Cyber Brasiliana - Tarja Editorial
Cyber Brasiliana - Tarja Editorial
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RICHARD<br />
DIEGUES<br />
CYBER<br />
BRASILIANA<br />
z<br />
k<br />
1 A edição - 2010<br />
São Paulo - Brasil
Copyright © 2010 <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong><br />
Todos os direitos desta edição reservados à<br />
<strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>. Nenhuma parte deste livro<br />
poderá ser reproduzida, de forma alguma,<br />
sem a permissão formal, por escrito da editora<br />
e do autor, exceto para citações incorporadas<br />
em artigos de crítica ou resenhas.<br />
1ª edição em julho de 2010<br />
Impresso no Brasil<br />
<strong>Cyber</strong> <strong>Brasiliana</strong> / Richard Diegues. -- São Paulo :<br />
<strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>, 2010.<br />
ISBN 978-85-61541-16-3<br />
Romance: Literatura brasileira: Ficção - I. Diegues, Richard.<br />
CDD-869<br />
y[2010]<br />
LITERATURA FANTÁSTICA<br />
MUITO ALÉM DOS GÊNEROS<br />
NOSTER ANNO MIRABILIS<br />
TARJA EDITORIAL LTDA.<br />
Rua Piatá, 633<br />
Santana - São Paulo<br />
CEP 02080-010 / SP<br />
editora@tarjaeditorial.com.br<br />
www.tarjalivros.com.br<br />
www.tarjaeditorial.com.br<br />
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:<br />
1. Romance : Literatura brasileira : Ficção<br />
869<br />
EDITOR:<br />
REVISÃO:<br />
PROJETO GRÁFICO:<br />
CAPA:<br />
DIAGRAMAÇÃO:<br />
Gianpaolo Celli<br />
Fabrícia Carpinelli<br />
Romaniv Chicaroni<br />
Verena Peres<br />
Phil & Ico<br />
Richard Diegues<br />
INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NÃO PUBLICAÇÃO (CjDADOS<br />
IF)<br />
rTodas as citações e nomes incidentes neste<br />
paper são não intencionais, exceto em casos<br />
onde o autor propositalmente faz uso de nomes<br />
de países e tecnologias. Se de alguma forma<br />
houver alguma incidência de seu ID, ou perfil de<br />
seu avatar, solicitamos que seja encaminhado<br />
chamado ao CIP para averiguação de duplicidade<br />
de código de acesso ao Hipermundo. As opiniões<br />
expressas na obra pertencem a seu autor, principalmente<br />
as de cunho geo-político e a respeito<br />
da massificação de código-livre, de intenções<br />
escusas, mas como os editores concordaram em<br />
publicá-las, reclamar com eles não adiantará. Os<br />
avatares, pessoas-RV e programas que eventualmente<br />
foram feridos, molestados e traumatizados<br />
durante a produção desta obra não possuem mais<br />
registros, mas igualmente podem prestar queixas<br />
ao CIP a qualquer nano. A cola usada na lombada<br />
pode conter glúten. Sim, exercício provoca<br />
enfarto e TV causa retardamento mental. Vá ler!
RICHARD<br />
DIEGUES<br />
CYBER<br />
BRASILIANA<br />
z<br />
k
Um computador é essencialmente um esquilo<br />
treinado: age por reflexo, corre sem pensar para a<br />
frente e para trás e guarda nozes até que algum outro<br />
estímulo o leve a fazer alguma outra coisa.<br />
Ted Nelson
prefácio<br />
Enquanto a maioria absoluta dos romances cyberpunks, segundo<br />
meu ver, exploram ambientes decadentes, o <strong>Cyber</strong> <strong>Brasiliana</strong><br />
se inicia justamente com a apresentação de um Brasil que seria<br />
utópico para a grande maioria, com uma São Paulo livre da poluição<br />
e do famigerado caos urbano próprio dos grandes centros. O<br />
Hipermundo – uma megarrede virtual de realidade aumentada,<br />
como o autor a descreve – leva as pessoas a se manterem cada vez<br />
mais em suas casas – unidades habitacionais –, ao menos fisicamente,<br />
pois suas mentes ganharam a portabilidade que a<br />
modernidade tanto se apressa em alcançar nos dias atuais. Uma<br />
miríade de avanços tecnológicos – muitos deles reais hoje, outros<br />
bem plausíveis para daqui a poucos anos – são apresentados por<br />
Richard Diegues, que é um profundo conhecedor dos computadores<br />
e equipamentos relacionados a eles – periféricos, é a palavra<br />
que encontrei. Uma união de fatores que remetem o – nosso<br />
– modo de vida cada vez mais no rumo do pós-humano, no qual a<br />
tecnologia é venerada em detrimento da religião, levando as<br />
interações humanas cada vez mais para o arrasto das máquinas. E<br />
não somente os homens, mas também os próprios deuses e santos<br />
se convertem para a binariedade, nesse caldo em que as mitologias<br />
hinduísta, católica, mulçumana e taoísta se unem de formas<br />
completamente plenas de extrapolação religiosa.
