaurantes, de<br />
banheiros e de segurança.<br />
Atualmente, flanar pelas ruas estreitas<br />
e pitorescas do centro histórico<br />
não implica mais em estado de alerta.<br />
Quito respira outra vez ares de tranqüili<strong>da</strong>de.<br />
Desobstruí<strong>da</strong> dos camelôs<br />
que atravancavam as ruas e calça<strong>da</strong>s e <strong>da</strong><br />
insegurança <strong>da</strong> violência que <strong>da</strong>í decorria,<br />
voltou a oferecer para muitos uma<br />
atmosfera propícia à habitação, ao comércio,<br />
aos serviços e à contemplação<br />
de uma paisagem cultural que está não<br />
somente no limiar de dois hemisférios,<br />
mas que também faz uma ponte entre<br />
passado e presente.<br />
Tomás de Albuquerque Lapa é professor no<br />
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento<br />
Urbano- UFPE.<br />
10 11<br />
FOTO:TOMÁS DE ALBUQUERQUE LAPA
PERSONAGEM<br />
UNIVERSAL<br />
WALTER LOUZÁN<br />
QUADRINHOS<br />
MAFALDA<br />
45 ANOS DE IRREVERÊNCIA<br />
“<br />
Ela não é apenas uma personagem<br />
de histórias em quadrinhos, talvez<br />
seja a personagem dos anos 70 <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de argentina”. Assim definiu<br />
Umberto Eco, seu primeiro<br />
editor na Itália, a menina que este<br />
ano comemora 45 anos desde a sua primeira publicação<br />
periódica, em setembro de 1964. Uma<br />
menina que ensinou to<strong>da</strong> uma geração de argentinos<br />
não somente a ler, mas também a ver o mundo<br />
com desconfiança e insatisfação próprias dos<br />
adultos. Uma menina que, em meio aos desgostos<br />
habituais <strong>da</strong> infância (a nata no leite, a maldita<br />
sopa...), encontrava tempo para tentar melhorar<br />
o mundo, mesmo que fosse apenas aplicando a<br />
maquiagem <strong>da</strong> sua mãe sobre o globo terrestre. ILUSTRAÇÕES:<br />
12 13<br />
REPRODUÇÃO
Uma personagem que transcendeu<br />
o universo dos quadrinhos para se<br />
transformar em símbolo de to<strong>da</strong> uma<br />
geração, um ícone, em selos de correio e<br />
em letras de músicas.<br />
Vamos começar esclarecendo alguns<br />
pontos: Mafal<strong>da</strong> (sem sobrenome,<br />
embora o autor alguma vez tenha deixado<br />
escapar que começava com M), nasceu<br />
em 15 de março de 1962, para servir<br />
de “apoio publicitário” para a campanha<br />
de lançamento de uma linha de eletrodomésticos.<br />
Os jornais, percebendo seu<br />
propósito comercial, rejeitaram a meia<br />
dúzia de tiras desenha<strong>da</strong>s por Quino,<br />
onde nossa heroína apareceu pela primeira<br />
vez. A campanha foi cancela<strong>da</strong> e<br />
o autor arquivou as tiras até 1964, quando<br />
três delas foram publica<strong>da</strong>s em Gregorio,<br />
suplemento humorístico <strong>da</strong> revista<br />
Leoplán (tais tiras nunca foram incluí<strong>da</strong>s<br />
nas compilações dos quadrinhos).<br />
Em 29 de setembro de 1964, a pedido<br />
de Julián Delgado, amigo de Qui-<br />
no, Mafal<strong>da</strong> se mudou para o jornal semanal<br />
Primera Plana e passou a escrever<br />
uma página ímpar na história dos quadrinhos.<br />
Esse ano também foi rico em<br />
história: devido à pressão dos Estados<br />
Unidos crescia o número de adesões de<br />
países americanos ao bloqueio contra<br />
Cuba, enquanto a comissão Warner tornava<br />
pública a versão oficial do assassinato<br />
do presidente Kennedy, os palestinos<br />
fun<strong>da</strong>vam a OLP, Jean-Paul Sartre<br />
recusava o Prêmio Nobel de Literatura,<br />
ao mesmo tempo em que Martin Luther<br />
King recebia o <strong>da</strong> Paz, os Beatles dominavam<br />
as para<strong>da</strong>s musicais e mu<strong>da</strong>vam<br />
definitivamente a história <strong>da</strong> cultura pop<br />
no mundo. Na Argentina, em meio à<br />
críticas <strong>da</strong> oposição e acusações vela<strong>da</strong>s<br />
de “vazio de poder” <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s,<br />
governava o radical Arturo Illia.<br />
Mafal<strong>da</strong> foi publica<strong>da</strong> em Primera<br />
Plana até março de 1965, quando se<br />
mudou para o jornal El Mundo, onde<br />
permaneceu até o fechamento do mes-<br />
mo, em 22 de dezembro de 1967. Aí<br />
surgiram os primeiros amigos <strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong>,<br />
que até então protagonizava as<br />
tiras apenas com seus pais. No dia 19 de<br />
janeiro de 1965 aparece Felipe, um ano<br />
mais velho que Mafal<strong>da</strong>, um “sonhador<br />
tranquilo”, segundo Umberto Eco. Tímido,<br />
preguiçoso, detesta escola e lições<br />
de casa, mas adora quadrinhos, especialmente<br />
os do Zorro. De acordo com<br />
Quino, o personagem foi inspirado no<br />
jornalista Jorge Timossi, que tinha “dentes<br />
de coelho engraçados”. No final de<br />
março do mesmo ano apareceu Manolito<br />
(Manuel Goreiro), filho do dono do<br />
armazém do bairro. Ele funciona como<br />
contraponto às idéias modernizadoras e<br />
aos gostos de Mafal<strong>da</strong>, e como caricatura<br />
do imigrante espanhol pouco inteligente<br />
e na<strong>da</strong> imaginativo (exceto para imaginar<br />
seu futuro como dono de uma rede de<br />
supermercados); representante <strong>da</strong>s idéias<br />
capitalistas e conservadoras, ele e Susanita<br />
são os únicos personagens que sabem<br />
o que querem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
No dia 6 de junho de 1965 Susana<br />
Clotilde Chirusi aparece pela primeira<br />
vez, “beatificamente doente, de espírito<br />
maternal e narcotiza<strong>da</strong> por sonhos<br />
pequeno-burgueses”, para Eco. Mafal<strong>da</strong><br />
chegou a dizer que ca<strong>da</strong> vez que ela falava<br />
“parecia o Prêmio Nobel <strong>da</strong> classe<br />
média”. De acordo com seu autor: “ela<br />
é uma cópia de sua mãe. Seu maior desejo<br />
na vi<strong>da</strong> é ser mãe e se casar com<br />
um homem bonito e rico”. Pouco depois,<br />
no verão de 1966, surge Miguelito<br />
(Miguel Pitti), que Mafal<strong>da</strong> conhece<br />
durante suas férias na praia.Um ano<br />
mais moço que seus amigos, Miguelito<br />
é egocêntrico, quase tão sonhador<br />
quanto Felipe e dono de uma inocência<br />
à prova de tudo. Às vezes deixa<br />
transparecer algumas idéias autoritárias,<br />
influenciado por seu querido avô,<br />
antigo seguidor de Mussolini.<br />
Quando a publicação de El Mundo<br />
foi interrompi<strong>da</strong>, a mãe de Mafal<strong>da</strong><br />
estava grávi<strong>da</strong> de Guille, o único<br />
personagem que cresce no decorrer <strong>da</strong><br />
publicação <strong>da</strong>s tiras. Nasceu em 21 de<br />
março de 1968, segundo uma carta de<br />
apresentação de Mafal<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> no<br />
semanário 7 Días, que passou a publicar<br />
a história de 2 de junho do mesmo<br />
ano até seu final. Desinibido e terno,<br />
o que é amplificado por sua linguagem<br />
infantil, Guille gosta de rabiscar<br />
as paredes, <strong>da</strong> chupeta on the rocks e de<br />
Brigitte Bardot. O último personagem<br />
14 15
a entrar na galeria é Libertad, uma menina<br />
miú<strong>da</strong>, filha de uma tradutora de<br />
francês. Seu nome e tamanho servem<br />
de base para várias pia<strong>da</strong>s de cunho<br />
político. É mais politiza<strong>da</strong> que Mafal<strong>da</strong><br />
e tanto ela quanto seus pais são socialistas<br />
convictos.<br />
Em 25 de Junho de 1973, depois<br />
de 1928 tiras publica<strong>da</strong>s e de uma grande<br />
quanti<strong>da</strong>de de desenhos complementares,<br />
Mafal<strong>da</strong> e seus amigos despedem-se<br />
definitivamente do público. Depois disso,<br />
Quino resgatará seus personagens<br />
esporadicamente para eventos privados<br />
(casamento de amigos, despedi<strong>da</strong>s, um<br />
encarte discográfico que não teve tempo<br />
de ser encartado) e públicos (campanhas<br />
de saúde, um selo postal, a Declaração<br />
dos Direitos <strong>da</strong> Criança de Unicef, etc.).<br />
Joaquín Salvador Lavado Tejón,<br />
filho de republicanos an<strong>da</strong>luzes emigrados,<br />
nasceu em Mendoza, Argentina,<br />
em 1932. Ele mesmo conta que a decisão<br />
de ser desenhista foi toma<strong>da</strong> muito<br />
cedo, com três anos de i<strong>da</strong>de, quando<br />
viu “o que poderia sair de um lápis”. O<br />
lápis em questão estava na mão de seu<br />
tio Joaquín Tejón, que uma noite ficou<br />
tomando conta do menino enquanto<br />
seus pais iam ao cinema.<br />
Sua mãe, que o tinha de convencer<br />
a ir à escola, o deixava desenhar sobre a<br />
mesa <strong>da</strong> cozinha, contanto que depois a<br />
lavasse com água e sabão. Quando um<br />
tio distante teve a má ideia de ironizar<br />
sua decisão de ser desenhista de histórias<br />
em quadrinhos, conquistou um ódio<br />
sem perdão de Joaquinito, que tinha uns<br />
10 anos na época.<br />
Voltou para Buenos Aires em<br />
1954, ci<strong>da</strong>de na qual tinha tentado se<br />
radicar sem êxito e viver do desenho alguns<br />
anos antes, e pouco a pouco, com<br />
a aju<strong>da</strong> do irmão, ele conseguiu se estabelecer.<br />
Chegou a publicar em seis semanários<br />
simultaneamente.<br />
Dez anos mais tarde, já casado<br />
com Alicia Colombo, Quino começa a<br />
publicar Mafal<strong>da</strong>. Já constavam de seu<br />
currículo um livro (Mundo Quino) e uma<br />
exposição individual. Publicou as tiras<br />
durante quase dez anos, diariamente<br />
durante alguns períodos, semanalmente<br />
em outros. Decidiu deixar de desenhálas,<br />
em suas próprias palavras, “porque<br />
tinha de me esforçar muito para não<br />
ser repetitivo, sofria com ca<strong>da</strong> entrega.<br />
Por respeito aos leitores, a meus personagens<br />
e devido a minha maneira de<br />
sentir o trabalho, decidi não as desenhar<br />
mais e continuar com o humor que nunca<br />
deixei de fazer”. Humor inteligente,<br />
ácido, refinado e crítico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e<br />
suas convenções. Para Quino, a pene-<br />
tração de Mafal<strong>da</strong> em outras culturas é<br />
surpreendente: ”As tiras <strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong> são<br />
basea<strong>da</strong>s em tópicos argentinos, e sempre<br />
me pergunto como é que as podem<br />
entender em outras culturas”, declarou<br />
certa vez a um jornal espanhol.<br />
Para muitos, seria uma grande injustiça<br />
que Quino permanecesse na memória<br />
e na história dos quadrinhos apenas<br />
como o criador do universo de Mafal<strong>da</strong><br />
e seus amigos. Uma explicação proposta<br />
por Eco seria mais correta para uma<br />
hipotética futura enciclopédia: “Quino:<br />
desenhista e moralista do século XX. Em<br />
seus cartoons nos oferece uma conotação<br />
lunática e surrealista sobre os aspectos<br />
cotidianos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> íntima de seu tempo;<br />
também criou uma historinha popular na<br />
sua época, chama<strong>da</strong> Mafal<strong>da</strong>”.<br />
A personagem recebeu diversas<br />
homenagens <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que a viu nascer:<br />
um mural na passagem entre as estações<br />
Peru e Catedral no metrô de Buenos Aires,<br />
uma placa comemorativa no edifício<br />
onde residia Quino enquanto a desenhava<br />
(e onde a história se passa), no número<br />
16 17
371 <strong>da</strong> rua Chile, no bairro de San Telmo,<br />
e uma praça batiza<strong>da</strong> com seu nome.<br />
No crime conhecido como “O<br />
massacre de São Patrício”, no qual membros<br />
<strong>da</strong> repressão arma<strong>da</strong> assassinaram<br />
três sacerdotes e dois seminaristas, os assassinos<br />
colocaram sobre a de suas vítimas<br />
um pôster retirado de um dos quartos,<br />
onde Mafal<strong>da</strong> aparece mostrando<br />
um cassetete <strong>da</strong> polícia e dizendo “este é<br />
o pau para amassar ideologias”.<br />
Julio Cortázar, convi<strong>da</strong>do a <strong>da</strong>r<br />
sua opinião sobre a personagem, disse<br />
o seguinte: “Não tem importância<br />
o que eu penso sobre a Mafal<strong>da</strong>. O<br />
importante é o que a Mafal<strong>da</strong> pensa<br />
sobre mim”. De Gabriel García Márquez:<br />
“Depois de ler Mafal<strong>da</strong> me dei<br />
conta que o melhor caminho para a<br />
felici<strong>da</strong>de é a quinoterapia”. De Umberto<br />
Eco: “Considerando que nossos<br />
filhos se preparam para ser, por esco-<br />
lha nossa, uma multidão de Mafal<strong>da</strong>s,<br />
não seria imprudente tratar a Mafal<strong>da</strong><br />
com o respeito que um personagem<br />
real merece”. (Hoje um mundo que<br />
parece estar em grande parte dominado<br />
por Manolitos e Susanitas contradiz<br />
o filósofo italiano). O próprio<br />
Quino, quando questionado sobre<br />
quais seriam as preocupações de Mafal<strong>da</strong><br />
se ela opinasse sobre a atuali<strong>da</strong>de,<br />
disse: “Ela ficaria preocupa<strong>da</strong> pelo<br />
excesso de esperanças coloca<strong>da</strong>s em<br />
Barack Obama, presidente dos Estados<br />
Unidos, e pelo sabor estranho que<br />
os tomates têm atualmente”.<br />
Walter Louzán é tradutor argentino, especialista<br />
em histórias em quadrinhos.<br />
TEATRO<br />
IbERO - AMéRICA<br />
EM CENA<br />
DRAMATURGIA<br />
COMO INTEGRAÇÃO<br />
Mais do que a repercussão característica<br />
dos eventos de grande<br />
porte, o sucesso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
edição do Festival Ibero-Americano<br />
de Teatro sediado pelo<br />
<strong>Memorial</strong> sinaliza a pertinência<br />
de uma iniciativa destina<strong>da</strong> à difusão cultural.<br />
Treze companhias <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, de Portugal<br />
e Espanha se alternaram, por uma semana, no palco<br />
do Auditório Simón Bolívar, com a casa lota<strong>da</strong>.<br />
Os espetáculos foram complementados por mesas,<br />
debates e exposições sobre os vários aspectos que<br />
envolvem a dramaturgia e mobilizaram tanto um<br />
público aficionado quanto estu<strong>da</strong>ntes e espectadores<br />
curiosos em aproveitar a rara oportuni<strong>da</strong>de de<br />
acompanhar a cena teatral de países irmãos e ouvir<br />
18 19
Cena <strong>da</strong> peça M³,<br />
dos espanhóis<br />
Fernando e Jorge<br />
Sánchez-Cabezudo.<br />
as experiências e os desafios que envolvem<br />
essa forma milenar arte.<br />
A mostra que contou com a presença<br />
de grandes nomes <strong>da</strong> área, como<br />
o diretor paulista José Celso Martinez<br />
Correa e o dramaturgo cubano Abelardo<br />
Estorino, ganha nas páginas de Nossa<br />
<strong>América</strong> duas outras contribuições.<br />
Renata Pallottini, também presente na<br />
ocasião, narra as etapas de sua paixão<br />
pela produção teatral hispano-americana,<br />
desde que descobriu ain<strong>da</strong> nos anos<br />
50 do século XX, que “havia vi<strong>da</strong> inteligente<br />
nos países vizinhos”.<br />
Paulo Goulart, outro amante<br />
confesso do teatro, avalia em um<br />
texto escrito especialmente para esta<br />
edição, a importância de sua participação<br />
no festival, no qual encenou a<br />
peça O Homem Inesperado, junto com a<br />
mulher Nicette Bruno.<br />
Um dos objetivos do festival é<br />
aglutinar e confrontar a produção dos<br />
países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, e de Portugal<br />
e Espanha. Muitas <strong>da</strong>s produções trazem<br />
em suas tramas diferenças e semelhanças<br />
que se repetem nos países <strong>da</strong><br />
região. Com isso, o Festival contribui<br />
para enriquecer ain<strong>da</strong> mais a experiência<br />
entre artistas e companhias teatrais.<br />
Com Medea, de Abelardo Estorino,<br />
o mais aclamado dramaturgo de Cuba, a<br />
afirmação <strong>da</strong> crítica e pesquisadora de<br />
teatro Neide Veneziano se confirma.<br />
Para ela “a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> ferve com<br />
uma estética corporal, diferentemente<br />
<strong>da</strong> Europa, onde o teatro é centrado no<br />
texto”. Estorino criou sua Medeia alegórica,<br />
forte, sobretudo em sua coreografia<br />
corporal e em seu delírio.<br />
A peça inaugural, A Noite dos<br />
Palhaços Mudos, obra do cartunista Laerte,<br />
foi encena<strong>da</strong> com a Cia La Mínima.<br />
Como resultado, tivemos uma<br />
arte que rechaça to<strong>da</strong> uma aura mágica<br />
e fala de pessoas que habitam a ci<strong>da</strong>de<br />
e levam a vi<strong>da</strong> tentando fazer o público<br />
rir, e por isso, são perseguidos por<br />
uma seita que pretende eliminá-los.<br />
O teatro atormentado de Nelson<br />
Rodrigues não ficou de fora. O universo<br />
rodrigueano que transcende o teatro<br />
e nos faz refletir sobre as misérias humanas,<br />
colocou em cena dois de seus<br />
textos épicos: Viúva, Porém Honesta,<br />
com o grupo Gatu, e direção de Eloísa<br />
Vitz, e Senhora dos Afogados, com a<br />
Cia Firma de Teatro, e direção de José<br />
Henrique de Paula. Em ambas fica reforçado<br />
o aspecto alegórico e <strong>da</strong>ntesco<br />
sempre presentes nas obras do mítico e<br />
controvertido Nelson Rodrigues.<br />
Se ir ao teatro ain<strong>da</strong> pode ser<br />
sinônimo de divertimento, foi isso<br />
que o público encontrou na peça M³,<br />
comédia –show, dos espanhóis Fernando<br />
e Jorge Sánchez-Cabezudo. Ao<br />
contrário <strong>da</strong> tendência característica<br />
de companhias <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> de<br />
FOTO: DIvULgAÇÃO<br />
se criar em grupo e colocar muita gente<br />
em cena, aqui o único personagem<br />
dá conta de uma atmosfera claustrofóbica<br />
e kafkaniana ao viver situações<br />
absur<strong>da</strong>s e surpreendentes.<br />
O desenvolvimento do teatro no<br />
Continente se dá via colonizadores,<br />
portugueses e espanhóis. Basta dizer<br />
que já nas caravelas dos descobridores<br />
portugueses se faziam representações<br />
teatrais, como observa o escritor Carlos<br />
Francisco Moura, em seu livro Teatro<br />
a Bordo de Naus Portuguesas. As peças<br />
eram sempre rechea<strong>da</strong>s de diálogos e<br />
comédias, folias e chicota<strong>da</strong>s, e tinham,<br />
sobretudo, a finali<strong>da</strong>de de entreter a<br />
tripulação nas longas travessias. Como<br />
afirma Moura “era também uma forma<br />
de difundir nas novas terras descobertas,<br />
as tradições, os cultos e costumes<br />
dos portugueses”. No ideário do teatro<br />
universal, várias peças falam, de<br />
forma humora<strong>da</strong>, sobre as conquistas,<br />
como o espetáculo Ptolomeu e sua<br />
Viagem de Circum-Navegação, de Tchlé<br />
Figueira, com o grupo Art´Imagem e<br />
20 21<br />
FOTO: DIvULgAÇÃO<br />
A Noite dos Palhaços Mudos,<br />
obra do cartunista Laerte.
