06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Estávamos todos apinhados (272 pessoas) em um apartamento de três pe<strong>que</strong>nos quartos<br />

e apenas um banheiro, preferindo a<strong>que</strong>le desconforto máximo (tínhamos <strong>que</strong> fazer<br />

turnos para sentar e dormíamos em pé) à possibilidade de passar por prisão e tortura na<br />

“liberdade” da<strong>que</strong>le imenso campo de concentração em <strong>que</strong> se converteu o Chile de<br />

Pinochet. Ou mesmo de morrer, vítima de uma bala, não perdida, mas achada, das armas<br />

de milicos ensandecidos com o poder da<strong>que</strong>las formiguinhas <strong>que</strong> se constituíam no <strong>que</strong><br />

se chamava POVO. E com maiúsculas, pois resistiram a todo tipo de ata<strong>que</strong> dos momitos,<br />

só tombando ao poder das armas.<br />

Bem, feito este introito, voltemos ao nosso <strong>que</strong>rido apartamento. Ele se chamava<br />

elegantemente Embajada de la República de Panamá e já abrigava 80 pessoas quando<br />

lá cheguei. O embaixador estava ausente e, portanto, as solenidades de pedido de refúgio<br />

foram dispensadas, pois depois da saída dele às 17h, antes do to<strong>que</strong> de recolher imposto<br />

pela ditadura militar, as chaves ficavam com uma comissão criada para tomar conta da<br />

casa. Entramos e pronto. Sabem por quê? A tal comissão era constituída de grandes<br />

amigos e parceiros de luta: Zé Maria Rabelo, Theotônio dos Santos, Marco Aurélio Garcia,<br />

Patricio Palma e outros. Mais tarde conseguimos incluir o Zé Ibrahim. Que luxo, não é?<br />

Mas não era não. Essas oitenta pessoas transformaram-se em 272. E com um banheiro<br />

só. Já imaginaram o <strong>que</strong> acontecia quando dava vontade de fazer pipi ou usar de mais<br />

consistência? A fila era grande, a prioridade era para as mulheres grávidas e as crianças<br />

e, quando finalmente, lográvamos alcançar o objetivo o corpo já nos havia traído. Uma<br />

vez me engajei em uma conversa tola com o Rui Mauro Marini por<strong>que</strong> ele se dizia<br />

apurado e eu também. Olhando assim, parece ridículo. Mas era o nosso dia-a-dia.<br />

Banho? Nem pensar. E nem pensamos mesmo, o frio <strong>que</strong> fazia em Santiago ajudava. E<br />

por falar nele, não tínhamos cobertores. Uma noite, eu batia tanto <strong>que</strong>ixo e não conseguia<br />

pregar os olhos, <strong>que</strong> dois tupamaros imprensaram meu corpo contra os deles, em uma<br />

espécie de sanduíche, para me passar calor e fazer com <strong>que</strong> eu dormisse. Calor humano,<br />

hem? Nunca senti outro igual. Nem aqui nem na China. Amigos leitores, dormi como um<br />

anjinho, muito embora tenha sido acordada meia hora depois por outro habitante do<br />

local avisando-me <strong>que</strong> o meu turno acabara. Ai <strong>que</strong> ódio! Estava tão gostoso...<br />

Em outra experiência profunda vi e senti o Jorge Barret Viedma (irmão da Soledad,<br />

assassinada grávida no Recife por encomenda do monstro Cabo Anselmo, seu companheiro<br />

à época e pai de seu filho não nascido) tirar seu casaco, cobrir-me com ele para <strong>que</strong> eu<br />

pudesse dormir. Solidariedade assim? Nunca mais vi. Ó ser humano, quando é <strong>que</strong> você<br />

será novamente capaz de sair do nada e ter gestos como este?<br />

610

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!