Os personagens principais poderiam ser apresentados<br />
como um militar-desertor-pistoleiro, um mulçumano-foragidobiocientista,<br />
uma programadora-chinesa-grávida e uma agentemotociclista-encrenqueira.<br />
Isso, se não fossem todos eles talhados<br />
com conflitos internos, em uma sucessão de perguntas-respostas<br />
em pequenos detalhes que são espargidos durante a história,<br />
dando a cada um profundidade suficiente para fugirem<br />
pela ribalta dos clichês – comuns, e até certo ponto obrigatórios<br />
– do gênero.<br />
O fato da trama se passar quase toda no universo virtual,<br />
ao contrário das obras que já conheci antes, é uma magnífica<br />
cartada. E isso não torna a trama cansativa, pois nos abstraímos<br />
do fato conforme caminhamos pelas páginas, uma vez que<br />
Diegues não se deixa deslizar pela gafe da verborragia tecnológica<br />
comum nesse tipo de narrativa, em sua maioria criada pelos autores<br />
para sustentar o ambiente que criaram de forma paupérrima.<br />
Assim como ocorre com os personagens, nós como leitores,<br />
mergulhamos de maneira natural no Hipermundo e nos<br />
conectamos – ou plugamos – com a narrativa ágil. Narrativa<br />
esta que é outro forte na obra, pois o autor nos brinda com um<br />
esmero claro nas frases e escolha de palavras, como um ourives<br />
que encrava pedras delicadas em uma aliança. Referências implícitas<br />
e ocultas nas entrelinhas, a escolha das terminologias<br />
hoje comumente usadas em língua inglesa que passam a ser usadas<br />
nas línguas dominantes – português e espanhol – do período<br />
do enredo, nada de frases feitas e linguagem simplória utilizadas<br />
fora de contexto. Enfim, alta literatura em uma novela de<br />
grande velocidade, nitidamente feita para entreter, mantendo o<br />
leitor pregado nas páginas a cada reviravolta, do início até o<br />
final da história.<br />
É uma obra de ficção, mas que certamente irá figurar<br />
entre o panteão daqueles livros que marcam uma passagem
evolutiva dentro de determinados gêneros da literatura que não<br />
podem ser classificados dentro de subgêneros específicos. A<br />
recebi para leitura como sendo “um romance cyberpunk”, porém,<br />
diante dos elementos e variedade de inovações que encontrei<br />
nela – comparando ao que foi feito antes, por outros autores<br />
– eu a classificaria, com parcimônia, é claro, como “um romance<br />
pós-cyber”.<br />
Em poucos anos acabei por conhecer muitas obras de<br />
Diegues, um autor prolífico – multimídia até – em todos os sentidos,<br />
e ao realizar a leitura de <strong>Cyber</strong> <strong>Brasiliana</strong>, definitivamente<br />
senti que algo que nunca irá marcá-lo é o rótulo de “escritor de<br />
um só gênero”. Mas, intimamente, apreciaria muito que seguisse<br />
com outras obras dentro deste cenário fantástico que desenvolveu,<br />
como tenho certo que você, leitor, sentirá o mesmo após<br />
virar a última página deste livro.<br />
O PROF. DR. HERALDO ASSIS BARBER, 87 anos, atua<br />
como consultor e ghost-writer para as maiores editoras<br />
do planeta, tendo preparado mais de 110 originais,<br />
vários deles best sellers. É mestre em Teoria Literária,<br />
doutor em Literatura Brasileira e em Literatura<br />
Norte-Americana, além de Ph.D em Literatura<br />
Inglesa. Possui oito pseudônimos que lhe permitem<br />
escrever o que quiser sem se envergonhar e apreciar<br />
a companhia dos netos. Tornou-se um grande<br />
apreciador de literatura cyberpunk após essa leitura.
Não acho que haja algo único sobre a inteligência<br />
humana. Todos os neurônios do cérebro que maquiam<br />
as percepções e as emoções operam em modo binário.<br />
Bill Gates
<strong>Cyber</strong><br />
<strong>Brasiliana</strong>
A Internet é a primeira coisa criada pela humanidade,<br />
que a própria humanidade não possui capacidade<br />
de compreensão: o maior experimento de anaquia<br />
que jamais tivemos.<br />
Eric Schimidt
... RICHARD DIEGUES ...<br />
um<br />
O vento estava frio demais para uma tarde de setembro.<br />
Ainda assim, Kamal estava quase despido nos três metros quadrados<br />
de sacada de sua unidade habitacional. Do vigésimo sexto<br />
andar, era capaz de enxergar muito longe. Não havia nenhum<br />
prédio, à frente do seu, com tamanha altura – restavam poucos<br />
edifícios com mais de dez andares acima do nível do solo. O céu<br />
estava claro e a poluição em seis por cento – havia em sua sacada<br />
um antigo termômetro digital que mostrava alternadamente<br />
uma série de números: temperatura, nível de poluição, umidade<br />
relativa do ar, nível de radiação e um marcador data-hora. Um<br />
artefato arcaico que sua mãe adorava. Em 2106, quando tinha<br />
oito anos, ainda havia dias em que a poluição em São Paulo<br />
atingia níveis absurdos – alcançava até noventa por cento nos<br />
picos, como ainda ocorria em muitos subpaíses do Conclave<br />
América-Oldeuropean. Com as pessoas passando grande parte<br />
do tempo plugadas em suas casas, o pulso de aço das ONGs<br />
e as leis – imposições de merda! – ambientais, a poluição era<br />
algo irrisório. Carros, praticamente apenas os de entrega e dos<br />
trabalhadores braçais.<br />
Riscou um fósforo na coronha do Mouse – sua réplica<br />
melhorada de um Colt Pacemaker, ainda com o famoso calibre<br />
.45, porém com um sistema prático de municiamento e gatilho<br />
.11 ...
