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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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Há meses, o jornal El Mercurio vinha repetindo a ladainha contra os inimigos da pátria,<br />

os mercenarios marxistas extremistas extranjeros. Começava o golpe militar contra o<br />

primeiro governo socialista eleito na América Latina, por 46 por cento dos votos do povo<br />

chileno, manobra financiada pela ITT e pela CIA, como hoje a história comprova.<br />

Na Investigaciones, o DOPS local, até a<strong>que</strong>le momento dirigido por um membro do<br />

Partido Comunista, nem quiseram saber <strong>que</strong>m eu era: “Estrangeira? Visto de turista com<br />

quatro meses? Que história é essa de aguardando o resultado do exame na faculdade?<br />

Mora nas Torres San Borja? P’a dentro!” Madrugada de terror, entre dezenas de<br />

estrangeiros amontoados numa sala. Parece <strong>que</strong> nos mandam para o Estádio Nacional.<br />

Compañero, calma. O uruguaio de bigode, grandão, sorri com o olhar para mim,<br />

identificando a forma de tratamento. Soube depois <strong>que</strong> era tupamaro.<br />

O final da madrugada foi em uma masmorra, onde descobri pelo tato <strong>que</strong> existem mesmo<br />

a<strong>que</strong>las camas de pedra, <strong>que</strong> pendem da parede por uma grossa corrente. Ajeito-me<br />

como posso em uma delas, espremendo-me entre uma alemã e uma nicaraguense, para<br />

nos a<strong>que</strong>cermos um pouco. Amanhece. Frio, muito frio. Desembarcamos de um ônibus<br />

na entrada do estádio. Homens de pernas bem abertas e braços na parede. Como se<br />

pudessem estar armados ao chegar de outra prisão. Mulheres simplesmente em fila. Os<br />

milicos chilenos traíam a formação galante na diferença de tratamento entre homens e<br />

mulheres. Não demorariam a aprender com os professores de tortura brasileiros,<br />

argentinos e uruguaios, bem treinados no Panamá.<br />

Não posso tremer. Esses filhos da puta não podem saber como estou com medo. Mas os<br />

joelhos não me obedecem. O frio piora tudo. Juntam as mulheres em um vestiário.<br />

Dezenas. Começa a rotina do terror, marcada pela total incerteza do <strong>que</strong> pode acontecer<br />

no momento seguinte.<br />

Com um pouco de experiência de prisão em alguma ditadura vizinha, é possível identificar<br />

o amadorismo e a desorganização da repressão <strong>que</strong> se inicia. Mandam soldados recém<br />

recrutados no interior para policiar o estádio. Jovens camponeses assustados, contra<br />

<strong>que</strong>m também poderia voltar-se a<strong>que</strong>la máquina absurda <strong>que</strong> começava a se mover.<br />

Uma semana para me interrogarem. O oficial carabinero, à minha frente, não tem a<br />

mínima ideia de <strong>que</strong>m eu seja. Faz uma cara feia e pergunta o <strong>que</strong> tenho na bolsa. Passo<br />

o bolo de papel, todos os documentos pessoais <strong>que</strong> levei para o Chile. Até recibo de aula<br />

de piano na infância. Folheia. Descobre um recibo da editora Bruguera, de livros de bolso,<br />

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