direção de José Leitão. Centra<strong>da</strong> num<br />
tom de comédia o texto tem uma linguagem<br />
direta e conta histórias de Ptolomeu<br />
Rodrigues, um aventureiro dos<br />
sete mares, natural de Cabo Verde, que<br />
narra suas proezas sexuais vivi<strong>da</strong>s ao<br />
longo de suas viagens.<br />
O teatro popular tem seu espaço<br />
garantido dentro <strong>da</strong> dramaturgia brasileira<br />
e um público cativo. O Cordel do<br />
Amor Sem Fim, de Cláudia Barral, iluminou<br />
o palco do Auditório Simón Bolívar<br />
ao contar a história de Carminha<br />
que gosta de José, que deseja Teresa,<br />
que espera por Antonio, para desespe-<br />
ro de Ma<strong>da</strong>lena. A trama, que se passa<br />
dentro de um ônibus urbano em movimento,<br />
agarra o público pela capaci<strong>da</strong>de<br />
verbal <strong>da</strong> personagem.<br />
No conjunto, as obras que movimentaram<br />
o palco do <strong>Memorial</strong> podem<br />
ser considera<strong>da</strong>s exemplos do caleidoscópio<br />
formado pela fragmentação<br />
de tendências que ocupam os teatros<br />
latino-americanos. Daí a importância<br />
do Festival que, como todos os grandes<br />
eventos do gênero, deu a oportuni<strong>da</strong>de<br />
para o público se atualizar e compreender<br />
os novos conceitos que regem a dramaturgia<br />
contemporânea.<br />
EL TEATRO LATINOAMERICANO<br />
EN bRASIL<br />
A feiticeira Medea,<br />
encena<strong>da</strong> pela Cia Hubert<br />
de Cuba, com direção de<br />
Abelardo Estorino. Cordel do Amor Sem Fim,<br />
drama encenado dentro de um ônibus,<br />
com a Troupe Cia Sinhá Zozima.<br />
FOTO: DIvULgAÇÃO<br />
Minha história de amor com o<br />
teatro latino-americano vem de muito<br />
longe. Desde antes do tempo em que<br />
eu me senti ca<strong>da</strong> vez mais latina, ca<strong>da</strong><br />
vez mais americana, e ca<strong>da</strong> vez mais<br />
estarreci<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> maneira acintosa<br />
como nós, o Brasil, desconhecíamos<br />
a literatura dramática dos nossos mais<br />
próximos vizinhos.<br />
Lembro-me que, na déca<strong>da</strong> de 50<br />
(do século passado ! ), envolvi<strong>da</strong> acidentalmente<br />
com uma revista de poesia<br />
venezuelana que se chamava Lírica Hispana<br />
, travei conhecimento com o texto<br />
dramático de Román Chalbaud (depois<br />
cineasta) e me atrevi a traduzir Réquiem<br />
por un Eclipse , peça de cunho marca-<br />
<strong>da</strong>mente lírico que, na época, me encantou.<br />
O texto provindo <strong>da</strong> Venezuela<br />
foi encenado por amadores e, se mais<br />
não fez, pelo menos me introduziu no<br />
conhecimento <strong>da</strong> existência de vi<strong>da</strong> inteligente<br />
na dramaturgia dos nossos<br />
irmãos latino-americanos.<br />
Mais tarde, em 1969 , já professora<br />
<strong>da</strong> Escola de Arte Dramática e <strong>da</strong><br />
Escola de Comunicações e Artes <strong>da</strong><br />
USP, chefiando uma delegação de estu<strong>da</strong>ntes<br />
que ia ao Festival de Teatro de<br />
Manizales, na Colômbia, pude assistir<br />
a um espetáculo impressionante: Topografia<br />
de un Desnudo, texto de autoria de<br />
Jorge Díaz, chileno , que fora obrigado<br />
a exilar-se na Espanha. O espetáculo<br />
22 23<br />
FOTO: DIvULgAÇÃO
provinha <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>d Católica de<br />
Chile e, surpresa ! – tratava de um assunto<br />
brasileiro, a sinistra “operação<br />
mata-mendigos” que, no começo <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de sessenta, tinha sido leva<strong>da</strong> a<br />
cabo pelo governador <strong>da</strong> Guanabara<br />
de então, Carlos Lacer<strong>da</strong>.<br />
Naturalmente, alertado pelas<br />
notícias de jornais que, aqui, eram<br />
minimiza<strong>da</strong>s, Jorge Diaz escreveu seu<br />
texto, narrando a história de um determinado<br />
mendigo, e de seu entorno,<br />
que era descrito com extremo talento<br />
até o sacrifício final.<br />
Estava comigo nessa viagem a<br />
diretora Teresa Aguiar que, como eu,<br />
se encantou com o espetáculo. Chegando<br />
ao Brasil , procedi a fazer a<br />
tradução, a seu pedido, e ela enviou<br />
o texto para a Censura Federal, como<br />
era obrigatório então, em plena ditadura.<br />
O texto, como também era de<br />
praxe, dormiu por 15 anos em Brasília,<br />
até que, em 1985, conseguimos a<br />
sua liberação, para que Teresa pudesse<br />
dirigir a encenação.<br />
Topografia de um Desnudo estreou<br />
no Teatro do Centro de Convivência de<br />
Campinas, num espetáculo totalmente<br />
revolucionário, como o pedia o texto<br />
e a imaginação <strong>da</strong> diretora. Foi depois<br />
para o Teatro Ruth Escobar, em São<br />
Paulo, com justo êxito .<br />
Recentemente, o diretor peruano<br />
Hugo Villavicenzio me pediu o texto<br />
para uma leitura dramática. Assim foi<br />
feito e, depois, o grupo – chamado<br />
exatamente Conexão <strong>Latina</strong> – efetivou<br />
a montagem, no teatro Fábrica, em São<br />
Paulo, renovando a visão do problema,<br />
sempre atual, dos mendigos e moradores<br />
de rua do mundo todo.<br />
Atualmente, um longa-metragem,<br />
também dirigido por Teresa<br />
Aguiar está pronto para ser lançado.<br />
E tudo partiu de uma visão surpreendente,<br />
nos Andes colombianos, por<br />
obra de um chileno exilado, <strong>da</strong> tragé-<br />
dia carioca que, aqui no Brasil, fomos<br />
obrigados a silenciar.<br />
No entretanto, outra coincidência<br />
feliz me levou, em 1988, a ser convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
para <strong>da</strong>r classes na Escuela Internacional<br />
de Cine y TV , <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de San Antonio de los Baños, Cuba.<br />
Era o início de uma longa convivência<br />
com artistas e escritores cubanos, paralelamente<br />
a alunos que provinham dos<br />
mais remotos países do mundo – Índia,<br />
Burkina-Fasso , Guiné-Bissau , Vietnã,<br />
Japão – e também de vários países <strong>da</strong><br />
nossa <strong>América</strong>, alguns dos quais quase<br />
não falavam espanhol.<br />
Foi assim que entrei em contato<br />
com escritores de teatro cubanos:<br />
Virgilio Piñera e seu teatro do absurdo<br />
avant la letre, Carlos Felipe, e seu<br />
interessantíssimo personagem, Yarini,<br />
( Réquiem por Yarini) que tanto se tem<br />
mostrado e tantos mistérios ain<strong>da</strong> tem<br />
a mostrar e o mais surpreendente ain<strong>da</strong>,<br />
José R. Brene, um marinheiro de<br />
profissão, que criou uma <strong>da</strong>s mais populares<br />
peças cubanas do século, Santa<br />
Camila de La Habana Vieja .<br />
Lembro-me que a visão dessa<br />
peça, tão habanera e tão popular me fez<br />
pensar em Gianfrancesco Guarnieri,<br />
que, por esse tempo, estava inaugurando<br />
finalmente no Brasil uma linha de produção<br />
dramatúrgica que unia exatamente<br />
essas três necessi<strong>da</strong>des: a do tea tro<br />
acessível ao público comum, a do teatro<br />
predominantemente brasileiro e a do teatro<br />
de participação política.<br />
Muitos anos se têm passado sobre<br />
a minha constante inclinação pela<br />
arte que nos congrega, a nós todos,<br />
latinos e hispano-americanos. E esse<br />
entusiasmo não morre e não morrerá.<br />
Nossa participação no II Festival<br />
Ibero-Americano de Teatro, foi de uma<br />
integração muito agradável, alegre e ao<br />
mesmo tempo, é claro, cultural!<br />
Quero ressaltar que nossa atuação<br />
em O Homem Inesperado, de Yasmina<br />
Reza, tem esse poder de envolver<br />
quem assiste.<br />
A magia do teatro faz com que<br />
todo o público viaje em nossa companhia,<br />
já que a ação se passa na cabine<br />
de um trem,(uma viagem de Paris à<br />
Frankfurt) e numa integração poética e<br />
mágica, todo o público está ali conosco,<br />
participando, rindo, se emocionando<br />
e se surpreendendo com essa relação<br />
anárquica e diverti<strong>da</strong>.<br />
Quero ressaltar que é uma autora<br />
francesa e que a encenação, com Emílio<br />
de Mello na direção, e to<strong>da</strong> a equipe,<br />
criou um espetáculo brasileiro, sem perder<br />
suas características universais.<br />
Somos dois atores e mais de vinte<br />
personagens que, como na literatura<br />
ca<strong>da</strong> qual imagina à sua maneira!<br />
Foi uma viagem incrível com cerca<br />
de 900 pessoas viajando conosco na<br />
magia do teatro.<br />
24 25<br />
FOTO: DIvULgAÇÃO<br />
3<br />
ALEGRIA E CULTURA NO MEMORIAL<br />
Renata Pallottini é poeta, dramaturga, ensaísta<br />
e tradutora. Paulo Goulart é ator de teatro e de televisão.<br />
Paulo Goulart e Nicette Bruno,<br />
encenam O Homem Inesperado,<br />
de Yamina Reza.
SOCIOLOGIA<br />
FUTURO SEM COR<br />
PARA QUEM NASCEU<br />
MULHER<br />
DA SUBMISSÃO À<br />
MILITÂNCIA NA GUATEMALA<br />
TÂNIA RABELLO<br />
Distante <strong>da</strong> imagem de cartãopostal<br />
que retrata as mulheres<br />
latino-americanas de feição indígena,<br />
rostos iluminados pelo<br />
sol, com as belas roupas típicas,<br />
carregando seus bebês nas<br />
costas presos por faixas artesanais, e vendendo<br />
um rico artesanato, na Guatemala a reali<strong>da</strong>de<br />
não é tão colori<strong>da</strong> para quem teve por destino<br />
nascer com sexo feminino. É duro o cotidiano<br />
dessas mulheres em particular, e do povo<br />
indígena como um todo. Majoritário no país -<br />
mais de 50 por cento - e, por várias razões, muito<br />
pouco miscigenado, ele mantém seus traços<br />
culturais, e preserva os mais de 20 idiomas falados,<br />
a alimentação, a arte, a música e os trajes.<br />
Os restos materiais <strong>da</strong> civilização<br />
de seus antepassados, os maias, com<br />
palácios, templos e espaços cerimoniais,<br />
que foram alvo <strong>da</strong> conquista dos<br />
astecas no século XV e, logo depois,<br />
dos espanhóis, são objeto de visitação<br />
turística em diferentes pontos do país.<br />
Em linhas gerais, hoje os descendentes<br />
desse povo milenar vivem em comuni<strong>da</strong>des<br />
e zonas rurais, nas quais praticam<br />
a agricultura, ou trabalham nas culturas<br />
extensivas de café, cana e algodão<br />
<strong>da</strong> fatia mais privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> população,<br />
esta, geralmente de origem espanhola.<br />
As mulheres indígenas também vivem<br />
do que fazem, ou melhor, do que tecem:<br />
mantas colori<strong>da</strong>s, os xales, as faixas,<br />
blusas, saias e outras vestes de características<br />
muito próprias vendi<strong>da</strong>s nas ci<strong>da</strong>des<br />
ou nos povoados. Como Antigua, um<br />
grande mercado para o artesanato, ci<strong>da</strong>de<br />
histórica tomba<strong>da</strong>, mostruário <strong>da</strong> opulência<br />
que a Espanha colheu e plantou na<br />
<strong>América</strong>, depois que acabou de destruir<br />
26 27<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
O baixo índice de miscigenação<br />
responde pela preservação<br />
dos laços culturais.
