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pequena biografia da mulher ordinária que ... - Sabrina Duran

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Não há história tão grande <strong>que</strong> não possa vir embrulha<strong>da</strong> num trapo de chita, e<br />

nem história tão <strong>pe<strong>que</strong>na</strong> <strong>que</strong> não valha a pena ser li<strong>da</strong> sem motivo aparente.


<strong>pe<strong>que</strong>na</strong> <strong>biografia</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> <strong>ordinária</strong><br />

<strong>que</strong> desejava ser um agrião<br />

Mulher Agrião<br />

2009


ser agrião<br />

Desaconteci. Desconheci de repente o monolito no espelho: eu? Quem? Desfareleci. Dormi sã e<br />

acordei desnoma<strong>da</strong>. Doutor disse <strong>que</strong> era cabeça; mãe disse <strong>que</strong> era cigarro e friagem; padre<br />

apostou em males do espírito – é o coração raquíííítico. Desacreditei um e outra e outro e fui à<br />

feira como num dia normal <strong>que</strong>rendo <strong>da</strong>r motivos pro mundo me reconhecer. Seu Jovélio teria<br />

<strong>que</strong> me <strong>da</strong>r bom dia, dona. Seu Pedro, bom dia, moça, já vai cedo? A calça<strong>da</strong> em atrito com<br />

meus pés projetaria meu corpo para o futuro ali adiante; o cão vagabundo farejaria minhas<br />

pernas pra investigar o entorno em preto e branco; eu mataria formigas sem ver e levaria a<br />

mão à boca ao espirrar; os motoristas aguar<strong>da</strong>riam minha marcha sobre a zebra do asfalto e eu<br />

chegaria à feira sem desditas, repetindo ordinarie<strong>da</strong>des amistosas, irmanando-me com os<br />

humanos ao me guiar pelo mundo usando a bússola <strong>que</strong> todos levamos por dentro: uma tal<br />

<strong>que</strong> aponta pro norte <strong>da</strong> rotina e nos livra dos sustos de tragédias e esplendores<br />

desconhecidos. Tudo sucedeu assim. Por fora. Por dentro não. A paisagem se despigmentava<br />

ou era eu <strong>que</strong> desalvorecia? A barraca de folhas tinha mais vi<strong>da</strong> do <strong>que</strong> eu podia suportar. O<br />

agrião, por exemplo, se soubesse e falasse, diria isso de si: sou verde e parrudo. Crudelíssimo.<br />

Eu sabia, falava, mas não me descrevia. Descria <strong>da</strong> desvantagem <strong>que</strong> levava por saber. Pedi um<br />

maço só pra alimentar a inveja. Paguei e voltei. Na pia, o agrião verdejava sem <strong>que</strong>rer, e eu,<br />

<strong>que</strong>rendo o oposto, desaguentava fininho, um filete de gente. O dia terminou com o telejornal<br />

mostrando imagens de enchentes no norte do país. Na tela, close numa plantação de agrião<br />

submersa; close no dono do campo alagado, um velho curtido chorando o susto <strong>que</strong> sua<br />

bússola não indicou. Aquilo doeu em todos, nos <strong>que</strong> vendiam e nos <strong>que</strong> compravam verduras.<br />

Só não doeu nas folhas afoga<strong>da</strong>s, ignorantes de si mesmas. Bem-aventurados os <strong>que</strong> nascem<br />

agrião, gritava o pastor na TV. Dormitei. Sonhei <strong>que</strong> acor<strong>da</strong>va desaconteci<strong>da</strong> e sem ciência de<br />

ser ao revés, desumana<strong>da</strong> e verdinha, embrulha<strong>da</strong> e vendi<strong>da</strong> na feira como um maço parrudo.


ignorância rejuvenesce<br />

Um tiro. Pá! Seco e <strong>que</strong>bradiço. Corri à janela pra ver <strong>que</strong>m era. Dona Doi<strong>da</strong>, à direita,<br />

levantava o vestido azul de menina rota de Renoir e arriava a calcinha pra urinar entre as<br />

árvores <strong>da</strong> aveni<strong>da</strong> Higienópolis. Imprecava contra as vozes, inimigas suas <strong>que</strong> lhe recor<strong>da</strong>vam<br />

sempre <strong>que</strong>m era. Puta é sua mãe! O tiro não foi pra elas. Dona Doi<strong>da</strong> voltou a dormir no meiofio.<br />

À es<strong>que</strong>r<strong>da</strong>, quatro <strong>da</strong> manhã e ninguém mais existia em matéria na rua Maria Antônia. As<br />

pessoas minguavam às onze e meia e terminavam de existir às duas <strong>da</strong> manhã com os olhos<br />

fechados. Coisa <strong>que</strong> mais me dá poderes sobrehumanos é estar desperta nessas horas em <strong>que</strong><br />

o mundo morre sob a ignorância do sono. Quem mais teria ouvido o tiro senão eu? Quem mais,<br />

às quatro, estaria pronto a investigar a sorte de um qual<strong>que</strong>r atravessado por uma bala<br />

enquanto ele ain<strong>da</strong> agonizava? Quem, senão eu, zumbi no sétimo an<strong>da</strong>r, fumaria com gozo<br />

celebrando a descoberta de um crime oculto até para o assassino, semi-cego na penumbra de<br />

<strong>que</strong>m vi o vulto culpado e nervoso? Quanto poder, meu Deus! Na manhã seguinte, às oito, o<br />

jovem casal do 75 entrou comigo no elevador. Bom dia – eles. Bom dia – eu. Alheios ao crime<br />

<strong>da</strong><strong>que</strong>la madruga<strong>da</strong>, foram à pa<strong>da</strong>ria quase na mesma passa<strong>da</strong> <strong>que</strong> eu. Pegaram a fila do pão<br />

junto comigo e pediram cinco dos mais torradinhos; pedi os dois mais lívidos <strong>da</strong> forna<strong>da</strong>. O<br />

casal tinha uma cara limpa e boa e a boca deles exalava hortelã com juá. A <strong>mulher</strong>, sem mais,<br />

perguntou se eu havia dormido bem. “Passei a noite conhecendo o futuro antes”, pensei. – Sim,<br />

dormi bem, obriga<strong>da</strong> – respondi. A pergunta não era retórica. Pelos vincos nos cantos dos meus<br />

olhos, ela desven<strong>da</strong>va meus superpoderes. Saber demais dá rugas. No fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, terei a<br />

topografia do mundo tatua<strong>da</strong> na cara, e meu rosto estará nas capas dos livros de geografia.<br />

