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ISSN 1984-8625<br />

REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N 0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012


REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N 0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012<br />

Corpo Editorial<br />

Editor-chefe<br />

Altamiro Xavier de Souza - IFSP<br />

Editor substituto<br />

Weslei Roberto Cândido - UEM<br />

Conselho Editorial<br />

Altamir Botoso – UNIMAR *<br />

Ana Cristina Troncoso – UFF *<br />

Andréia Ianuskiewtz – IFSP *<br />

Anne Camila Knoll Domenici – IFSP<br />

Antonio Sergio da Silva – UEG *<br />

Antonio Sousa Santos – UFVJM *<br />

Janete Werle de Camargo Liberatori – IFSP *<br />

José Carlos de Souza Kiihl – FATEC *<br />

Mauro Nicola Póvoas – FURG *<br />

Plínio Alexandre dos Santos Caetano – IFSP<br />

Reinaldo Tronto – IFSP *<br />

Rodrigo Silva González – UFV *<br />

Whisner Fraga Mamede – IFSP *<br />

Conselho Consultivo<br />

Alexandre do Nascimento Souza – USP<br />

Álvaro José Camargo Vieira – PUC-SP / FIT<br />

Amanda Ribeiro Vieira – IFSP<br />

Ângela Vilma Santos Bispo – UFRB<br />

Araci Molnar Alonso – USP/EMBRAPA DF<br />

Cristiane Cinat – UNESP<br />

Denise Paranhos Ruys – IFSP<br />

REvISTa CIEnTíFICa ElETRônICa<br />

ISSn 1984-8625<br />

Fundada em 2008<br />

Peridiocidade Semestral<br />

http://www.cefetsp.br/edu/sertaozinho/revista/iluminart.html<br />

revistailuminart@ifsp.edu.br / revista.iluminart@gmail.com<br />

https://www.facebook.com/iluminart.iluminart<br />

Eliana de Oliveira – FACFITO<br />

Emanuel Carlos Rodrigues – IFSP<br />

Gilvandro de Jesus Almeida Sanches – UFPA<br />

Kjeld Aagaard Jakobsen – USP<br />

Leandro Dias de Oliveira – UFRRJ<br />

Luciana Brito – UENP / UEL<br />

Luiz Carlos Leal Júnior – IFSP<br />

Magno Alves de Oliveira – IFB<br />

Marina P. A. Mello – FACFITO / UNICAIEIRAS<br />

Nadja Maria Gomes Murta – UFVJM / PUC-SP<br />

Paula Tatiana da Silva – UEL<br />

Pedro Cattapan – UFF<br />

Pierre Gonçalves de Oliveira Filho – FAMEC<br />

Ricardo Castro de Oliveira – UFSCAR<br />

Rita de Cassia Bianchi – UNESP<br />

Ronaldo de Oliveira Rodrigues – UFPA<br />

Rosana Cambraia – UFVJM<br />

Tania Regina Montanha Toledo Scorparo – UENP<br />

Vágner Rodrigues de Bessa – UFV<br />

Designer Gráco<br />

Nildo Xavier de Souza<br />

Diretor Geral do IFSP - Campus Sertãozinho<br />

Lacyr João Sverzut<br />

Reitor do IFSP<br />

Arnaldo Augusto Ciquielo Borges<br />

* Membros do Conselho Editorial que atuam conjuntamente no Conselho Consultivo.<br />

www.ifsp.edu.br/sertaozinho<br />

Rua Américo Ambrósio, 269 - Jd. Canaã<br />

Sertãozinho - SP - Brasil - Cep: 14169-263<br />

Tel.: +55 (16) 3946-1170<br />

Copyright © Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - Campus Sertãozinho<br />

Para publicação, requer-se que os manuscritos submetidos a esta revista não tenham sido publicados anteriormente e não sejam submetidos ou publicados simultaneamente em outro periódico. Nenhuma parte<br />

desta publicação pode ser reproduzida sem permissão por escrito da detentora do copyright. O conteúdo dos artigos são de responsabilidade, única e exclusiva, dos respectivos autores.


REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N 0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012<br />

palavras do Editor<br />

A<br />

Revista Iluminart é um projeto do Prof.Dr. Weslei<br />

Cândido. Foi um presente deixado por ele após o<br />

breve período de tempo em que foi docente do IFSP<br />

– Campus Sertãozinho.<br />

Com o advento da transformação dos CEFETs em IFs<br />

houve a necessidade do estabelecimento de novos parâmetros<br />

nestas Instituições, pois além do ensino Técnico e Tecnológico,<br />

a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, deniu<br />

as Licenciaturas como uma de suas atribuições.<br />

Some-se a isto, a alteração no perl dos prossionais<br />

que passaram a compor seus quadros; já que a ampliação<br />

da presença de mestres e doutores cou evidente por dois<br />

aspectos: vantagem destes nos novos concursos e a disposição<br />

do governo Federal em incentivar os servidores, tanto<br />

docentes quanto administrativos, a buscarem um aperfeiçoamento<br />

em programas de Pós-Graduação.<br />

A chegada do Prof. Weslei ao IFSP se dá nesta realidade<br />

e a Iluminart surge com a proposta de ser um espaço aberto<br />

para as áreas publicarem resultados de relevante interesse<br />

para as necessidades emergentes neste cenário educacional.<br />

O IFSP somente ganhou com a Revista, pois para solucionar<br />

aspectos internos relevantes, abriu-se para contato<br />

com pesquisadores, autores e leitores de todo o Brasil.<br />

Após o imenso esforço para seu estabelecimento, o corpo<br />

editorial trabalhou para ampliar a divulgação do espaço<br />

entre os possíveis autores e enfrentou as diculdades inerentes<br />

ao trabalho técnico de análise dos artigos e da disponibilização<br />

do seu conteúdo na Internet, já que é uma<br />

revista eletrônica.<br />

Todo este trabalho transcorreu ao longo de 7 números<br />

de forma consistente, porém a greve no IFSP surgiu como<br />

ingrediente para dicultar a normalidade de suas ações,<br />

algo que reetiu intensamente na publicação trimestral<br />

proposta e que estava sendo cumprida pelo corpo editorial.<br />

A greve foi longa e com poucos resultados (na verdade<br />

quase nenhum) conquistados pelos integrantes do movimento.<br />

Os servidores ativos na greve foram obrigados,<br />

naturalmente, a repor suas aulas e os passivos, foram agraciados<br />

por sua subserviência, com o “descanso dos justos”.<br />

Com o retorno das aulas – para alguns – na última semana<br />

de janeiro de 2012, a Iluminart passou a ser repensada<br />

e novamente encontrou espaço para ser prioridade dos<br />

membros do seu Conselho Editoral, conselho este combalido<br />

pelo afastamento de diversos membros após a cessão,<br />

por parte do Campus Sertãozinho, de diversos membros de<br />

seus quadros na estruturação dos novos campi oriundos do<br />

processo de expansão da Rede Federal de Ensino.<br />

Somados a todos estes fatos, o prof. Weslei, aprovado<br />

em concurso na Universidade Estadual de Maringá (UEM),<br />

foi requisitado a assumir sua vaga no início de março de<br />

2012, algo que nos deixou, particularmente, muito feliz,<br />

pois acompanhávamos o seu desejo intenso em trabalhar<br />

com pesquisa, algo ainda nascente no IFSP.<br />

A felicidade de sua nomeação foi acompanhada pela<br />

preocupação quanto ao destino da Revista Iluminart, projeto<br />

tão importante nesta nova fase do IFSP, cujos esforços<br />

tinham sido imensos para sua implantação e não poderiam<br />

ter de seu mentor a mesma dedicação de outrora.<br />

Partilhando de indagações semelhantes a respeito de<br />

questões pertinentes ao trabalho e à própria vida, permitir<br />

que este projeto fosse interrompido, pareceu-me ser algo<br />

prejudicial ao extremo para nosso Instituto e muito desanimador<br />

para a nova fase prossional do amigo Weslei, que<br />

estava partindo na busca de seus sonhos e novas possibilidades<br />

prossionais.<br />

Mesmo sabedor de minhas limitações, coloquei-me à<br />

disposição de meu colega/amigo para prosseguir com seu<br />

trabalho de editor, acreditando que o suporte tanto dele<br />

quanto dos prossionais envolvidos diretamente com a<br />

Revista, seriam apropriados para manter a qualidade deste<br />

trabalho feito com tanta dedicação e prossionalismo.<br />

Aprovada a indicação de meu nome para compor a<br />

equipe editorial, o único pedido feito por mim, foi a continuidade<br />

do Prof. Weslei na Iluminart, pois não poderíamos<br />

dispor de sua experiência e compromisso para o sucesso<br />

desta nova fase.<br />

Atendido neste pedido, abrimos a todos membros que<br />

a compunham a opção em permanecer ou a liberdade de<br />

contribuírem em novos projetos com a eterna gratidão por<br />

tudo que zeram ao longo destes anos de dedicação.<br />

Como resultado da força e alta qualidade da Iluminart,<br />

a chamada para o número 8 recebeu tão alto número de<br />

artigos que foi preciso lançar concomitante o número 9.<br />

A divisão deste editorial em duas partes é reexo deste<br />

sucesso da equipe original, que enfrentando diversas condições<br />

adversas manteve vivo um belíssimo projeto educacional.<br />

(continua no número 9)<br />

Altamiro Xavier de Souza<br />

Editor Chefe<br />

Docente do IFSP – Campus Sertãozinho<br />

altamirox@gmail.con


REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N 0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012<br />