automático – obra de seu pai-um – e de um belo reforço na<br />
estrutura do cano – feita pelo seu pai-dois – para aguentar a<br />
munição mista do compósito base-dupla de nitrocelulose e RDX,<br />
dos cientistas da República. A chama ardeu, sacolejou com o<br />
vento forte, mas manteve-se estável enquanto ele rodava o pequeno<br />
Cohiba entre os dedos até a brasa regular cobrir toda a<br />
ponta. Sentiu o gosto forte entre a língua e o céu da boca ao<br />
soltar a fumaça. Quase podia saborear. O marcador do termômetro<br />
alternou de “08-09-2116 14:40:21”, para 7% de poluição.<br />
Foda-se, ele pensou, sem sorrir, quando eu queimar vou gerar<br />
bem mais poluição que isso.<br />
Era seu último charuto. Cid, seu pai-dois, dizia que eles<br />
tinham mais graça quando Cuba ainda era um país independente,<br />
antes da República comprar e incorporar o território e parte do<br />
México. Gostava quando ele falava de Cuba, contando histórias<br />
sobre os charutos enrolados nas coxas e outras lendas. Kamal<br />
não era nascido naquela época.<br />
Coçou a barba por fazer. Estava áspera e seca. Era muito<br />
importante que estivesse assim. Se a mãe não houvesse se suicidado,<br />
ou os pais não houvessem morrido na guerra, certamente<br />
o aborreceriam pelo fato. Ela por gostar da pele lisa. Os dois<br />
por serem incapazes de se desfazerem da Programação Militar.<br />
Ambos tentaram. Ele conseguiu. Lamentava o fato de ter se livrado<br />
somente duas semanas atrás, depois de retornar da guerra como<br />
um zumbi indiferente. No começo foi duro manter a barba, mas<br />
depois que desativou os gatilhos certos no seu cérebro – com um<br />
vírus no Hipermundo e duas doses de Versax direto na veia, uma<br />
combinação que lhe rendeu um dia de inconsciência e uma ressaca<br />
pesada – foi o primeiro teste que fez. Sabia que apenas<br />
conseguira interromper a programação cerebral pelo fato de ter<br />
presenciado a morte do seu pai-um de longe, em uma trincheira;<br />
a do pai-dois através de um sistema de RV no front inimigo; e a<br />
... 12.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
da mãe, ali na própria sala, há quinze dias. A soma de sofrimentos<br />
teria que servir para algo de bom. Estava limpo a quatro do<br />
“Sistema Patriótico da República da União <strong>Brasiliana</strong>, que Deus a<br />
carregue pro inferno!”, mas alguns hábitos ficaram, tal como nunca<br />
tirar as cuecas, meias e o cinturão. No banho até tirava as meias.<br />
Só elas!<br />
A uns trezentos metros um par de olhos se pregou nele.<br />
Não podia ter certeza, pois a distância era enorme, mas seu<br />
instinto lhe dizia isso. E podia confiar no feeling. Precisava entrar<br />
no Hipermundo. E queria se plugar ali, em sua sacada, sem<br />
interrupção. Não ter as entranhas reviradas por bicadas também<br />
fazia parte de seus planos. Com a mão direita, ergueu calmamente<br />
o charuto até a boca. A outra sacou Mouse e disparou. Ato<br />
contínuo. Se o gavião piou ao ser atingido Kamal não ouviu, pois<br />
a distância era grande. A ave soltou uma revoada de penas, depois<br />
desceu quase em linha reta, caindo no telhado da Delegacia da<br />
Polícia Federal. Ele não se importou. A Primeira Lei dizia que<br />
não poderia matar outro cidadão. Gaviões não eram cidadãos,<br />
eram bichos. Além do mais, o que fariam com ele? Pela lei apenas<br />
o matariam. Isso não o preocupava mais. Que entrassem na fila.<br />
Além da mãe, havia mais dois cadáveres em sua sala. Um<br />
deles era cidadão, além de militar. Todos pareciam marmitas prontas<br />
para viagem, bem enrolados em papel-chumbo. Abrir os corpos<br />
em busca de bioequipo era chato. Ou o chumbo funcionou –<br />
como ensinaram no exército – ou eles não tinham rastreadores, o<br />
que duvidava, afinal, quem não tinha um naqueles dias?<br />
Recolocou com prática o revólver no coldre, depois abriu<br />
e fechou a mão algumas vezes. Formigava. A circulação estava<br />
parada, por isso quase errou o tiro. O gavião nem reparou na<br />
pequena diferença da pontaria, mas ele sim. Retirou a seringa que<br />
estava grudada na veia como uma sanguessuga, depois soltou a<br />
borracha do bíceps. O sangue correu e o calor foi imediato. Uma<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.13 ...
centena de unhas deliciosas começaram a arranhar seu rosto por<br />
debaixo da pele. Era Versax na veia, véio!, como diziam os traficantes.<br />
Apanhou o seu vídeo-óculos e o colocou. A varredura de sua<br />
íris foi realizada e o software inicializador cobriu a paisagem. Luzes<br />
espocaram em RGB, depois se aceleraram em milhões de cores<br />
– exatamente como o fabricante dizia na embalagem, ou seu<br />
dinheiro de volta! Ele cravou os dedos na sacada enquanto o<br />
processamento de rede era concluído. Doze televisores, oitenta e<br />
quatro refrigeradores, trinta e um micro-ondas, cento e vinte e<br />
seis computadores e duas cafeteiras. Após a detecção de todos os<br />
aparelhos greentooth da área, com banda livre suficiente para alocar<br />
dois terabytes para sua conexão, ele viu o céu mudando para um<br />
tom violáceo. Sua garganta ficou seca e o coração disparou.<br />
E ele saltou sobre a mureta.<br />
– Vão ter que usar pás se quiserem me queimar, cambada<br />
de filhos da puta!<br />
Ele riu antes de colidir com o chão. Duvidava antes, mas<br />
conseguiu chegar ao fim da frase antes do impacto.<br />
... 14.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
... RICHARD DIEGUES ...<br />
dois<br />
A Rua 77-CN estava com um movimento acima do normal.<br />
Sa-Id se locomovia com dificuldade, esbarrando e sendo<br />
esbarrado. Não gostava de muvuca. Pretendia entrar na 96-CO,<br />
mas viu que a situação estava ainda pior. E que a rua à sua frente<br />
não se parecia com a 96-CO que ele havia baixado no seu Cartão.<br />
Consultou mais uma vez e viu que realmente estava perdido.<br />
Ou era um bug, ou seu senso de direção estava como sempre:<br />
confuso!<br />
– Librero – falou, desistindo de bancar o machão, enquanto<br />
aproveitava uma brecha na multidão e se refugiava, sentando<br />
em um banco livre.<br />
Não deveria parar ali, pois poderia ser visto e sofreria uma<br />
grave reprimenda, mas não sabia o que fazer. Conhecia o funcionamento<br />
das ruas no Hipermundo, com a ordem subindo do<br />
Marco-Centro, crescendo nas quatro direções – como pontos cardeais<br />
virtuais – da 1 até a 128. Para onde seguia, na direção da<br />
Zona Periférica Noroeste, após a Rua 128, elas passavam a ter<br />
nomes de cores – no sentido Centro Norte – e mamíferos – para<br />
o Oeste. Mas depois de um bom tempo em meio aquela confusão<br />
toda, já não sabia mais se estava na direção certa. E nem havia<br />
chegado na zona onde as ruas deixavam de ser sequenciais.<br />
– Carregado – vocalizou Librero ao surgir à sua esquerda.<br />
.15 ...