Quanto poder, meu Deus…


estiali<strong>da</strong>de<br />

Fazia um calor de caldeirão bem onde eu não alcançava abanar: no espaço <strong>que</strong> vai do miolo do<br />

osso ao avesso <strong>da</strong> pele, mas sem transpassá-la, na extensão do corpo todo, do calcanhar ao<br />

centro do crânio. O couro <strong>da</strong> alma curtia além <strong>da</strong> resistência <strong>da</strong>s fibras e em breve <strong>que</strong>braria.<br />

No sétimo an<strong>da</strong>r chegou-me, às onze <strong>da</strong> noite, a excitação dos calouros <strong>da</strong> rua Maria Antonia<br />

no primeiro dia de aula. Putas-<strong>que</strong>-os-pariram!, roguei. O burburinho quase abria a janela para<br />

sentar-se ao parapeito e me espiar expiando. Não estivesse eu morta, sem <strong>que</strong>rer misturar-me<br />

ao mundo e suas alegriazinhas sem mais, convi<strong>da</strong>ria uns três <strong>da</strong> multidão pra me soprarem o<br />

tutano a noite to<strong>da</strong> e me ninarem com as marchinhas de grêmio, cornetões e um roçar dos<br />

dedos cheios de tinta nas minhas têmporas. O calor começou no jantar, <strong>que</strong> foi assim: uma<br />

mesinha redon<strong>da</strong>, duas cadeiras (uma vazia), um prato, talheres, um copo e cinco minutos.<br />

Arroz com feijão e couve são execráveis quando não há alguém <strong>que</strong> lhe passe a farinha e<br />

pergunte: tem couve aqui, ó? (apontando entre o canino e o pré-molar); ou: viver te<br />

incomo<strong>da</strong>?. Ô!, eu diria, espargindo farinha pelas bor<strong>da</strong>s do prato, nos cabelos e braços,<br />

<strong>que</strong>rendo mostrar como a vi<strong>da</strong>, à<strong>que</strong>la altura, havia perdido seus encaixes. Abri a janela e atraí<br />

a brisa <strong>que</strong> às duas <strong>da</strong> manhã estava só; os calouros já se haviam ido e com eles a alegria do<br />

mundo. Adormeci ensimesma<strong>da</strong>, emulando as virtudes <strong>da</strong> couve <strong>que</strong> não tem tutano abrasador<br />

e esmiuçando a memória em busca de uma voz <strong>que</strong> ocupasse a cadeira vazia no próximo jantar.<br />

Às duas e meia recebi uma visita. Ela não me despertou, desfrutou-me. Comeu os espólios <strong>da</strong><br />

decomposição do meu corpo, peles, comeu meus pêlos, sugou o suor entre os meus dedos e<br />

percorreu a ponte branca do meu braço <strong>que</strong>rendo alcançar o manancial <strong>da</strong> minha boca aberta<br />

simulando fartura. Despertei antes e pulei <strong>da</strong> cama ao chão com uma rapidez <strong>que</strong> não me<br />

pertencia. Ba-ra-ta-fi-lha-<strong>da</strong>-pu-ta!, gritei. Sob a luz ela recuou, correu para baixo dos lençóis.<br />

Eu a cacei, enfrentamo-nos. Eu venci, mas nem tanto. Esparrama<strong>da</strong>s pela cama, porçõezinhas<br />

de bosta de barata-sacia<strong>da</strong>-com-meu-corpo. Até às quatro não dormi, acua<strong>da</strong> num canto do<br />

sofá comendo sucrilhos com leite no açucareiro (faltavam copos), emulando a bestiali<strong>da</strong>de dos<br />

calouros, a potência <strong>da</strong>s cornetas e marchinhas idiotas, a impassibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> farinha <strong>que</strong> se<br />

deixa manejar sem nunca se <strong>que</strong>ixar do próprio destino. Meus ossos, de tão <strong>que</strong>ntes,<br />

comportavam tutano líquido, e o couro <strong>da</strong> minha alma crestava só d´eu respirar.


impróprio para consumo<br />

Tenho uma saliência no caráter <strong>que</strong> é esta: gente manca me desvirtua o período fértil. Meu<br />

coração umedece com tal água <strong>que</strong> sou capaz, só de olhar um coxo, de conceber e <strong>da</strong>r à luz mil<br />

crianças <strong>que</strong> desenham equívocas formas na areia enquanto correm atrás de cachorros. Tem<br />

razão isso? Aos sete anos de i<strong>da</strong>de meus amigos eram os obesos, os estrábicos, os bestas sem<br />

culpa, os de nariz remelento, os fedidos sem solução, as vítimas de estupro e os de cabelo<br />

vermelho – cheguei a bater num perfeitinho <strong>que</strong> pegou um extintor e o apontou a um ruivo só<br />

pra dele fazer troça. Simetria e fluidez nunca me valeram. Eu arrancava perna de boneca, galho<br />

de árvore e até <strong>que</strong>brava ovo de páscoa nas prateleiras dos supermercados pra <strong>que</strong> tivessem a<br />

cara dos amores <strong>que</strong> eu sabia arregimentar. Talvez, assim, buscasse meus iguais: sempre intuí<br />

<strong>que</strong> era vesga, ruiva, besta e viola<strong>da</strong> por dentro. Restringi meu apreço só aos mancos aos dez<br />

anos, quando meu ventre precoce arrebentou de tanto parir. Agora, aos trinta, me acossam uns<br />

tremores de abstinência. Quero de volta essa gente <strong>que</strong>, aos olhos <strong>da</strong> exatidão, foi entregue ao<br />

mundo num pacote amassado com a <strong>da</strong>ta de vali<strong>da</strong>de venci<strong>da</strong>. Oxalá as fibras do meu útero se<br />

recomponham pra eu parir um hipermercado inteiro, do tamanho universo, só com gente<br />

imprópria pra consumo.


higiene<br />

Decidi escovar os dentes para perpetuar com força a sensação de limpeza <strong>que</strong> escova e pasta<br />

juntas me dão mais <strong>que</strong> um ego te absolvo a peccatis tuis in nomine Patris, et Filii, et Spiritus<br />

Sancti. Com espuma e detritos escorreram pelo ralo to<strong>da</strong>s as impurezas borbulhando nos vãos<br />

<strong>da</strong> gengiva e do pensamento. Escovei meus dentes até <strong>que</strong> se esfarelassem entre as cer<strong>da</strong>s, e<br />

com eles a língua, a mucosa, o palato, as amíg<strong>da</strong>las, depois os ossos e o resto todo <strong>da</strong> cara.<br />

