06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Quando me retiraram da cela de torturas no CENIMAR e me puseram em uma lancha <strong>que</strong><br />

se deslocou do cais em direção às obras da ponte Rio-Niterói, cujos primeiros pilotis<br />

começavam a aparecer sobre as águas da Guanabara, acreditei <strong>que</strong> pela segunda vez<br />

estava próximo da morte. A primeira foi no momento da minha prisão quando Fleury<br />

encostou a arma engatilhada em minha cabeça. Na<strong>que</strong>le segundo momento, achei <strong>que</strong><br />

seria jogado no meio da baía, passando a fazer parte do concreto de um dos pilares <strong>que</strong><br />

sustentariam a ponte. É <strong>que</strong>, mesmo com toda a censura sob a qual a ditadura mantinha<br />

a mídia, sabia-se <strong>que</strong> um bom número de trabalhadores morrera na<strong>que</strong>la obra, fato até<br />

hoje não explicado. Entretanto, passamos pelas obras, seguimos em frente e deduzi <strong>que</strong><br />

iria parar na Ilha das Flores.<br />

Na manhã seguinte, não sei se acordei cedo ou tarde. Lembro-me da minha primeira<br />

visão. O Cavalcanti, de pé, junto à porta da cela, as mãos para trás, olhava pelo “visor” da<br />

porta da cela, resultante da retirada de algumas tabuazinhas das venezianas <strong>que</strong><br />

formavam a parte central da porta de duas lâminas e por onde passava a corrente <strong>que</strong><br />

trancafiava nossos “aposentos”. Esta cena eu apreciaria muitas outras vezes. O olhar do<br />

Cavalcanti era como se dali pudesse admirar belas paisagens, a natureza, o mar <strong>que</strong><br />

cercava a ilha ou a imensidão do céu. Na verdade, o panorama se resumia ao telhado do<br />

prédio da cozinha e rancho do quartel <strong>que</strong> ficava em frente ao presídio.<br />

Aos poucos, fui descobrindo e aprendendo a rotina da<strong>que</strong>la vida <strong>que</strong> viveria por alguns<br />

meses; conheci os companheiros de outras celas, estreitei amizades, aprendi a conviver<br />

com a disciplina carregada de militarismo do Sargento Cavalcanti, as digressões<br />

intelectuais e o humor do Vic, a preguiça e a quase indiferença do Luiz Henri<strong>que</strong>, o<br />

terceiro companheiro de cela, <strong>que</strong> pouco falava, <strong>que</strong> passava muitas horas deitado, tendo<br />

improvisado uma estante sob o lastro da cama superior do beliche do qual ocupava a<br />

cama de baixo. Na<strong>que</strong>la estante de papelão, parecia ter tudo de <strong>que</strong> precisava. Na hora<br />

do banho de sol, levantava-se, calçava um velho tênis e se preparava para jogar o <strong>que</strong><br />

fosse, principalmente futebol de salão. Aliás, a cela era bem equilibrada em se tratando<br />

de posições políticas. Éramos de diferentes organizações, mas nos entendíamos bastante.<br />

Mais tarde, recebemos um novo “hóspede”: José Raimundo, sindicalista, de muita<br />

coragem e pouco falar. Sua conversa era mais intensa com os demais membros de sua<br />

organização, <strong>que</strong> se encontravam em outras celas.<br />

Aprendi a fazer café com os meios e apetrechos locais. Muitos de nós recusavam-se a<br />

tomar o café da manhã do rancho do quartel, não só pela péssima qualidade, pela hora<br />

(“Tão cedo, pô!”) em <strong>que</strong> era servido, mas, também, pelo medo do “brochante” <strong>que</strong> diziam<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - SoliDarieDaDe e CaMaraDaGeM No CÁrCere 459

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!