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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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ser adicionado ao café ou mate nas unidades militares. Como era proibido entrar pó de<br />

café ou fazer fogo nas celas, aplicávamos uma técnica <strong>que</strong>, creio, se aplica em todos os<br />

presídios. Com folhas de jornal enroladas, diagonalmente, fazíamos um cartucho longo e<br />

fino e, com eles, formávamos uma espécie de coroa. Acesas com is<strong>que</strong>iro, três eram<br />

suficientes para fazer ferver água de uma lata de leite em pó com alça de arame, <strong>que</strong> era<br />

pendurada em um cabo de vassoura. Uma das extremidades do cabo era apoiada na lata<br />

<strong>que</strong> servia de latrina. A outra, já não me lembro onde. Tínhamos solução para o pó de<br />

café, é claro. Ora, se sabíamos a solução para transformar o Brasil em uma Pátria<br />

Socialista, era natural <strong>que</strong> soubéssemos resolver um problema mínimo como a<strong>que</strong>le,<br />

principalmente, contando com a participação de nossas massas, a família. Café solúvel<br />

era transformado em balas <strong>que</strong> se dissolviam quando jogadas nas latas com água<br />

fervente. Assim, tomávamos café sem brochante e conseguíamos, uma vez mais, driblar<br />

a repressão.<br />

Aliás, por incrível <strong>que</strong> isso pareça, a prisão era também uma trincheira. “A luta continua,<br />

companheiro!” Estávamos sempre en garde, sempre prontos a enfrentar o inimigo, a<br />

despeito da tensão, da ansiedade e do nervosismo.<br />

Havia, para mim, um momento na rotina do dia <strong>que</strong> englobava esses três sentimentos de<br />

uma forma aguda e dolorida. Era, quando, no final da tarde, por volta das quatro horas,<br />

em geral depois <strong>que</strong> regressávamos do banho de sol (quando havia) <strong>que</strong> tomávamos<br />

quase diariamente em uma quadra de vôlei, cercada por arame farpado e por soldados<br />

com arma carregada, bala na agulha, tocava o telefone na sala de guarda do presídio.<br />

Na<strong>que</strong>le momento, era anunciado <strong>que</strong>m iria a interrogatório, ou talvez ser transferido,<br />

ou voltar para isolamento ou, <strong>que</strong>m sabe, voltar à tortura. Como minha cela (engraçado<br />

este possessivo “minha” em relação à cela de um presídio) ficava próxima ao corpo da<br />

guarda, era-me possível escutar o soar da campainha do telefone e o nome dos<br />

companheiros repetido pelo soldado ou cabo da guarda ou talvez pelo sargento <strong>que</strong> fazia<br />

as anotações. Não <strong>que</strong>ria escutar e escutava. Não <strong>que</strong>ria saber, mas sabia. E ficava tenso,<br />

na<strong>que</strong>le momento, desejando, <strong>que</strong>rendo <strong>que</strong> meu nome não fosse falado, <strong>que</strong> eu não<br />

fosse chamado. Contudo, o alívio de não ter sido incluído na lista dos chamados era<br />

substituído por um sentimento de culpa em relação aos convocados. Eram sentimentos<br />

<strong>que</strong>, em tão curto tempo, turbilhonavam dentro de mim e eu me esforçava para <strong>que</strong> os<br />

companheiros não percebessem. Acredito <strong>que</strong> não perceberam, nunca. Creio, também,<br />

<strong>que</strong> vários viviam essa mesma angústia. Foi algo tão marcante <strong>que</strong>, durante muitos anos,<br />

acordava muitas vezes à noite, principalmente. Na<strong>que</strong>le momento em <strong>que</strong> se vai à fase<br />

mais profunda do sono, eu escutava a campainha do maldito telefone da guarda. Levei<br />

anos sem ter um sono profundo. Levei anos camuflando esse sofrimento.<br />

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