Sa-Id olhou para o avatar do programa de pesquisa ao seu<br />
lado. Se a resolução fosse pior, não passaria de um borrão. Imaginou<br />
que com todo aquele movimento naquela zona, os<br />
processadores do Hipermundo estivessem sobrecarregados demais<br />
para produzir uma imagem melhor. O seu mesmo estava<br />
com estrias e serrilhados nos vértices.<br />
– Pergunta: o que está causando todo esse tumulto?<br />
– A cantora Ayana, da Africanísia, irá realizar um show<br />
público na Praça Ada Byron.<br />
Ele não conhecia a cantora. Na verdade, nunca havia<br />
ouvido por vontade própria uma música sequer de um cantor<br />
ou banda dos países do Eixo Sul. Não era um apreciador de<br />
música. Morava em Louisville, bem no centro do maior conglomerado<br />
industrial do Conclave. Se fosse apanhado ouvindo<br />
músicas de um dos países do Eixo Sul, certamente seria assassinado.<br />
Até sua mãe o mataria nesse caso. Considerava-se apenas<br />
um mulçumano-branco, do tipo que aprecia alguns dos<br />
preceitos da filosofia religiosa, porém é ligado demais na ciência<br />
para aceitar tudo de bom grado. Não pisava em uma mesquita<br />
há anos.<br />
– Pergunta: qual o trajeto mais curto para eu chegar até o<br />
cruzamento da Rua Lince com a Rua Terracota, no qual eu encontrarei<br />
um número reduzido de avatares? – Sa-Id conhecia bem<br />
o sistema de pesquisa do programa Librero, e por este motivo<br />
sabia como formular as perguntas de forma a obter os melhores<br />
resultados, preferencialmente sem desembolsar nenhum centavo,<br />
mas nesse caso não podia perder tempo, sua cabeça estava, literalmente,<br />
em risco. – Até dez Moedas.<br />
– Oito Moedas e noventa e nove centavos: Labrador 3.0,<br />
da Dawsoftware. Programa referencial de mapeamento e guia no<br />
Hipermundo. Para download, vocalizar solicitação e apresentar<br />
Cartão para carga. Segue a busca?<br />
... 16.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
– Não, pode parar. – Ele girou o pulso e apresentou o seu<br />
Cartão de Identificação para o Librero. – Download, por favor.<br />
– Concluído.<br />
O avatar de um cão surgiu à sua frente. Parecia muito com<br />
as imagens que ele havia visto de alguns cães domésticos em filmes.<br />
Não parecia com nenhum dos que já tinha visto pessoalmente.<br />
Até mesmo os pelos eram renderizados com movimentos<br />
independentes. Sua baba escorria, porém ela desaparecia antes de<br />
tocar no chão. Até isso os programadores visuais haviam desenvolvido.<br />
Era uma bela interface. E funcionava perfeitamente mesmo<br />
em meio a toda aquela multidão. Sa-Id preferia menos detalhes e<br />
um preço melhor, mas os créditos já haviam sido descontados e ele<br />
tinha pressa, não dava para cancelar a compra e procurar por outro<br />
programa. Dispensou o Librero de volta para o kernel do<br />
Hipermundo e deu as coordenadas para o Labrador. Ele latiu e<br />
Sa-Id suspirou – para que fazer um programa latir? – seguindo-o.<br />
– Estou velho demais para isso! – falou como um verdadeiro<br />
ancião no auge de seus quarenta e dois anos.<br />
A vontade dele era de sacar um facão e abrir o caminho<br />
em meio a uma enxurrada de bits e palavrões. A arma em seu<br />
bolso não fazia volume algum, pois seu avatar não possuía esse<br />
refinamento. Ela apenas emitia um pontilhado branco que revelava<br />
sua forma como uma ameaça velada, do tipo “estou aqui”. O<br />
que no caso dele, não valia quase nada. Sabia atirar. Qualquer um<br />
sabe atirar. Acertar era a parte complicada. Também não era o<br />
tipo que erguia uma arma e disparava, nem mesmo ali, onde sabia<br />
que acertaria um trecho de código apenas. Para Sa-Id era até mais<br />
fácil acertar uma pessoa de verdade com uma bala do que destruir<br />
um bom trecho de código.<br />
No mundo real, se estivesse no laboratório em que trabalhava,<br />
com uma arma em mãos, certamente não deteria o ímpeto<br />
de tentar matar alguém. Havia, naquele exato instante, um inglês<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.17 ...