Editorial<br />

Nem sempre a mudança pode ser vista com desconança.<br />

Os períodos de transição carregam consigo constelações<br />

de criatividade e inovação que só são possíveis graças ao<br />

deslocamento de pessoas, de ideias, objetivos e o desao de olhar<br />

o mesmo objeto pelos innitos ângulos que cada ser humano é<br />

capaz de enquadrar o mundo que o cerca.<br />

Este é o presente momento da Revista Iluminart, sai o seu<br />

editor-chefe que a dirigiu por sete números para a entrada de um<br />

novo olhar sobre esta publicação eletrônica. Este olhar agora é o<br />

de Altamiro Xavier de Souza, educador, professor, estudioso de<br />

química e do ambiente no qual ele atua de forma crítica, sempre<br />

propondo mudanças ou reexões.<br />

Quando o convidei para assumir o comando da revista não<br />

tive dúvidas de que o trabalho seria concluído com êxito. As escolhas<br />

dos novos membros do corpo editorial e conselho consultivo,<br />

feitas pelo novo editor-chefe, representam de forma brilhante o<br />

que é o presente e o futuro da Iluminart.<br />

É com grande honra que apresento essa nova equipe e essa<br />

inovadora publicação dentro de seu novo projeto de arte visual e<br />

de leitura. Com certeza seus leitores terão diante de seus olhos um<br />

belo material, tanto pelo conteúdo quanto pela dinamicidade que<br />

ganhou a revista.<br />

Esperamos, assim, dois tipos de leitores para o presente número:<br />

o leitor de Cortázar em Rayuela, “lector cómplice”, companheiro<br />

de viagem, um parceiro na construção de sentidos ao longo<br />

da aventura que é o ato de ler; e o “(e)lector” de Carlos Fuentes<br />

em Cristóbal Nonato, mistura de leitor e eleitor, capaz de ler e ao<br />

mesmo tempo selecionar <strong>aqui</strong>lo que deseja aceitar como verdade<br />

para seu mundo.<br />

O número 8 da Iluminart é dedicado em sua grande maioria<br />

às letras, à linguística e ao ensino que se cruzam e entrecruzam<br />

quase de forma a sensualizar os signos linguísticos que se prestam<br />

a interpretar o mundo.<br />

O primeiro artigo traz um regaste de um periódico feminino<br />

“O mundo elegante”, por Louise Farias da Silveira, que analisa uma<br />

seção de cartas e mostra como o mundo feminino era o foco dessa<br />

publicação, material que serve para conhecer um pouco da história<br />

das mulheres na sociedade ocidental.<br />

Na sequência temos outra análise de periódico, dessa vez uma<br />

publicação do Rio Grande do Sul intitulada Revista Ibirapuitã, divulgada<br />

no nal da década de 1930, estudada por Vanessa Oliveira<br />

Juliani Regina, que fazez um resgate das poesias desse jornal e<br />

busca encontrar uma temática que norteie essa produção literária.<br />

Mais um periódico está em foco no terceiro artigo: O pão (1892-<br />

1896), publicação cearense dedicada ao movimento simbolista e<br />

que é o objeto de análise da pesquisadora Luciana Brito que se dedicou<br />

a recuperar esse rico material para a crítica literária brasileira.<br />

Em seguida, Daniel Baz dos Santos, com a “Visita cruel dos<br />

gêneros”, propõe uma análise do gênero romanesco a partir das<br />

teorias de Bakhtin em contraponto com questões do realismo na<br />

literatura e o conceito de mimese como ponto nevrálgico de suas<br />

discussões.<br />

“Talvez possamos contribuir para que nas políticas culturais haja lugar não apenas para <strong>aqui</strong>lo que é<br />

vantajoso para o mercado, mas também para a diferença e a dissidência, para a inovação e o risco. Em suma;<br />

para elaborar coletivos interculturais mais democráticos e menos monótonos”.<br />

Néstor García Canclini<br />

Héder Júnior dos Santos insere os leitores da Iluminart no<br />

âmbito da literatura comparada, destacando a importância do<br />

pensamento de Gramsci para a literatura rosiana, a m de discutir<br />

o papel do intelectual na sua relação com a sociedade.<br />

Da literatura comparada encaminha-se para outra forma de<br />

análise de objetos artísticos distintos proposta por Tânia Regina<br />

Montanha Toledo Scoparo: a literatura e o cinema como estratégia<br />

de ensino/aprendizagem na escola, unindo a mídia visual à<br />

impressa, despertando no discente novas formas de interpretar o<br />

mundo.<br />

Encontra-se, também, nesse volume, a discussão da docente<br />

Andréia Dias Ianuskiewtz sobre a interculturalidade no ensino de<br />

língua inglesa; com uma proposta muito interessante de respeito<br />

linguístico que deve haver nesse processo de <strong>aqui</strong>sição de uma<br />

nova língua, libertando-se de conceitos eurocêntricos para o de<br />

uma troca intercultural entre os falantes que os coloquem como<br />

atores sociais em permanente interação com a cultura do outro.<br />

O artigo de Paula Tatiana da Silva direciona a discussão para<br />

os operadores argumentativos na propaganda da Natura Ekos<br />

como estratégia de construção do texto publicitário e sua produção<br />

de sentidos, um ótimo material para o leitor pensar a forma<br />

como são vendidos os produtos e quais os caminhos para convencê-los<br />

a adquirir determinada marca.<br />

Do mundo da propaganda entramos na análise da ambiguidade<br />

presente em Solombra, de Cecília Meireles, trilhando os caminhos<br />

do existencialismo por meio do olhar de Delvanir Lopes, que<br />

estuda a essa poeta pelo viés de Martin Heidegger que direcionará<br />

os estudos dessas possíveis ambiguidades na poética de Cecília.<br />

No mesmo caminho da poesia encontra-se o trabalho de Natália<br />

Moreira Viana, que discute a questão da diáspora na produção<br />

poética da cubana Aimée Bolãnos e como esses deslocamentos<br />

identitários se fazem presentes no livro Las palabras viajeras,<br />

estudando esses versos por meio das análises teóricas de críticos<br />

do pós-colonialismo como Stuart Hall e Edward Said.<br />

Por m, temos a resenha de Tainara Quintana da Cunha sobre<br />

o livro Os íntimos, de Inês Pedrosa, publicado pela Editora Objetiva<br />

no ano de 2010, que nesse caso dispensa comentários prévios,<br />

cando ao leitor a sugestão de leitura desse texto para conhecer<br />

um pouco melhor o romance em questão.<br />

Resta apenas convidar os pesquisadores, os professores, os<br />

discentes de graduação, os estudantes de pós-graduação e demais<br />

leitores a empreender esta viagem pelas páginas da Iluminart,<br />

conhecendo os diversos olhares que se prestam a interpretar esse<br />

mundo composto por palavras, perscrutado a composição de signicados<br />

que sugerem os signos linguísticos em permanente sensualização<br />

com o mundo.<br />

Weslei Roberto Cândido<br />

Editor Substituto<br />

Docente da UEM – Universidade Estadual de Maringá<br />

weslei79@gmail.com


REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N 0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012<br />

sumário<br />

07<br />

a sEção “Cartas póstumas” no pEriódiCo fEminino O MundO ElEgantE .....................................<br />

Louise Farias da Silveira<br />

diálogos EntrE litEratura E imprEnsa: o rEsgatE da poEsia<br />

na REvista ibiRapuitã ........................................................................................................<br />

Vanessa Oliveira Juliani Regina<br />

a rECEpção CrítiCa do movimEnto simbolista nas páginas<br />

do jornal CEarEnsE O pãO) .......................................................................................................... 33<br />

Luciana Brito<br />

a visita CruEl dos gênEros: jEnnifEr Egan E a situação romanEsCa .......................................<br />

Daniel Baz dos Santos<br />

...............<br />

Héder Junior dos Santos<br />

litEratura E CinEma: proposta mEtodológiCa para o Ensino médio ..................................<br />

Tania Regina Montanha Toledo Scoparo<br />

21<br />

47<br />

63<br />

83<br />

103<br />

..................<br />

Andréia Dias Ianuskiewtz<br />

os ECos da biodivErsidadE brasilEira: a argumEntação na<br />

propaganda da natuRa EkOs ..............................................................................................................<br />

