06.05.2013 Views

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

o <strong>que</strong> eu destaco aqui é <strong>que</strong> não havia espaço entre nós para a troca de insultos. Havia<br />

um respeito fundado nos objetivos a alcançar, ou melhor, a natureza das nossas relações<br />

não comportava um enfrentamento físico. Assim também com Ivan. Agora compreendo<br />

<strong>que</strong> em nossas relações ideais, ou idealizadas, ele me via como um menino precoce, como<br />

um menino de futuro.<br />

Aqui, cabe dizer o <strong>que</strong> era o futuro em nossa condição. Ele era um dos seis filhos de seu<br />

Joaquim-da-carne-de-porco. Seu Joaquim, para se dignificar, dizia-se marchante, mas<br />

apenas vendia carne de porco no mercado público de Água Fria. Simpatizante do velho<br />

Partidão, pusera nos quatro primeiros filhos nomes russos, por<strong>que</strong>, à época, a Rússia era<br />

a pátria da revolução. Eles se chamavam Pedro, Ivanovitch, Serguei, Andrei, Abrahão e<br />

Isaac. Os dois últimos coincidiam com o declínio das convicções do velho comunista – ele<br />

passara da revolução na terra para a salvação da alma, embora continuasse a sobreviver<br />

da venda da carne de porco. Lembro <strong>que</strong> da sua casa, feia, sem janelas, com fachada de<br />

pobre ponto comercial, vinha um permanente cheiro de torresmo. Lembro do cheiro<br />

abusivo, enjoado, repugnante <strong>que</strong> dava a<strong>que</strong>la coisa gordurosa, fartura de uma coisa só.<br />

Entre as fumaças da casa e o box no mercado, seu Joaquim conservara do antigo ardor a<br />

fé, a paixão da crença no livro, a crença na educação. O estudo <strong>que</strong> levantaria as massas<br />

passou a civilizar pessoas. Daí <strong>que</strong> seus filhos teriam <strong>que</strong> ser gente, não simplesmente<br />

carne.<br />

Na<strong>que</strong>les anos de 63, 64, um menino de futuro, na<strong>que</strong>le cheiro ativo de toucinho torrado,<br />

era um menino <strong>que</strong> gostava de ler, de perguntar, de argumentar, apesar de a sua imagem<br />

física não se assemelhar a qual<strong>que</strong>r futuro. Assim ele era por<strong>que</strong> o futuro eram os livros,<br />

e nos livros, era in<strong>que</strong>stionável, estava a força <strong>que</strong> erguera um povo das trevas, do<br />

feudalismo. Havia, então, um respeito mítico, místico, pelos livros. De futuro, até antes<br />

do golpe do 1º de abril, era também Ivanovitch. Dos seis filhos de seu Joaquim, ele era o<br />

mais brilhante, por<strong>que</strong>, enquanto os demais eram “especialistas”, Ivanovitch era um<br />

universalista – gostava de matemática, de química, de física, de política, de filosofia, de<br />

romance, lia como um animal <strong>que</strong> tem fome de letras e possuía um bom humor <strong>que</strong> era<br />

uma crítica ao mundo.<br />

Por <strong>que</strong> as pessoas não são lineares? Por <strong>que</strong> os indivíduos <strong>que</strong> levam a vida a gargalhar<br />

tendem a terminá-la com amargura ou violência? Por <strong>que</strong> os indivíduos soturnos,<br />

sombrios, não são os <strong>que</strong> enfiam o cano na boca e estouram os próprios miolos? Não, o<br />

trágico <strong>que</strong>r os pletóricos, os plenos de verve e coração. Pois assim como o câncer, <strong>que</strong><br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - o GolPe (1964) 113

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!