Para assegurar a subsistência, ocupações pouco qualifica<strong>da</strong>s e mal-remunera<strong>da</strong>s.<br />
a civilização anterior. Em centros urbanos<br />
maiores as mulheres ingressam ain<strong>da</strong><br />
como prestadoras de diferentes serviços,<br />
exercem trabalhos de balconistas, emprega<strong>da</strong>s<br />
domésticas e operárias. A Guatemala<br />
tem uma situação econômica difícil.<br />
Mais <strong>da</strong> metade <strong>da</strong> população vive abaixo<br />
<strong>da</strong> linha <strong>da</strong> pobreza. Frequentemente as<br />
mulheres têm de assegurar a subsistência<br />
<strong>da</strong> família e, assim, aceitar ocupações<br />
pouco qualifica<strong>da</strong>s e mal-remunera<strong>da</strong>s.<br />
É justamente nas periferias <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des<br />
onde são obriga<strong>da</strong>s a se radicar por<br />
falta de recursos financeiros que a vi<strong>da</strong><br />
se torna arrisca<strong>da</strong>. É onde elas mais são<br />
vítimas de um ver<strong>da</strong>deiro massacre silencioso<br />
que há anos ocorre em to<strong>da</strong> a Guatemala<br />
- assim como ocorre em alguns<br />
outros países latino-americanos, em outra<br />
escala. Os números variam muito, no<br />
entanto, tem-se conta de que pelo menos<br />
uma mulher morre por dia no país de maneira<br />
violenta, assassinatos muitas vezes<br />
antecedidos por violações sexuais e outras<br />
formas de tortura. Documento <strong>da</strong> Anistia<br />
Internacional de setembro de 2008 informava<br />
que, em 2007, pelo menos 590 mulheres<br />
foram assassina<strong>da</strong>s na Guatemala,<br />
conforme informações <strong>da</strong> polícia <strong>da</strong>quele<br />
país. Embora a explicação para o fenômeno<br />
passe inicialmente pela ação criminosa<br />
de traficantes de drogas e gangues que<br />
vivem, sobretudo, nas periferias <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des,<br />
a razão mais profun<strong>da</strong>, segundo especialistas,<br />
é a de que a Guatemala, assim<br />
como as nações latino-americanas, tem<br />
uma socie<strong>da</strong>de com forte viés machista.<br />
O machismo, por si só, explica em<br />
parte a violência sexual. Adicione-se a isso<br />
o fato de a Guatemala ter saído, há pouco<br />
mais de uma déca<strong>da</strong>, de uma Guerra Civil<br />
que durou 36 anos e que tinha como uma<br />
<strong>da</strong>s estratégias de dominação do Estado<br />
contra os insurgentes a violência sexual.<br />
Já em 1999, três anos depois do fim <strong>da</strong><br />
guerra civil que assolou o país a partir de<br />
1960, a relatora especial <strong>da</strong> ONU sobre<br />
a Violência Contra as Mulheres, Radhika<br />
Coomaraswamy, afirmava: “A natureza<br />
aparentemente endêmica <strong>da</strong>s violações<br />
em tempos de guerra foi institucionaliza<strong>da</strong><br />
por meio <strong>da</strong> prostituição força<strong>da</strong><br />
e <strong>da</strong> escravidão <strong>da</strong>s mulheres civis”.<br />
Em depoimento prestado especialmente<br />
para a revista Nossa <strong>América</strong>,<br />
Sonia E. López Alvares, do Centro para<br />
La Acción Legal en Derechos Humanos<br />
(CALDH, www.caldh.org, com sede<br />
na Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Guatemala), cita o relato<br />
Memorias del Silencio, explicando o<br />
porquê <strong>da</strong> violência sexual : “Uma prática<br />
generaliza<strong>da</strong> e sistemática realiza<strong>da</strong><br />
por agentes do Estado, constituindo-se<br />
numa ver<strong>da</strong>deira arma de terror, uma<br />
grave violação dos direitos humanos e<br />
do direito internacional humanitário”.<br />
“As vítimas diretas foram principalmente<br />
mulheres e meninas, mas também<br />
foram ultrajados meninos e homens.<br />
Pelo seu modus operandi, as violações<br />
sexuais originaram o êxodo de mulheres<br />
e a dispersão de comuni<strong>da</strong>des inteiras,<br />
rompimento de laços conjugais e sociais,<br />
isolamento social e vergonha comunitária,<br />
provocaram abortos e infanticídios;<br />
impediram matrimônios e nascimentos<br />
dentro do grupo, facilitando a destruição<br />
dos grupos indígenas”, continua<br />
Sonia, alertando que “o Estado <strong>da</strong> Guatemala<br />
tem uma grande dívi<strong>da</strong> histórica<br />
com os povos originários <strong>da</strong> Guatemala,<br />
pois sua ação delibera<strong>da</strong> durante os<br />
anos de guerra civil foi responsável por<br />
desestruturar e romper o tecido social”.<br />
“Os fatos de termos um sistema<br />
patriarcal e sermos uma socie<strong>da</strong>de pósconflito<br />
realmente fizeram com que, ao<br />
machismo que já existia, se somassem<br />
a discriminação e uma per<strong>da</strong> de valores.<br />
Ou seja, o machismo na Guatemala<br />
não conhece valores, nem limites sociais,<br />
étnicos e culturais, por isso não mede<br />
suas consequências”, diz outra ativista<br />
de direitos humanos Norma Cruz, que<br />
iniciou na Guatemala, em 2001, as ativi<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ción Sobrevivientes<br />
28 29
Vi<strong>da</strong> difícil<br />
no campo e na<br />
periferia <strong>da</strong>s<br />
ci<strong>da</strong>des.<br />
(www.sobrevivientes.org), em prol <strong>da</strong>s<br />
mulheres vítimas <strong>da</strong> violência naquele<br />
país. Além disso, boa parte <strong>da</strong> população<br />
civil ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong> arma<strong>da</strong>, fruto também<br />
do prolongado conflito interno, o que<br />
facilita a ocorrência de atitudes violentas.<br />
A situação <strong>da</strong> mulher guatemalteca<br />
é complexa, acredita Norma Cruz.<br />
“Ela sofre os efeitos <strong>da</strong> pobreza, <strong>da</strong> exclusão<br />
e <strong>da</strong> discriminação”, diz. “Tudo<br />
isso permeado pela impuni<strong>da</strong>de, por<br />
uma socie<strong>da</strong>de sitia<strong>da</strong> pelo crime organizado<br />
e uma severa debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
instituições do Estado guatemalteco.”<br />
No pensamento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de machista,<br />
complementa Sonia E. López Alvares,<br />
essas manifestações de violência<br />
evidenciam as relações historicamente<br />
assimétricas entre mulheres e homens,<br />
“numa socie<strong>da</strong>de estrutura<strong>da</strong> sobre a<br />
base <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> opressão e<br />
<strong>da</strong> discriminação contra as mulheres.”<br />
Com o fim <strong>da</strong> Guerra Civil e a assinatura<br />
dos Acordos de Paz, em 1996,<br />
porém, os diversos povos indígenas que<br />
coexistem no país elevaram sua voz para<br />
reclamar sobre sua situação de opressão e<br />
submissão. O que não tornou, porém, as<br />
coisas mais fáceis, já que, segundo Sonia,<br />
esses acordos ain<strong>da</strong> não significaram, na<br />
prática, nenhum avanço para os povos originários<br />
<strong>da</strong> Guatemala. “O compromisso<br />
do Estado com a luta dos povos indígenas<br />
e particularmente com as mulheres maias<br />
tem sido bastante difícil”, reafirma Sonia.<br />
Tanto que, em 31 de março último,<br />
houve uma grande manifestação nas ruas<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Guatemala para exigir do<br />
atual governo federal, presidido por Álvaro<br />
Colom, o efetivo cumprimento <strong>da</strong>queles<br />
acordos, particularmente os Acordos<br />
sobre Identi<strong>da</strong>de e Direitos dos Povos<br />
Indígenas, assinados na mesma ocasião,<br />
14 anos atrás. “Na elaboração dos acordos<br />
houve a participação ativa <strong>da</strong>s mulheres<br />
indígenas, que conseguiram incluir<br />
no texto suas deman<strong>da</strong>s por uma participação<br />
mais ativa na socie<strong>da</strong>de e maior<br />
poder de decisão”, complementa Sonia.<br />
Norma Cruz acredita que têm havido<br />
alguns avanços <strong>da</strong>s instituições governamentais,<br />
por exemplo no Congresso<br />
<strong>da</strong> República, que no ano passado aprovou<br />
a Lei do Femicídio, e recentemente a<br />
Lei de Trata, que tipifica alguns aspectos<br />
de violência sexual e do tráfico ilícito de<br />
pessoas e mulheres. “Além disso, no caso<br />
específico de violência contra a mulher,<br />
no ano passado quatro casos de assassinatos<br />
de mulheres chegaram ao efetivo<br />
julgamento e, na Polícia Civil, temos contado<br />
com o real compromisso <strong>da</strong> atual<br />
diretora com casos de mulheres violenta<strong>da</strong>s”,<br />
diz Norma, que iniciou sua luta há<br />
oito anos, após ter sua filha viola<strong>da</strong> pelo<br />
próprio pai, seu ex-marido, e deparar-se<br />
com todo tipo de preconceito <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>-<br />
Excluí<strong>da</strong>s por sua condição de classe, de gênero e étnica.<br />
de, incluindo principalmente dificul<strong>da</strong>des<br />
de punir o agressor no âmbito <strong>da</strong> Justiça.<br />
“Este fato lamentável me levou<br />
a conhecer as limitações <strong>da</strong> Justiça,<br />
os níveis de impuni<strong>da</strong>de e tudo o que<br />
vive uma sobrevivente <strong>da</strong> violência,<br />
além dos custos não somente financeiros,<br />
mas, sobretudo, humanos para<br />
ter acesso à Justiça na Guatemala.”<br />
Sonia, <strong>da</strong> CDHL, cita também<br />
o fato de Rigoberta Menchú ter recebido<br />
o Prêmio Nobel <strong>da</strong> Paz em<br />
1992 por sua luta em favor dos povos<br />
indígenas <strong>da</strong> Guatemala como<br />
um avanço e grande motivo de orgulho<br />
para as ativistas de direitos humanos<br />
no país, e, sobretudo, as ativistas<br />
dos direitos <strong>da</strong>s mulheres. “Significou<br />
um reconhecimento a sua luta como<br />
mulher e como indígena quiché,<br />
além de uma motivação para nós.”<br />
Tais avanços citados por Norma<br />
e Sônia ain<strong>da</strong> são, porém, a ponta<br />
do iceberg. “A luta é difícil na Guatemala<br />
porque as mulheres vivem<br />
uma tripla opressão”, explica Norma.<br />
“Elas são excluí<strong>da</strong>s por sua condição<br />
de classe, por sua condição de gênero<br />
e por sua condição étnica”, continua.<br />
“Diante disso, sobretudo as mulheres<br />
maias têm de ser triplamente rebeldes:<br />
frente aos homens, frente ao sistema<br />
e frente às próprias mulheres do<br />
interior de suas comuni<strong>da</strong>des que as<br />
tentam sufocar e torná-las invisíveis.”<br />
Tânia Rabello é jornalista de O Estado<br />
de S.Paulo.<br />
30 31
ANÁLISE<br />
GOOOOOL!<br />
FUTEbOL é COISA SéRIA<br />
O ESPORTE DAS<br />
MULTIDÕES<br />
JOSÉ SEBASTIÃO WITTER<br />
Falar sobre futebol é falar sobre o fenômeno<br />
sócio-ecônomico-político<br />
mais significativo dos séculos XX e<br />
XXI. Basta pensar logo de pronto<br />
nas cifras financeiras a que se referem<br />
os dirigentes desse esporte em<br />
todo o mundo. É algo que vem sendo muito discutido<br />
em todos os níveis e em to<strong>da</strong>s as esferas, e não só<br />
do poder. Quando falo do poder falo dos governos<br />
de diferentes países quando o assunto são os macro<br />
eventos, como as Copas do Mundo, as Copas Européias,<br />
Asiáticas, Americanas ou Africanas; mas também<br />
<strong>da</strong>queles homens que dirigem federações esportivas<br />
<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de e ain<strong>da</strong> dos dirigentes de clubes.<br />
Hoje, quando se usa a expressão<br />
“falar de futebol é falar de coisa séria”,<br />
quase ninguém a considera algo inusitado,<br />
mas quando foi cunha<strong>da</strong> (quem<br />
sabe por quem?) era olha<strong>da</strong> com espanto.<br />
Afinal o futebol não era considerado<br />
um esporte de realce ou até mesmo a<br />
ser respeitado, ou melhor, era visto, no<br />
Brasil com certeza, como algo marginal.<br />
Nem era assunto a ser tratado em revistas<br />
acadêmicas. Atualmente passou a<br />
ser tema muito tratado em to<strong>da</strong>s as universi<strong>da</strong>des<br />
e é objeto de teses de mestrado<br />
e doutorado. Desde sempre achei<br />
que falar de futebol era falar de assunto<br />
importante porque dele tratar era cui<strong>da</strong>r<br />
do sentimento coletivo, de algo que explicava<br />
o ‘povo’ e sua ‘paixão’.<br />
Durante muito, muito tempo, o<br />
Brasil foi qualificado como o “país do<br />
futebol”. Era como nós queríamos ser<br />
vistos, e sobre isso muito se escrevia,<br />
ain<strong>da</strong> porque a circulação <strong>da</strong> informação<br />
era de outra ordem. Os assuntos todos<br />
demoravam a circular e o futebol era<br />
tema tratado em um parágrafo, quando<br />
muito, pelos grandes jornais. Era algo<br />
secundário mesmo.<br />
O Século XX se incumbiu de modificar<br />
isso e, em especial, depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong><br />
Guerra Mundial e com o advento<br />
<strong>da</strong>s imagens via televisão.<br />
Quando se fala de futebol é preciso<br />
ter em mente o que são, na atuali<strong>da</strong>de<br />
mais que sempre, mas ‘desde sempre’,<br />
os jogadores de futebol. Os futebolistas<br />
são ver<strong>da</strong>deiros ídolos. Eles acabam de<br />
tal forma envolvidos, por tudo que os<br />
cercam, que se transformam (com seus<br />
clubes) em uma ‘metáfora religiosa’.<br />
32 <strong>33</strong><br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
Hilário Franco Junior, em seu recente<br />
livro A Dança dos Deuses - Futebol,<br />
Socie<strong>da</strong>de, Cultura foi muito feliz ao destacar:<br />
“Os jogadores são ídolos, a camisa<br />
e a bandeira do clube, ‘manto sagrado’,<br />
os gols aparentemente ilógicos, espíritas,<br />
gestos religiosos (ortodoxos ou não)<br />
cercam todo ambiente futebolístico. As<br />
defesas incríveis são ‘milagrosas’, e seus<br />
autores, ‘santos’. O Maracanã é o ‘templo<br />
sagrado do futebol brasileiro’, o velho<br />
estádio do Barcelona (Les Corts) era<br />
chamado ‘catedral’, como hoje o ‘estádio<br />
<strong>da</strong> Luz’, do Benfica. Sintetiza tudo isso<br />
um cartaz exibido por um torcedor durante<br />
a Copa de 1994, ‘USA learn! Soccer<br />
is religion’ (Apren<strong>da</strong>m Estados Unidos!<br />
Futebol é religião).”<br />
Vamos também pensar como essa<br />
‘metáfora’ e até a religiosi<strong>da</strong>de são vivi<strong>da</strong>s<br />
na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e em decorrência<br />
no Brasil. Atualmente a gente tem que<br />
pensar que o futebol não tem fronteiras<br />
e se algo é global em “tempos de globalização”,<br />
esse algo é o futebol.<br />
Vamos restringir o espaço geográfico<br />
às dimensões <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, pensando<br />
do México à Argentina, somente<br />
para efeitos específicos desses comentários.<br />
Logo somos obrigados a pensar em<br />
<strong>da</strong>tas marcantes: 1930, 1950, 1962 e 1970.<br />
A primeira é o marco inicial dos campeonatos<br />
do Mundo. Tudo começou na <strong>América</strong><br />
do Sul e dentro dela em Montevidéu,<br />
no Uruguai. O ano de 1950, outro marco<br />
sul - americano: Copa do Mundo no<br />
Maracanã, no Rio de Janeiro – Brasil. E,<br />
desde então, o Maracanã virou o templo<br />
do futebol, a comprovar a ideia <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong>de<br />
que envolve o esporte.<br />
Se a Copa uruguaia foi o início<br />
de tudo, a brasileira foi a maior tragédia<br />
vivi<strong>da</strong> por um país no mundo contemporâneo.<br />
