06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Outro som da Ilha das Flores <strong>que</strong> me acompanhou durante muitos anos - e do qual só me<br />

livrei depois de um tratamento psicanalítico - foi o da serra elétrica, <strong>que</strong> me provocava<br />

a mesma reação <strong>que</strong> o tilintar do tal telefone.<br />

Acontece <strong>que</strong>, quando cheguei à Ilha das Flores e fui colocado no isolamento, da minha<br />

cela ouvia-se, desde bem cedo pela manhã, o ruído de uma serra elétrica <strong>que</strong> me<br />

despertava. Em algum lugar da ilha, havia alguma obra <strong>que</strong>, do vão da porta da cela, eu<br />

não conseguia ver. Mas lá estava, presente, durante o dia inteiro a<strong>que</strong>le zzzzuummmm<br />

insistente, <strong>que</strong> persistiu dentro de mim tanto tempo. Foi outra forma de tortura. Quase<br />

todas as noites, durante e após prisão e por muitos anos, a cada momento em <strong>que</strong> me<br />

sentia mergulhar no sono pesado, ouvia o zunir da serra elétrica, <strong>que</strong> me despertava e me<br />

deixava atento e ligado a tudo <strong>que</strong> se passava em volta.<br />

O banho de sol era uma verdadeira válvula de escape para a tensão e a ansiedade. Jogos<br />

de vôlei, bas<strong>que</strong>te ou futebol de salão eram praticados com chutes violentos, muita<br />

discussão, uma fúria nos chutes e nos sa<strong>que</strong>s <strong>que</strong> ajudavam, qual uma terapia inconsciente<br />

e automatizada, a desarmar o arco tensionado para disparar o <strong>que</strong> cada um de nós,<br />

potencialmente, representava.<br />

Essa expressão – arco tensionado para disparar – me fez lembrar <strong>que</strong> houve um disparo<br />

do qual fui vítima. Não fatal, é claro, pois estou aqui, tantos anos depois, escrevendo<br />

estas linhas. Para se chegar da quadra às celas, subia-se por uma rampa seguida de uma<br />

escadaria. A rampa terminava abruptamente, formando um degrau.<br />

Certo dia, ao terminar o banho de sol e retornar ao corredor das celas, alguém deixou cair<br />

a bola, <strong>que</strong> rolou rampa abaixo. Voltei para buscá-la. Pimenta, um dos soldados <strong>que</strong> nos<br />

vigiava, acompanhou-me, sempre com a arma, uma espingarda calibre 12, voltada para<br />

mim e sempre com o dedo no gatilho. Esta era a praxe em relação à<strong>que</strong>les “terroristas<br />

sanguinários” detidos na<strong>que</strong>la prisão. Com a bola na mão voltei a subir a rampa. O<br />

soldado seguiu-me. Ao tentar vencer o degrau onde finalizava a rampa, tropeçou e<br />

disparou a arma. O estampido soou pelo presídio e muitos <strong>que</strong> estavam em suas celas ou<br />

no banheiro saíram ao corredor. Olhei para trás, vi o soldado se recompondo. Continuei<br />

subindo a escada. Entretanto, de repente, senti um estranho calor nas minhas costas.<br />

Levei a mão às costas e deslizei-a sob a branca camiseta <strong>que</strong> vestia. Examinei a mão.<br />

Estava suja de sangue. Dei-me conta de <strong>que</strong> havia sido atingido, mas mantive a calma.<br />

Lembro-me de <strong>que</strong> passou pela minha cabeça <strong>que</strong> a coisa não devia ser grave, pois estava<br />

vivo, caminhando e não sentia nenhuma grande dor. Ao entrar no corredor e passar pelos<br />

outros companheiros, fez-se a algazarra. Muitos gritavam dizendo <strong>que</strong> eu tinha sido<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - SoliDarieDaDe e CaMaraDaGeM No CÁrCere 461

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!