Paula Tatiana da Silva<br />

119<br />

133<br />

vErsos ambíguos Em solombra, dE CECília mEirElEs .................................................................<br />

Delvanir Lopes<br />

147<br />

a diáspora dE aiméE g. bolaños Em las palabras viajEras .....................................................<br />

Natália Moreira Viana<br />

159<br />

rEsEnha: sobrE Os ÍntiMOs .................................<br />

Tainara Quintana da Cunha


L i t e r a t u r a<br />

A SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO<br />

FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

LOUISE FARIAS DA SILvEIRA<br />

Graduanda em Letras (Inglês) pela Universidade Federal<br />

do Rio Grande (FURG), bolsista de iniciação<br />

tado<br />

do Rio Grande do Sul (FAPERGS) sob orientação<br />

do Prof. Dr. Mauro Nicola Póvoas.<br />

Contato: lousilveira@hotmail.com


!<br />

A SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO<br />

O MUNDO ELEGANTE<br />

Louise Farias da Silveira<br />

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar uma série de cartas<br />

redigidas por importantes escritores portugueses do século XIX, tais como Alexandre<br />

Herculano e Júlio Dinis. Publicado após suas mortes em uma seção da publicação<br />

feminina O Mundo Elegante – Mensageiro Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e<br />

Bom-Tom, o conjunto intitula-se “Cartas Póstumas”, sendo veiculado ao longo de dez<br />

edições. As epístolas dirigiam-se a Guiomar Torresão, escritora e diretora do<br />

periódico, que circulou entre 1º de janeiro e 25 de dezembro de 1887. A análise das<br />

cartas foca-se em três aspectos principais: o gênero epistolar e suas características; a<br />

questão de o periódico ser direcionado ao público feminino; e as relações íntimas que<br />

se estabeleceram entre os remetentes e a destinatária.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Periódico feminino; O Mundo Elegante; Carta.<br />

THE SECTION “CARTAS PÓSTUMAS” IN THE FEMALE PERIODICAL<br />

O MUNDO ELEGANTE<br />

ABSTRACT: This paper aims to analyse a series of letters written by important<br />

Portuguese writers from the 19 th century, such as Alexandre Herculano and Júlio Dinis.<br />

The series, entitled “Cartas Póstumas”, was published after the writers’ death during<br />

ten editions, in a section of the women’s publication O Mundo Elegante – Mensageiro<br />

Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e Bom-Tom. The epistles were directed to<br />

Guiomar Torresão, writer and director of the periodical, which was published between<br />

January 1 st and December 25 th of 1887. The letters’ analysis is focused on three main<br />

aspects: the epistolary genre and its characteristics; the fact that the periodical is direct<br />

to the female public; and the relationship of intimacy that is established between the<br />

remitters and the addressee.<br />

KEYWORDS: Female Periodical; O Mundo Elegante; Letter.<br />

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

Em um tempo em que livros eram algo raro, devido ao alto custo de sua<br />

impressão, cabia aos periódicos, de variedades e literários, veicular a produção dos<br />

novos escritores. Ao longo do século XIX, essa prática popularizou-se na Europa,<br />

fazendo com que as publicações do Velho Continente viessem a ser um modelo<br />

seguido por outras nações.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!9!


!<br />

!<br />

LOUISE FARIAS DA SILVEIRA!!<br />

! !<br />

É na busca de material nessas publicações passadas que o pesquisador traz à<br />

tona textos que se encontravam, até então, esquecidos. Na reflexão de Bordini (2004,<br />

p. 199), essa prática justifica-se pela necessidade de se fazer “um retorno produtivo à<br />

memória social” e a partir daí, conferir um “novo valor a seus registros”. Deste modo, a<br />

fonte periódica oferece um vasto registro de informações que pode ser resgatado e<br />

analisado, como documentos de uma época, esteja esse registro presente em jornais,<br />

almanaques ou revistas.<br />

A importância da utilização de revistas como fornecedoras de material a ser<br />

examinado é reconhecida por Martins (2001, p. 21), pelo fato de este tipo de impresso<br />

“documentar o passado através de registros múltiplos: do textual ao iconográfico, do<br />

extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários<br />

àquele de seus consumidores”. Além de exaltar a revista por sua peculiaridade em<br />

reunir diferentes manifestações textuais e um vasto público leitor, Martins (2001, p. 27)<br />

também aponta que ela “era o instrumento eficaz de propagação de valores culturais,<br />

dado seu caráter de impresso do momento, condensado, ligeiro e de fácil consumo”.<br />

A escolha da revista feminina portuguesa O Mundo Elegante – Mensageiro<br />

Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e Bom-Tom, como corpus da pesquisa, dá-se<br />

pelo fato de nesta ter sido publicada uma série de cartas de importantes escritores<br />

portugueses do século XIX, o que faz de tal suporte uma fonte primária. As epístolas,<br />

de temática variada, dirigiam-se a Guiomar Delfina de Noronha Torresão, escritora e<br />

diretora do periódico, que circulou entre 1º de janeiro e 25 de dezembro de 1887.<br />

Veiculadas ao longo de dez edições, as epístolas foram reunidas sob uma seção<br />

intitulada de “Cartas Póstumas”.<br />

A pesquisa nos periódicos, que oferecem materiais inéditos de muitos<br />

escritores, é vista como de extrema importância por Regina Zilberman, pois, conforme<br />

mencionado pela autora, esse processo:<br />

10!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012$<br />

Corresponde igualmente à tomada de posição perante o canônico e o<br />

marginal, já que, quando se trata de recuperar elos perdidos de nosso<br />

passado literário e cultural, passam a ocupar o proscênio<br />

coadjuvantes que, seguidamente, ainda não suscitaram interesse,<br />

foram reprimidos ou ocultados, ficaram de fora da corrente<br />

dominante, as main streams das escolas e tendências. (ZILBERMAN,<br />

2003, p. 7)


!<br />

!<br />

SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

! !<br />

O presente trabalho, portanto, tem como objetivo resgatar e analisar esse<br />

conjunto de cartas, focando-se em três aspectos principais: o gênero epistolar e suas<br />

características; a questão de o periódico ser direcionado ao público feminino; e as<br />

relações íntimas que se estabeleceram entre os remetentes e a destinatária.<br />

2. O PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE – MENSAGEIRO SEMANAL<br />

ILUSTRADO DE MODAS, ELEGÂNCIA E BOM-TOM<br />

Ao longo do século XIX, na Europa, com o crescente número de mulheres<br />

alfabetizadas (em sua maioria de classes altas), surge uma demanda por impressos<br />

que tratassem de temas que interessavam a essas senhoras, publicações voltadas ao<br />

público feminino. Paulo Silvestre corrobora essa ideia ao afirmar que:<br />

O público feminino já não se revia apenas na simples divulgação de<br />

contos, romances ou receitas de bolos. Uma nova forma de imprensa,<br />

dirigida às mulheres, emerge buscando, sobretudo, discutir o papel<br />

destas na sociedade, reivindicar direitos civis e divulgar ideias<br />

emancipatórias. As leitoras desses periódicos eram principalmente<br />

mulheres da alta sociedade, professoras, artistas, profissionais<br />

liberais ou, simplesmente, donas de casa com algum grau de<br />

instrução ou poder econômico. (SILVESTRE, 2009, p. 32)<br />

Na segunda metade do século XIX, as publicações passaram a não ser apenas<br />

feitas para as mulheres, e sim administradas por elas, demonstrando um novo<br />

posicionamento do sexo feminino frente a um mercado editorial que era, até então,<br />

dominado pelos homens. O periódico português O Mundo Elegante, uma revista de<br />

periodicidade semanal, é um exemplo dessa tendência que despontava. A publicação,<br />

dirigida e fundada pela escritora Guiomar Torresão, em 1887, tratava de assuntos<br />

diversos, tendo como especialidades aqueles referentes ao universo da moda,<br />

trazendo as últimas tendências parisienses.<br />

Já no primeiro número de O Mundo Elegante, datado de 1º de janeiro de 1887,<br />

o gerente da revista, António de Sousa, proprietário da editora Sousa e Cia., localizada<br />

em Paris e responsável pelo impresso, apresenta a publicação e suas intenções como<br />

tal, conforme se vê no seguinte fragmento:<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!11$


!<br />

!<br />

LOUISE FARIAS DA SILVEIRA!!<br />

! !<br />

12!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012$<br />

O Mundo Elegante, sendo o único jornal de modas e literatura que,<br />

em Língua Portuguesa, se publica semanalmente, é também, o mais<br />

econômico de todos que tem aparecido. Infundir às filhas, às irmãs,<br />

às esposas e às mães, o amor da família e os seus deveres, ensinarlhes,<br />

a ricas ou a pobres, a maneira de fazerem a felicidade do lar<br />

doméstico, de lhes avivar a inteligência, desenvolvendo-lhes o<br />

espírito; e iniciando-as nos trabalhos do ménage bem como das<br />

regras da economia, tal é o fim, que se propõe o Mundo Elegante. (O<br />

MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 1, 1º jan. 1887, p. 1)<br />