Embora fosse um evento esportivo,<br />
a derrota do Brasil, em pleno<br />
Maracanã e para o Uruguai é algo tão<br />
marcante que os brasileiros ain<strong>da</strong> vivem<br />
o acontecimento e sofrem a ca<strong>da</strong> disputa<br />
esportiva entre Brasil e Uruguai.<br />
É preciso levar em conta que à medi<strong>da</strong><br />
que o tempo passa e as gerações se sucedem<br />
a situação se altera. Os jovens<br />
não só não têm as mesmas sensações<br />
vivi<strong>da</strong>s pelos seus antecessores, como<br />
nem mesmo têm a mesma paixão pelo<br />
próprio futebol. E os jogadores brasileiros<br />
têm sido infinitamente melhores que<br />
os uruguaios não só nas disputas entre<br />
as seleções, mas também entre os clubes<br />
de ca<strong>da</strong> país. Entretanto, os grandes rivais<br />
do Brasil, tanto jogadores como a<br />
seleção, são os argentinos. Até mesmo<br />
se pensarmos tão somente em aspectos<br />
comerciais, os jogadores brasileiros são<br />
os mais buscados pelos europeus, árabes,<br />
norte-americanos, africanos... . E não só<br />
jogadores, os técnicos também.<br />
Não ousaria <strong>da</strong>r um número, mas<br />
são muitos os atletas futebolistas que<br />
deixam o Brasil anualmente. E para disputar<br />
todos os campeonatos e de to<strong>da</strong>s<br />
as categorias. Na maioria, deixam o país<br />
quando ain<strong>da</strong> são desconhecidos; ao<br />
contrário do que sucedia até o último<br />
quartel do século XX, quando só os craques<br />
renomados saíam do país.<br />
Mas, se 1950 foi uma <strong>da</strong>ta a marcar<br />
o Brasil pela derrota, o ano de 1962<br />
foi o <strong>da</strong> confirmação de uma geração<br />
vitoriosa. E, de certa forma, a consagração<br />
de muitos dos craques brasileiros<br />
que haviam <strong>da</strong>do ao Brasil, a primeira<br />
grande vitória: a de 1958. E uma vitória<br />
conquista<strong>da</strong> lá na Suécia, fora de casa,<br />
como é jargão no futebol.<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> (em especial a<br />
<strong>América</strong> do Sul) começava a viver a hegemonia<br />
do Brasil. A ascensão do país<br />
na área futebolística e a liderança indiscutível,<br />
no entanto, aconteceria com a<br />
Copa de 1970, disputa<strong>da</strong> no México e<br />
que <strong>da</strong>ria o tricampeonato ao Brasil.<br />
34 35
O Brasil vivia um período de exceção<br />
política, com uma ditadura militar,<br />
que se aproveitou desse feito para<br />
melhor se situar no governo e ser mais<br />
bem aceita pelo povo. Aliás, como<br />
aconteceria na Argentina em 1978.<br />
O uso do futebol, por qualquer<br />
governante, mas em especial pelos regimes<br />
de exceção é uma marca em todo<br />
continente centro e sul-americano. Não<br />
cabe aqui este debate.<br />
Todo o continente latino-americano<br />
é muito ligado ao fenômeno futebol.<br />
Tanto a <strong>América</strong> Central como a<br />
<strong>América</strong> do Sul têm nele um referencial<br />
indiscutível e as seleções nacionais encerram<br />
em si o sentimento patriótico e<br />
seus jogadores são heróis e representam<br />
sempre a própria Pátria. Um livro recentemente<br />
editado no Brasil pela Companhia<br />
<strong>da</strong>s Letras – A Guerra do Futebol,<br />
de Ryszard Kapuscinski – um excelente<br />
jornalista polonês, relata uma gerra-relâmpago<br />
entre El Salvador e Honduras,<br />
em 1969, quando a disputa entre as duas<br />
seleções deu motivo a uma ver<strong>da</strong>deira<br />
guerra; que felizmente durou muito<br />
pouco, mas marcou época.<br />
Desde um incidente mais marcante<br />
como este até as ‘brigas’ entre torci<strong>da</strong>s,<br />
em quaisquer dos países onde sejam<br />
disputados, campeonatos regionais ou<br />
mundiais demonstram a paixão pelo esporte.<br />
Muitas vezes um fanatismo, que,<br />
mais uma vez, nos conduz à metáfora<br />
religiosa de Hilário Franco Junior.<br />
Na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> como, aliás,<br />
em todo mundo, é indiscutível que o futebol<br />
é não só uma paixão, mas também<br />
o ver<strong>da</strong>deiro ‘esporte <strong>da</strong>s multidões’,<br />
como já foi qualificado, em determinado<br />
momento de sua história.<br />
Não é tema que se esgote, mas<br />
que levanta numerosas questões, e envolve<br />
to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des humanas e em<br />
todos os quadrantes de nosso mundo.<br />
José Sebastião Witter é professor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de<br />
Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong><br />
USP, e ministrou o primeiro curso de História<br />
do Futebol na mesma universi<strong>da</strong>de.<br />
36 37
TECNOLOGIA<br />
bIbLIOTECA DO MEMORIAL<br />
INFORMATIZADA<br />
DEMOCRATIZAÇÃO<br />
DA INFORMAÇÃO<br />
MARCIA ROSETTO<br />
Nos últimos anos do século XX as<br />
tecnologias multimídia trouxeram<br />
mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> mesma magnitude<br />
que as promovi<strong>da</strong>s pelos processos<br />
de impressão instituídos no século<br />
XV com Gutemberg. Tais mu<strong>da</strong>nças<br />
ampliaram-se ain<strong>da</strong> mais quando foi aberta a<br />
rede Internet para o uso público, o que exigiu novos<br />
padrões para o tratamento <strong>da</strong> informação e protocolos<br />
de comunicação compatíveis com a deman<strong>da</strong><br />
crescente por informações em meio eletrônico, paulatinamente,<br />
consoli<strong>da</strong>dos por bibliotecas, arquivos,<br />
museus e serviços de informação. A organização de<br />
Bibliotecas Virtuais, Eletrônicas e Digitais fez parte<br />
desse processo, e hoje existem numerosas possibili<strong>da</strong>des<br />
de oferta de informações com essas tecnologias<br />
cria<strong>da</strong>s para esse fim e inseri<strong>da</strong>s nas<br />
agen<strong>da</strong>s de importantes universi<strong>da</strong>des,<br />
institutos de pesquisas e na implementação<br />
de políticas nacionais e internacionais.<br />
Várias definições foram concebi<strong>da</strong>s<br />
para Biblioteca Virtual e Digital, muito<br />
utiliza<strong>da</strong>s como sinônimos de Biblioteca<br />
Eletrônica. Esse tipo de biblioteca tem<br />
por objetivo promover o acesso remoto<br />
a conteúdos e serviços tradicionais de<br />
bibliotecas com a integração de recursos<br />
e serviços eletrônicos disponibilizados<br />
em redes de computadores, interagindo<br />
o usuário, a informação em formato<br />
digital e as redes eletrônicas. São ain<strong>da</strong><br />
muito jovens para terem uma definição<br />
permanente, e caberá aos profissionais<br />
de informação <strong>da</strong>s novas gerações <strong>da</strong>rem<br />
continui<strong>da</strong>de aos estudos e elaborar<br />
uma definição compatível com o mundo<br />
digital em construção.<br />
As bibliotecas virtuais/digitais são<br />
ambientes complexos, que exigem o uso<br />
de padrões e procedimentos internacionais<br />
e contemplam os seguintes aspectos:<br />
o propósito <strong>da</strong> instalação de uma<br />
biblioteca nesses moldes; a seleção e o<br />
gerenciamento de conteúdos adequados;<br />
a criação de meta/<strong>da</strong>dos de acordo com<br />
os padrões internacionais; tecnologias de<br />
informação, hardware, software e workflow;<br />
definição de serviços a serem oferecidos;<br />
organização e gestão de biblioteca<br />
virtual/digital; e governança.<br />
Além disso, é importante que os governos<br />
e as instituições reconheçam a importância<br />
estratégica desses mecanismos<br />
e estimulem a instalação desses recursos<br />
como agentes essenciais na promoção <strong>da</strong><br />
educação, <strong>da</strong> paz e dos valores humanos,<br />
conforme identificado em programas de<br />
inclusão social e digital propostos pela<br />
Unesco. A concepção de uma biblioteca<br />
virtual/digital deve ser realiza<strong>da</strong> como<br />
um instrumento para propiciar o acesso<br />
universal a conhecimentos e informações<br />
constituídos em meio digital e também<br />
em meios tradicionais, mas antes de tudo<br />
deve constituir-se numa ferramenta para<br />
a democratização <strong>da</strong> informação e para a<br />
conexão de culturas em to<strong>da</strong>s as fronteiras<br />
geográficas e sociais.<br />
Considerando esses fatores e as<br />
iniciativas já realiza<strong>da</strong>s até o presente mo-<br />
38 39<br />
FOTO: REPRODUÇÃO
mento em níveis internacional, regional e<br />
local, a Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> desenvolveu o Projeto para a criação<br />
<strong>da</strong> Biblioteca Virtual <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
– BV@L. O propósito é estabelecer<br />
conteúdos em meio digital com o objetivo<br />
de divulgar e promover o acesso em nível<br />
internacional às informações, ao conhecimento<br />
e à herança cultural <strong>da</strong> região, bem<br />
como ampliar a divulgação do conhecimento<br />
gerado pela própria Fun<strong>da</strong>ção que<br />
tem como principal missão promover a<br />
difusão cultural, política, econômica e social<br />
dos países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> tem como uma<br />
<strong>da</strong>s principais características a diversi<strong>da</strong>de<br />
cultural e, alia<strong>da</strong> ao potencial <strong>da</strong>s riquezas<br />
naturais e ao patrimônio existente na<br />
região, considerou-se essencial a difusão<br />
desses recursos e a promoção de seu<br />
acesso tanto para as pessoas que vivem<br />
Lançamento <strong>da</strong> biblioteca eletrônica <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
nesses países, como também para outras<br />
regiões em nível mundial. O desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> Biblioteca Virtual <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> – BV@L como instrumento de<br />
convergência de informações e conhecimento<br />
pode contribuir nesse processo e<br />
<strong>da</strong>r maior visibili<strong>da</strong>de junto aos circuitos<br />
de comunicação nacionais e internacionais<br />
e colaborar na formulação de políticas<br />
públicas e institucionais.<br />
Trata-se de um ferramental sem<br />
similari<strong>da</strong>de na região e, com o apoio<br />
institucional <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de Amparo<br />
à Pesquisa do Estado de São Paulo<br />
– Fapesp e adoção <strong>da</strong>s metodologias e<br />
tecnologias <strong>da</strong> Bireme, a Fun<strong>da</strong>ção do<br />
<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> pôde, por<br />
meio desse projeto, adicionar um importante<br />
canal de compartilhamento de<br />
informações na Rede Internet.<br />
A BV@L tem como principais objetivos<br />
disseminar informação e conhecimento<br />
sobre a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, nos aspectos<br />
<strong>da</strong>s humani<strong>da</strong>des, ciências e artes<br />
produzidos pelo <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>; organizar e divulgar recursos de<br />
informação sobre a região, disponíveis<br />
em seu acervo e na Internet em nível<br />
nacional, regional e internacional; aplicar<br />
mecanismos qualificados de acesso, recuperação<br />
e disseminação <strong>da</strong> produção<br />
cultural, artística e técnico-científica gera<strong>da</strong><br />
por ativi<strong>da</strong>des de ensino, pesquisa<br />
e extensão cultural de instituições representativas<br />
na área; dispor interface em<br />
português, espanhol e inglês.<br />
As principais fontes de informação<br />
disponibiliza<strong>da</strong>s são: bases de <strong>da</strong>dos<br />
bibliográficos e vídeos especializados na<br />
área, com links para documentos digitalizados<br />
quando disponível; pesquisa por<br />
temas especialmente organizados para<br />
facilitar a busca pelo usuário; diretório<br />
de países <strong>da</strong> região com descrição e informações<br />
previamente seleciona<strong>da</strong>s de<br />
sites na Internet; diretórios de sites sobre<br />
Artes, Arquivos, Bibliotecas, Fun<strong>da</strong>ções,<br />
Governo, Instituições, Literatura, Mu-<br />
FOTO: MEMORIAL<br />
seus, Publicações eletrônicas, entre outros,<br />
com foco nos países e na <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> em geral; e diretório de eventos<br />
realizados pela Fun<strong>da</strong>ção para a promoção<br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Vários são os segmentos digitalizados.<br />
A começar <strong>da</strong> base de <strong>da</strong>dos que<br />
reúne os registros bibliográficos do acervo<br />
disponível na Biblioteca Latino-americana<br />
Victor Civita, com mais de 25 mil<br />
registros <strong>da</strong> coleção especializa<strong>da</strong> e que se<br />
constitui de livros, periódicos, folhetos,<br />
catálogos e recortes de jornais. Também<br />
constam a documentação doa<strong>da</strong> pela crítica<br />
de arte Aracy Amaral e a coleção do<br />
Ilam - Instituto Latino-Americano – Coleção<br />
André Franco Montoro, doa<strong>da</strong> ao<br />
<strong>Memorial</strong>, com cerca de 10.000 itens.<br />
Há também a base de <strong>da</strong>dos que<br />
reúne os registros bibliográficos <strong>da</strong> coleção<br />
de vídeos disponível na Biblioteca,<br />
aproxima<strong>da</strong>mente 2 mil registros<br />
de ficção e documentários (fitas VHS e<br />
DVD´s) <strong>da</strong> produção cinematográfica<br />
mundial e, principalmente, latino-americana,<br />
incluindo produções que marcaram<br />
época como filmes de Cantinflas,<br />
musicais argentinos estrelados por Carlos<br />
Gardel, e chancha<strong>da</strong>s brasileiras.<br />
Estão reunidos ain<strong>da</strong> os registros<br />
bibliográficos <strong>da</strong> coleção <strong>da</strong>s publicações<br />
edita<strong>da</strong>s pelo <strong>Memorial</strong>, também disponíveis<br />
na Biblioteca, perto de180 registros<br />
de livros, folhetos, artigos de periódicos e<br />
catálogos. As publicações que já estão em<br />
formato digital encontram-se “linka<strong>da</strong>s”<br />
nos registros bibliográficos respectivos.<br />
Igualmente disponíveis estão os<br />
registros bibliográficos <strong>da</strong> Coleção Biblioteca<br />
Ayacucho, edita<strong>da</strong> pela Venezuela<br />
desde 1974, e uma <strong>da</strong>s principais<br />
coleções sobre a cultura latino-americana<br />
cria<strong>da</strong> pela Fun<strong>da</strong>ção Biblioteca<br />
Ayacucho. Trata-se de uma coleção<br />
clássica, que contempla obras sobre o<br />
passado e a época contemporânea do<br />
legado cultural <strong>da</strong> região e elabora<strong>da</strong><br />
por especialistas renomados nas dife-<br />
rentes temáticas abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s. A Biblioteca<br />
do <strong>Memorial</strong> tem a coleção, com<br />
mais de 200 volumes.<br />
Outra base de <strong>da</strong>dos reúne os registros<br />
bibliográficos <strong>da</strong> Coleção Brasiliana.<br />
O acervo <strong>da</strong> Biblioteca, ao ser<br />
constituído em 1989, ano <strong>da</strong> criação <strong>da</strong><br />
Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
contou com a inserção dessa importante<br />
Coleção Brasiliana, 5ª. série <strong>da</strong> Biblioteca<br />
Pe<strong>da</strong>gógica Brasileira publica<strong>da</strong> pela Editora<br />
Nacional. Inicia<strong>da</strong> em 1931, dispõe<br />
de ensaios sobre a formação histórica e<br />
social do Brasil, estudos de figuras nacionais<br />
e problemas brasileiros.<br />
Já o Diretório Países na BV@L reúne<br />
