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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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Seu tom era drástico, mas via-se sereno. Falava como se esconjurasse, com isto, todas as<br />

ilusões. Mas a conversa ajudava a es<strong>que</strong>cer nossos ossos molhados.<br />

Entre os bolivianos, Ricardo (Capucho) gozava de grande prestígio. Contava-se <strong>que</strong><br />

lograra escapar de meia dúzia de militares ou policiais, em circunstâncias extraordinárias.<br />

Estava desarmado, tomou uma arma de um de seus pretensos captores e, com ela, feriu<br />

dois outros, fazendo confusão suficiente para escapar. Antes de deixar o país, avisou do<br />

caso a mãe de um importante dirigente, indo à casa dela, lugar tido por bem vigiado pela<br />

polícia. Ademais, logrou ir para o Chile por conta própria, atravessando a fronteira<br />

clandestinamente junto a Quetena. E aparecera em San Pedro de Atacama magro e<br />

esfomeado. Daí, alguns es<strong>que</strong>rdistas locais recuperaram o homem e o haviam enviado a<br />

Santiago. Não importa o valor dessa estória, Capucho jamais a ela se referia. Nunca se<br />

pavoneava. Falava apenas o mínimo, talvez para certificar-se de <strong>que</strong> estava vivo. Merecia<br />

o apelido por<strong>que</strong>, na noite, no inverno, no campo, estava sempre oculto em um capuz,<br />

<strong>que</strong> fazia parte de dois casacos <strong>que</strong> alternava invariavelmente. Casacos de algodão<br />

forrados de lã <strong>que</strong>, na<strong>que</strong>la época, estavam no alcance da bolsa dos pobres. Um deles era<br />

azul bem escuro, o outro, de um marrom quase vinagre.<br />

Ricardo era de tez clara, como da<strong>que</strong>les indígenas brancos do altiplano, <strong>que</strong> nós<br />

chamamos de “Incas”. A boca fina denotava seu autocontrole. Os malares salientes, os<br />

olhos sofridos e quase vestigiais, o rosto bem conformado, como é próprio das raças<br />

indígenas. Olhava sempre para <strong>que</strong>m estava falando. Observava bem o lugar onde<br />

chegava. Parecia sempre sensato e envolvido em uma atmosfera de silêncio. Às vezes,<br />

demonstrando <strong>que</strong> era apenas mais um, sorria de uma piada ou do dito de algum<br />

companheiro. Seu sorriso era silente, escolhendo qual<strong>que</strong>r canto, talvez, inconsciente, o<br />

mais discreto e o mais seguro. Com a sola dos pés no chão e os joelhos debaixo do <strong>que</strong>ixo,<br />

podia passar uma noite inteira. Via-se <strong>que</strong> fora criado no campo, em um mundo sem<br />

cadeiras.<br />

Devia ter, no máximo, 1,70m. Seus ossos dos pulsos eram largos, mostrando <strong>que</strong> era forte.<br />

Desempenhava suas tarefas sem transpirações e sem fadiga aparente. Como tipo, talvez<br />

não impressionasse ninguém. Aprendi desde logo em minhas experiências pela vida <strong>que</strong><br />

esses tipos escondem o <strong>que</strong> pode haver de extraordinário. São suficientemente pe<strong>que</strong>nos<br />

para se obrigarem sempre a estar alerta; são pouco grandes para despertarem o medo e<br />

a suspeita. São as pessoas de aparência medíocre, incapazes de despertar a curiosidade,<br />

<strong>que</strong> podem surpreender sempre. O silêncio arma-lhes a astúcia. Daí não decorre, contudo,<br />

<strong>que</strong> seja um patife ou um santo.<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - CHile 563

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