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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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estar mortos. Ela, viúva, louca e desfrutável para os nossos corações, somente para os<br />

nossos corações de esperança e mais nada e, se Tonhão não nos enganou, para ninguém<br />

e mais nada, cedeu, doou a sua granja para encontros clandestinos da organização (<strong>que</strong><br />

chamávamos de partido) Ação Popular, em uma parte rural de Igarassu. (Que a norma<br />

burra manda <strong>que</strong> se escreva Igaraçu, por<strong>que</strong> etc. etc. e etc.)<br />

Pero não só. Essa mulher (e como eram solitários, desertos e secos de tudo a<strong>que</strong>les anos<br />

de nossas vidas), essa mulher <strong>que</strong>, em mais de uma oportunidade, foi combustível de<br />

nossa imaginação, também cozinhava como uma feiticeira, e produzia umas galinhas da<br />

sua criação, e temperava um arroz natural, <strong>que</strong> parecia ser cultivado nas margens do rio<br />

<strong>que</strong> cortava sua propriedade e, achando isso pouco, gargalhava e sorria conosco, não sei,<br />

não sei, agora, se por um instinto de perversão, de serena crueldade, por<strong>que</strong>, mais velha<br />

<strong>que</strong> nós, e sendo, por natureza formação e vontade, fêmea, devia adivinhar o efeito sobre<br />

nós do seu riso aberto. Nós então sorríamos também, sorríamos muito, sorríamos até de<br />

nervoso, mas sorríamos, gargalhávamos, como <strong>que</strong>m diz, vamos rir, vamos sorrir, por<strong>que</strong><br />

talvez amanhã os nossos risos sejam apenas os dentes.<br />

Lembro <strong>que</strong> a “conheci” duas vezes. Na primeira delas, como me referi na mensagem<br />

acima, ela me foi apresentada por Tonhão, o negro mais alto e irresponsável e gentil <strong>que</strong><br />

os nossos olhos já viram. Tonhão, de batismo Antonio Agostinho, era um homem bom, sei<br />

agora. Sei, por<strong>que</strong> nos apresentar a Ra<strong>que</strong>l foi uma divisão conosco de uma pessoa<br />

amorável, o <strong>que</strong> só é possível em <strong>que</strong>m é generoso. Claro, nisso havia também uma<br />

exibição dos seus dotes para nos mostrar a mulher <strong>que</strong> ele poderia ter (e o futuro do<br />

pretérito, então, era um futuro do presente, quando não um presente a seguir), claro,<br />

nisso havia certo exibicionismo, por<strong>que</strong> não existem indivíduos puros, santos de madeira<br />

inteiriça e homogênea, ainda <strong>que</strong> se chamem Tonhão, um negro como nós e falecido.<br />

Dessa primeira vez, em um dia de domingo, levamos para a granja, em Igarassu, algumas<br />

cervejas e fome, fome de tudo, <strong>que</strong> nada tínhamos de mais natural na<strong>que</strong>les tempos. Os<br />

selvagens chegaram, Ra<strong>que</strong>l poderia nos ter dito. Mas não. Recebeu-nos como se recebem<br />

as pessoas mais ricas e importantes em um dia de domingo. Arroz da terra, feijão <strong>que</strong><br />

parecia pular do solo a nossos pés, galinha ao molho de um modo <strong>que</strong> não é cristão e<br />

misericordioso lembrar. E redes. E conversas. E música de Baden Powell, <strong>que</strong> Fernandão<br />

pôs no <strong>que</strong> ele considerava o seu carro e casa da época, pelo sacrifício com <strong>que</strong> o<br />

conseguira: um toca-discos Philips, portátil, <strong>que</strong> transformava qual<strong>que</strong>r merda de vida<br />

em paraíso. Lembro <strong>que</strong> Tonhão bebia, piscava um olho para Ra<strong>que</strong>l, <strong>que</strong>, maliciosa, não<br />

o desesperançava, nem tampouco o incentivava para um passo adiante, e sorria. Nós<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - ClaNDeSTiNiDaDe e SoliDarieDaDe 271

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