informações sobre ca<strong>da</strong> um dos países<br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Abrange uma breve<br />
descrição sobre eles e uma relação de<br />
sites selecionados na rede Internet sobre<br />
Artes, Arquivos, Bibliotecas, Fun<strong>da</strong>ções,<br />
Governo, Instituições, Literatura, Museus,<br />
Publicações, Turismo, Universi<strong>da</strong>des, entre<br />
outros. O Diretório também reúne<br />
sites selecionados na rede Internet sobre<br />
a região <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. As informações<br />
estão organiza<strong>da</strong>s e indexa<strong>da</strong>s sob<br />
temas previamente definidos como, por<br />
exemplo, Artes, Arquivos, Bibliotecas. Os<br />
registros dos sites estão indexados propiciando<br />
condições de busca na biblioteca<br />
virtual pelos países e temas específicos.<br />
E há ain<strong>da</strong> o Diretório de Eventos,<br />
com os eventos promovidos pela<br />
Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
e informações sobre a programação, desde<br />
a criação <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção em 1989. Seu<br />
objetivo é propiciar uma visualização de<br />
exposições, concertos, shows, mostras de<br />
filmes e lançamentos, entre outros, indexados<br />
de forma a permitir a busca por<br />
nomes, <strong>da</strong>tas, e temas específicos.<br />
Marcia Rosetto é especialista em Ciência <strong>da</strong><br />
Informação, diretora técnica de serviço de processamento<br />
<strong>da</strong> USP, e responsável pela implantação<br />
<strong>da</strong> biblioteca virtual do <strong>Memorial</strong>.<br />
40 41
ECONOMIA<br />
A DESFORRA DOS<br />
TRÓPICOS<br />
RUMO À BIOCIVILIZAÇÃO<br />
DEPOIMENTO DE<br />
IGNACYS SACHS<br />
O Brasil, e em grande parte o continente<br />
latino-americano, tem tudo<br />
para sair dessa crise por cima. Um<br />
precedente histórico aconteceu na<br />
crise dos anos trinta. Um dos mais<br />
belos capítulos de Formação Econômica<br />
do Brasil, de Celso Furtado, trata exatamente<br />
dessa questão. No entanto, o que ocorreu nos anos<br />
trinta foi, podemos dizer, um acidente <strong>da</strong> história. Porque<br />
o país estava em uma situação de total penúria de<br />
divisas, portanto não podia importar, mas ao mesmo<br />
tempo o governo de Vargas continuava a financiar os<br />
cafeicultores comprando e queimando o café. Era uma<br />
política keynesiana sem saber o que Keynes falava. Isso<br />
gerou uma poupança que foi investi<strong>da</strong> em indústria<br />
substituta <strong>da</strong>s importações. Foi assim<br />
que no bojo <strong>da</strong> crise o Brasil começou<br />
a crescer, do ponto de vista industrial, e<br />
o mesmo aconteceu na Colômbia, talvez<br />
também na Argentina e no México.<br />
Ou seja, desta vez o desafio é não deixar<br />
ao acaso, mas fazer disso um elemento<br />
<strong>da</strong> estratégia para sair <strong>da</strong> crise por cima.<br />
O que significa em vez de pensar que<br />
será suficiente socializar as per<strong>da</strong>s comprando<br />
os ativos podres, zerar a corri<strong>da</strong><br />
e voltar o taxímetro, pensando sobre<br />
o que nós queremos mu<strong>da</strong>r nessa crise.<br />
Eu vejo três mu<strong>da</strong>nças possíveis e<br />
factíveis. Primeiro, <strong>da</strong>r uma ênfase ain<strong>da</strong><br />
maior à rede universal de serviços sociais<br />
de educação, saúde, saneamento, quem<br />
sabe habitação popular. Isso porque essa<br />
rede tem um impacto positivo sobre o ní-<br />
vel de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> população, sem a mediação<br />
do mercado. Dois: ampliar o perímetro<br />
<strong>da</strong>quilo que no Brasil se chama economia<br />
solidária dentro do mercado, ou seja, aumentar<br />
o alcance <strong>da</strong>quelas ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />
que não resultam na apropriação<br />
individual do lucro, como cooperativas,<br />
associações, oficinas, e outras formas de<br />
empreendedorismo coletivo. Três: acentuar<br />
ain<strong>da</strong> mais aquele diálogo que existe<br />
entre empresários e representantes dos<br />
autônomos, a agricultura familiar, os micro<br />
e pequenos empreendimentos, ou<br />
seja, tentar construir sinergias positivas<br />
entre o arquipélago <strong>da</strong>s grandes empresas<br />
e o oceano <strong>da</strong>s pequenas ativi<strong>da</strong>des que<br />
é a reali<strong>da</strong>de social brasileira. Então são<br />
três elementos que modificam a estrutura.<br />
Quarto: <strong>da</strong>r maior ênfase à estratégia para<br />
42 43<br />
FOTO: HEnRIQUE MAnREzA / 28mm
aquilo que eu chamaria de agen<strong>da</strong> verde e<br />
amarela, ou seja, ver até onde se pode caminhar<br />
na construção de uma biocivilização<br />
moderna basea<strong>da</strong> no aproveitamento<br />
múltiplo <strong>da</strong>s biomassas; biomassas terrestres,<br />
biomassas aquáticas. Porque biomassa<br />
é alimento humano, é ração animal, é<br />
adubo verde, é energia, é material de construção;<br />
é todo o leque de fibras, plásticos e<br />
bio-produtos produzidos pelas bio-refinarias<br />
do amanhã, são fármacos e cosméticos.<br />
Até onde se pode caminhar com isso?<br />
Qual o potencial de produção de biomassa<br />
de um país como o Brasil e de um continente<br />
como a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>? Eu acredito<br />
que é possível ir longe, e muitos debates<br />
que hoje são polarizados, como por exemplo,<br />
se hoje o Brasil produz biocombustível<br />
vai provocar fome no mundo, e etc. A<br />
meu ver, essa questão pode ser supera<strong>da</strong><br />
colocando-se primeiro, no centro <strong>da</strong> preocupação,<br />
não a justaposição de cadeias<br />
de mono-produção como: aqui deve ser<br />
alimentos, lá energia, e etc. E sim pensando<br />
em sistemas integrados de produção<br />
de alimentos e energia, a<strong>da</strong>ptados aos<br />
diferentes biomas do continente latinoamericano.<br />
Primeira maneira de superar<br />
tais contradições. A segun<strong>da</strong>, é caminhar<br />
o mais rapi<strong>da</strong>mente possível para a segun<strong>da</strong><br />
geração dos biocombustíveis, que são<br />
o etanol celulósico... Ou seja, onde todos<br />
os resíduos vegetais vão se transformar na<br />
matéria-prima <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> bio-energia<br />
e portanto vai haver complementari<strong>da</strong>des<br />
e não competição por recursos e espaços.<br />
Começar a trabalhar sobre a terceira<br />
geração dos biocombustíveis que provavelmente<br />
serão as algas e as micro-algas.<br />
Portanto, em vez de se deixar encurralar<br />
por esse debate, superá-lo com essa visão<br />
sistêmica, mas colocando claramente que<br />
os dois desafios do século são as mu<strong>da</strong>nças<br />
climáticas e o tremendo déficit social<br />
que se acumulou ao longo dos séculos e<br />
ao longo <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s; quer dizer,<br />
o déficit de oportuni<strong>da</strong>des de trabalho decente,<br />
no sentido que a organização inter-<br />
nacional do trabalho dá a esse termo, ou<br />
seja, não só um salário razoável, mas condições<br />
de trabalho que não atentem contra<br />
a saúde do trabalhador e relações de trabalho<br />
que não atentem contra a digni<strong>da</strong>de<br />
do trabalhador. Então são dois objetivos,<br />
e o problema é ver como encontrar soluções<br />
para atendê-los simultaneamente. E<br />
isso me faz retomar a ideia do aproveitamento<br />
múltiplo de biomassa, sempre<br />
que se tome o cui<strong>da</strong>do de potencializar<br />
as vantagens comparativas naturais do<br />
trópico; é a desforra do trópico eu costumo<br />
dizer, porque há tanto tempo se<br />
dizia que o trópico é um obstáculo, e ele<br />
passa a ser uma vantagem comparativa,<br />
sabendo potencializar essa vantagem<br />
por meio <strong>da</strong> pesquisa e <strong>da</strong> organização<br />
social apropria<strong>da</strong> do processo produtivo.<br />
Não é produzir biomassa, é usar o<br />
potencial <strong>da</strong> produção de biomassa para<br />
gerar um grande número de empregos<br />
decentes, apoiando-se certamente na<br />
agricultura familiar que é, pode-se dizer,<br />
o que ain<strong>da</strong> institui o maior potencial<br />
provável de geração de empregos, não<br />
só a agricultura familiar, mas o desenvolvimento<br />
rural, porque o desenvolvimento<br />
rural é mais do que a agricultura<br />
propriamente dita; e até as tecnologias<br />
modernas, falo aqui sobre o seu controle,<br />
as tecnologias modernas permitem<br />
até descentralizar uma grande quanti<strong>da</strong>de<br />
de ativi<strong>da</strong>des secundárias e terciárias,<br />
graças, por exemplo, à informática. Estamos<br />
vivendo uma fase de desenvolvimento<br />
tecnológico que permite superar<br />
a questão de economias de escala e de<br />
descentralizar produções industriais.<br />
Portanto, quando falo de um novo ciclo<br />
de desenvolvimento rural como um<br />
elemento crucial desta estratégia não<br />
estou falando de agricultura, estou falando<br />
de agricultura, de uma parte do<br />
processamento dos produtos agrícolas<br />
e florestais in loco, com um modelo<br />
muito sedutor proposto por um grande<br />
agrônomo indiano de uma organização<br />
industrial de dois níveis, ou seja, lá perto<br />
do local onde foi produzi<strong>da</strong> a biomassa<br />
se faz seu processamento de maneira a<br />
diminuir o mais possível seu volume e<br />
depois encaminha-se esse volume reduzido<br />
do produto já processado numa<br />
primeira fase para um segundo nível de<br />
processamento, microdestilaria e uma<br />
destilaria central para refinar o produto.<br />
Portanto, um novo ciclo de desenvolvimento<br />
rural que permite talvez dizer que<br />
uma <strong>da</strong>s grandes ilusões do século vinte<br />
foi a ideia de que tudo aquilo que é rural<br />
é obsoleto, pertence ao passado e deve<br />
ser superado o mais rápido possível.<br />
Não acredito que a humani<strong>da</strong>de tenha<br />
condições de avançar no caminho <strong>da</strong><br />
urbanização como está fazendo em escala<br />
mundial. Um relatório <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s<br />
recente disse que, há uns dois anos atrás,<br />
aproxima<strong>da</strong>mente cinqüenta por cento<br />
<strong>da</strong> população mundial já está urbaniza<strong>da</strong>;<br />
continuando, não há progresso fora <strong>da</strong> urbanização.<br />
A afirmação é um tanto enganadora,<br />
porque me recuso a aceitar como<br />
definição de urbano, aqueles que estão<br />
encurralados nas favelas, por exemplo. E<br />
na África Subsaariana são setenta e cinco<br />
por cento dessa população dita urbana,<br />
no melhor dos casos pessoas candi<strong>da</strong>tas<br />
à urbanização; no melhor dos casos, em<br />
uma visão otimista, elas estão no purgatório.<br />
Agora, elas terão que ser aju<strong>da</strong><strong>da</strong>s a<br />
sair desse purgatório. Isso vai custar caro.<br />
Quando se diz , os europeus já passaram<br />
por essa urbanização, os Estados Unidos<br />
também, e assim por diante, eu repito:<br />
em condições diferentes, e por meio de<br />
procedimentos que eu espero não se reproduzam.<br />
Primeiro, 90 milhões de camponeses<br />
foram enviados para as <strong>América</strong>s<br />
na segun<strong>da</strong> metade do século XIX e no<br />
começo do século XX, e 90 milhões de<br />
camponeses representavam uma proporção<br />
grande <strong>da</strong> população rural e sedentária;<br />
segundo, muitos milhões de camponeses<br />
morreram em duas guerras mundiais,<br />
a gripe espanhola contribuiu depois <strong>da</strong><br />
Primeira Guerra Mundial, e durante e<br />
depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial tivemos<br />
os campos de concentração e os<br />
gulags. Eu espero que esses métodos não<br />
se reproduzam, ain<strong>da</strong> porque não dá para<br />
imaginar para onde se poderiam enviar<br />
algumas centenas de milhões de camponeses<br />
chineses e indianos, paquistaneses e<br />
indonésios do mundo de hoje. Os nossos<br />
refugiados do campo chegavam às ci<strong>da</strong>des<br />
na época <strong>da</strong> industrialização fordista,<br />
onde as indústrias empregavam muita<br />
mão-de-obra, isso também está superado.<br />
Não é que a indústria esteja encolhendo,<br />
mas está se desenvolvendo por intermédio<br />
de aumentos de produtivi<strong>da</strong>de não de<br />
emprego. Portanto, juntando-se tudo isso<br />
sem pensarmos em um modelo de desenvolvimento<br />
territorial... Não gosto <strong>da</strong> dicotomia<br />
rural-urbano porque trata-se de um<br />
contínuo, e no desenvolvimento territorial<br />
dito rural existem aglomerações que são<br />
pequenas e médias ci<strong>da</strong>des; sendo assim,<br />
não pensar em um novo modelo territorial<br />
seria um erro. Tanto mais que o Brasil<br />
é menos urbanizado do que Europa. Existe<br />
um livro de José Eli <strong>da</strong> Veiga, Ci<strong>da</strong>des<br />
Imaginárias, que mostra que o IBGE exagerou<br />
porque usou um critério não muito<br />
convincente do que é o urbano e do que<br />
é o rural. Aplicado os critérios <strong>da</strong> OCDE<br />
chega-se à conclusão que mais de um terço<br />
<strong>da</strong> população brasileira é ain<strong>da</strong> rural.<br />
Essa é, portanto, minha visão de<br />
uma saí<strong>da</strong> por cima. Penso que o país<br />
44 45<br />
FOTO: REPRODUÇÃO
tem alguns elementos importantes para<br />
caminhar nessa direção. Primeiro, entrou<br />
na crise com um sistema bancário privado<br />
menos atingido do que muitos países e<br />
com um sistema público de financiamento<br />
arrumado e forte. Poucos países têm o<br />
privilégio de ter um BNDES, ao lado dele<br />
uma Caixa Federal, um Banco do Nordeste<br />
e um Banco do Brasil. Trata-se de<br />
um elemento importante. Além disso, o<br />
país já está tentando discutir o problema<br />
<strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s sinergias positivas entre<br />
o mundo <strong>da</strong>s empresas priva<strong>da</strong>s e o dos<br />
pequenos produtores, tem no meio disso<br />
um sistema com vantagens e defeitos, mas<br />
que existe, portanto é um outro elemento<br />
importante. Eu acho que esse debate está<br />
mais avançado no Brasil do que em muitos<br />
outros países; por exemplo, a atuação<br />
do Instituto Ethos. Agora, há dois pontos<br />
vulneráveis: o país não escapou <strong>da</strong> epidemia,<br />
que atingiu praticamente o mundo<br />
todo nesses últimos trinta anos, <strong>da</strong> contrareforma<br />
neoliberal. Ou seja, perdeu sua<br />
capaci<strong>da</strong>de de pensar no longo prazo, de<br />
pensar o projeto nacional, de planejar no<br />
sentido forte <strong>da</strong> palavra. O segundo ponto<br />
frágil, é que a herança de estruturas agrárias<br />
anacrônicas, não foi ain<strong>da</strong> superado.<br />
Basta ver a dispari<strong>da</strong>de que existe entre a<br />
participação <strong>da</strong> agricultura no PIB e a influência<br />
do lobby ruralista no Congresso,<br />
para se <strong>da</strong>r conta de que ain<strong>da</strong> temos coisas<br />
para corrigir. Mas somando tudo isso<br />
eu acredito que há condições de sair por<br />
cima. E já que estou falando no <strong>Memorial</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> eu acredito que vários<br />
outros países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> estão, em<br />