O mensageiro, “dedicado às senhoras portuguesas e brasileiras”, conforme<br />

explicitado em sua capa, tinha, portanto, o intuito de colaborar para a formação dessas<br />

mulheres, oferecendo-lhes dicas de como manter um lar harmonioso, como cuidar de<br />

si e sua família, bem como algumas noções sobre economia doméstica. O público-alvo<br />

era, por conseguinte, as senhoras que queriam não apenas ser boas esposas e mães,<br />

como também almejavam serem pessoas dotadas de inteligência e raciocínio próprio.<br />

3. A SEÇÃO DAS “CARTAS PÓSTUMAS”<br />

A seção das “Cartas Póstumas” apareceu pela primeira vez, na revista O<br />

Mundo Elegante, em sua edição de número 32, datada de 6 de agosto de 1887.<br />

Inicialmente localizada na margem esquerda da primeira página da revista, a coluna<br />

ocupava um lugar de destaque, sendo apresentada com grande entusiasmo por,<br />

provavelmente, Guiomar Torresão:<br />

Abrimos hoje esta preciosa série de cartas inéditas dos nossos mais<br />

gloriosos escritores, falecidos, com uma carta do grande historiador<br />

Alexandre Herculano. No próximo número daremos uma segunda<br />

carta, mais extensa, de Herculano, seguindo Castilho, Silva Gaio,<br />

Júlio Dinis e outros. Temos recebido numerosas cartas dos nossos<br />

assinantes e outras pessoas, saudando com alvoroço este<br />

acontecimento literário, de que o nosso Mundo justamente se<br />

orgulha. Assim correspondemos, por todas as formas, ao efusivo<br />

acolhimento que nos tem dispensado e que diligenciaremos não<br />

desmerecer. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 32, 6 ago. 1887, p. 1)<br />

A série de cartas inéditas, todas dirigidas a Guiomar Torresão, diretora do<br />

periódico, foi publicada ao longo de dez edições. Por permitir que fossem realizadas<br />

conversas entre aqueles que estavam distantes, a carta era muito usada, seja entre<br />

amigos ou visando a propósitos profissionais. As epístolas publicadas n’O Mundo<br />

Elegante, escritas em tom cordial, indicam a existência de uma relação de proximidade<br />

entre os remetentes e a destinatária. Afrânio Coutinho, sobre essa variedade epistolar,<br />

afirma que:


!<br />

!<br />

SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

! !<br />

A carta privada de amizade é o modelo do gênero [epistolar], escrita<br />

num estilo informal de conversa íntima. A velha retórica aconselhava<br />

o sentimento de amizade como o seu motivo central e a sinceridade,<br />

a simplicidade, a brevidade e a graça como as qualidades principais<br />

do estilo epistolar, embora também lembrado o decoro como<br />

indispensável, desde que a carta, ao contrário da conversa, é escrita.<br />

Na Idade Média e no Renascimento, cresceu a importância da carta<br />

como instrumento oficial de comunicação, de sorte que diferenças<br />

radicais foram introduzidas no estilo, acomodando-o às exigências do<br />

decoro e da conveniência em relação com as categorias das pessoas<br />

envolvidas na troca de cartas. (COUTINHO, 2008, p. 110)<br />

A primeira carta a ser publicada na seção das “Cartas Póstumas” foi de autoria<br />

de Alexandre Herculano, datando de 1872. Alexandre Herculano nasceu em Lisboa<br />

em 1810, tornando-se um reconhecido escritor historiográfico, que se dedicou também<br />

a outros diversos gêneros literários, como a poesia, as novelas, os contos e os<br />

ensaios, vindo a falecer em 1877.<br />

Em sua escrita, Herculano dirige-se à Guiomar Torresão como “Ex.ma. Sra. D.<br />

Guiomar Torresão”, demonstrando todo o respeito que nutria pela escritora, elogiando<br />

suas qualidades como mulher, ao afirmar que “as duas grandes qualidades das<br />

pessoas do sexo de V. Ex.ª., a imaginação e o sentimento, tornam-se, às vezes, em<br />

mácula pelo excesso”. Ao que parece, Guiomar Torresão havia solicitado, em<br />

correspondência anterior, permissão para que pudesse publicar no Almanaque das<br />

Senhoras, fundado e coordenado por ela a partir de 1870, uma outra carta de<br />

Herculano. O escritor, por sua vez, responde da seguinte forma:<br />

Pede-me V. Ex.ª. para publicar a minha anterior carta. Não me lembro<br />

do que escrevi, porque a memória é a primeira faculdade que falta<br />

aos velhos. Faça V. Ex.ª. o que entender. Como já não tenho<br />

pretensões de escritor, por maiores sensaborias que contenha, já se<br />

me não faz a face vermelha com isso. O pior é o desgosto dos<br />

leitores do Almanaque. O que receio é que V. Ex.ª., cega pela<br />

amizade, se esqueça dessa consideração gravíssima. (O MUNDO<br />

ELEGANTE, ano 1, n. 32, 6 ago. 1887, p. 1)<br />

Percebe-se, a partir do fragmento apresentado acima, que a relação existente<br />

entre Herculano e Torresão era a de uma amizade repleta de confiança, pois este,<br />

frente a um pedido da escritora, não lhe nega o que é solicitado, deixando a cargo<br />

desta a escolha publicar a carta ou não.<br />

A segunda epístola a ser publicada na seção das “Cartas Póstumas”, na revista<br />

O Mundo Elegante de número 33, também é escrita por Alexandre Herculano. Nesta,<br />

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LOUISE FARIAS DA SILVEIRA!!<br />

! !<br />

cuja data constante era de 23 de maio de 1873, Herculano desculpa-se com a amiga<br />

por não ter oferecido resposta à sua carta antes, justificando tal falta por estar doente:<br />

14!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012$<br />

Não é só a V. Ex.ª. que tenho ofendido com a falta de resposta à sua<br />

carta. Muitas outras pessoas se queixam ou se reputam com direito a<br />

queixar-se de igual ofensa. O fato é indubitável; mas as causas é que<br />

são ignoradas pelos queixosos. Desde que vim de Lisboa tenho<br />

passado constantemente perseguido por um padecimento antigo<br />

(cálculos e areias nos rins) e que terminou pela expulsão de um<br />

grande cálculo, ou para melhor dizer não terminou, porque as dores<br />

na região correspondente continuam mais ou menos obscuras, mas<br />

suficientes para me tornar repugnante e violento qualquer trabalho de<br />

espírito, e às vezes, o que pior é, os próprios movimentos do corpo.<br />

(O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 33, 13 ago. 1887, p. 1)<br />

Ao relatar seu sofrimento com os problemas renais pelos quais passava, em<br />

uma carta à diretora, Herculano comprova, uma vez mais, a estreita relação existente<br />

entre eles, uma vez que descreve assuntos referentes à sua vida pessoal e tratados<br />

como de importância. Ao longo da escrita, nota-se que a destinatária torna-se uma<br />

confidente, a quem Herculano confessa estar farto de receber escritos alheios<br />

enviados a ele para que sejam corrigidos e criticados, posto que ele já não se<br />

dedicava nem mesmo às suas próprias obras. Herculano encerra sua carta da<br />

seguinte maneira:<br />

Aos sessenta e cinco, doente, obrigado a pensar na vida positiva para<br />

ter os modestos cômodos que a velhice exige, sou tudo quanto há<br />

mau, porque não me sacrifico à vaidade ou interesse literário alheio,<br />

eu que solenemente me despedi da república das letras! É uma<br />

violência por tal modo absurda e insensata que me pejo de a discutir.<br />

Desculpe V. Ex.ª. este desafogo de um ânimo justamente irritado, e a<br />

demora que tenho posto em responder para me desapressar dos<br />

mais vaidosos e impacientes, dispondo entretanto da inutilidade de<br />

quem é. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 33, 13 ago. 1887, p. 1)<br />

Outro conhecido escritor, cuja carta foi a quarta a ser publicada no conjunto<br />

das “Cartas Póstumas”, foi António Feliciano de Castilho. Nascido em Lisboa em 1800<br />

e falecido no mesmo local em 1875, Castilho, cego desde os seis anos, traduziu obras<br />

literárias e escreveu prosa e poesia, sendo as últimas publicadas principalmente<br />

durante o Romantismo. A epístola escrita por ele datava de 1870, vindo a ser<br />

publicada na edição de número 36 de O Mundo Elegante. Em sua escrita, Castilho<br />

expressa-se brevemente a respeito da publicação de um texto seu em um livro de<br />

Guiomar Torresão, agradecendo a esta a gentileza de fazê-lo:


!<br />

!<br />

SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

! !<br />

Desejar V. Ex.ª. algum escrito meu para o seu excelente livro; e pedirmo<br />

por medianeira a quem eu nada poderia recusar, já era, por si só,<br />

um obséquio muito honroso; inseri-lo, porém, à frente de todos, e com<br />

tão gracioso modo foi coroar a delicadeza com a maior de todas as<br />

delicadezas. Nada disto se pode devidamente agradecer; agradeço<br />

porém o presente deste notável livro, que entesoiro entre os mais<br />

apreciados da minha biblioteca. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n.<br />

36, 3 set. 1887, p. 1)<br />

O tratamento dispensado por Castilho ao dirigir-se a Torresão – “Minha querida<br />

e respeitável senhora” – e o fato de este encerrar sua escrita com as palavras “De V.<br />

Ex.ª. admirador afeiçoado e obrigado servo” comprovam a estima nutrida por aqueles<br />

que se encontravam à volta dessa mulher escritora. Guiomar Torresão era não apenas<br />

respeitada por sua posição, como também admirada por sua produção artística.<br />

Seguindo a carta de Castilho, o próximo a ser publicado na revista O Mundo<br />

Elegante de número 37, datada de 10 de setembro de 1887, foi Júlio Dinis,<br />

pseudônimo de Jo<strong>aqui</strong>m Guilherme Gomes Coelho, que nasceu no Porto em 1839 e,<br />

devido a uma tuberculose, faleceu também no Porto, em 1871. Dinis formou-se em<br />

Medicina, mas foi na escrita que se encontrou, produzindo crítica literária, teatro,<br />

poesia, conto e romance.<br />

A primeira epístola de Júlio Dinis a ser publicada na seção das “Cartas<br />

Póstumas” foi escrita em 1867, ano em que o autor lançara o romance As pupilas do<br />

Senhor Reitor. Em seu texto, Dinis comenta a carta que Guiomar Torresão enviara-lhe<br />

com o intuito de elogiar seu recém-lançado livro e oferecer-lhe a oportunidade de<br />

transpô-lo para o teatro:<br />

(...) queria V. Ex.ª. acrescentá-la de novo e maior favor, qual era o de<br />

extrair daquele romance um drama e trazer ao teatro, sob a direção<br />

do fino tato dum cultivadíssimo engenho feminino, os personagens,<br />

entre quem se passa a ação, lenta e difusa, do meu romance. (O<br />

MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 37, 10 set. 1887, p. 1)<br />

Dinis, ainda que lisonjeado em receber tal proposta, sente-se obrigado a negá-<br />

la, uma vez que já havia recebido, anteriormente, sugestão semelhante:<br />

Esta perspectiva, porém, sedutora como era, é-me forçoso renunciar<br />

a ela. Antes da honrosíssima proposta de V. Ex.ª., havia eu recebido<br />

outra no mesmo sentido, à qual por várias razões não pude aceder.<br />

Já vê pois V. Ex.ª. que, hoje, a mais comum delicadeza me proíbe de<br />

aceitar outra proposta, embora muito mais honrosa e tentadora do<br />

que a primeira. Creia V. Ex.ª. que não me receava da influência<br />

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LOUISE FARIAS DA SILVEIRA!!<br />

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literária da índole feminina no trabalho que V. Ex.ª. se propunha;<br />

antes via nele uma garantia de êxito. Espero da bondade de V. Ex.ª.<br />

que me será relevado este passo que me vejo obrigado a dar, com<br />

bem pesar meu. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 37, 10 set. 1887,<br />

p. 1)<br />

Ao esclarecer que sua decisão em não oferecer sua obra para que Torresão<br />

pudesse adaptá-la ao teatro nada tinha a ver com o fato de ela ser uma mulher, Dinis<br />

evidencia que na época ainda existia uma resistência em relação à escrita feminina e<br />

sua suposta inferioridade. O escritor, fugindo do preconceito ligado ao gênero, defende<br />

que a influência feminina seria, acima de tudo, um ponto positivo a ser considerado,<br />

caso a adaptação fosse realizada. Dinis encerra sua carta declarando-se “De V. Ex.ª.<br />

muito respeitador e agradecido criado”.<br />

Na seção das “Cartas Póstumas” de 4 de dezembro de 1887, número 49 d’O<br />

Mundo Elegante, uma outras carta redigida por Júlio Dinis, de 1870, veio à tona.<br />

Nesta, Dinis também escreve em resposta à Guiomar Torresão, falando-lhe a respeito<br />

de uns escritos que esta havia lhe solicitado para publicar no Almanaque das<br />

Senhoras que era, então, coordenado por ela. O escritor comenta em seu texto que:<br />

Para aceder ao honroso convite de V. Ex.ª. tive de abrir os livros<br />

findos e extrair de lá umas quadras ainda não publicadas, que ouso<br />

enviar-lhe. Nada podia mandar-lhe em prosa, acomodado à índole e<br />

dimensões de um almanaque, por isso sou obrigado a mandar-lhe<br />

versos e versos velhos de mais a mais. Se não servirem, deixe V.<br />

Ex.ª. o lugar vago para escrito que melhor o ocupe, que nisso ainda<br />

mais me obsequiará. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 49, 4 dez.<br />

1887, p. 2)<br />

Percebe-se, a partir desse fragmento, que Dinis e Torresão mantinham uma<br />

relação de proximidade, pois participavam do mesmo contexto, fazendo parte do<br />

sistema literário português. Essa prática de troca de textos seria, portanto, natural,<br />

pois esses autores liam e incentivavam as produções dos amigos. Dinis encerra sua<br />

epístola evidenciando, uma vez mais, a admiração que ele sentia por essa senhora, ao<br />

assinar: “Curvando-me respeitosamente ante o simpático talento de V. Ex.ª., ouso<br />

assinar-me. De V. Ex.ª. colega muito reconhecido e admirador e amigo”.<br />

Gonçalves Crespo, que já tivera uma de suas cartas publicadas, foi o escritor<br />

cujos escritos encerraram a coluna. Em sua primeira carta, datada de 1871, Crespo<br />

agradecia Guiomar pelos elogios tecidos por ela, em correspondência a ele, a respeito<br />

de seu livro, escrevendo-lhe que:


!<br />

!<br />

SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

! !<br />

O pouco que V. Ex.ª. disser do livro será muito para a glória dele, e<br />

muitíssimo para os meus agradecimentos. Não sei o que mereci a<br />

Deus, para que Ele me dispense estas venturas do trato fidalguíssimo<br />

do seu elevado espírito. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 38, 17 set.<br />

1887, p. 1)<br />

Na última seção das “Cartas Póstumas”, a epístola redigida por Crespo,<br />

também em 1871, e escolhida para finalizar a série, partilhava algumas características<br />

com a sua primeira. Nesta, assim como na anterior, o autor utilizava de sua modéstia<br />

para mostrar sua gratidão acerca dos louvores feitos por Guiomar, ficando claro, deste<br />

modo, a importância que ele dava às opiniões emitidas por ela:<br />

Da sua crítica entusiasta tomei simplesmente <strong>aqui</strong>lo que julguei<br />

pertencer-me com razão, separando o que julguei ser simples e mero<br />

incentivo. Vale a pena a gente trabalhar, ousar e ser tenaz para que<br />

no fim da luta se recebam recompensas e galardões, como os que<br />

tenho recebido. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 51, 18 dez. 1887,<br />

p. 2)<br />

A seção das “Cartas Póstumas” teve seu fim na penúltima edição do periódico<br />

O Mundo Elegante, de 18 de dezembro, uma semana antes de este sair de circulação,<br />

em 25 de dezembro de 1887. Publicado por apenas um ano, o periódico feminino teve<br />

uma produção semanal regular, somando ao total cinquenta e duas edições. Além dos<br />

autores mencionados, outros três tiveram suas epístolas reunidas nesse conjunto:<br />

Silva Gaio, Visconde de Paiva Manso e José da Silva Mendes Leal.<br />

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A maioria das cartas que depois foram publicadas na seção das “Cartas<br />

Póstumas” foi escrita na época em que Guiomar Torresão coordenava o Almanaque<br />

das Senhoras. Durante esse período, Torresão recebeu muitas críticas de escritores<br />

portugueses, que consideravam a função desempenhada por ela junto ao Almanaque<br />

como não adequada a uma senhora, recebendo duras críticas:<br />

O Almanaque, como já se referiu, é a única publicação, aparecida na<br />

década de 70, que tem como responsável uma mulher. Isto dá uma<br />

ideia da aventura em que Guiomar Torresão se meteu ao iniciar uma<br />

lide intelectual aprovada por uma minoria. Basta lembrar os termos da<br />

resposta de Oliveira Martins ao convite que lhe foi endereçado pela<br />

redatora, em 1884, para se perceber quão profunda era a rejeição de<br />

alguns escritores às iniciativas intelectuais femininas. Contatado, com<br />

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LOUISE FARIAS DA SILVEIRA!!<br />

