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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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vê-lo. Seu rosto, um acolhimento na<strong>que</strong>le momento apreensivo, inferno futuro<br />

indeterminado. Os carabineiros podiam invadir a qual<strong>que</strong>r momento a<strong>que</strong>le lugar.<br />

Rajadas. Tiros.<br />

Depois do Chile, de Padre Hurtado, nunca mais tive prisão de ventre.<br />

Éramos muitos, estrangeiros de todas as nacionalidades – brasileiros, uruguaios,<br />

argentinos, bolivianos, paraguaios, costarri<strong>que</strong>nhos, etc. Alguns chilenos clandestinos<br />

também. Quase quinhentos éramos. De todas as idades, jovens, homens, mulheres,<br />

crianças e idosos. Muitas crianças e alguns nenenzinhos ainda de colo. Não havia, <strong>que</strong> eu<br />

lembre, nenhum europeu. Os cidadãos de países europeus foram protegidos pelas suas<br />

representações diplomáticas.<br />

Dormíamos sob a<strong>que</strong>las rajadas de metralhadoras <strong>que</strong> não acabavam mais. Terror. Eu e a<br />

Lilliam dividíamos um quarto. Muita gente <strong>que</strong> eu pouco conhecia. Desconfiança<br />

generalizada. Todos ou quase todos desmontamos as maçanetas das portas, <strong>que</strong> não<br />

tinham chave. Trazíamos conosco, sempre, a maçaneta do nosso próprio quarto. Todos.<br />

As maçanetas, iguais, cabiam em todos os quartos. Estrondos. Aquilo era um circo maluco<br />

ou um jardim zoológico. Em Padre Hurtado, eu vomitava quase todos os dias, no final da<br />

tarde.<br />

Monsieur Lehnan (não tenho certeza se é esse seu nome), representante da Cruz Vermelha<br />

Internacional ou do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados,<br />

suíço casado com brasileira, aparecia para nos visitar, com informes. Certa vez, ele chega<br />

ao refúgio com notícias do Estádio Nacional. Todos o cercam ávidos por informações. No<br />

meio da fala, ele abre a pasta e tira um livrinho. “Eu trago uma coisa <strong>que</strong> me deu um<br />

brasileiro no Estádio Nacional”, ele diz. “Quem é Eliete?” Pergunta, em seguida. Dei um<br />

passo à frente e disse: “Sou eu”. Ele abriu o passaporte, olhou meu rosto e me deu o<br />

documento. Caraca! Surpresa, emocionada, eu o abracei e dei-lhe um beijo no rosto,<br />

assim... Ele ficou vermelho, por<strong>que</strong> era um cara, realmente, muito branco, cabelo<br />

avermelhado, ruivo. Ficou vermelho, vermelho, como um camarão. “O senhor me<br />

desculpe, mas eu fi<strong>que</strong>i tão radiante!” Chorei para caralho.<br />

Sempre tive vontade de encontrá-lo outra vez. Eternamente lembrarei da<strong>que</strong>le rosto<br />

rubro olhos azuis <strong>que</strong> trouxeram de volta minha pretensa identidade brasileira.<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - exÍlio 511

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