Chamaram-me do lado de fora batendo à porta do banheiro. Queriam entrar. Do lado de<br />

dentro, porém, onde o milagre ocorria, nem um gemido ganharam: de tão limpa, eu já não<br />

estava lá.


amor honesto às canelas finas<br />

Mas foi na página 165 <strong>que</strong> desfaleci de amor pelo príncipe idiota, prolixo e bom, esse de <strong>que</strong>m<br />

Dostoievski emprestou as entranhas de Cristo e as remoldou com massa de biscuit. Frágil e<br />

estupi<strong>da</strong>mente sincero, o príncipe russo me salvou de ter uma pena mortal de mim mesma por<br />

causa <strong>da</strong>s minhas canelas finas. Quando eu quis acreditar <strong>que</strong> to<strong>da</strong> pessoa é intrinsecamente<br />

mentirosa, e <strong>que</strong> a honesti<strong>da</strong>de é uma corrupção do caráter – só assim me livraria do remorso<br />

de mentir <strong>que</strong> não uso saia por<strong>que</strong> frio embaixo me dói nas trompas de falópio –, apareceu-me<br />

o príncipe, no livro, anulando as dubie<strong>da</strong>des do mundo para tornar a ver<strong>da</strong>de mais saliente –<br />

mesmo <strong>que</strong> saliente se tornasse, também, sua idiotice. Quem resistiria à suculência de um<br />

caráter <strong>que</strong> acolhe e expõe num vaso, feito um lírio estupendo, as próprias misérias? Teodora<br />

logo notou <strong>que</strong> eu estava de caso com alguém superior: eliminei a cera inútil <strong>da</strong>s palavras e<br />

passei a suspirar e depilar as pernas com mais frequência. Vai sair?, Teodora me perguntou<br />

numa sexta-feira à noite (eu com um vestido expondo as coxas, nuca à mostra e um buquê nas<br />

mãos). Ãham. E vai aonde? Se eu já havia chegado ao fim do livro, aonde mais iria senão me<br />

casar com o homem <strong>que</strong> me acolhe as misérias? Na carteira do príncipe há, hoje, duas fotos:<br />

uma nossa, nas bo<strong>da</strong>s, e outra só minha, lin<strong>da</strong>, dos joelhos pra baixo – dois lírios estupendos.


lascivi<strong>da</strong>des<br />

– Tem jeito de não <strong>que</strong>rer fazer as unhas?<br />

– Ela insiste pra subir, dona.<br />

– Diz pra ela <strong>que</strong> não preciso.<br />

– Mas ela insiste, tá até com espuminha de manicure e lixa.<br />

– O senhor já tentou insultá-la pra ver se ela desiste?<br />

– Ah, não, dona, ela tem nome de lugar sagrado, Belém (num crescente), Belém! Belééém! E<br />

Belém eu não insulto não.<br />

– Tá, deixa subir.<br />

Não havia princípio, mas o fim último de to<strong>da</strong>s as coisas. Teodora dizia, pra me fortificar<br />

a esperança (ignorando <strong>que</strong> a esperança mortifica <strong>que</strong>m não a tem), <strong>que</strong> o mal estar era<br />

temporário e <strong>que</strong> lá no fim, onde os fios de algodão <strong>da</strong> tapeçaria divina se encontram num<br />

emaranhado disforme, havia uma resposta metafísica tão lógica e sublime <strong>que</strong> eu morreria de<br />

êxtase ao descobri-la, feito Santa Teresa com a flecha no peito, cara de gozo e um novelo nas<br />

mãos. Teodora, depois de dizer isso, puxou-me pelo braço e colou a boca na minha orelha pra<br />

sussurrar uma frase <strong>que</strong> ninguém mais no mundo ouviria: “a ignorância é o <strong>que</strong> te mata, mas<br />

farejar a felici<strong>da</strong>de é o <strong>que</strong> te mantém viva”.<br />

– As unhas? (suspiro) Sim, Belém, <strong>que</strong>ro feitas.<br />

Teodora só não me disse <strong>que</strong> para desfazer o mafuá divino eu teria <strong>que</strong> percorrer cordinha por<br />

cordinha, ora me equilibrando sobre elas, ora com os pés suspensos, segura<strong>da</strong> aos fios e<br />

aguentando nos pulsinhos de canário meu peso de mundo. Só assim eu conheceria os caminhos<br />

do Senhor e saberia, no fim dos tempos, por onde começar os trabalhos de eluci<strong>da</strong>ção do<br />

mistério de uma vi<strong>da</strong> inteira.<br />

– Belém, cui<strong>da</strong>do com esse bife, catzo! (sangue)<br />

Belém decepava meus cantinhos com o pretexto de invadir minha vi<strong>da</strong>. “Ai, olha essa carne<br />

sangrando, essa carne, essa carne… você tem (pigarro) ééé… tem feito (pigarro)… isso de…<br />

(tosse)”.<br />

– Sexo, Belém?<br />

(Belém enrubesce, baixa os olhos e seca meu sangue com um paninho; depois, ajeita a me<strong>da</strong>lha<br />

do Carmo no peito pra proteger as entranhas do <strong>que</strong> vai ouvir)<br />

– Belém, por <strong>que</strong> continuar na superfície? Prefiro te descrever o céu. O céu me cobre sem pesar<br />

no meu corpo, não me ofende, nem por dentro, nem por fora. Me sopra de um lado pro outro<br />

<strong>que</strong>rendo <strong>que</strong> eu sinta a gravi<strong>da</strong>de zero brotando <strong>da</strong>s suas mãos sem digitais. Se eu digo <strong>que</strong><br />

pare, ele não para de todo, antes, me ludibria com sopros no pescoço enquanto son<strong>da</strong> meu<br />

corpo pra descobrir onde <strong>que</strong>ro ser toca<strong>da</strong> sem angústias. O céu é todo liso e sem bor<strong>da</strong>s.<br />

Quando a chuva abun<strong>da</strong>, ele verte, e não me molha só partezinhas do corpo, como as unhas<br />

<strong>que</strong> você umedece nesse potinho de plástico com cinco furos. Me molha de todo, de súbito, e<br />

de mim, em segundos, só diz a água, <strong>que</strong> do céu é a promessa de amor perene: quando não me<br />

refresca por fora, me li<strong>que</strong>faz por dentro. Não me deixa nunca. Por tudo isso, Belém – e apesar<br />

do artigo “o” e do pronome “ele” <strong>que</strong> o antecedem quando o invoco – concluo <strong>que</strong> o céu não é<br />

homem. O céu é uma <strong>mulher</strong>, uma mu-lher, Belém. Entende isso?<br />