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18!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012$<br />

efeito, para colaborar nessa publicação, o historiador invoca a sua<br />

conhecida atividade intelectual. Mas, em seguida, dirigindo-se à<br />

colega e a todas as mulheres, sem exceção, diz o que ele, e, afinal,<br />

toda a Geração de 70, pensava dever ser a atividade feminina: “de<br />

um modo sumário que o seu destino comum – salvo as exceções<br />

privilegiadas, como V. Ex.ª. – é cozinharem bem a panela a seus<br />

maridos, saberem lavar os filhos e remendar-lhes os calções”. Por<br />

isso, e por saberem coser bem os fundilhos das calças dos consortes,<br />

continua, é que um inglês, seu amigo, punha as portuguesas acima<br />

de todas as europeias. (LOPES, 2005, p. 514)<br />

Percebe-se, a partir de tal afirmação, que muitos autores negavam os pedidos<br />

feitos por Torresão para que pudesse publicar alguma produção deles no Almanaque,<br />

pelo fato de ela ser uma mulher. Assim, as epístolas que foram veiculadas n’O Mundo<br />

Elegante representavam um perfil diferente de escritores: os que a apoiavam e<br />

colaboravam para que ela pudesse dar continuidade à sua iniciativa, colocando seus<br />

escritos à disposição. Torresão, apesar de contar com diversos opositores masculinos,<br />

também tinha amigos a quem podia recorrer.<br />

Deste modo, a seção das “Cartas Póstumas” desempenhou papel de destaque<br />

ao ser parte de O Mundo Elegante, pois a partir da leitura das epístolas publicadas<br />

nessa coluna percebe-se que existiam intelectuais portugueses dispostos a amparar<br />

os empreendimentos femininos no periodismo. Ao endereçarem as cartas, escritores<br />

canônicos como Alexandre Herculano e Júlio Dinis legitimavam as ações<br />

desempenhadas por Torresão.<br />

Portanto, as “Cartas Póstumas” tiveram a função de registrar o suporte que<br />

Guiomar Torresão possuía no meio literário português, de modo a mostrar que ela não<br />

estava sozinha na empreitada de coordenar e dirigir um periódico voltado ao público<br />

feminino. Torresão contava, sim, com a aprovação de renomados escritores, que a<br />

reconheciam e valorizavam como uma mulher disposta a quebrar o ciclo prédeterminado<br />

para as senhoras da época, de ser unicamente boa esposa e mãe,<br />

estando ela, assim, na contramão dessa concepção, disposta a investir seus esforços<br />

no reconhecimento da independência intelectual feminina.


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SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE<br />

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BORDINI, Maria da Glória. A materialidade do sentido e o estatuto da obra literária em<br />

O Senhor Embaixador, de Erico Verissimo. In: ZILBERMAN, Regina et al. As pedras e<br />

o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: Ed. da<br />

UFMG, 2004.<br />

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />

LOPES, Ana Maria Costa. Imagens da mulher na imprensa feminina de<br />

oitocentos: percursos de modernidade. Lisboa: Quimera, 2005.<br />

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos<br />

de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: EDUSP, 2001.<br />

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2003.<br />

O MUNDO ELEGANTE. Lisboa: jan./dez. 1887.<br />

SILVESTRE, Paulo Armando da Cunha. Vivências do feminino no final de<br />

oitocentos: representação da mulher em alguns romances e periódicos da época.<br />

2009. Dissertação (Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares),<br />

Universidade Aberta. Lisboa, 2009.<br />

ZILBERMAN, Regina. Periódicos literários e fontes primárias. In: ENCONTRO<br />

NACIONAL DE PESQUISADORES EM PERIÓDICOS LITERÁRIOS BRASILEIROS,<br />

1º, 2002, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PUCRS, 2003. CD-ROM. p. 1-8.<br />

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L i t e r a t u r a<br />

DiÁlOgOs enTre liTeraTura e iMPrensa:<br />

O resgaTe Da POesia na reVisTa IBIRAPUITÃ<br />

(1938/1939)<br />

Vanessa OliVeira Juliani regina<br />

Mestranda em letras pela universidade<br />

Federal do rio grande (Furg), licenciada<br />

em letras – Português/espanhol e suas<br />

<br />

da região de Campanha (urCaMP).<br />

Contato: reginavanessa65@yahoo.com.br


DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA<br />

POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)<br />

Vanessa Oliveira Juliani Regina<br />

RESUMO: Este artigo integra parte da dissertação de Mestrado que está sendo<br />

desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Letras/Mestrado em História da<br />

Literatura, na Universidade Federal do Rio Grande, inserida na linha de pesquisa<br />

Literatura Sul-Rio-Grandense, e tem como corpus de análise a revista alegretense<br />

Ibirapuitã-Mensário de Sociedade, Literatura e Arte e sua produção poética,<br />

especificamente, a veiculada em sua fase inicial de circulação, compreendida entre os<br />

anos de 1938 e 1939, totalizando quinze volumes. Para tanto, no presente artigo,<br />

serão expostas observações preliminares acerca da poesia presente nos dois<br />

primeiros números do periódico na tentativa de se compreender a configuração<br />

literária neste impresso e sugerir uma possível tematização. A seleção de poemas e<br />

autores obedece aos critérios de organização cronológica e ocorrência/frequência de<br />

publicação.<br />

PALAVRAS-CHAVE: literatura; imprensa; Revista Ibirapuitã; poesia.<br />

DIALOGUES BETWEEN LITERATURE AND THE PRESS: THE POETRY’S RESCUE<br />

IN IBIRAPUITÃ’S MAGAZINE (1938-1939)<br />

ABSTRACT: This paper is part of a Master's research in History of Literature which is<br />

being developed at the Federal University of Rio Grande, inserted in the line of Sul-Rio-<br />

Grandense Literature. It has as analysis corpus the alegretense Ibirapuitã-Monthly<br />

Publication of the Society, Literature and Art’s magazine and its poetries, more<br />

specifically, the ones published in its initial phase of circulation, between the years of<br />

1938 and 1939, resulting in fifteen volumes. So, in this paper we will introduce some<br />

observations about the poetry present in the first two issues of the magazine in an<br />

attempt to understand the setting in this literary form and suggest a possible<br />

thematization. The selection of poems and authors follows the criteria of chronological<br />

organization and occurrence / frequency of publication.<br />

KEYWORDS: literature; press; Magazine Ibirapuitã; poetry.<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((!23(


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VANESSA OLIVEIRA JULIANU REGINA<br />

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INTRODUÇÃO<br />

Este artigo integra parte da dissertação de Mestrado que esta sendo<br />

desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Letras/Mestrado em História da<br />

Literatura, na Universidade Federal do Rio Grande. A partir da utilização de fontes<br />

primárias como campo de pesquisa, optou-se pela escolha do periódico Ibirapuitã-<br />

Mensário de Sociedade, Literatura e Arte, criado em 1938, na cidade de Alegrete, por<br />

representar veículo de publicação responsável pela divulgação de autores locais bem<br />

como os já canonizados pelo sistema literário sulino, e propulsor de considerável<br />

efervescência cultural, imprescindível para a construção da memória cultural e literária<br />

da cidade. Para tanto, no presente artigo, serão expostas observações preliminares<br />

acerca da poesia presente nos dois primeiros números do periódico na tentativa de se<br />

compreender a configuração literária neste impresso e sugerir uma possível<br />

tematização. A seleção de poemas e autores obedece aos critérios de organização<br />

cronológica e ocorrência/frequência de publicação.<br />

REVISTA: FONTES PRIMÁRIAS E A IMPRENSA LITERÁRIA<br />

Fontes primárias constituem objeto e fonte de pesquisas literárias, na<br />

reconstrução não apenas de um determinado espaço-temporal, em que verificamos<br />

historicamente seu contexto cultural e social, como também da história literária,<br />

permitindo estabelecer a formação de seu sistema e fixação de seu cânone, e<br />

desmarginalizar textos excluídos pela própria tradição. Segundo Zilberman (2004,<br />

p.15), fontes primárias são aquelas que “[...] constituem, em princípio, matéria da<br />

história, que constrói uma narrativa a partir dos documentos do passado.”. São os<br />

resquícios desse passado não problematizado que se transformam em objeto<br />

potencial para o resgate de textos literários muitas vezes esquecidos e desvalorizados<br />

pela tradição, tal qual afirma Bordini (2004, p.201):<br />

24( | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012<br />

Fontes primárias são de caráter vestigial, ou seja, sinalizam algo que<br />

já não é, cujo advento ocorreu em dimensão temporal da vida de um<br />

escritor, da vida de algum outro sujeito histórico relacionado com o<br />

evento literário, do processo da produção, recepção de uma obra,<br />

com todos os agentes e objetos nele envolvidos, mesmo que esse<br />

momento seja contemporâneo.<br />

Com a crise do paradigma da Teoria da Literatura a partir do século XX, em<br />

que a obra literária passa a ser problematizada para além dos limites do objeto físico