níveis diferentes, na mesma situação que o<br />
Brasil, ou seja, têm um enorme potencial<br />
de recursos renováveis por serem aproveitados,<br />
têm uma dotação de recursos<br />
naturais mais razoável que outros continentes,<br />
têm solos agricultáveis, e água.<br />
O Brasil, claro, tem o polígono <strong>da</strong>s secas,<br />
mas em grande parte do país hoje a disponibili<strong>da</strong>de<br />
de recursos hídricos é ain<strong>da</strong><br />
uma boa disponibili<strong>da</strong>de. Portanto temos,<br />
por exemplo, a possibili<strong>da</strong>de de avançar<br />
muito mais no aproveitamento dos recursos<br />
biológicos. A Secretaria <strong>da</strong> Pesca, por<br />
exemplo, trabalha com a hipótese de que<br />
a piscicultura poderia, no Brasil, atingir<br />
dentro de um número razoável, não muito<br />
grande de anos, algo como 20 milhões<br />
de tonela<strong>da</strong>s. Vinte milhões de tonela<strong>da</strong>s<br />
de peixe, mesmo que para 200 milhões de<br />
brasileiros, salve algum erro, fazem cem<br />
quilos per capita, impossível de consumir,<br />
uma boa reserva para exportação. E<br />
essa é a hipótese baixa, porque a hipótese<br />
alta, com a qual trabalha a Secretaria<br />
<strong>da</strong> Pesca, é de 80 milhões de tonela<strong>da</strong>s e<br />
80 milhões de tonela<strong>da</strong>s <strong>da</strong>ria para 8 bilhões<br />
de ci<strong>da</strong>dãos, dos bípedes que vivem<br />
no mundo seriam 10 quilos per capita, só<br />
do Brasil. Enfim, o potencial desses recursos<br />
renováveis é muito grande. Outro<br />
exemplo, são os 5 milhões e meio, se não<br />
me engano, de hectares <strong>da</strong>quilo que se<br />
chama de florestas planta<strong>da</strong>s, ou seja, de<br />
plantações arbóreas de espécies úteis. Eu<br />
pessoalmente veria muito bem a possibili<strong>da</strong>de<br />
de se acrescentar um zero a esses 5<br />
milhões e meio de hectares: arvores para<br />
papel e celulose, árvores para derivados<br />
de madeira, árvores para produção do etanol<br />
celulósico, árvores para produzir em<br />
condições ecologicamente controla<strong>da</strong>s o<br />
carvão vegetal verde para as siderúrgicas, e<br />
assim por diante. Portanto, acho que, sem<br />
cair em ufanismos, sem dizer que isso se<br />
fará só porque esse potencial existe; estou<br />
querendo dizer que é um potencial a ser<br />
estu<strong>da</strong>do, trabalhado, a se definir as tecnologias<br />
mais apropria<strong>da</strong>s, sempre com<br />
esses dois objetivos de construir uma estratégia<br />
de desenvolvimento socialmente<br />
includente e ambientalmente sustentável.<br />
Que essas possibili<strong>da</strong>des existem, existem<br />
no Brasil e existem em vários outros<br />
de países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Por isso, eu<br />
tentaria resgatar duas ou três idéias do debate<br />
latino-americano nelas, a primeira é<br />
relembrar um documento importante que<br />
foi um modelo latino-americano produ-<br />
zido pela Fun<strong>da</strong>ção Bariloche argentina,<br />
como uma resposta ao pessimismo do<br />
Clube de Roma. Depois <strong>da</strong>quela publicação<br />
sobre limites ao crescimento, do<br />
Clube de Roma, em 71, houve na ver<strong>da</strong>de<br />
duas respostas importantes, uma foi especialmente<br />
de Bariloche, porque Bariloche<br />
mostrou a importância <strong>da</strong> valorização social,<br />
<strong>da</strong> organização social e <strong>da</strong> distribuição<br />
<strong>da</strong> ren<strong>da</strong>. A segun<strong>da</strong> crítica ao Clube<br />
de Roma foi feita na universi<strong>da</strong>de inglesa<br />
de Sussex, se me lembro bem o livro se<br />
chamava Malthus Com Um Computador Na<br />
Mão. Ele mostrava que naquele modelo<br />
do Clube de Roma não havia uma noção<br />
de progresso técnico suficientemente presente,<br />
portanto esse é um elemento do<br />
pensamento latino-americano que merece<br />
ser resgatado. Outro elemento do pensamento<br />
latino-americano que pode servir<br />
de ponto de parti<strong>da</strong> para reflexões muito<br />
interessantes, é um livro de um economista<br />
chileno Oswaldo Sunkel. O livro de<br />
Sunkel se chama Desarrollo Desde Adentro,<br />
ou seja, nem um crescimento extravertido<br />
que sacrifica tudo no altar <strong>da</strong> globalização,<br />
nem uma autarquia impossível e um fechamento<br />
<strong>da</strong> economia, e sim uma reflexão<br />
que começa com a análise do que se tem,<br />
do potencial do mercado interno, e que<br />
postula relações externas mais seletivas.<br />
Creio que com o que eu disse há<br />
elementos para que se o <strong>Memorial</strong> quiser<br />
avançar na organização de um debate<br />
latino-americano sobre essa saí<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> crise por cima, há pontos de parti<strong>da</strong>.<br />
Ignacys Sachs é economista polonês naturalizado<br />
francês, morou no Brasil de 1941 a<br />
1954. Autor de mais de vinte livros sobre<br />
desenvolvimento e meio ambiente.<br />
46 47<br />
FOTO: REPRODUÇÃO
IMPACTO DA CRISE<br />
NA AMéRICA LATINA<br />
EXPECTATIVAS REALISTAS<br />
O auditório <strong>da</strong> Biblioteca Victor<br />
Civita foi pequeno para acomo<strong>da</strong>r o público<br />
que compareceu em fins de março<br />
ao seminário Crise Econômica Mundial:<br />
impactos na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. A importância<br />
do tema e a alta qualificação dos<br />
palestrantes atraíram de empresários a<br />
estu<strong>da</strong>ntes. O embaixador Rubens Barbosa<br />
abriu a primeira mesa A Crise e as<br />
Relações Exteriores na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
com uma exposição realista quanto às<br />
consequências de uma crise desse nível,<br />
afirmando que o Brasil ain<strong>da</strong> pode vir a<br />
apresentar um quadro mais grave do que<br />
o que já se desenhou. Em sua opinião,<br />
o grande problema para os países latinoamericanos<br />
é a dependência de recursos<br />
externos, o que requer uma política de<br />
redução de tarifas e de aprofun<strong>da</strong>mento<br />
dos acordos regionais que já vigoram. Ele<br />
também fez previsões otimistas: “Daqui<br />
a 10, 15 anos, o mercado brasileiro será<br />
a solução para os países <strong>da</strong> região.” Na<br />
sequência, o economista Carlos Antonio<br />
Luque, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, repassou<br />
a origem <strong>da</strong> crise, cujo epicentro<br />
foi o mercado hipotecário norte-ameri-<br />
“O grande problema para os<br />
países latino-americanos<br />
é a dependência de recursos externos”.<br />
Rubens Barbosa<br />
cano, para também expor como e porque<br />
o Brasil conta com bases macroeconômicas<br />
mais sóli<strong>da</strong>s, a ponto de se proteger.<br />
O embaixador Carlos Henrique Cardim,<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília, também defendeu<br />
a integração regional como uma<br />
forma de superação. Coordenado por<br />
Celso Lafer, o seminário contou também<br />
com a mesa redon<strong>da</strong> A Economia Latino-Americana<br />
e a Crise Mundial, cuja<br />
abertura coube ao embaixador Rubens<br />
Ricupero, que acredita em uma recuperação,<br />
“mais cedo ou mais tarde”, diante<br />
do volume de dinheiro injetado nos mercados.<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, segundo ele,<br />
como sempre vivenciou as fases cíclicas<br />
<strong>da</strong> economia mundial; já que suas<br />
economias estão muito liga<strong>da</strong>s à dos<br />
Estados Unidos, evidentemente que<br />
sai afeta<strong>da</strong>. Mas conta com um sistema<br />
financeiro mais bem estruturado, o<br />
que favorece sua posição. Participaram<br />
ain<strong>da</strong> dessa ro<strong>da</strong><strong>da</strong> de exposições, Ruy<br />
Martins Altenfelder Silva, <strong>da</strong> Fiesp; Andréa<br />
Calabi, economista; e Ruy Correa<br />
Altafim, <strong>da</strong> USP; e a coordenação foi<br />
de Yoshiaki Nakano, <strong>da</strong> FGV.<br />
Em parceira com a Secretaria de Educação,<br />
e apoio <strong>da</strong> FDE e Imesp, o <strong>Memorial</strong><br />
lança a coleção com biografias<br />
de líderes <strong>da</strong>s guerras de indepêndencia<br />
hispano-americanas : <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> na<br />
Hora <strong>da</strong> Independência; Simón Bolívar, San<br />
48 49<br />
FOTO: FABIO PAgAn<br />
AGENDA<br />
FUNDADORES DA AMéRICA LATINA<br />
A Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
e o Instituto Cervantes firmaram<br />
uma parceria para um programa de ensino<br />
de espanhol à distância. Trata-se de<br />
um modelo semipresencial, desenvolvido<br />
pelo Cervantes, em que os alunos<br />
interagirão em ambiente virtual, mas<br />
Martín, Bernardo O’Higgins, José Martí<br />
e José Artigas. Além dos textos, ca<strong>da</strong><br />
volume traz um glossário, mapas do<br />
período e ilustrações produzi<strong>da</strong>s, na<br />
maior parte <strong>da</strong>s vezes, por artistas do<br />
século XIX.<br />
ENSINO DE ESPANHOL à DISTâNCIA<br />
Este ano de 2009 será todo festivo. É que<br />
o <strong>Memorial</strong> está completando 20 anos. As<br />
comemorações começaram já em fevereiro,<br />
quando foi inaugura<strong>da</strong> a mostra retrospectiva<br />
<strong>da</strong>s principais exposições realiza<strong>da</strong>s<br />
ao longo desse tempo reunindo obras de<br />
vários expoentes <strong>da</strong>s artes plásticas latinoamericanas.<br />
No dia do aniversário, 18 de<br />
março, o <strong>Memorial</strong> realizou uma cerimô-<br />
NOSSA AMéRICA: NOVOS PONTOS DE VENDA<br />
A revista Nossa <strong>América</strong> está mais próxima<br />
do grande público. Depois <strong>da</strong> regularização<br />
de sua periodici<strong>da</strong>de (passou<br />
a trimestral), a publicação conquistou<br />
novos pontos de ven<strong>da</strong>s. Além <strong>da</strong> Lo-<br />
MEMORIAL VINTE ANOS<br />
também terão ativi<strong>da</strong>des aos sábados, em<br />
dependências do Anexo dos Congressistas.<br />
Com a colaboração dos consulados<br />
latino-americanos, o programa, além do<br />
ensino do idioma, deve envolver os alunos<br />
com a arte, a cultura e a história do<br />
Continente.<br />
nia durante a qual hasteou as bandeiras de<br />
todos os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, com a<br />
presença dos respectivos cônsules e outras<br />
autori<strong>da</strong>des, um ato simbólico de integração<br />
regional. À noite, um show de Elba Ramalho,<br />
com entra<strong>da</strong> franca, lotou o Auditório<br />
Simón Bolívar. Os festejos continuam até<br />
o final do ano com programação especial.<br />
Para saber, acesse o site do <strong>Memorial</strong>.<br />
jinha do <strong>Memorial</strong>, e a possibili<strong>da</strong>de de<br />
ser adquiri<strong>da</strong> por meio de assinatura, o<br />
<strong>Memorial</strong> está ampliando a rede de pontos<br />
de ven<strong>da</strong>. A relação completa está<br />
no site do <strong>Memorial</strong>.
DEBATE<br />
UM MUSEU<br />
DIFERENCIADO<br />
LÍNGUA PORTUGUESA<br />
EM TEMPLO ELETRÔNICO<br />
ISABEL PÉREZ PÉREZ<br />
Visitar o Brasil para assistir aos debates<br />
<strong>da</strong> última edição <strong>da</strong> Bienal de<br />
São Paulo foi uma decisão difícil,<br />
pois significava interromper durante<br />
dez dias meu trabalho com um<br />
projeto editorial complexo. E ain<strong>da</strong><br />
que a Bienal paulista tenha me surpreendido pouco,<br />
uma feliz sugestão transformou essa experiência<br />
de atravessar o continente em uma experiência vital,<br />
imprescindível: conhecer o Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa.<br />
Após duas déca<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong> profissional no<br />
mundo <strong>da</strong>s artes visuais, você passa a ter uma ideia<br />
pré-concebi<strong>da</strong> sobre como um museu funciona,<br />
quais são os códigos com os quais se estrutura e organiza<br />
a informação, sejam esses museus de belas artes,<br />
arte contemporânea, história ou ciências naturais.<br />
Portanto, eu esperava um museu tradicional,<br />
talvez com um pouco de alarde<br />
e sofisticação. No entanto, o impacto<br />
foi contundente: o Museu <strong>da</strong> Língua<br />
Portuguesa é resultado <strong>da</strong> fusão impecável<br />
entre um substrato conceitual<br />
inteligente, a tecnologia mais moderna<br />
e a integração de um público que passa<br />
horas cativo em suas salas. À primeira<br />
vista pode-se pensar que to<strong>da</strong> essa<br />
aparelhagem técnica poderia confundir<br />
ou contaminar o principal objetivo do<br />
local, mas na ver<strong>da</strong>de acontece o contrário.<br />
O museu subverte o suposto<br />
“impacto digital” e coloca a tecnologia<br />
em função do pressuposto essencial...<br />
educar no âmbito <strong>da</strong>s letras por meio<br />
<strong>da</strong> emoção, prender o espectador apelando<br />
a seus sentidos.<br />
O idioma português possui um<br />
ritmo e um charme particular que nos<br />
envolve e agasalha, mesmo quando<br />
não o compreendemos totalmente<br />
nem o conhecemos bem. As horas<br />
que passei dentro do museu significaram<br />
uma experiência intelectual de êxtase<br />
para os sentidos, onde a língua é a<br />
obra de arte suprema. Daí talvez tenha<br />
surgido o interesse comum de italianos,<br />
espanhóis e outras nações do continente<br />
em fun<strong>da</strong>r museus desta envergadura,<br />
com um conceito contemporâneo,<br />
onde tudo mu<strong>da</strong> ou está sujeito à mu<strong>da</strong>nças<br />
de acordo com as expectativas<br />
do visitante, e onde o programa comunicativo<br />
está mais direcionado a<br />
uma ver<strong>da</strong>deira compreensão <strong>da</strong> língua<br />
que a seu aprendizado.<br />
O protagonismo adquirido pelas<br />
palavras neste meio reforça a fascinação<br />
que as letras exercem sobre nós;<br />
grafismos e sonori<strong>da</strong>des nos rodeiam a<br />
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FOTOS: FERnAnDO FLAMBART
partir <strong>da</strong> entra<strong>da</strong>, por meio <strong>da</strong> lindíssima<br />
árvore <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> um deles com<br />
um poder único, com vi<strong>da</strong> interior própria<br />
que, quando soma<strong>da</strong>s, sobrepostas<br />
ou contrapostas, formam algo mais<br />
forte e poderoso, capaz de se transformar<br />
em significados múltiplos e infinitos.<br />
O resultado é esse espaço surpreendente,<br />
DNA <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />
em que o dinamismo e a veloci<strong>da</strong>de,<br />
o lúdico e o histórico tecem uma trama<br />
de infinitas ressonâncias culturais.<br />
Percebemos então que não se trata<br />
apenas de um museu para a língua:<br />
estamos em um recinto que refrata to<strong>da</strong><br />
a cultura brasileira, como se fosse uma<br />
matriz na qual percebemos a complexi<strong>da</strong>de<br />
de suas misturas e contrastes, de<br />
suas diferenças e miragens, a própria<br />
alma desta nação que entra por nossos<br />
poros, nos penetra e envolve. Neste contexto<br />
a música e os sons desempenham<br />
um papel fun<strong>da</strong>mental, como reverberações<br />
excepcionais <strong>da</strong>s misturas étnicas<br />
que formam o conjunto <strong>da</strong> população<br />
brasileira: pouquíssimos indígenas, afrodescendentes,<br />
europeus de to<strong>da</strong>s as latitudes,<br />
e tantos e tantos estrangeiros que<br />
chegaram a esta terra para formar um<br />