Belém tossiu e perguntou se eu <strong>que</strong>ria esmalte claro perolado.<br />

– Não, <strong>que</strong>ro carmim, o carmim <strong>que</strong> tingia o corpo de Santa Teresa quando ela desenrolou o<br />

novelo divino e gozou por to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de.


novas devoções<br />

Abri a janela para despejar uma varejeira camufla<strong>da</strong> no voal e aproveitei pra gritar e ver se me<br />

livrava de mim também: Eloi, Eloi, lama sabachthani? Isto é, Senhor, Senhor, por <strong>que</strong> me<br />

abandonaste? Dos céus (11º. an<strong>da</strong>r) chegou a resposta: não chama Eloi, não, sua anta, <strong>que</strong> é<br />

cedo e ele vai acor<strong>da</strong>r puto com você! Te desce um cacete <strong>que</strong> ce nem vê e eu ain<strong>da</strong> chamo o<br />

zelador pra te multar! Voltamos a dormir, a varejeira e eu. Nos sonhos, Eloi, com barba branca<br />

e uma receita azul na mão, apareceu-me dizendo um chiste assim: Louva<strong>da</strong> seja Nossa Senhora<br />

Duloxetina. Eu, sob efeito <strong>da</strong>s graças <strong>da</strong> santa, respondi com a boca mole: para sempre seja<br />

louva<strong>da</strong>.


invisível monossílabo<br />

Escrevo palavras rudes sem pudor e engrandeço: caibo, carvalho, poroso, cominho, própolis,<br />

cação, matilha, violáceo, papua nova guiné. Isso é grave, doutor? Doutor botou luvas de látex<br />

temendo pegar rudeza pelas mãos. Escreve coentro, também? Escrevo! E feito uma louca!<br />

Escrevo coentro em memorando, em carta de amor, em contrato, em receita de torta, porta de<br />

banheiro, em folha de che<strong>que</strong>, banco de ônibus e post it. Só me falta escrever em bilhete<br />

suici<strong>da</strong>. Humm. Escreve compulsivamente, então? Sim. Alguém te lê? Não, nunca. Por quê?<br />

Por<strong>que</strong> o mundo não tá pra rudezas. Hoje o povo (povo é rude) prefere essas mais leves assim:<br />

marola, morango, groselha, mana<strong>da</strong>, facha<strong>da</strong>, isopor, valeta, vagina, pênis, pinto... pênis ou<br />

pinto, doutor? Pinto (disse o doutor, em sussurro). Tem cura? Humm, grave. Grave?!<br />

Parece...vejamos: experimenta dizer me-ren-gue. Não sai. Não sai? Não, é suave! Não sai e<br />

ponto. Doutor pegou o estetoscópio (ai, estetoscópio me assanha de tão voraz vocábulo <strong>que</strong> é)<br />

e me auscultou o coração. Ouve o quê, doutor? Tu tum, tu tum. Ai, não fala isso <strong>que</strong> o senhor<br />

me assassina! (por tão rude onomatopéia eu me derreti). Não falo o quê? Tu tum? Ai ai, é, não<br />

fala, não faaala! Doutor emudeceu e arredou a cadeira pra longe de mim. Pegou papel e<br />

caneta. Na receita, mandou manipular uma solução concentra<strong>da</strong> em 100% de monossílabos a<br />

serem repetidos (e não escritos) em grupos de cinco a ca<strong>da</strong> duas horas e à meia-voz. Em uma<br />

semana, doutor aguou minhas artérias. Hoje, só escrevo cu em guar<strong>da</strong>napo de papel<br />

translúcido de boteco. O povo continua a não me ler: cu é quase invisível quando grafado com<br />

marca-texto azul-bebê.


ligeirezas<br />

Teodora vive em descompasso. Acredita na bon<strong>da</strong>de absoluta e na redenção pela cruz. Tem um<br />

coração sem gorduras, filé mignon. “Os corações não há <strong>que</strong> calcá-los com os pés, mas flutuar<br />

sobre eles, e tratá-los às lambi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> língua escova<strong>da</strong> e umedeci<strong>da</strong>”, diz, enquanto pisam-lhe o<br />

órgão com um coturno amarelo Dr. Martens forrado de bosta na sola. Prosperará Teodora?<br />

Oxalá. Afinal, ain<strong>da</strong> faz sol onde ela habita.


estéticas sanguessugas<br />

Calhou essa vez de sairmos à rua e toparmos com o obelisco de algodão doce do moço do<br />

algodão doce. Calhou d´eu pegar dois pra comer na hora e mais um pra deixar na bolsa. É assim<br />

<strong>que</strong> Teodora me cura uma vez por semana, arrastando-me pro sol e pras coisas vulgares <strong>da</strong> rua<br />

Maria Antonia. An<strong>da</strong>r e ver é profilático, ela diz, e nos alcança a graça <strong>da</strong> convivência, ain<strong>da</strong><br />

mais quando tudo o <strong>que</strong> a gente não <strong>que</strong>r é a vivência com. Mas na<strong>que</strong>la manhã eu já havia<br />

alforriado a casmurrice e feito voto de silêncio, sobre o qual comuni<strong>que</strong>i Teodora com um<br />

bilhete na porta: hoje não falo. O algodão doce foi ameni<strong>da</strong>de de um suspiro só. Concedi e sorri<br />

pro ambulante quando ele apertou a buzininha de palhaço. Casmurrei de volta e puxei Teodora<br />

pelo braço a caminho do cemitério. Só lá eu poderia calar sem <strong>que</strong> ela insistisse em me ensinar<br />

superiori<strong>da</strong>des – por respeito, Teodora não fala entremortos. Em quase duas horas passamos<br />

por mais <strong>da</strong> metade <strong>da</strong>s alame<strong>da</strong>s. E não houve ali nenhuma poesia cliché de jardim mortuário<br />

edificante – farfalhos, luz solar entre copas de árvores, revelações anímicas. O passeio foi é<br />

violento. As lápides e os coveiros estavam tão imundos e rotos e as flores nos vasos tão<br />

desbeiça<strong>da</strong>s <strong>que</strong> o estar morto me pareceu uma grandissíssima brutali<strong>da</strong>de estética. Salvavamse<br />