!<br />

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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)<br />

! !<br />

livro, as fontes primárias sinalizam novas opções para a compreensão do produto<br />

literário, no entanto, afirma Zilberman (2004, p.15):<br />

A Teoria da Literatura tende a abrir mão deste material, ao privilegiar<br />

o produto final, a obra publicada, em detrimento de suas origens e<br />

processo de criação. A História da Literatura acabou acompanhando<br />

essa escolha, alinhando no tempo o produto legitimado pela Teoria.<br />

Por não percorrer o caminho de volta, que levaria da obra publicada<br />

às suas origens e repercussão, a História da Literatura des-historiciza<br />

seu objeto; com isso, contradiz sua natureza e acaba por fornecer à<br />

Teoria um objeto desmaterializado, um ser ideal a que não<br />

corresponde algo concreto. As fontes primárias apresentam-se na<br />

contramão desse processo: são concretas, materiais e palpáveis. [...]<br />

E suscitam uma reflexão do conhecimento, uma vez que elas não se<br />

explicam por critérios de especificidade e valor.<br />

Com esta configuração na compreensão da obra literária pela Teoria e História<br />

da Literatura, as fontes primárias promovem importante desconstrução do discurso<br />

historiográfico literário tradicional, permitindo ao historiador que se utiliza destas fontes,<br />

reescrever parte da história da literatura, preenchendo suas lacunas criadas<br />

arbitrariamente por critérios de escolha muitos vezes excludentes e carregados de<br />

juízos de valor. O caráter documental das fontes primárias auxilia na construção de uma<br />

época em todos os seus aspectos, e a compreensão da literatura também se faz através<br />

destes sinalizadores, como afirma Bordini (2004, p.202): “Tudo, enfim, que forneça um<br />

suporte material para significar um momento transitório do sistema literário, que possa<br />

dar permanência ao tempo que foge e às condições espaciais que se modificam,<br />

constituir-se-ia em uma fonte primária para o conhecimento da literatura.”.<br />

A pesquisa através de algumas fontes primárias, como jornais e revistas,<br />

caracteriza o chamado periodismo literário, a partir do século XVII, na tradição<br />

européia. A edição de textos literários nestas publicações valida a relação existente<br />

entre literatura e imprensa, fazendo do jornal e da revista veículos propulsores do<br />

fazer artístico, oportunizando a divulgação de autores. Segundo Martins (2002, p. 39),<br />

[...] a existência do periodismo ancorava-se em agremiações e/ou<br />

grupos que se queriam colocar. [...] Jornais, e em seguida, revistas,<br />

tornaram-se instrumentos correntes de informação, consignando-se<br />

aos primeiros as notícias de teor político e de divulgação imediata e<br />

às revistas temas variados, de informação mais elaborada,<br />

anunciando as últimas descobertas sobre as matérias abordadas. [...]<br />

o novo gênero periódico passou a ser disputado por escritores<br />

reconhecidos, que tinham nas páginas avulsas do jornal e da revista,<br />

o espaço alternativo para divulgação de seus escritos.<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((25


!<br />

!<br />

VANESSA OLIVEIRA JULIANU REGINA<br />

! !<br />

Ao nos reportarmos ao estudo de uma das fontes primárias que caracterizam o<br />

objeto desta pesquisa, a revista, Ana Luiza Martins (2002, p.46 apud ROCHA, 1985,<br />

p.25) aponta-nos uma definição para o impresso, diferenciando-o do livro:<br />

26( | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012<br />

[...] é um tipo de publicação que, depois de re-vista, se abandona,<br />

amarelece esquecida, ou se deita fóra. Enquanto objeto material, a<br />

revista distingue-se do livro por ser mais efêmera. [...] Essa<br />

efemeridade [...] tem a ver com sua solidez material. Enquanto o livro<br />

dura [porque é mais resistente, tem uma capa sólida a protegê-lo], a<br />

revista é [pode ser] mais frágil em termos de duração material. [...] é<br />

normal que o livro tenha reedições, e já não o é tanto que apareça<br />

uma segunda edição duma revista. Ainda outra característica: uma<br />

revista é em geral menos volumosa que um livro. [...] uma revista é<br />

quase sempre uma manifestação duma criação de grupo: ao contrário<br />

do livro que, salvo algumas excepções, costuma ser produzido por<br />

um só autor [...]<br />

A revista configura, segundo Martins (2002, p.46), fonte de conteúdo<br />

documental, pois é reflexo da sociedade que a consome; e os objetivos deste tipo de<br />

publicação se transformam de acordo com seu contexto de produção:<br />

Insista-se que o caráter fragmentado e periódico da revista é seu<br />

traço recorrente, imutável nas variações geográficas e temporais<br />

onde o gênero floresceu, resultando sempre em publicação datada,<br />

por isso mesmo de forte conteúdo documental. Quanto a seus<br />

objetivos, variaram ao longo do tempo, condicionados às<br />

circunstâncias históricas de gestação e circulação, cabendo<br />

apreendê-los, reafirmamos, nos contextos próprios de sua existência,<br />

ao seu tempo cultural, revelador da variedade de seus propósitos.<br />

Para Martins (2002, p.43), quanto às variações temporais do impresso revista<br />

ao longo dos anos, no seu contexto de produção e recepção, surgem os<br />

hebdomadários e os magazines, formatos diferenciados e com público leitor<br />

diversificado, assim conceituados pela autora:<br />

[...] suas variações no tempo, presididas por circunstâncias de<br />

produção (técnica) e recepção (público), conferiram-lhe traços<br />

temporais específicos, mutáveis diante das transformações da<br />

sociedade à qual serviu. Nesta trajetória, o surgimento, a partir de<br />

1758, dos hebdomadários, publicações de periodicidade semanal<br />

precisa, de cunho informativo técnico e político, e, por volta de 1776,<br />

do magazine, a revista ilustrada por excelência, representativa de<br />

uma demanda de caráter ligeiro e de teor fortemente publicitário [...]<br />

Com a configuração deste tipo de publicação no Brasil, no início do século XX,<br />

em meio a grandes dificuldades de edição, haja vista a precariedade das gráficas, um<br />

público leitor reduzido e situação cultural desfavorável, vários autores se utilizaram das<br />

páginas da imprensa para divulgarem seus textos e conquistarem novos leitores,


!<br />

!<br />

DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)<br />

! !<br />

fazendo do periódico revista grande aliado na consolidação de um sistema literário<br />

brasileiro, se pensado a partir do resgate desses textos em fontes primárias.<br />

REFLEXÕES INICIAIS: POSSÍVEIS TEMATIZAÇÕES DA PRODUÇÃO POÉTICA<br />

NO PERIÓDICO IBIRAPUITÃ<br />

Criado pelo jornalista e poeta Felisberto Soares Coelho, sob a gerência de<br />

Emílio Lopes, no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Alegrete em 1938, o<br />

periódico Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte apresenta caráter de<br />

revista, por se constituir dos mais variados gêneros textuais, como artigos, ensaios,<br />

resenhas críticas; além de textos de outra ordem e sessões tais como coluna social,<br />

anúncios publicitários, traduções, dados estatísticos e um espaço destinado à<br />

correspondência dos leitores. Já no âmbito literário, além de poemas, também<br />

publicava crônicas e contos.<br />

A periodicidade da revista era mensal, porém, sendo publicada muitas vezes<br />

bimestralmente, com um corpo editorial bastante diversificado que vai se modificando<br />

ao longo das edições. Em sua fase inicial, nos anos 30, possuía tipografia própria,<br />

Tipografia Tupi, e após longa interrupção em sua circulação, aproximadamente 30<br />

anos, volta a ser relançada nos anos 60 e 70 por outra revista cultural alegretense<br />

intitulada Cadernos do Extremo Sul (1953), dirigida pelo poeta Hélio Ricciardi.<br />

A abrangência de sua circulação alcançava, além do âmbito local, na cidade de<br />

Alegrete, outros municípios do interior do Estado, bem como a cidade do Rio de<br />

Janeiro, já que uma de suas edições chega às mãos de Monteiro Lobato que aprecia<br />

os poemas de Quintana e elogia a iniciativa dos autores gaúchos interioranos,<br />

endereçando-lhe uma carta, publicada na íntegra pela revista. Outros países vizinhos<br />

à fronteira também colaboram de forma significativa com a publicação, dentre eles, o<br />

Uruguai, representado pelo poeta Marcelino Pérez. Este percurso de publicação fora<br />

do reduto local, certamente, se fez pelas mãos dos leitores deste periódico.<br />

Na primeira edição da revista Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e<br />