com uma pequena pistola de aceleração de projétil por campo<br />
magnético na mão. Uma porcariazinha que media menos de doze<br />
centímetros e disparava balas expansivas, com menos de três milímetros,<br />
do tamanho de uma semente de mostarda. Cada disparo<br />
alcançava mais de 1.200 km/h. Eram como flores que brotavam<br />
dentro do alvo, se espalhando tão sutilmente como uma explosão<br />
de granada. Dois tiros seriam suficientes para derrubar um<br />
halterofilista chapado de adrenalina. A maravilha chamava-se<br />
WEST – uma brincadeira com a nomenclatura Wepon Eletronic<br />
Systems Tecnology – e certamente estava apontada para o peito de<br />
Sa-Id. Um peito real, em um mundo real.<br />
Por isso ele não podia se atrasar demais para cumprir sua<br />
missão no Hipermundo. Nunca se sabe o que um inglês maluco pode<br />
fazer ao seu corpo enquanto você não está olhando. O nome do homem<br />
era Cromwell, ele sabia disso, pois já o vira na primeira vez em que<br />
foi convocado – sequestrado era o termo real – pelo Cartel. Nesse<br />
dia, ele havia matado um homem na sua frente. Por Allah, nem<br />
soube do motivo. Achava que nem o próprio Cromwell sabia. Tinha<br />
um outro detalhe que estranhava no inglês: ele tinha apenas quatro<br />
dedos em cada mão. Nada de dedo mínimo para o mau sujeito.<br />
O latido do Labrador 3.0 fez com que saísse de seus devaneios.<br />
O programa estava na esquina que ele acabara de passar,<br />
chamando sua atenção para o caminho errado por onde seguia.<br />
Estava tão preocupado com seu corpo que esqueceu até mesmo<br />
por onde andava. Observou o letreiro que flutuava acima do cruzamento.<br />
“Rua Fúcsia”. Aquilo era uma cor, então estavam próximos<br />
de seu destino. Haviam passado da Rua 128, ao menos. Ergueu<br />
seu braço e com um comando fez com que a placa girasse o<br />
seu lado oculto em sua direção. Pôde ler “Rua Lince” nela. Quando<br />
baixou o braço, a placa retornou a posição original. O cão – já<br />
chamava o software de “cão”, tão agradecido que estava por se<br />
aproximar do seu destino – o havia levado até o endereço certo<br />
... 18.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
apidamente. Estava acostumado a entrar no Hipermundo, mas<br />
limitava-se a região central. Estava na rua, precisava apenas andar<br />
até a travessa dela com a Terracota.<br />
Seguiu o programa mais uma vez, observando com atenção<br />
os prédios a sua volta. Ao contrário das construções próximas<br />
do Marco-Centro, tudo ali era muito simples em questões<br />
arquitetônicas. Sabia que mais adiante as coisas voltariam a ter<br />
detalhes novamente. O fenômeno era curioso, mas plenamente<br />
explicável: todos os avatares surgiam no Portal, ou como os programadores<br />
o chamavam: Marco-Centro. Era um obelisco enorme,<br />
de face espelhada, que servia de porta de acesso ao sistema<br />
do Hipermundo. Como consequência, todos os terrenos próximos<br />
ao Portal acabavam sendo mais bem valorizados, pois não se<br />
perdia tempo para uma reunião, assim como a visibilidade era<br />
muito maior. Conforme as ruas se afastavam desse ponto, rumo<br />
as Zonas Periféricas, o valor dos terrenos diminuía, o que atraía<br />
os compradores com menos capital – ou sem interesse em deixar<br />
muitas Moedas com o Virtual HM Bank. Entretanto, fora desta<br />
região, as construções passavam a ser majestosas, muitas vezes<br />
ainda mais bonitas do que as centrais, pois eram adquiridas em<br />
grandes porções de terrenos por pessoas que não tinham pressa<br />
para entrar e sair do Hipermundo. Esses pagavam barato pelas<br />
propriedades e usavam boa parte de suas economias para investir<br />
em programas e renderizações fantásticas.<br />
A construção na esquina da Rua Terracota era uma das<br />
simples. Apenas uma porta, com dois vasos em suas laterais, cada<br />
um com uma tamareira anã – todas as casas que o Cartel não se<br />
incomodava que fossem identificadas possuíam duas palmeiras<br />
dessa espécie na entrada. Duas janelas falsas podiam ser vistas na<br />
fachada, mas era evidente que não possuíam nem mesmo a textura<br />
de falsa-transparência nos vidros. E claro: ela era toda em tom<br />
terracota. O Labrador 3.0 estava ao lado de uma das palmeiras,<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.19 ...
com a perna erguida, lançando um jato de urina extremamente<br />
perfeccionista na lateral do vaso. Pensou que se fosse possível<br />
fazer cães maiores, poderiam resolver o problema de locomoção<br />
no Hipermundo, já que nem veículos nem animais de carga eram<br />
permitidos. Mas era certo que alguém já havia pensado nisso. E<br />
fracassado. Sa-Id girou seu Cartão e nem mesmo chegou a ordenar<br />
ao programa que se autoarquivasse nele. Em um instante o<br />
avatar canino desapareceu. Certificou-se de que o vaso não estava<br />
com nenhuma imagem de urina – o efeito, na verdade, era o mesmo<br />
da baba: sumia antes de tocar em algo – e ergueu o Cartão até<br />
a tranca. Um estalo informativo avisou que ela havia reconhecido<br />
sua identificação e liberado sua entrada. Atravessou a porta como<br />
se não passasse de uma cortina de zeros e uns – o que era verdade.<br />
Se do lado de fora ele havia achado a construção simples,<br />
do lado de dentro ela era irrisória. Todas as paredes eram cinzapadrão<br />
– a cor na qual o sistema modela qualquer entidade de<br />
polígono em três dimensões usadas para simples cobertura de malhas<br />
– e a textura não tinha nem mesmo pontos para sombra. Não<br />
fosse pelo avatar deitado no centro daquele cubo, Sa-Id se sentiria<br />
dentro de um freezer industrial. Não que ele – o avatar – evitasse<br />
totalmente essa sensação, ainda mais parado daquela forma.<br />
Pigarreou e cruzou os braços, impaciente.<br />
– Ei, você – falou, primeiro em sua língua, e em seguida<br />
usou latim-comom novamente, o idioma utilizado praticamente por<br />
todos no Hipermundo, como uma espécie de novo-esperanto –,<br />
vim fazer a entrega.<br />
O avatar não se moveu. Teria travado? Ele nunca havia<br />
visto um avatar travar dentro de uma construção antes. Sabia que<br />
se isso ocorresse na rua, ele automaticamente seria varrido pelo<br />
Pralaya, o programa do Hipermundo que rastreia a inatividade de<br />
códigos. Caso o seu sistema não pudesse ser reinicializado, seria<br />
