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68 a Geração que Queria Mudar o Mundo: relatos - DHnet

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e perder a vontade, parece, é o anúncio primeiro da morte. Digo, corrigindo: já antes de<br />

deixar de existir, Ivan já não mais existia.<br />

Quero ser exato, preciso, claro, mas o reino de <strong>que</strong> me acerco repele tais exatidões. O <strong>que</strong><br />

vi na<strong>que</strong>la tarde não se pega como um cão se agarra e se pega, como uma ave <strong>que</strong><br />

seguramos entre os dedos, como uma pedra de gelo <strong>que</strong> sentimos e pegamos. Melhor,<br />

então, organizar Ivan à maneira do <strong>que</strong> organiza a memória, o sentimento, enfim, o<br />

espírito.<br />

Ivan era grande, largo, testa ampla – estranho, agora eu sei, só agora compreendo, ao<br />

escrever estas linhas agora compreendo: Ivan era largo e grande como a minha mãe. Ele<br />

foi ou ele era o melhor amigo <strong>que</strong> pode ter um adolescente de treze anos. Escrevo essa<br />

generalização e estaco. Estaco por<strong>que</strong> essa tentativa de ser objetivo e imparcial só me faz<br />

escrever burras generalidades. Quero dizer, portanto, e não serei mais falso: Ivan foi o<br />

melhor amigo <strong>que</strong> tive na altura dos meus treze anos. Quero dizer e não me interrompam<br />

a censura, o pudor e a covardia.<br />

Eu era um menino sem mãe, com um pai <strong>que</strong> seria melhor eu houvesse mandado antes<br />

para o inferno e dentro de mim uma carência imensa de compreender o mundo, com<br />

uma vaidade louca <strong>que</strong> não tinha substância nem razões para se sustentar. Se me<br />

comparo mal, eu era um menininho sem pernas, <strong>que</strong> está sempre a sonhar com<br />

extraordinários saltos olímpicos. Com quê? Com os sonhos dos saltos <strong>que</strong> poderiam vir na<br />

modalidade de meninos-tronco <strong>que</strong> de repente ganhassem pernas. Ivan, <strong>que</strong> só agora<br />

compreendo guardava semelhanças com a minha mãe, não era um da<strong>que</strong>les “meu tipo<br />

ines<strong>que</strong>cível” da tóxica revista Seleções. Ele era o amigo mais velho e isto <strong>que</strong>r dizer: ele<br />

está sobre a cama, no 1º de abril de 64, agitado, movendo-se de um lado para outro de<br />

seu leito de capim seco. E me diz, e geme:<br />

- Tem umas cobrinhas subindo pelas minhas costas. - E bate com as mãos, para retirá-las.<br />

E mais se agita: - Eles vêm me pegar. Eles vão me levar.<br />

- Eles <strong>que</strong>m, Ivan?<br />

- Eles, eles. - e eles se confundem às cobrinhas, <strong>que</strong> lhe sobem pelas costas.<br />

Este Ivan não é Ivanovitch Correia da Silva. O Ivan de antes era um jovem de dezenove<br />

anos, estudante de Química. Passava o dia todo a estudar, todos os dias. Com um método<br />

<strong>68</strong> a geraçao <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mudar o mundo: <strong>relatos</strong> relaToS - o GolPe (1964) 111

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