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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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- Marcão está com cheiro de puta!...<br />

Lécio me levou para o Mosteiro de São Bento. Fui acolhido por um padre e um diácono,<br />

sem <strong>que</strong> o prior soubesse. Dormi uma noite em uma cela vazia, espreitado por uma<br />

imagem de Cristo. No almoço, à tarde, no refeitório vazio, serviram-me arroz puro, sem<br />

nada. Eu tinha 21 anos e pensei <strong>que</strong> <strong>que</strong>riam submeter-me a alguma terapia dos dez<br />

mandamentos.<br />

Saí à noite. Dirigi-me para a pensão onde morava Urariano, um sobrado ainda em pé na<br />

Avenida João de Barros, Boa Vista. Antes, eu o instruí a ir à minha casa e dei-lhe uma<br />

cópia da chave. Havia na gaveta de cima da única cômoda, um pacote com escritos da<br />

Ação Popular. Devia observar a rua. Se não houvesse nenhum carro suspeito nas<br />

imediações, devia entrar e trazer os papéis. Ele entrou e saiu da casa sem problemas.<br />

Depois, fomos a um bar na Rua Riachuelo, com exceção de Lécio, <strong>que</strong> tinha trejeitos de<br />

clérigo e sumiu com os documentos. Bebemos cachaça e cerveja. Ninguém se embriagou.<br />

O propósito era imiscuir-se de legalidade na rotina de clandestinos e esperar o começo<br />

da madrugada, para <strong>que</strong> a dona da pensão não percebesse minha entrada no quarto. Não<br />

teria eu <strong>que</strong> me identificar na ficha de hóspedes nem pagar pela estada.<br />

Passei cinco dias confinado, sem fazer barulho. Comia o <strong>que</strong> Urariano trazia da rua e<br />

reeducava os intestinos para fazer as necessidades tarde da noite, quando não houvesse<br />

trânsito nos sanitários. Uma noite, sem ninguém no corredor ou na sala, fomos a uma<br />

conversa regada a batida de limão no apartamento de um amigo de Urariano, em Boa<br />

Viagem. Eu não devia ir, mas estava entediado. Lá, emprestaram-me o romance de Garcia<br />

Mar<strong>que</strong>s, Cem Anos de Solidão. Li no confinamento, em dois dias.<br />

Despedi-me de Urariano e fui para o apartamento de um aliado no Rosarinho. O inquilino<br />

dividia as despesas com outro. Identifi<strong>que</strong>i-me como primo do aliado. Depois, fui para<br />

outro apartamento, no IPSEP. Moravam três mulheres: duas de Ação Popular e a outra<br />

era somente uma simpatizante. Uma delas, Marilu, comprou-me uma passagem de trem<br />

para Maceió. Subi no vagão em uma estação afastada da Central, em Porta Larga. Às seis<br />

da manhã, eu estava aboletado com uma bagagem de quase nada. Com o dinheiro <strong>que</strong><br />

me deram, almocei no vagão-restaurante. O cheiro do feijão incensou todo o vagão.<br />

Comi feito um andarilho faminto. Marilu viajou no mesmo trem, em outro vagão. Caso<br />

um de nós fosse preso, o outro teria a chance de escapar.<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - ClaNDeSTiNiDaDe e SoliDarieDaDe 285

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