<strong>da</strong> feiúra endêmica apenas alguns anjos de pedra e suas panturrilhas com grossas artérias.<br />

Parecem sanguessugas vivas. Foi tudo o <strong>que</strong> eu disse na<strong>que</strong>le dia.


profecia<br />

Dia de cruel<strong>da</strong>de é quando crio um personagem e o suicido pra experimentar nele a morte <strong>que</strong><br />

não assumo.


malama<strong>da</strong><br />

Malama<strong>da</strong> Belém, <strong>que</strong> nunca jamais se<strong>que</strong>r pra sempre amou ousou amar ou amará vestígio e<br />

nem borrão de homem de carne-e-defeito. E agora, veja se aceito, <strong>que</strong>r me enganar <strong>que</strong> o<br />

amor <strong>da</strong> Terra é pastiche só por<strong>que</strong> estou com essas fra<strong>que</strong>zas no sistema nervoso central. Se<br />

ela é célibe, o <strong>que</strong> me toca nisso? Sou lá ambão de vocação alheia? Belém acha <strong>que</strong> me eleva o<br />

espírito à custa de rebaixar o <strong>que</strong> sinto pelos homens <strong>da</strong> Terra. Ora, Belém – impre<strong>que</strong>i –, façame<br />

o favor e o bigode (o seu), por<strong>que</strong> isso, pra mim, é intriga de <strong>mulher</strong> com buço perpétuo.<br />

Falha-me o trânsito <strong>da</strong> serotonina, mas não a inteligência do coração. Que mal me faço se<br />

permito ao homem <strong>que</strong> elejo <strong>que</strong> me deixe em transe de amor ao abrir para mim sua maçante<br />

rotina só pra me amalgamar nela?; se permito <strong>que</strong> me esten<strong>da</strong> o bruto pé às nove <strong>da</strong> noite<br />

pr´eu lhe azeitar as ranhuras e, às dez, <strong>que</strong> me azeite ele mesmo como melhor lhe convém?;<br />

qual transcendente código do amor puro eu infrinjo se deixo <strong>que</strong> o homem eleito me admire os<br />

glúteos, <strong>que</strong> confun<strong>da</strong> meus glúteos com outros, <strong>que</strong> me perca por descuido, <strong>que</strong> me resgate<br />

quando desespera, <strong>que</strong> me traia por fra<strong>que</strong>za e <strong>que</strong> me traga, pra me surpreender a vi<strong>da</strong> e<br />

angariar meu perdão, pizza de calabresa e um buquê de crisântemos sortidos <strong>que</strong> nem por<br />

inspiração divina ele aprenderá <strong>que</strong> odeio um e outro? Veja, Belém, aqui na Terra, uma<br />

calabresa honesta pode ser tão redentora quanto a Cruz Santíssima num dia de arenga<br />

conjugal. Sou só humana, e me dou melhor com meus iguais de barro. Malama<strong>da</strong> Belém, se a<br />

curiosi<strong>da</strong>de não te ofender a consciência, mete a mão no húmus e aceita ser gente pelo menos<br />

uma vez; comece por se purificar do pecado <strong>que</strong> te exila <strong>da</strong> espécie: acaba já com esse bigode,<br />

por<strong>que</strong> homem <strong>da</strong> Terra é bronco, mas gosto transcendente ele tem.


eceita ideal<br />

O bloco de receituário ideal é púrpura com rajadinhos degradê em tons de amarelo. Sem o<br />

branco habitual dos sisudos blocos timbrados – ou o fatídico azul para a prescrição de remédios<br />

guar<strong>da</strong>dos nas salinhas proibi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s farmácias – o paciente sairia <strong>da</strong> consulta com menos pena<br />

de si do <strong>que</strong> entrou – mais de carne e fibras, portanto, e menos de isopor derretido. Nos blocos<br />

púrpura, a receita para os <strong>que</strong> têm nariz aquilino, por exemplo, seria um quadro de si mesmo –<br />

pintado de perfil por um artista canastrão – pendurado à entra<strong>da</strong> de casa (em tratamentos de<br />

cho<strong>que</strong>, haveria uma inscrição ao pé do quadro: aqui mora um nariz). Para os <strong>que</strong> sofrem de<br />

desinteria, vitamina de paçoca Amor e café pernoitado – <strong>que</strong>nte, pra expurgar os males num só<br />

jato. Para os sem talento, uma apresentação, em rede nacional, <strong>da</strong>s suas melhores<br />

desabili<strong>da</strong>des. Aos feios, a cura no bloco púrpura estaria prescrita numa mono-setença: raspecabelos-sobrancelhas-e-valorize-os-traços-<strong>que</strong>-não-se-coadunam-adote-a-feiúra-comopropósito.<br />

Para os difíceis males conceituais dos <strong>que</strong> muito se subjetivam, a receita mais<br />

simples cintilaria: testemunhar crianças num par<strong>que</strong> desvirtuando o mundo com seus<br />

empirismos de sonho: se eu plantar sementes de várias frutas no mesmo lugar nasce árvore de<br />

tu-ti-fru-ti. O médico ideal tem apenas blocos púrpura em sua maleta, e vai ao circo to<strong>da</strong><br />

semana pra ter ideias de curas milagrosas.


metáfora de carnaval<br />

A vi<strong>da</strong> é um nabo. Quem disse isso? Alguém sem verve <strong>que</strong> me disse. Nem ri. Por<strong>que</strong> a vi<strong>da</strong> não<br />

é nabo e metáfora alguma a faz mais palatável ou cabível. A vi<strong>da</strong> é uma, e dela só sabe <strong>que</strong>m é<br />

o dono. Eu sou <strong>ordinária</strong> em sentido lato, e é dessa virtude <strong>que</strong> me valho pra existir sem prestar<br />

contas do pe<strong>que</strong>nino <strong>que</strong> também sou. Penteio o cabelo sempre no mesmo sentido, amaino<br />

dores prosaicas com paracetamol e repouso, faço planos, amo, minto por necessi<strong>da</strong>de, nunca<br />

por convicção. Quem acha <strong>que</strong> digo isso pra chocar é por<strong>que</strong> ain<strong>da</strong> não viu minhas calcinhas<br />

esgarça<strong>da</strong>s pendura<strong>da</strong>s no box. Isso, sim, é uma afronta. Dói? Em mim não, por<strong>que</strong> gente é<br />

assim, escatológica e poética, um nobel de física com uma puta unha encrava<strong>da</strong> no dedão (isso<br />