prontamente enviado para o lixo. Fim de papo.<br />
... 20.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
– Só me faltava essa agora – resmungou, enquanto se aproximava<br />
do corpo estendido e aguardava alguns segundos.<br />
A limpeza de software era feita a cada 4.320.000.000<br />
nanosegundos, coisa de algum dos hindus que botaram a mão no<br />
código primário do Hipermundo. Isso dava uma atualização de<br />
menos de cinco segundos para o avatar, eram feitas dezesseis<br />
varreduras antes dele ser apagado. Qualquer programa que não<br />
respondesse nesse período ia para o grande caldeirão cósmico<br />
binário. Ficou a observá-lo por mais de dois minutos, mas ele<br />
continuou ali, firme, forte e paradão. Aliás, ele estava muito mais<br />
firme do que qualquer outro que tivesse visto antes. A iluminação<br />
era péssima ali dentro, então se agachou para conferir melhor.<br />
O primeiro detalhe curioso foram os furos do cinturão: vazados<br />
com esmero, apresentavam ao fundo a trama da calça jeans.<br />
Era absurdo. Impossível dizer que não era tecido realmente, exceto<br />
pelo fato de não haver nenhuma falha, pelo solto ou sujeira. Queria<br />
muito ter mais luz ali, pois parecia que o brilho do canhão que o<br />
avatar usava no coldre era real. O metal chegava a transparecer frio.<br />
E esse gelo chegava até a medula de Sa-Id no mundo real. Unhas nos<br />
dedos, pelos nos braços – nunca havia visto um avatar com esses<br />
detalhes tão bem-trabalhados, na verdade, nem maltrabalhados. Cílios,<br />
pequenas imperfeições na barba escanhoada e cabelos como os dos<br />
comerciais da Suylex, a maior produtora de avatares do Hipermundo.<br />
“Você nunca viu cabelos tão perfeitos, nem na vida real. Mas nós<br />
renderizamos isso para você se sentir radiante como uma estrela”.<br />
– Esse cara deve ser um dos milionários – vocalizou sem<br />
querer, pensando na nova onda de Clínicas-RV que invadia a<br />
América-Oldeuropean.<br />
Essas clínicas eram locais onde pessoas – com uma combinação<br />
de dinheiro e coragem, ambos em grandes doses – se<br />
internavam e conectavam seus cérebros ao Hipermundo. Era uma<br />
conexão de biohardware, onde centenas de nanofilamentos eram<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.21 ...
implantados em praticamente todo o cérebro do paciente. Um<br />
porco-espinho de fibra de vidro e filamentos de ouro. Irremovíveis,<br />
claro! Você assinava o contrato, eles te esterilizavam, faziam a<br />
acupuntura elétrica e plugavam no Hipermundo. Não existia<br />
desconexão, os danos eram irreversíveis. Os corpos ficavam em<br />
Células de Vida Virtual – “o melhor da biomedicina a serviço da<br />
vida” –, elevados por dezenas de cabos de aço para não estancar<br />
a circulação e criar escarras, presos a parafusos inseridos nos ossos<br />
do “cliente” – “aqui você não é um paciente, é nosso cliente<br />
especial” – e invadidos por sondas, drenos e cateteres para alimentação<br />
intravenosa e um verdadeiro coquetel de medicamentos.<br />
Um corpo assim poderia viver 160 anos. Nenhum chegou até<br />
essa idade, mas era a propaganda que eles usavam. E muito bem.<br />
Custava alguns milhões de Moedas. Na atualidade, um valor que<br />
daria para comprar – ou tomar – um pequeno país. No mundo<br />
virtual já existiam muitos avatares de Pessoas-RV, que era o nome<br />
dado a eles. Milhões demais circulando. Muitos os encaravam como<br />
loucos, outros achavam fantástica a ideia de trocar a realidade<br />
pela virtualidade de uma vez por todas. Esses loucos-fantásticos<br />
normalmente possuíam avatares muito bons. Além do dinheiro<br />
para pagar por eles, usavam um cérebro real para processar o<br />
software, o que possibilitava uma carga de dados descomunal.<br />
O que Sa-Id pensava era: mas não tão descomunal como esse<br />
sujeito aqui.<br />
A sua especialidade de programação envolvia Bio-programação<br />
e Algorimetria Cerebral, por isso entendia os limites de<br />
processamento para um programa – e avatares são programas,<br />
diabos! –, e isso era algo como: “bonito” ou “funcional”. Não<br />
ambos. Certamente foi o que ocorreu com aquele. Tanta perfumaria<br />
embutida que o processamento não deu conta e travou.<br />
Deu pau! Se fosse uma Pessoa-RV – como ele suspeitava que era –,<br />
esse seria o seu fim.<br />
... 22.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
Seus dedos se dirigiram para as pálpebras do avatar para<br />
abrir seus olhos. A renderização da pele era realmente impressionante,<br />
ainda mais quando comparada tão de perto com a de Sa-Id.<br />
Queria ver se ainda havia processamento ou se aquele era um<br />
avatar morto. As pupilas dos avatares oscilavam, ampliando e reduzindo<br />
constantemente conforme dados eram processados. Um<br />
avatar travado teria a pupila congelada. O nome daquilo era<br />
“Gelo”. Coisa de amador, principiante em programação. Cabaço,<br />
como diziam os hackers.<br />
O cano do revólver chegou a entrar alguns milímetros na<br />
testa de Sa-Id.<br />
Ele tinha razão: o aço era gelado.<br />
A mão do Entregador permaneceu no ar, estática, a menos<br />
de meio centímetro do olho esquerdo do avatar. Ele o fitava<br />
com uma realidade inegável. Um pouco de fúria oscilava naquelas<br />
pupilas, com uma dose de espanto, além de uma pitada de pura<br />
curiosidade, mas eram sentimentos calculados e contidos.<br />
Olhos de um assassino, o programador pensou, temendo ter<br />
se borrado no mundo real.<br />
– Sou o Agente de Entrega – Sa-Id gaguejou. Sabia que se<br />
aquele revólver fosse disparado, nada lhe aconteceria no mundo<br />
real, supondo, é claro, que o inglês maldito compreendesse o ocorrido.<br />
E lhe desse tempo para explicar. Porém, na melhor das hipóteses,<br />
ele perderia um avatar. O seu avatar. O que usava levou mais<br />
de 36 horas de programação dura – garimpada e chupinhada pelos<br />
quatro cantos do Hipermundo – para ficar como estava. E<br />
isso, no jargão técnico, queria dizer: bem meia-boca.<br />
O avatar milionariamente real puxou o cano do revólver<br />
para si. Apenas o suficiente para sair do sulco da pele virtual de<br />
Sa-Id. Ergueu-se sem usar as mãos, colocando-se de pé. O outro<br />
ainda permanecia de joelhos, sem ousar recolher o braço, menos<br />
ainda se erguer. Os dois se olharam mutuamente. O da arma<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.23 ...
