06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

dizem se alimentar da saúde vigorosa, o golpe de 1º de abril comeu o cérebro do meu<br />

amigo. E ele <strong>que</strong> era diurno, solar, tornou-se febril e noturno, na<strong>que</strong>le fim de tarde.<br />

- Cadê Ivan? - perguntei, na volta da padaria. - Cadê Ivan? - perguntei, por<strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria<br />

com ele conversar os últimos acontecimentos, <strong>que</strong>ria <strong>que</strong> ele me explicasse os tan<strong>que</strong>s<br />

na rua, se Arraes ainda era governo, se os comunistas haviam perdido a batalha. - Cadê<br />

Ivan?<br />

- Vem ver o teu amigo. Veja como ele está - e sua mãe me conduziu até o quarto, <strong>que</strong><br />

era uma divisória de tabi<strong>que</strong> sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. E ela se<br />

pôs a chamá-lo, a dizer-lhe <strong>que</strong> eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar<br />

à realidade, realidade <strong>que</strong> ela não sabia ser o pesadelo a se inaugurar. Chamava-o, “Ivan”,<br />

para torná-lo ao Ivan de 31 de março, ao rapaz <strong>que</strong> era a esperança da<strong>que</strong>la família de<br />

seu Joaquim-da-carne-de-porco.<br />

Ele ouviu, hoje sei, ele ouviu por<strong>que</strong> respondeu, para explicar o seu tormento:<br />

- As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.<br />

Sei, agora, <strong>que</strong> na<strong>que</strong>le delírio Ivan não perdeu de todo a lógica, a razão. Será <strong>que</strong><br />

enlou<strong>que</strong>cemos assim, num diálogo entre a desrazão e a razão? Vejam, e nesta manhã em<br />

<strong>que</strong> escrevo me chega a voz de Nat King Cole cantando como na<strong>que</strong>les anos, na tela do<br />

Cine Olímpia, do Cinema Império, ouço Nat arremedando o espanhol “adios, mariquita<br />

linda”, vejam, agora percebo: ele diminuía o tamanho das serpentes, para ter miríades<br />

delas a subir-lhe pelas costas. Vejam, havia uma incompatibilidade de áreas físicas de<br />

suas costas para as serpentes normais, em grande número. E por isso ele as diminuía ao<br />

tamanho de se verem de microscópio, <strong>que</strong> lógica infernal, como eram micros só ele as<br />

via! Meu amigo delirava e, para ele, para mim, último consolo, perdia a razão, mas não<br />

perdia a inteligência.<br />

Muitos anos depois eu o revi. Estava mais largo, obeso, imenso, com os gestos lentos de<br />

um drogado. A face, sem acusar reação, só olhos mortiços, distantes, <strong>que</strong> não me<br />

reconheceram. Ele passou ao largo de mim como um hipopótamo sem sombra, como um<br />

elefante sem orelhas, sem tromba, sem dentes passaria, só a grande massa de carne.<br />

Então, eu soube <strong>que</strong> mais uma vez a barbárie vencera.<br />

114

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!