é metáfora pior <strong>que</strong> nabo). Se for pra eleger, metáfora boa é carnaval por<strong>que</strong> cabe em quase<br />

tudo: sexo, família, morte e outras pastagens são carnavais de infinitos sentidos. Do carnaval<br />

sem metáforas gosto mesmo é <strong>da</strong> fantasia. Já fui cigana, cachorro, monstro e abacaxi de um<br />

metro e vinte. Transubstancia<strong>da</strong>, é no carnaval <strong>que</strong> perco a vergonha de não saber <strong>da</strong>nçar e me<br />

descubro melhor <strong>da</strong>nçarina <strong>que</strong> todo mundo. Fantasia é coisa tão séria <strong>que</strong> não tiro a minha do<br />

corpo até <strong>que</strong> ela perca a última lantejoula. Mas fantasia <strong>que</strong> não se repara logo depois <strong>da</strong> festa<br />

descolore e míngua até ficar irreconhecível, como os amores <strong>que</strong> planto no baile e não rego. E<br />

isso não é uma metáfora.


no fim era o verbo<br />

Houve um concurso de originali<strong>da</strong>des. Levaram pra sala ca<strong>da</strong>rço feito com arame, caderno<br />

encapado com folha de bananeira, bolinha de gude <strong>que</strong> virava comestível depois de lava<strong>da</strong><br />

(azeitona galega sem caroço) e até um apagador de lousa com um cotoco de giz na ponta <strong>que</strong><br />

apagava enquanto escrevia – ou o contrário, segundo a vontade de <strong>que</strong>m o empunhava. Era<br />

tanto invento <strong>que</strong> a professora retirou carteiras <strong>da</strong> sala pra fazer caber as crianças-e-suas-criassem-par.<br />

Eu levei minha originali<strong>da</strong>de na boca: a palavra palavra. Mas a palavra palavra já foi<br />

inventa<strong>da</strong> assim como é – disse a professora. Mas não foi inventa<strong>da</strong> assim como está –<br />

repli<strong>que</strong>i. Como estava, na minha boca, a palavra palavra era outra coisa, borbulhava por<strong>que</strong><br />

eu lhe <strong>da</strong>va o portento de <strong>da</strong>nçar sozinha na minha língua (raciocínio assim eu não tinha na<br />

época; intuía mais <strong>que</strong> pensava). Prossegui como num púlpito: todo mundo repete palavras<br />

sem saber <strong>que</strong> elas são PA-LA-VRA; ninguém fala palavra sozinha, assim, palavra, palavra,<br />

palavra. Eu falo: PALAVRA! (e sorri sem respaldo pra caras muxibentas de tédio). O menino do<br />

ca<strong>da</strong>rço de arame, pra me tirar a glória <strong>da</strong> réplica e o prêmio do concurso (dois pintinhos vivos<br />

tingidos de rosa), advogou para o diabo já aos 8 anos: mas é claro <strong>que</strong> fala! A professora<br />

mesmo fala nas lições <strong>que</strong> pede, por exemplo, pesquisem pa-lllllllllaaaa-vras no dicionário –<br />

quanta mal<strong>da</strong>de pode haver numa língua <strong>que</strong> se prega no palato. A classe despencou em<br />

buuuus e uuuus e risadinhas de agulha. Eram todos pra mim. Quase chorei, mas preferi perder<br />

a candura. Tirei tênis, meias, fui até uma <strong>da</strong>s extremi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sala e agachei quase tocando a<br />

bun<strong>da</strong> no chão. Caras de espanto me pediam <strong>que</strong> não, mas eu lhes so<strong>que</strong>i meu sim pelos olhos<br />

e ouvidos: atravessei a sala de ponta a ponta cinco vezes pulando como um sapo e repetindo<br />

PALAVRA aos gritos. Parei por cansaço. E então, professora, alguém fala palavra assim? –<br />

desafiei. Aterroriza<strong>da</strong>, a mestra quis me exorcizar – a voz quase não lhe saía: menina...<br />

menina... é Deus o autor <strong>da</strong> palavra como ela é, do verbo... desde... desde o princípio. Deixei a<br />

sala sem pedir licença e fui ao jardim cutucar lagartas com graveto. Vencer concurso de<br />

originali<strong>da</strong>des tendo Deus como concorrente é tarefa inexpugnável pra <strong>que</strong>m nasceu depois do<br />

mundo.


abundâncias<br />

Em Sevilha, na Espanha, está abolido o sibilar dos ésses e dos cês e o vibrar dos zês por<strong>que</strong> lá os<br />

dentes e a língua abun<strong>da</strong>m na boca <strong>da</strong>s pessoas. Sevilhano diz Zapatos, dieCiocho, ceniCienta e<br />

come biscoito de aCeite y aZúcar com uma suculenta línguaentredentes. É um povo <strong>que</strong><br />

submete a própria carne ao fio traiçoeiro dos incisivos centrais pra dizer ameni<strong>da</strong>des. Não<br />

serão todos vermelhos de vontade e bravura por dentro? Em São Paulo, descobri e visitei uma<br />

cartomante sevilhana só pr´ela me descortinar o futuro em espanhol. Hija mía, mientras estés<br />

como los perros <strong>que</strong> buscan en la basura qué comer – tu buscas qué vivir –, saca provecho pa´<br />

<strong>que</strong> tu corazón crezca en humani<strong>da</strong>d, pues sólo cuando el hombre toca lo <strong>que</strong> no hay de hombre<br />

en si mismo es <strong>que</strong> puede ser más hombre <strong>que</strong> los demás, pues mira al prójimo a los ojos<br />

buscando en ellos, como en dos luceros, la clari<strong>da</strong>d de su humani<strong>da</strong>d perdi<strong>da</strong>. Hay <strong>que</strong><br />

engrandecer el corazón, hija mia, hay <strong>que</strong> engrandecer el corazón!, ela me disse, com<br />

perdigotos flamejantes – co-ra-zón entredentes – chamuscando minhas pupilas.


