06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Mas demonstrava uma resistência e uma quase indiferença <strong>que</strong> na verdade não possuía.<br />

Era, porém, este meu jeito de mostrar força para apoiar Patrícia.<br />

Há três dias, telefonara para o Brasil e para o Chile participando à família <strong>que</strong> ela ganhara<br />

um novo membro, o parto prematuro. Agora, ali, na sala em penumbra, com a pouca<br />

iluminação sobre os peixes em constantes e suaves movimentos, tocava-me telefonar<br />

para a<strong>que</strong>las longínquas famílias para dar as últimas notícias. O telefone ali, na estante,<br />

ao alcance da mão. A hora precisa. A diferença de fusos horários permitia encontrar as<br />

famílias em casa – hora de jantar e de novela, no Brasil; hora del once no Chile. O<br />

telefone ali, como <strong>que</strong> me espreitando, recebendo meu olhar, minha falta de coragem.<br />

De mover a mão sobre ele e, num gesto mais decidido, discar a<strong>que</strong>la sequência de<br />

números <strong>que</strong> me conectariam com uma voz amiga. A sensação de solidão crescia e<br />

crescia. A escuridão na janela, a<strong>que</strong>las árvores sem folhas lá fora me diziam <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le<br />

mundo não era meu. Não havia ninguém ali para passar a mão na minha cabeça ou para<br />

me preparar um café, para me dar um abraço – o <strong>que</strong> fosse! – tentando afastar de mim,<br />

com qual<strong>que</strong>r gesto, a dor, a perda, a tristeza. Então, como não me sentir só? Como não<br />

me sentir carente? Como não havia a mão estendendo-me um lenço para secar as<br />

lágrimas <strong>que</strong> corriam abundantes? (Creio <strong>que</strong> a outra vez <strong>que</strong> chorei tanto assim foi bem<br />

depois, com a morte de meu pai.) Como não tinha abraços? Por<strong>que</strong> eu tinha direito a<br />

muitos abraços e, na<strong>que</strong>la hora, eu os desejava.<br />

Não tinha nada com aquilo em volta. Era o próprio estrangeiro, o exilado. A escuridão, a<br />

árvore sem verde, o silêncio, a<strong>que</strong>le apartamento em <strong>que</strong> pusemos algumas de nossas<br />

marcas tentando fazê-lo nosso – o colorido tecido chileno, o pôster da mãe de santo<br />

negra carregada de jóias de prata, o grande papagaio de pano. A única coisa minha ali,<br />

além de todos os sentimentos <strong>que</strong> me invadiam, era minha filha, adormecida no quarto<br />

ao lado. Na penumbra via seu corpo sob as cobertas. De repente, seu choro. Foi isto <strong>que</strong><br />

me fez lembrar <strong>que</strong> a vida seguia. Levantei-me para atendê-la. Mas com a certeza de <strong>que</strong><br />

nunca, nunca em minha vida, a solidão pesara tanto. Que eu nunca a sentira tão forte.<br />

Nem jamais a sentiria assim.<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - SUÉCia 635

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!