caleidoscópio particular. A linguagem<br />
cotidiana, vulgar, culta: tudo forma uma<br />
identi<strong>da</strong>de cuja matéria-prima é a palavra.<br />
Palavra como sentido, como prática,<br />
como sonho, sinal distintivo, como<br />
uma amálgama social, como história,<br />
uma identi<strong>da</strong>de mutante e móvel.<br />
Infinitas como o próprio desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> língua são as possibili<strong>da</strong>des<br />
propostas pelo museu, onde<br />
parece que o único limite é imposto<br />
pelo próprio espectador. Justamente<br />
por provocar experiências e não se<br />
limitar a expor objetos, fotocópias,<br />
documentos ou imagens, os visitantes<br />
trabalham com computadores, interagem,<br />
divertem-se, assombram-se e se<br />
emocionam <strong>da</strong> mesma forma com que<br />
vêm participando ao longo dos anos<br />
<strong>da</strong> construção <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />
sempre em mu<strong>da</strong>nça dinâmica. A língua<br />
se apresenta como nosso melhor<br />
retrato, nossa pátria mais profun<strong>da</strong>.<br />
A utilização au<strong>da</strong>z <strong>da</strong> tecnologia<br />
propicia o âmbito ideal para esta união<br />
entre idioma, cultura e identi<strong>da</strong>de. Até<br />
para os menos familiarizados com a<br />
“nova mídia”, essa experiência se transforma<br />
em uma festa de sensibili<strong>da</strong>de<br />
onde a língua materna, que educa e<br />
protege, também inspira, distrai, constrói<br />
e desconstrói saberes. Ambiente<br />
dinâmico não só por ser eletrônico,<br />
onde salta à vista um interesse expresso<br />
de dirigentes e curadores de propiciar<br />
a compreensão exata, complexa,<br />
cruza<strong>da</strong>, contraditória de uma cultura<br />
híbri<strong>da</strong>, magistralmente resolvido por<br />
meio de recursos contemporâneos e<br />
originais. Provavelmente este espaço<br />
siga os princípios <strong>da</strong>s grandes exposições<br />
de arte ou <strong>da</strong>s bienais, onde o espectador<br />
não só se propõe a conhecer<br />
a obra de um determinado autor, mas<br />
também a transgredir os limites <strong>da</strong> mera<br />
contemplação rumo a uma dimensão<br />
mais participativa, viva, atuante. Talvez<br />
isso também se deva ao fato de que<br />
os organizadores tenham destinado<br />
um espaço privilegiado <strong>da</strong> instalação a<br />
exposições transitórias, contemplando<br />
escritores transcendentais <strong>da</strong> língua<br />
portuguesa.<br />
Não é por acaso que este seja o<br />
museu mais visitado do Brasil, atendendo<br />
a mais de mil pessoas por dia e<br />
– durante um ano, com um amplo programa<br />
educativo para diversas escolas<br />
(em torno de oito por dia), pessoas de<br />
terceira i<strong>da</strong>de, projetos de reeducação.<br />
A natureza de seus propósitos e a concepção<br />
e apresentação refina<strong>da</strong> e inteligente<br />
de seus conteúdos colocaram o<br />
Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa entre as<br />
instituições mais importantes do país.<br />
Pode parecer em um primeiro<br />
momento que esta vocação lúdica está<br />
marca<strong>da</strong> por um entretenimento banal,<br />
limitando as propostas do museu a jogos<br />
de vídeo-game concebidos a partir <strong>da</strong><br />
língua. Entretanto, esta visão não poderia<br />
estar mais equivoca<strong>da</strong>. A curadoria e<br />
seleção de todos os autores, as vozes, as<br />
imagens, estiveram nas mãos de pessoas<br />
especialmente cultas e sensíveis, que conhecem<br />
a potência sonora de ca<strong>da</strong> palavra<br />
de ca<strong>da</strong> poeta que escolheram. Desta<br />
forma o público se orienta para uma<br />
compreensão cosmogônica <strong>da</strong>s palavras<br />
impressas nos livros, concebendo-as agora<br />
como dispositivos ativos e dinâmicos<br />
que não só propiciam o entendimento do<br />
mundo, de uns e outros, como também<br />
do próprio idioma falado.<br />
Soube que as crianças ficam orgulhosas<br />
ao ver sua língua materna como<br />
um universo precioso e inesgotável, com<br />
infinitas possibili<strong>da</strong>des de combinação,<br />
capazes de fazê-las passar to<strong>da</strong> uma tar-<br />
52 53
de – e to<strong>da</strong> uma vi<strong>da</strong> – sem se aborrecer.<br />
Sem ser uma especialista em temas filológicos,<br />
e menos ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />
atrevo-me a afirmar que quando<br />
<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção deste museu, o Brasil em<br />
particular e todos os falantes do planeta<br />
em geral, vislumbraram novos significados<br />
e possibili<strong>da</strong>des para o ensino dos<br />
idiomas. A prova disso são os extraordinários<br />
trabalhos empreendidos pelos<br />
estu<strong>da</strong>ntes após visitar suas salas.<br />
Sem querer descrever ca<strong>da</strong> um<br />
dos espaços ou salas do museu, aos<br />
quais já foram dedicados muitos artigos<br />
e resenhas, gostaria apenas de<br />
focar algum comentário sobre outro<br />
ponto original desse projeto, a<br />
extraordinária tela de 106 metros de<br />
comprimento, na qual são realiza<strong>da</strong>s<br />
11 projeções simultâneas, formando<br />
uma montagem que faz lembrar uma<br />
estação de trem, uma plataforma <strong>da</strong><br />
qual se vê passar – sempre participando<br />
– cultura, música, cozinha, <strong>da</strong>nças,<br />
formação, identi<strong>da</strong>des, costumes, em<br />
centenas de imagens sobre cenas do<br />
cotidiano brasileiro, acompanha<strong>da</strong>s de<br />
textos, entrevistas, depoimentos com<br />
trilha sonora dos maiores compositores<br />
brasileiros como Chico Buarque,<br />
Caetano Veloso, Maria Bethânia.<br />
Da mesma forma, porém com<br />
uma forma mais “alucinógena”, também<br />
nos é apresenta<strong>da</strong> a sala de projeções<br />
em três paredes simultaneamente,<br />
com textos de poetas brasileiros, ima-<br />
gens e luzes. Nesse recinto é impossível<br />
não se emocionar, para além <strong>da</strong><br />
compreensão integral <strong>da</strong> amálgama<br />
de timbres, vozes, registros, em uma<br />
experiência sensitiva onde as formas<br />
se modificam mutuamente e assim<br />
sucessivamente através de um infinito<br />
cosmos de vocábulos, formas, canções,<br />
figuras, poesias. Os conceitos<br />
de identi<strong>da</strong>de, pátria, gênese se misturam<br />
e flexionam entre o passado, o<br />
presente e o futuro.<br />
Não se trata de uma grande<br />
quanti<strong>da</strong>de de música brasileira conheci<strong>da</strong>,<br />
mas de uma sutil e profun<strong>da</strong><br />
seleção onde se alternam melodias de<br />
diferentes períodos, de diferentes ritmos,<br />
reverberantes e díspares, onde a<br />
palavra é a protagonista principal. Al-<br />
gumas vezes ressaltam-se os papéis e<br />
potências <strong>da</strong>s vogais, outras o vigor do<br />
indígena, do forasteiro, tudo isso em<br />
uma fermentação, em uma espécie de<br />
antropofagia, de cartografia dos sons<br />
que o Brasil incorporou ao seu idioma<br />
por meio <strong>da</strong>s letras. Não existem casuali<strong>da</strong>des<br />
nem gratui<strong>da</strong>des nesta lúci<strong>da</strong><br />
e engenhosa seleção, trata-se de uma<br />
concepção do estudo profundo e <strong>da</strong><br />
acui<strong>da</strong>de, editado como um filme quadro<br />
a quadro, ca<strong>da</strong> um deles com um<br />
enquadramento e iluminação precisos,<br />
como uma força única destina<strong>da</strong> a ativar<br />
o movimento e se transformar em<br />
significado e energia.<br />
O edifício do museu está situado<br />
em um contexto singular <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
do lado <strong>da</strong> estação ferroviária <strong>da</strong> Luz,<br />
um dos exemplos mais impressionantes<br />
de art déco do país, para onde centenas<br />
de imigrantes vindos do Porto<br />
de Santos afluíam para se dirigirem ao<br />
interior do país. Em frente está a Pinacoteca<br />
do Estado de São Paulo que<br />
possui uma <strong>da</strong>s mais importantes coleções<br />
do século XIX e de arte contemporânea<br />
e que se transformou em<br />
um espaço notável dentro <strong>da</strong> capital,<br />
recebendo as exposições internacionais<br />
mais importantes. Alguns metros<br />
mais à frente está o antigo Dops, local<br />
onde os militantes políticos eram presos<br />
e torturados, que hoje se transformou<br />
em um museu contemporâneo<br />
que abriga no an<strong>da</strong>r térreo uma parte<br />
tenebrosa <strong>da</strong> negra história <strong>da</strong> ditadura<br />
brasileira. Ao lado está a Sala<br />
São Paulo, para concertos, onde reside<br />
a Orquestra Sinfônica do Estado,<br />
num edifício restaurado onde era a<br />
antiga estação de trens Sorocabana,<br />
que constitui um ponto de destaque<br />
na arquitetura brasileira.<br />
Pe<strong>da</strong>gógico, dramático e surpreendente<br />
é esse Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa,<br />
onde o convite para compreender<br />
e aprender o idioma nos submerge<br />
em um túnel no qual confluem todos<br />
os tempos, e em um surpreendente<br />
exercício de fonética é possível voltar<br />
para a gênese e a identi<strong>da</strong>de essencial<br />
de uma cultura singular.<br />
Isabel Pérez Pérez é cubana editora <strong>da</strong> revista<br />
Arte Cubano.<br />
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MUSEU VIRTUAL<br />
é O MUSEU DO FUTURO?<br />
A terceira regra <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de: as novas tecnologias virtuais ten<strong>da</strong>m a<br />
complementar -- em vez de substituir -- as tecnologias existentes”<br />
(Steve Woolgar).<br />
No seu terceiro ano de vi<strong>da</strong>, o<br />
Museu <strong>da</strong> Língua Portuguesa consoli<strong>da</strong><br />
justificado sucesso de público e já<br />
constitui uma referência obrigatória no<br />
campo. Por certo, poderiam ser aponta<strong>da</strong>s<br />
limitações e insuficiências e eu diria<br />
mesmo alguns caminhos problemáticos,<br />
mas o saldo geral é positivo e o mérito<br />
é inegável. No entanto, a renovação<br />
tecnológica que ele trouxe à museografia,<br />
corrobora<strong>da</strong> pela adesão também<br />
frutuosa de seu irmão caçula, o Museu<br />
do Futebol, fizeram com que ganhasse<br />
força, principalmente entre museólogos,<br />
a idéia de que o “museu tradicional” já<br />
está obsoleto e deve ceder o passo ao<br />
“museu virtual”. Em suma, ao invés<br />
de incorporar ao arsenal desse museu<br />
tradicional os extraordinários recursos<br />
cibernéticos e todo o potencial <strong>da</strong> linguagem<br />
digital, o que se propõe é uma<br />
substituição radical. Não se propõe um<br />
instrumental expositivo novo, mas a<br />
concepção de uma nova natureza e de<br />
novos procedimentos e objetivos para a<br />
instituição. Esta questão é muito grave e<br />
cheia de desdobramentos para ser trata<strong>da</strong><br />
resumi<strong>da</strong>mente. Entretanto, selecionei<br />
três questões que poderiam ao menos<br />
balizar o vasto campo do debate.<br />
A primeira e essencial questão é<br />
a <strong>da</strong> desnecessi<strong>da</strong>de onerosa do museu<br />
com acervo: a informação, não as coisas,<br />
é que caracterizaria os novos compromissos.<br />
De minha parte, continuo<br />
acreditando que o compromisso legitimador<br />
do museu é com a inteligibili<strong>da</strong>de<br />
do mundo e, como dizia a antropóloga<br />
inglesa Mary Douglas, procurar sentido<br />
no mundo envolve interpretá-lo como<br />
sensível. De fato, até que o projeto póshumano<br />
se realize, a condição humana<br />
se define ain<strong>da</strong> como corporal. É o nosso<br />
modo de ser no mundo: como dizem<br />
os especialistas nos estudos <strong>da</strong> cultura<br />
material, não apenas temos um corpo,<br />
mas somos um corpo. As mediações<br />
materiais, portanto, são condição de<br />
vi<strong>da</strong> biológica, psíquica e social . Ain<strong>da</strong><br />
se justifica, portanto, haver em nossa<br />
socie<strong>da</strong>de uma plataforma especificamente<br />
dedica<strong>da</strong> a suscitar ou aprofun<strong>da</strong>r<br />
a consciência do universo material<br />
em que estamos mergulhados, mas que,<br />
por sua indispensável onipresença, passa<br />
em branco na maior parte. Ora, creio<br />
que uma <strong>da</strong>s principais funções do museu<br />
é desnaturalizar essa dimensão material<br />
do mundo, isto é, mostrá-lo como<br />
produto <strong>da</strong> ação humana, dos interesses<br />
humanos, dos conflitos, valores e aspirações<br />
humanas -- aí se incluindo a natureza<br />
culturaliza<strong>da</strong>. A desmaterialização,<br />
porém, convém à nova ordem sócioeconômica-cultural<br />
do capitalismo avançado<br />
e vem provocando transformações<br />
radicais, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de como espaço ao diagnóstico<br />
médico ou à terceirização dos<br />
nossos cinco sentidos, culminando no<br />
sistema financeiro.<br />
Nessa ótica, algumas polari<strong>da</strong>des<br />
neo-cartesianas vieram à luz e<br />
precisariam ser desfeitas, a principal<br />
sendo a dicotomia material/imaterial.<br />
Antes de mais na<strong>da</strong>, como os antropólogos<br />
têm reiterado, o paradoxo <strong>da</strong><br />
cultura material (de que os artefatos<br />
são parte considerável, mas não a totali<strong>da</strong>de)<br />
é que o imaterial só pode se<br />
expressar por intermédio do material .<br />
Assim, em última instância, todo patrimônio<br />
cultural é imaterial: pois não são<br />
os valores e significados imateriais que<br />
definem, por exemplo, até aquele patrimônio<br />
de “pedra e cal”, cuja materiali<strong>da</strong>de,<br />
intrinsecamente, consiste apenas<br />
de atributos fisico-químicos? Inversamente,<br />
um saber-fazer não é uma forma<br />
de memória corporal, portanto de<br />
base material? O filósofo francês Bernard<br />
Stiegler criou a expressão “materialismo<br />
espiritualista” para identificar<br />
aquele materialismo que não diz que o<br />
espírito é redutível à matéria, mas que<br />
a matéria é condição do espírito em todos<br />
os sentidos <strong>da</strong> palavra condição.<br />
Por certo, os museus frequentemente<br />
fetichizaram os objetos -- por<br />
isso mesmo, os museus de arte tiveram<br />
dificul<strong>da</strong>de para li<strong>da</strong>r com a arte conceitual,<br />
a arte efêmera, as performances, a<br />
body art e to<strong>da</strong> a estética que relativiza o<br />
suporte material. Mas na outra ponta,<br />
seu desempenho deixou a desejar:<br />
Edwards, Phillips e Gosden, com uma<br />
argumentação muito rigorosa, acusam<br />
os museus de to<strong>da</strong>s as categorias de estarem<br />
se transferindo para o “imaterial”<br />
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por comodismo e inércia (e não por convicção<br />
ou estratégia), sem mesmo terem<br />
explorado suficientemente as dimensões<br />
<strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana<br />
expressa nos acervos “tradicionais”.<br />
Uma segun<strong>da</strong> questão refere-se<br />
ao desinteresse por objetivos cognitivos<br />
nas exposições (se é que se continua a<br />
admitir que o museu tem responsabili<strong>da</strong>des<br />
com o conhecimento e a formação<br />
crítica). Não se trata de uma tendência<br />
ou limitação natural <strong>da</strong> tecnologia<br />
digital (pelo contrário!), mas <strong>da</strong> reprodução<br />
