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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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<strong>que</strong> dá acesso a um local de tortura. Gritos e gemidos durante todo o dia. Difícil exercício<br />

de tentar se alhear.<br />

A mudança para o vestiário da piscina é recebida com alívio. Até descobrirmos o vento<br />

gélido <strong>que</strong> desce da cordilheira dos Andes, visível ali da Avenida Grecia, como a água do<br />

degelo <strong>que</strong> sai da torneira. Uma enorme piscina olímpica <strong>que</strong> vai virando um lodaçal,<br />

como na<strong>que</strong>la piada as<strong>que</strong>rosa do leprosário. Um dia me chamam pelo alto-falante. Gelo<br />

de medo. Chegou minha hora.<br />

A nicaraguense, sandinista, <strong>que</strong> participou de um atentado, já tinha sido levada para o<br />

Velódromo, onde começavam a organizar a tortura. Os recém-chegados do Estadio de<br />

Chile nos contam, lívidos, como fuzilavam de quatro em quatro no centro da cancha. No<br />

mesmo estádio em <strong>que</strong> Victor Jara teve as mãos cortadas para não mais arranhar as<br />

cordas do violão em canções de protesto, pouco antes de ser metralhado em público.<br />

Aproxima-se um chileno de terno e colete, formal. Traz um envelope. Não acredito. É a<br />

letra da minha mãe. Estava em Santiago, deixara cinco cartas como a<strong>que</strong>la, em mãos de<br />

religiosos, de entidades humanitárias, de autoridades chilenas. Conseguiu <strong>que</strong> um<br />

funcionário do Ministério do Interior fosse me levar a carta. Mistério insondável. Insiste<br />

em <strong>que</strong> eu vá com ela para o Brasil, contrariando minha vontade, manifestada ao ACNUR,<br />

de ficar sob a proteção das Nações Unidas.<br />

Foi minha primeira noite de insônia no estádio. E agora? No dia seguinte, um vice-cônsul<br />

cheio de caspa finge interesse pelos cidadãos brasileiros, cerca de 80, <strong>que</strong> apodreciam há<br />

mais de um mês, presos. Soubemos, depois, <strong>que</strong> ele, ali, foi por insistência do adido naval,<br />

mobilizado pelo CENIMAR, <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria o filho de um conhecido armador, preso conosco.<br />

Os três brasileiros já com pena de expulsão e cujos pais estavam em Santiago saem do<br />

estádio no dia seguinte, com o vice-cônsul de caspa. Eu era um deles. Minha mãe me<br />

esperava no consulado. Abraça-me, chorando. Não consegui comer o bifão <strong>que</strong> pedi no<br />

restaurante, como havia planejado. Não consegui chorar ao falar com meu pai ao<br />

telefone, ele em lágrimas.<br />

Não consigo chorar pelos mortos no bombardeio das torres de Nova York.<br />

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