dia de abadessa<br />

A abadessa Joana Angélica escalava o muro do convento às três <strong>da</strong> manhã. Com a mão<br />

es<strong>que</strong>r<strong>da</strong> e as pernas enrola<strong>da</strong>s à teresa feita com lençóis, ela descia os três an<strong>da</strong>res do forte;<br />

com a mão direita, cortava os compridos cabelos usando uma tesoura de costura. Os fios<br />

castanhos caíam no pátio e formavam um círculo orgânico sobre o qual a religiosa despencou<br />

faltando dois metros para chegar ao solo. À<strong>que</strong>la altura, ela já estava com os cabelos à João. As<br />

demais religiosas haviam fugido do convento minutos antes usando o jardim dos fundos;<br />

coordenara a fuga a própria abadessa, <strong>que</strong> amava suas irmãs e as protegia mais do <strong>que</strong> a si<br />

mesma. Restavam ain<strong>da</strong> alguns segundos para <strong>que</strong> Joana Angélica terminasse de se guarnecer<br />

antes <strong>que</strong> os sol<strong>da</strong>dos portugueses invadissem o convento. Com a tesoura rasgando a pele <strong>da</strong><br />

cabeça, ela cortou o máximo <strong>que</strong> pôde dos cabelos. Ao renegar o próprio corpo e revestir-se<br />

com a valentia do altruísmo, Joana se preparava espiritualmente para o martírio <strong>que</strong> esperava<br />

por ela na ponta <strong>da</strong>s baionetas e do pênis dos sol<strong>da</strong>dos. Quando os militares finalmente<br />

chegaram ao pátio, sóror Joana Angélica colocou-se feito muralha diante deles, careca e com os<br />

braços abertos em cruz, ao modo do esposo morto há quase dois mil anos. Só passarão por<br />

aqui por cima do meu cadáver, ela disse. Os militares passaram, claro, mas não sem antes lhe<br />

roubar a pureza <strong>que</strong> era só do Cristo. Fecharam-se as cortinas. Foi com essas licenças poéticas<br />

<strong>que</strong> um desconhecido dramaturgo contou, no teatro, a história <strong>da</strong> abadessa Joana Angélica de<br />

Jesus, <strong>que</strong> morreu defendendo o convento <strong>da</strong> Lapa, na Bahia do século XIX. Eu, <strong>que</strong> não temia<br />

inimigos externos, mas a mim mesma, cheguei em casa a<strong>que</strong>la noite e cortei tudo o <strong>que</strong> pude<br />

dos meus cabelos e roupas com uma navalha. Despi<strong>da</strong> do <strong>que</strong> me guarnecia por fora, tive <strong>que</strong><br />

buscar refúgio no <strong>que</strong> havia de abadessa por dentro.


cirurgia<br />

Teodora, não me ama assim, tanto, de graça, <strong>que</strong> eu não suporto. Não é <strong>que</strong> não te alcanço o<br />

amor por<strong>que</strong> não <strong>que</strong>ro, é por<strong>que</strong> nasci com um defeito: 8 costelas a mais, to<strong>da</strong>s muito<br />

juntinhas ao redor do coração – ele, feito pelicano sentenciado em gaiola de apartamento, tem<br />

<strong>que</strong> sair pra ser. Mas chave de coração encarcerado é coisa <strong>que</strong> só existe em poema naif <strong>que</strong> a<br />

gente escreve na segun<strong>da</strong> série. Hoje a vi<strong>da</strong> tem muros e cerca elétrica. Quer um conselho,<br />

Teodora? Não tenta abrir a gaiola com as mãos delica<strong>da</strong>s. Bota um coturno, toma distância,<br />

corre e me arrebenta a porta com uma voadora no peito. O <strong>que</strong> escapar é teu.


por uma cabeça de alho<br />

Mortali<strong>da</strong>de é defeito pétreo e me dá pudor, pois é certo <strong>que</strong>, morta, serei despi<strong>da</strong>, vista com<br />

lupa, terei as tripas e reentrâncias remexi<strong>da</strong>s (e também meus cadernos), perscrutarão minhas<br />

gavetas, meus segredos embaixo <strong>da</strong> cama e os testemunhos <strong>da</strong>s pessoas <strong>que</strong> falarão de mim no<br />

meu velório. Por contraposição de <strong>da</strong>dos, descobrirão <strong>que</strong>m fui e eu não estarei lá pra me<br />

defender. E se estiver, feito uma geléia translúci<strong>da</strong> como se vê nos filmes, vou tapar os ouvidos<br />

pra não sofrer a vergonha alheia pelo <strong>que</strong> está sendo dito <strong>da</strong><strong>que</strong>la coisa desanima<strong>da</strong> ali<br />

estendi<strong>da</strong>. Minha pudicícia maior é <strong>que</strong> em suas escavações particulares, meus amigos<br />

descubram <strong>que</strong> não fui uma, mas tantas, e <strong>que</strong> menti sobre meus nomes. A morte me dá<br />

pudor, mas não chego aos cúmulos. Sei de gente (<strong>mulher</strong>, claro) <strong>que</strong> sai de casa prepara<strong>da</strong> pra<br />

morrer na rua: depila<strong>da</strong>, calcinha boa, batom e banho tomado. O <strong>que</strong> me cumula na morte é<br />

seu poder de me tornar relapsa. Basta a metafísica apertar além <strong>da</strong> conta e me embaralhar a<br />

vi<strong>da</strong> pr´eu me sentar na poltrona e não <strong>que</strong>rer sair de lá nunca mais. Puta mer<strong>da</strong>, eu penso, e<br />

me sento em segui<strong>da</strong>, com antolhos de burro numa têmpora e outra. Por<strong>que</strong>, se tudo acaba ali<br />

no fim <strong>da</strong> rua, qual a necessi<strong>da</strong>de de retomar a marcha? Mas esse é um pensamento grosseiro<br />

– um pensar vagabundo, de gente com antolhos. Por<strong>que</strong> é evidente <strong>que</strong> na<strong>da</strong> acaba ali no fim<br />

<strong>da</strong> rua. E não falo <strong>da</strong> alma <strong>que</strong> vira geléia translúci<strong>da</strong> e continua vagando por aí depois <strong>da</strong><br />

morte, peladinha e flutante. Falo do amor dos vivos <strong>que</strong> reverbera mesmo quando não<br />

estamos, desse amor comezinho de <strong>que</strong>m, por exemplo, liga dizendo <strong>que</strong> vai ao mercado e<br />

pergunta se não precisamos de alho em casa ou alguma coisinha assim. Nesse telefonema<br />

ordinário o alho é pretexto, e a pergunta nele inscrita é: você vive? Como defrau<strong>da</strong>r alguém<br />

cujo cui<strong>da</strong>do amoroso é oferecido ao preço simbólico de uma cabecinha de alho? Abandono a<br />

poltrona uma vez e outra. É o amor dos vivos, e não a certeza do esquife encalacrado no solo, o<br />

<strong>que</strong> me força a marcha e me enraiza na Terra.