fitava os olhos de Sa-Id – ambos ao mesmo tempo, era surreal,<br />
assustador pacas. Ele retribuía, encarando as pontas das botas do<br />
outro, curiosamente, as duas ao mesmo tempo também.<br />
– Estou no Hipermundo! – o homem com o revólver<br />
falou.<br />
– Sim, senhor – respondeu Sa-Id, chamando um avatar<br />
com aparência dez anos mais jovem que o dele de “senhor” sem<br />
pensar duas vezes.<br />
A arma quase desapareceu. Em um instante estava ali,<br />
apontada para uma cabeça, no nano seguinte, ocultava-se no coldre.<br />
Sinestesia pura.<br />
– Agente de Entrega?<br />
– Sim.<br />
– Tire os joelhos do chão, homem.<br />
De pé, frente a frente, o avatar era ainda mais intimidador.<br />
Em repouso, deitado, parecia perigoso. Ereto, dava a certeza de<br />
ser. Os olhos do programador caíram no revólver.<br />
– Você é o Pistoleiro do Cartel? – a voz soava tímida.<br />
– Sou Kamal – respondeu com um esgar enojado –, um<br />
pistoleiro. Mas não pertenço ao Cartel.<br />
Sa-Id havia sido enviado para o Hipermundo para despachar<br />
um programa que ele nem mesmo havia criado. As ordens<br />
diziam claramente que ele deveria ir até aquele endereço, encontrar<br />
o avatar do Pistoleiro, entregar a Pérola e se desconectar. Para<br />
ele o fato do avatar à sua frente portar uma grande arma, agir<br />
como um pistoleiro e estar no local certo diziam que este era o<br />
avatar que ele procurava. Kamal foi o nome que ele disse. Não<br />
deram um nome, somente o endereço onde o encontraria, mas<br />
não era importante. Colocou a mão no bolso – lentamente, evitando<br />
dar um sinal de falso perigo, mesmo imaginando que não<br />
conseguiria ter uma aparência de perigoso nem em um milhão de<br />
anos – e retirou dele a Pérola.<br />
... 24.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
– Vim apenas lhe entregar isso – falou, estendendo a mão<br />
com a palma para cima, na qual um objeto perfeitamente redondo<br />
repousava, emitindo um brilho tão fugidio como escamas frescas<br />
de tilápia.<br />
– O que tem aí? – Kamal perguntou com uma expressão<br />
de curiosidade tão real que era possível ver rugas em sua testa.<br />
Reconhecia o objeto. Não era habituado a se plugar constantemente<br />
ao Hipermundo, mas sabia o suficiente daquele lugar<br />
para reconhecer uma Pérola. À sua frente estava uma esfera branco-rosada<br />
que nada mais era do que um invólucro para um trecho<br />
de código que poderia pesar desde dez bytes até muitos terabytes.<br />
E certamente seu nome estava gravado nela – na verdade, parte<br />
de seu código-primal, um tipo de DNA virtual. Se a segurasse,<br />
imediatamente acessaria a codificação ali guardada. Sua mão ficou<br />
quente, se isso realmente era possível para um avatar.<br />
– Não sei. Sou apenas o entregador. Não tenho acesso<br />
ao código embutido, apenas ao pacote externo. Não lhe informaram<br />
nada?<br />
Não, só me disseram que eu iria estar aqui e depois me enfiariam<br />
alguns trabalhos goela abaixo. Em troca, dariam a minha vida novamente.<br />
Ou algo assim.<br />
Kamal pensou nisso, mas não vocalizou. Ao contrário,<br />
estendeu a mão em mutismo e deixou que o outro colocasse a<br />
Pérola nela.<br />
A esfera iridescente se depositou em sua palma, escorrendo<br />
e rolando pelos sulcos, então bambeou, brilhou e se dissolveu,<br />
penetrando em seu código, entremeando seu conteúdo a ele.<br />
Kamal gemeu. Era pior que segurar em uma concertina eletrificada.<br />
Nunca sentiu algo assim antes. E já havia sido baleado três<br />
vezes. Então gritou. Segurava uma mão com a outra. Ardia como<br />
ferro em brasa. Filamentos se desprendiam dela – meio metro, um<br />
pouco mais –, debatendo-se como grandes vermes luminosos.<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.25 ...