acrítica e descontextualiza<strong>da</strong> dessa<br />
tecnologia, além do mais centra<strong>da</strong> na<br />
informação, mais que no conhecimento.<br />
Como fica patente na Internet, por<br />
exemplo, privilegia-se a simultanei<strong>da</strong>de,<br />
o sincrônico, o que impede ou dificulta<br />
compreender as implicações <strong>da</strong> duração<br />
ou <strong>da</strong> sequência. A reflexão não se dá<br />
bem com o instantâneo. Como na estética<br />
do videoclipe, valoriza-se exclusivamente<br />
a imersão e é só neste “exclusivamente”<br />
que está o problema. Pois a<br />
imersão redutora, sem posterior emersão,<br />
pode conduzir ao afogamento. No<br />
campo do conhecimento e <strong>da</strong> formação<br />
crítica, que exigem distância e tempo, é<br />
o que tem acontecido. A percepção se<br />
dilui na sensação, o que é sem dúvi<strong>da</strong><br />
prazeroso e positivo, mas compromete<br />
a consciência <strong>da</strong> mediação sensorial<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> -- raiz de inteligibili<strong>da</strong>de, como<br />
acima se disse. Além do mais, quando<br />
a bateria de sensações é excludente de<br />
alternativas, até a interativi<strong>da</strong>de pode ser<br />
enganosa e corre o risco de mascarar<br />
passivi<strong>da</strong>de intelectual sob a aparência<br />
de ativi<strong>da</strong>de gestual.<br />
A socióloga italiana Elena Esposito<br />
observa como nos encontramos<br />
num dilema: a coleção e o museu se<br />
caracterizam por armazenamento sem<br />
mídia de acesso; a Internet, ao con-<br />
trário, por extraordinário acesso sem<br />
armazenamento, nenhum depósito.<br />
Seria o único caminho escolher um<br />
destes extremos? Em especial quando<br />
o museu ain<strong>da</strong> é um espaço especificamente<br />
capaz de potenciar mutuamente<br />
o cognitivo e o afetivo.<br />
Terceira e última questão. Ca<strong>da</strong><br />
vez mais encontro fun<strong>da</strong>mentos para<br />
acreditar que o museu deveria ser o lugar<br />
<strong>da</strong>s perguntas, muito mais que <strong>da</strong>s<br />
respostas. Sua principal função educacional<br />
seria ensinar a fazer perguntas. O<br />
mundo virtual está plenamente capacitado<br />
para esta função. Entretanto, não é o<br />
que vem acontecendo, na prática. Antes<br />
de mais na<strong>da</strong>, também no museu virtual<br />
tem dominado o paradigma do conhecimento<br />
observacional, em detrimento<br />
do discursivo. E as “experiências” que<br />
ele propõe são predominantemente instrumentais.<br />
Dessa forma, o museu exerce<br />
um papel homologatório, abastecido<br />
na maior parte de respostas prontas.<br />
De novo, sob a aparência <strong>da</strong> interativi<strong>da</strong>de,<br />
continua-se a propor enganosamente<br />
que ver é o melhor caminho do<br />
conhecer. (O multisensorialismo ain<strong>da</strong><br />
é hierarquizado pela visão). O grande<br />
pensador <strong>da</strong> tecnologia, Gilbert Simondon,<br />
há tempos formulava a esperança<br />
de que a máquina pudesse ser dota<strong>da</strong> de<br />
uma certa margem de indeterminação,<br />
tornando-se “sensível” a uma informação<br />
externa. Por que não incorporar tal<br />
perspectiva desde já?<br />
Seja como for, onde é que, como<br />
introdução ao mundo virtual, se aprende<br />
a fazer perguntas e controlar -- epistemologicamente,<br />
sobretudo -- as respostas?<br />
Onde se ensina o fio de Ariadne<br />
que nos aju<strong>da</strong>ria a li<strong>da</strong>r com o labirinto<br />
do hipertexto? Uma imagem publica<strong>da</strong><br />
há tempos num cartum <strong>da</strong> Revista Fapesp<br />
(cujo autor ora me escapa) sintetiza<br />
o que pretendi aqui dizer. Num laboratório,<br />
um enorme computador ocupa<br />
todo o espaço disponível, soltando fu-<br />
maça por vários poros e ejetando uma<br />
longuíssima folha de resultados, que se<br />
espalha por todos os cantos. Dois cientistas<br />
se abrem num sorriso de satisfação.<br />
Um deles se dirige ao colega: -- Que<br />
maravilha, agora temos to<strong>da</strong>s as respostas!<br />
Responde o outro: -- Que bom, mas<br />
quais eram mesmo as perguntas?<br />
Ulpiano T. Bezerra de Meneses é filósofo,<br />
historiador e ex-diretor do Museu Paulista<br />
<strong>da</strong> USP.<br />
Fotos: Fernando Flambart<br />
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ARTES<br />
DEPOIS DO<br />
VENDAVAL<br />
O SUCESSO DA DÉCIMA BIENAL DE HAVANA<br />
SÓLIDO PROJETO<br />
CULTURAL DE 25 ANOS<br />
LEONOR AMARANTE<br />
No marco de seus 25 anos, a Bienal de<br />
Havana chega à sua décima edição<br />
com irreverências não imagina<strong>da</strong>s<br />
pelo público acostumado com os<br />
esteriótipos de um regime socialista.<br />
As balas dos poderosos canhões<br />
<strong>da</strong> Fortaleza Militar La Cabaña ganham cor rosa<br />
pink pelo coletivo canadense Atsa; metralhadoras se<br />
transformam em guitarras nas mãos do grupo punk<br />
indonésio/australiano Punkasila; um corpo nu de<br />
mulher é acupunturado pelo mexicano Gomes Peña,<br />
uma espécie de “demônio” insatisfeito que capta a<br />
reali<strong>da</strong>de como ela é. Ca<strong>da</strong> uma de suas agulha<strong>da</strong>s<br />
representa a humilhação imposta pelo governo norte-americano<br />
aos que tentam atravessar a fronteira<br />
mexicana; uma mana<strong>da</strong> de elefantes, em escala real,<br />
esculpi<strong>da</strong> em fibra, instala-se em lugares<br />
sagrados para os cubanos, como a<br />
praça <strong>da</strong> Revolução, onde se encontra o<br />
barco Granma no qual Fidel e seu grupo<br />
chegaram a Cuba em 1959; em outro<br />
ponto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, dois militares, em<br />
guar<strong>da</strong>, deixam seus postos e entram na<br />
performance brasileira Galeria Cilindro,<br />
uma pintura coletiva e em movimento,<br />
orquestra<strong>da</strong> pelo brasileiro Júlio Leite,<br />
<strong>da</strong> Paraíba e <strong>da</strong> qual participaram Walter<br />
Nomura, Alberto Dantas <strong>da</strong> Silva, Renato<br />
H. Barbosa, Tomás Musso, Floriana<br />
Breyer, e Fábio Invamoto. Enquanto<br />
os artistas atuam por fora <strong>da</strong> galeria, os<br />
dois guar<strong>da</strong>s se colocam dentro e se soltam<br />
numa pintura-grafismo.<br />
As obras descritas acima dão<br />
uma ideia do universo revolucionário<br />
<strong>da</strong> Bienal de Havana, um dos mais<br />
singulares dentro do contexto do cir-<br />
cuito de arte internacional. Os temas<br />
propostos ao longo de dez edições<br />
não se concentram nos valores especificamente<br />
estéticos <strong>da</strong>s artes visuais,<br />
funcionam muito mais pela intensi<strong>da</strong>de<br />
interior, pela problemática humana<br />
e libertária, adensados pela literatura<br />
crítica de seus seminários.<br />
A ca<strong>da</strong> edição pode-se sentir o<br />
caminhar constante <strong>da</strong> procura, <strong>da</strong>s descobertas<br />
e <strong>da</strong>s transformações. Do ponto<br />
de vista estrutural, a Bienal de Havana,<br />
que começou em 1984, como um projeto<br />
cultural do governo, é uma <strong>da</strong>s exposições<br />
mais sóli<strong>da</strong>s do calendário <strong>da</strong>s artes visuais.<br />
Com forte viés para o teórico, nunca<br />
se deixou levar pelo intelectualismo analítico,<br />
ou o pessimismo ontológico. Dosando<br />
vertentes de esquer<strong>da</strong> e de direita, um<br />
dos méritos <strong>da</strong> Bienal é colocar em circulação<br />
a produção de países do chamado<br />
60 61<br />
FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />
Júlio Leite, autor <strong>da</strong><br />
Galeria Cilindro.
Artistas <strong>da</strong> Galeria Cilindro<br />
em ação e a instalação final<br />
no Morro de La Cabaña.<br />
terceiro mundo, muito antes <strong>da</strong> globalização<br />
tomar conta do planeta. O despertar<br />
desse universo periférico fez mais viva a<br />
linguagem <strong>da</strong>s artes visuais.<br />
Para manter sua quali<strong>da</strong>de a Bienal<br />
conta com um corpo fixo de curadores<br />
que viajam pelos quatro cantos do mundo.<br />
Nelson Herrara Ysla, que atua desde a primeira<br />
edição; Íbis Hernadez, responsável<br />
pela escolha dos brasileiros, além de Margarita<br />
Sanchez Prieto, José Manuel Noce<strong>da</strong>,<br />
Jorge Antonio Fernandez Torres, Margarita<br />
González Lorente, José Fernandez<br />
Portal e Dannys Montes de Oca More<strong>da</strong>.<br />
Não se pode falar dos 25 anos <strong>da</strong><br />
Bienal de Havana sem citar Llilian Llanes,<br />
curadora junto com Nelson Ysla <strong>da</strong>s primeiras<br />
edições. Dinâmica e batalhadora<br />
é, sem dúvi<strong>da</strong>, uma <strong>da</strong>s responsáveis pela<br />
consoli<strong>da</strong>ção e pelo respeito alcançados<br />
pela Bienal de Havana ao longo dos anos,<br />
FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />
e pela colocação de alguns artistas <strong>da</strong> Ilha<br />
no cenário internacional.<br />
Nesta edição comemorativa, que<br />
tem como tema Integração e Resistência<br />
na Era Global a Bienal,a exposição bate<br />
seu próprio recorde em número de artistas.<br />
São mais de 300 vindos de 54 países e<br />
que se espalham por 100 pontos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
entre eles o Centro de Arte Contemporáneo<br />
Wifredo Lam, Centro de Desarrollo<br />
de las Artes Visuales, Convento de<br />
San Francisco de Assis, Fortaleza de San<br />
Carlos de La Cabana, Lasa- laboratório<br />
artístico de San Agustín, Museu Nacional<br />
de Bellas Artes e Pavilhão Cuba.<br />
Se hoje há um número considerável<br />
de países participantes, na primeira<br />
edição as portas estavam abertas somente<br />
para a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e Caribe. Na edição<br />
seguinte abriu-se para a produção<br />
chinesa, africana e a do Oriente Médio,<br />
FOTO: wALTER nOMURA<br />
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
62 63<br />
No ano dos cinquenta anos <strong>da</strong><br />
Revolução Cubana, e vinte e<br />
cinco <strong>da</strong> Bienal de Havana, o<br />
grupo canadensa Atsa, interfere<br />
nas balas de canhão <strong>da</strong> Fortaleza<br />
de San Carlos de La Cabaña.
Acima: grafismo quase<br />
publicitário do japonês<br />
Shigeo Fuku<strong>da</strong>.<br />
Abaixo: obra do artista<br />
chinês Wang Qingsong,<br />
na curadoria de Tereza de<br />
Arru<strong>da</strong>.<br />
quando esses países não<br />
tinham, praticamente,<br />
nenhum protagonismo<br />
nas bienais<br />
de Veneza e na de<br />
São Paulo. Muito<br />
menos na Documenta<br />
de Kassel,<br />
na Alemanha.<br />
Hoje, enquanto<br />
algumas bienais<br />
mostram sinais<br />
de cansaço e outras<br />
se envolvem em escân<strong>da</strong>los<br />
financeiros, a Bienal<br />
de Havana segue firme,<br />
mesmo depois<br />
de parte <strong>da</strong> Ilha ser<br />
devasta<strong>da</strong> por três<br />
furacão que deixaram<br />
um prejuízo de<br />
10 bilhões de dólares,<br />
cifra astronômica para<br />
um país de 11 milhões de habitantes.<br />
Catástrofe que em outros países seria<br />
motivo mais que suficiente para o cancelamento<br />
<strong>da</strong> Bienal, nem por isso Cuba<br />
deixou e fazer sua.<br />
Seguindo a tendência mundial, as<br />
instalações dominam essa edição. O artista<br />
cubano, Kcho, com sua inquietude<br />
epidérmica, toma conta do fosso do forte<br />
Cabana com seu acampamento, Briga<strong>da</strong><br />
Cultural Marta Machado, lotado de artistas<br />
que recrutou para participar com ele<br />
<strong>da</strong> recuperação <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> Juventude devasta<strong>da</strong><br />
pelos furacões. Ele ain<strong>da</strong> entrou<br />
no campo <strong>da</strong> performance incendiando<br />
um barco suspenso na praça do Convento<br />
de San Framcisco de Asís.<br />
Do Brasil, a sala de Paulo Brusky,<br />
de Pernambuco, sinaliza a necessi<strong>da</strong>de de<br />
valorização <strong>da</strong>s contribuições que as artes<br />
plásticas recebem de outras áreas. Já a Galeria<br />
Cilindro, do paraibano Julio Leite movimentou<br />
artistas e estu<strong>da</strong>ntes de arte que,<br />
montados em bicicletas, instalaram sua galeria,<br />
em pontos diferentes de Havana. Depois<br />
de três dias de pintura coletiva e uma<br />
infini<strong>da</strong>de cromática deu lugar às cama<strong>da</strong>s<br />
de gestos autorais, a galeria transformou-se<br />
em uma instalação, com os macacões presos<br />
na parede e as bicicletas flutuando no<br />
teto de uma <strong>da</strong>s roton<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Cabaña.<br />
No Convento San Francisco de<br />
Asís, Flamínio Jallageas e Patrícia Gerber<br />
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
se destacam na coletiva. Ele com seus<br />
objetos suspensos no ar e ela com uma<br />
performance na fonte <strong>da</strong> praça onde<br />
transformou a água em sangue. Da Ásia,<br />
o japonês Shigeo Fuku<strong>da</strong> mostra que conhece<br />
a alma do desenho, seus detalhes<br />
e, por essas ver<strong>da</strong>des, trata seu trabalho<br />
como um gesto lúdico. O coletivo Os<br />
Novos Ricos, do México, usam a técnica<br />
“ imagem puxa imagem”, e forram<br />
as paredes de sua sala de CDs piratas,<br />
colocando-se no centro de uma polêmica<br />
internacional. Esse repetir à exaustão<br />
expõe um ideário vivo dos fantasmas que<br />
assombram um capitalismo sem caráter.<br />
Em sua décima edição, a Bienal de<br />
Havana que completa 25 anos no ano<br />
em que sua gestora, a Revolução Cubana,<br />
chega aos 50, consegue superar um<br />
dos maiores desafios de sua história. Em<br />
meio a uma crise econômica mundial e<br />
soma<strong>da</strong> aos prejuízos provocados pelos<br />
furacões, Cuba dá uma lição de serie<strong>da</strong>de<br />
e perseverança. Rubén del Valle Lantarón,<br />
presidente do Conselho <strong>da</strong>s Artes Plásticas<br />
e <strong>da</strong> Bienal de Havana diz que diante<br />
<strong>da</strong>s priori<strong>da</strong>des para se levantar áreas devasta<strong>da</strong>s,<br />
parecia um contrasenso realizar<br />
a Bienal. “Sem hesitar o governo cubano<br />
decidiu assumir o evento, no entanto, reforçando<br />
ain<strong>da</strong> mais nosso princípio de<br />
austeri<strong>da</strong>de e racionali<strong>da</strong>de.” Para colocar<br />
de pé a maior edição de sua história, mais<br />
de 300 artistas de 54 países, to<strong>da</strong>s as áreas<br />
culturais liga<strong>da</strong>s ao Ministério <strong>da</strong> Cultura<br />
foram convoca<strong>da</strong>s. A reação desafiadora<br />
do governo cubano sensibilizou alguns<br />
outros países que o apoiaram de alguma<br />
forma. Para encarar situações tão adversas,<br />
Cuba já está em debate para continuar<br />
desenvolvendo projetos artísticos em<br />
situações críticas. Na<strong>da</strong> mais natural para<br />
um país que tem um projeto cultural sólido<br />
e definido, e onde o valor <strong>da</strong> cultura<br />
tem dimensões históricas.<br />
Leonor Amarante é jornalista, crítica de arte<br />
e editora <strong>da</strong> Revista Nossa <strong>América</strong>.<br />
Acima os performáticos:<br />
Tania Bruguera de Cuba<br />
e Peña Gomez do México.<br />
Abaixo, o cubano Kcho<br />
e seu acampamento<br />
Marta Machado.<br />
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FOTO: FÁBIO InvAMOTO<br />
FOTO: REPRODUÇÃO