déjà vu<br />

Havia um perfume, perfeições cola<strong>da</strong>s com durex na parede, cabelos, coxas e fotos do futuro,<br />

<strong>mulher</strong>es árabes de rosto velado, meia-noite, asfalto, silêncios e solitários frevos. Mariposas de<br />

carne faziam a ron<strong>da</strong> em torno de um frasco amarelo cravado no meio <strong>da</strong> sala. No rótulo,<br />

capitulares gritavam: pega, é amor em potência. Mas, de repente, eu não tinha mãos, tinha<br />

uma só pata de cavalo. Acordei, e o frasco ficou preso no sonho.


venho por meio desta<br />

Ai, como me mortificou a miséria <strong>da</strong><strong>que</strong>la <strong>mulher</strong> <strong>que</strong> assinava “um tipinho retraído” nos<br />

classificados <strong>da</strong> revista Grande Hotel, de 1952. Ela gemia assim: nunca amei, anseio por ser<br />

ama<strong>da</strong>, sou tipo mignon, morena clara, cabelos compridos levemente ondulados, 21 anos, 1,55<br />

m, trabalhadeira, pobre, simples e sincera; almejo corresponder-me com rapaz de altura e i<strong>da</strong>de<br />

superiores às minhas, <strong>que</strong> seja livre e de coração honesto, sincero, trabalhador e com boas<br />

intenções. Assinado: Um tipinho retraído (Cachoeira do Sul). Ver<strong>da</strong>de <strong>que</strong> até engrandeci lendo<br />

aquilo, por<strong>que</strong> a miséria alheia tem essa delícia vil de nos amplificar diante de <strong>que</strong>m está de<br />

joelhos ou prostrado – mas isso ninguém biografa. Retratei-me indo até 1952, à casa <strong>da</strong> <strong>mulher</strong><br />

do anúncio. Perpetrei um milagre para fazê-la feliz: dei-me bigodes, 1,75 de altura, colete vinho<br />

e, em vez de uma caixa de bombons finos escondi<strong>da</strong> às costas, levei na lapela um coração cheio<br />

de misericórdia e um bocado de lascívia – não se salva <strong>mulher</strong> só com bon<strong>da</strong>de. Disse-lhe <strong>que</strong><br />

era o rapaz implícito na carta, <strong>que</strong> também era de Cachoeira do Sul e <strong>que</strong>, além de tudo, tinha<br />

bons rendimentos, uns aplicados e outros na carteira. Ela atirou-se aos meus pés feito aos de<br />

um Cristo prestes a ascender. Aderiu ao meu corpo com as unhas em gancho e eu ao dela,<br />

enroscando-a com um insuportável amor à sua pobreza de cortinas de chita e às suas nádegas<br />

intactas. Entendemo-nos. Ela já não podia mais dizer <strong>que</strong> nunca fora ama<strong>da</strong>. Suspendi-a do<br />

chão, ajudei-a a vestir a anágua e a camisola de flanela, beijei-lhe a testa e saí, transfigura<strong>da</strong> de<br />

misericórdia, pronta a soprar esperança no coração de to<strong>da</strong>s as mocinhas retraí<strong>da</strong>s de 1952.


forca<br />

Achei <strong>que</strong> adivinhava. A palavra <strong>da</strong> vez no programa de tv tinha sete letras, apenas duas eram<br />

vogais. S era a primeira, a terceira, N, a quarta, G, a quinta era R, depois A, e R de novo.<br />

S_NGRAR. Sangrar! Sangrar!, eu gritei ao telefone. A buzina tocou em reproche, vaias<br />

enlata<strong>da</strong>s, gongo, prêmio perdido. Não era sangrar. Marea<strong>da</strong> com minha desatenção, Teodora<br />

saiu <strong>da</strong> sala com as velas recolhi<strong>da</strong>s, um barco à deriva cuja salvação está na mesma vogal <strong>que</strong> a<br />

mim faltou.


para fariseus<br />

Gozoso é o mistério do fio <strong>da</strong> faca <strong>que</strong>, chega<strong>da</strong> a hora, lanhou feio meu rosto, abrindo um<br />

extenso mar <strong>que</strong> depois secou. Gozoso é o talho esturricado e franzido contrastando com o<br />

sorriso intacto, dizendo dele <strong>que</strong>, se sorriso fora antes do corte, agora tanto mais, com a cicatriz<br />

medonha emoldurando a expressão de gozo interior, os dentes expostos e brilhantes de<br />

esmalte a subjugar, precisamente, a cicatriz medonha. E por <strong>que</strong> você escolheu contemplar os<br />

mistérios gozosos logo hoje, sexta-feira, <strong>que</strong> é dia dos dolorosos do Cristo?, perguntaram-me,<br />

com as boquinhas franzi<strong>da</strong>s em cu, cheias dum escân<strong>da</strong>lo ortodoxo. Por<strong>que</strong> agora mesmo o<br />

Cristo não está no madeiro, deixou o trono e me busca para me levar ao baile. Ao baile?!,<br />

empertigaram-se. Pois sim, ao baile. É quando ele descansa. Mal estava seca a espuma rábica<br />

dos fariseus e o Cristo chegou, todo lindo, nu e sem cravos. Quer <strong>da</strong>nçar?, perguntou-me, sem<br />

se preocupar em esconder de mim o punhal. Quero, respondi, e ele, terníssimo, penetrou outra<br />

vez a lâmina na carne do meu rosto, rasgando minha boca no lado direito, do vértice ao lóbulo.<br />

Abriu-se o mar vermelho. A espuma <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s fugidias tremulava e soava como valsa. Ele me<br />

tomou pela cintura e disse <strong>que</strong> não me importasse com seu sexo, pois ali as distrações do<br />

mundo estavam to<strong>da</strong>s sublima<strong>da</strong>s. As moças e moços do povo rasgavam as vestes todo<br />

putinhos. E teu corte, dói?, Cristo quis saber. Menos <strong>que</strong> o primeiro, eu disse, deitando a cabeça<br />

no peito dele, à direita, com meu mar vermelho sobre seu talho esturricado. E o teu? Qual?<br />

Esse aqui, ó, feito à lança no teu peito. Dói na<strong>da</strong>, boba, é carapaça. Dançamos, Cristo e eu,<br />

passando as contas do terço com os dedos dos pés, matando as convicções do mundo,<br />

contemplando mistérios gozosos numa sexta-feira de dores vermelhas, enquanto eu refrescava<br />

as minhas no unguento mais saboroso: uma valsa baila<strong>da</strong> no corpo dilacerado do Cristo.<br />

***

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