As pontas dos filamentos subiam no ar, depois mergulhavam em<br />
seu avatar, como se fossem dedos vasculhando, infiltrando-se nele.<br />
Eu deveria sentir dor neste lugar?, foi o que conseguiu formular. E<br />
nem mesmo era preciso pensar, apenas sentir. Era intensa. Ele<br />
cambaleou e procurou o programador para se apoiar, mas ele<br />
se distanciou. Caiu ajoelhado. Vinte, trinta, quarenta segundos?<br />
Não sabia precisar. Mas da mesma forma que começou,<br />
tudo acabou. Os últimos filamentos mergulharam nele e sumiram.<br />
A dor cessou.<br />
Uma espécie de bruma, formada por códigos danificados<br />
pela programação pesada, envolviam os avatares de Kamal, Sa-Id<br />
e da mulher.<br />
– Que merda foi isso? – Berrou Kamal, dando um salto,<br />
colocando-se de pé. Seu revólver oscilava, ora mirando a cabeça<br />
da mulher arroxeada, ora o local onde deveria estar a genitália de<br />
Sa-Id.<br />
– Você é um programa de quê? – Sa-Id perguntou, olhando<br />
para o avatar triangulado com ele e o pistoleiro, com a aparência<br />
de uma bonita chinesa, que seria sensual até demais, não fosse<br />
a enorme barriga que apresentava.<br />
– Eu não sou um programa – respondeu a garota. – Ao<br />
menos não totalmente. Sou Zi Lin Wong.<br />
O som de um revólver sendo engatilhados fez com que os<br />
dois encarassem Kamal.<br />
– Você é um programador – ele falou, balançando a arma<br />
para a direita. – Você é um programa-não-totalmente – era a vez da<br />
pistola apontar para a esquerda. – Isso pouco me importa. A porra<br />
da dor que eu senti não me preocupa também. Estou cagando<br />
pra vocês dois. Eu só tenho uma pergunta. Vou falar só uma vez,<br />
pausadamente, e se a resposta não for vomitada da boca de um<br />
dos dois, em menos de cinco segundos, Mouse vai vomitar algo<br />
que não vão gostar.<br />
... 26.<br />
... C YBER BRASILIANA ...
Os olhos da chinesa se estreitaram até virarem dois traços,<br />
mas ela limitou-se a arrumar melhor o decote da roupa – pequena<br />
e translúcida demais –, ocultando os seios visivelmente volumosos<br />
pela gravidez. Alguém a vestira com um quimono que nem<br />
mesmo uma prostituta de aldeia vietnamita usaria. Caso não<br />
tivesse a cabeça estourada nos próximos segundos, precisaria<br />
rapidamente trocá-las. Sa-Id, por sua vez, já não estava mais<br />
preocupado com seu avatar ter a cabeça arrancada. A entrega já<br />
havia sido feita e ele não teria que caminhar até o Marco-Centro,<br />
que estava longe demais. Poderia apenas se desplugar dali. Era só<br />
retirar os óculos e fechar a conexão no mundo real, mas havia<br />
uma multa – de uma moeda apenas, mas de grão em grão... – por<br />
saídas sem check-out, além do atraso na próxima conexão – tudo<br />
criado para evitar ao máximo que você se desligasse do<br />
Hipermundo. Muitas vezes o vídeo-óculos também podia travar<br />
e “a desconexão sem a remoção correta de um avatar pode causar<br />
falhas irreversíveis em alguns casos”, e esse percentual era de quase<br />
noventa por cento. Um tiro apenas e seria automaticamente espirrado<br />
dali. Perderia um bom avatar, mas que fosse para o inferno<br />
chipado! Ao menos não teria muita escolha, o que lhe diminuiria<br />
o peso na consciência. Que viesse a pergunta.<br />
– O que eu sou?<br />
Zi Lin e Sa-Id se entreolharam. Não era bem uma pergunta<br />
esperada.<br />
... RICHARD DIEGUES ...<br />
.27 ...
j +<br />
Se você quiser saber mais a respeito do universo de<br />
<strong>Cyber</strong> <strong>Brasiliana</strong>, o autor também publicou contos<br />
realacionados que podem ser encontrados nos livros:<br />
MAI-NI Expressas<br />
no livro Paradigmas 1 (2009, <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>)<br />
Baby Beef, Baby!<br />
no livro Paradigmas 3 (2009, <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>)<br />
Uma Flor a Gambô<br />
no livro Paradigmas 4 (2010, <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>)<br />
Longa Vida: a República!<br />
no livro <strong>Cyber</strong>punk (2010, <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>)
184 páginas - 14x21cm 184 páginas - 14x21cm<br />
Conheça outras obras da <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong><br />
www.tarjaeditorial.com.br<br />
STEAMPUNK<br />
HISTÓRIAS DE UM PASSADO EXTRAORDINÁRIO<br />
Este é o primeiro livro nacional com contos<br />
de temática Steampunk. Ele apresenta nove histórias,<br />
de nove autores fantásticos, que trazem<br />
diferentes pontos de vista sobre o estilo que<br />
desponta cada vez mais na Ficção Científica<br />
Brasileira. Os autores que participam deste livro<br />
são: Alexandre Lancaster, Antonio Luiz M.<br />
C. Costa, Claudio Villa, Flávio Medeiros, Fábio<br />
Fernandes, Gianpaolo Celli, Jacques Barcia,<br />
Roberto de Sousa Causo e Romeu Martins.<br />
A venda nas melhores livrarias ou pelo site<br />
www.tarjalivros.com.br<br />
CYBERPUNK<br />
HISTÓRIAS DE UM FUTURO EXTRAORDINÁRIO<br />
O livro que representa o ápice da literatura<br />
<strong>Cyber</strong>punk nacional. Nove histórias, contadas<br />
por nove autores fantásticos, com seus diferentes<br />
pontos de vista sobre o estilo que mais<br />
vem apresentando inovação na Ficção Científica<br />
Brasileira. Os autores que participam<br />
deste livro são: Débora Vieira Ramires,<br />
Gianpaolo Celli, Luiz Bras, Maria Helena Bandeira,<br />
Pedro Vieira, Ramon Giraldi, Richard Diegues,<br />
Ronaldo Luiz Souza e Ubiratan Peleteiro.