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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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16.23 natal - 1971<br />

Memélia Moreira<br />

Lembrei-me de uma das mais tristes noites de Natal <strong>que</strong> passei na minha vida. Não, não<br />

estava frio, nem eu longe da terra. Estava na minha amada Brasília. E tem um final<br />

divertido.<br />

Era 1971. Fora um ano pior do <strong>que</strong> terrível para minha família e para mim, obviamente.<br />

Médice, o facínora, estava no poder.<br />

Cheguei de Paris no começo do ano e meu pai, <strong>que</strong> tinha voltado do Uruguai, morreu<br />

cinco dias depois da minha chegada. Seu aniversário de 51 anos seria comemorado no<br />

dia quinze. Ele morreu no dia sete. Um derrame fulminante. Hoje penso ter sido melhor.<br />

Se fosse um desses derrames com se<strong>que</strong>las, ele seria um homem vivo, mas, profundamente<br />

infeliz. Era muito ativo. Morreu assim, sem <strong>que</strong> eu tivesse tido tempo de lhe contar todas<br />

as histórias do tempo em <strong>que</strong> ficamos separados. Só consegui chorar um mês depois,<br />

quando fui contratada pela revista Atualidade/Amazônia e, na mesma hora, voltei<br />

correndo para contar para o papai. Só <strong>que</strong> ele não existia mais.<br />

Aí, chorei. Chorei todas as lágrimas poupadas nos dias <strong>que</strong> se seguiram à sua morte.<br />

Em abril, meu irmão, <strong>que</strong> militava na Ala Vermelha do PC do B, foi preso. Quem recebeu<br />

a notícia fui eu. E eu, a encarregada de contar à mamãe. O mundo rodou. Ser preso em<br />

1971 podia significar a morte sob tortura. Meu irmão estava com 20 anos. E era um<br />

menino. Um menino <strong>que</strong> pegara as armas. Minha irmã terceira estava na clandestinidade,<br />

sabe Deus onde (<strong>que</strong>r dizer, sabíamos a cidade). Nesse quadro todo, minha irmã número<br />

quatro, Goretti, <strong>que</strong> vive em Paris, sofreu um acidente <strong>que</strong> lhe custou noventa centímetros<br />

do intestino. Cheguei ao hospital e ela, com três vértebras <strong>que</strong>bradas me pediu, “não me<br />

deixa morrer”. Tive <strong>que</strong> ser forte e autorizar a cirurgia. Ela ficou em coma alguns dias.<br />

Pouco antes de sair do coma, recebemos a notícia de <strong>que</strong> meu irmão, meu único irmão<br />

homem, estava vivo. Era como se tivesse nascido novamente.<br />

Minha casa, sempre uma casa alegre e cheia de vida e de amigos, estava silenciosa. Vivas<br />

e inteiras, apenas mamãe, minha irmã caçula, <strong>que</strong> estava com dez anos e eu. A casa<br />

porejava tristeza, luto.<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - PriSõeS / ViolÊNCia iNSTiTUCioNal / Terror De eSTaDo 421

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