Arte 1 , já podemos constatar, através do seu pomposo editorial, que o periódico pretende<br />

oferecer à pacata cidade do interior, uma publicação não apenas constituída por<br />

assuntos diversificados, com o intuito de promover o entretenimento de seu público, mas<br />

também, um veículo de caráter cultural e literário que possa renovar as diretrizes de sua<br />

1<br />

COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Janeiro,<br />

1938. Ano I: Número 1.<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((27


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VANESSA OLIVEIRA JULIANU REGINA<br />

! !<br />

produção artística local e congregar intelectuais de todas as bases ideológicas.<br />

Percebemos também o orgulho de seu passado histórico, já que Alegrete, à época da<br />

Revolução de 1835, tornou-se a terceira capital farroupilha, aparentemente motivo de<br />

ufanismo para os seus editores, também dispostos a alcançar outras terras com seu<br />

periódico, deixando nas mãos do tempo sua perenidade. Para Coelho (1938, p.2):<br />

28( | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012<br />

Ibirapuitan, revista que arranca de um Rincão Gaúcho e leva para<br />

alongadas Terras o Pensamento e a Cultura da Gente Farrapa,<br />

prodigalizando à civilização um pedaço da Beleza e da Bondade que<br />

moram na Alma e no Coração dos Guascas [...] e desse esforço e<br />

desse propósito que diga, quando chamado a contas, o velho Tempo,<br />

- Cronista- Rei da História e da Lenda, - presente sempre ao<br />

nascimento e morte de Homens e Coisas, de animais e plantas.<br />

Iniciativa ousada para época, já que a configuração política, econômica e social<br />

não é das mais favoráveis. Estamos na conturbada década de 30, tomada por conflitos<br />

revolucionários no Brasil e no Rio Grande do Sul; tais como a Revolução de 30,<br />

Revolução Constitucionalista de 32, Intentona Comunista de 35 e o Levante<br />

Integralista de 38, bem como a nível mundial, com o prenúncio da Segunda Guerra.<br />

Reunir colaboradores que problematizem seu local de produção cultural, dando<br />

novo fôlego à pesada atmosfera de guerras e revoluções através de uma publicação<br />

no interior do Estado, longe dos holofotes da Capital e de seus autores já<br />

consagrados, situando-se à margem do sistema literário gaúcho, certamente, não<br />

constituiu tarefa das mais simples. Já na primeira correspondência publicada na<br />

sessão Correio Amigo, do colaborador Oliveira Mesquita, é possível inferirmos acerca<br />

desta exclusão e de como esses autores se colocam neste sistema:<br />

Vocês, com a publicação desse mensário de arte e vibração, irão<br />

prestar enorme serviço às nossas letras, no interior do Estado. [...]<br />

Não querem escrever para as revistas e jornais da capital, certos da<br />

prevenção, receosos da manifesta má vontade que sempre houve por<br />

parte dos que estão lá em cima contra os que mourejam na planície...<br />

[...] (COELHO, 1938, p.36)<br />

Neste primeiro número da revista, o espaço dedicado à literatura vai se<br />

configurando de forma não muito organizada, ainda não há uma sessão específica<br />

para a publicação de textos literários. Nesta edição, são publicados os seguintes<br />

poemas 2 : Ou a cidade ou o rio (1938) de Antonio Brasil Milano; Soneto VII (1938) de<br />

Mário Quintana; A Carreteada Farrapa (1938) de J. O. Nogueira Leiria; Mãos (1938)<br />

de Felisberto Soares Coelho; Ibirapuitã (1938) de Maria do Carmo Thomas; Versos


!<br />

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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)<br />

! !<br />

para um tordilho chamado Mohomet (1938) de Tirteu Rocha Viana. Imensa variedade<br />

de temáticas e estilos perfazem as publicações do periódico, de escritores<br />

posteriormente reconhecidos pela crítica, como Mário Quintana, que passa a assinar<br />

uma coluna na revista, intitulada “De Rebus Pluribus”, a partir de 1939, junto a autores<br />

praticamente anônimos.<br />

Já no segundo número da revista 3 , a produção poética se apresenta mais<br />

organizada, ocupando uma coluna específica, apesar de contar ainda com poemas<br />

dispersos pela revista, entremeadas ao longo da edição por textos de outra natureza.<br />

Este número já apresenta o nome dos colaboradores e seus respectivos poemas no<br />

expediente da publicação, destacando desta forma a importância que o periódico<br />

atribui ao gênero poético. Nesta edição constam publicações de Gerson Neves com<br />

Povo da Lata (1938); Luz Interior (1938) de Maria do Carmo Thomas; Cantiga para a<br />

minha esperança (1938) de Antonio Brasil Milano; Caminhos das Missões- Paisagens<br />

de além- Ibicuí (1938) de Juca Ruivo; Canção das Horas Mortas (1938) de Hernani de<br />

Carvalho Schmitt; Da Ilha do Paiva (1938) de Túlio Chaves e Canção do meio do<br />

mundo (1938) de Mário Quintana.<br />

A partir da seleção destes textos, podemos organizá-los tematicamente, da<br />

seguinte forma: 4 produção poética de cunho regionalista; tempo, memória e infância; a<br />

produção de cunho social; imagens do urbano: a construção da cidade; e identidade. Se<br />

redimensionados na história literária gaúcha, há textos pertencentes ao movimento<br />

romântico; poemas com a estética simbolista, porém com forte influência parnasiana,<br />

simbolismo este que, segundo Zilberman (1992, p.74), na poesia do Rio Grande do Sul<br />

de forma geral, estende-se até os anos 50; e poucos textos sob influência modernista.<br />

Como representante da temática que congrega tempo, memória e infância,<br />

temos o poeta alegretense Antonio Brasil Milano, que por ora também suscitará<br />

poemas de cunho social. Em Cantiga para a minha esperança (1938) 5 o eu – lírico<br />

evoca a imagem da infância perdida, rememorando um tempo findo, que não volta<br />

mais. Apenas em seu mundo infantil há possibilidade de concretização de suas<br />

aspirações, pois o mundo adulto, repleto de responsabilidades, desagua em um<br />

conflito interior, provocando um desajuste no indivíduo que se coloca à mercê da<br />

efemeridade do tempo.<br />

3<br />

COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã-Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Janeiro,<br />

1938. Ano I: Número 2.(<br />

4<br />

Essa é uma tematização inicial acerca dos poemas selecionados, com aspectos observados<br />

além das duas primeiras edições, caracterizando grande parte do material coletado.<br />

5<br />

MILANO, Antonio Brasil. Revista Ibirapuitã. Fevereiro, 1938. Ano I: Número 2. p. 8.(<br />

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30( | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012<br />

Cantiga para a minha esperança<br />

Foi num sonho de criança<br />

que venho minha esperança<br />

num barquinho de papel.<br />

Foi ninada com carinho<br />

nunca saiu do barquinho<br />

que trouxe Papai Noel.<br />

Meu barquinho não descansa,<br />

meu barquinho sempre avança<br />

qual um soberbo batel.<br />

Ele é o barco de um menino<br />

o mundo é tão pequenino<br />

e todo feito de ouropel.<br />

Era uma vez... um barquinho<br />

que voltou no seu caminho<br />

e bem depressa singrou<br />

Me deixou em outra idade,<br />

foi buscar felicidade<br />

e até hoje não voltou..<br />

Já na poesia de Hernani de Carvalho Schmitt, Canção das horas mortas (1938),<br />

também localizada na mesma temática que o poema anterior, o eu-lírico mostra-se<br />

desesperançado tal qual um fim de tarde, a realidade é uma pintura melancólica<br />

representada pela contemplação da natureza. A estação outonal se equipara com a<br />

tristeza do seu contemplador ao presenciar as pequenas perdas do cotidiano, como a<br />

folha que cai, simbolizando a impotência diante da efemeridade da vida.<br />

Canção das horas mortas 6<br />

Na tristeza augural da tarde que agoniza<br />

como uma emocional rosa de outono,<br />

vejo as folhas que caem<br />

uma por uma,<br />

num lírico abandono<br />

da árvore primeira que se f<strong>aqui</strong>riza.<br />

“As árvores são emoções da Natureza”<br />

6 SCHMITT, Hernani de Carvalho. Revista Ibirapuitã. Fevereiro, 1938. Ano I: Número 2. p. 14.


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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)<br />

! !<br />

e, cada folha que cai<br />

é um grito de beleza<br />

no silêncio augural da tarde que agoniza,<br />

é um farrapo de vida que se esvai...<br />

Quando uma folha cai e amarelece e morre<br />

ao leu do vento que a agita<br />

na umidade do pomar,<br />

eu vejo nessa folha uma Saudade.<br />

E que não há-de?<br />

se é um pedacinho da infinita<br />

Alma da Terra<br />

que vem, brilhando,<br />

refletir o Sol e refletir o Luar.<br />

Folha morta! Farrapo de ilusão!<br />

Esquecimento!<br />

dança, folha morta, ao leu do vento,<br />

no seio maternal da terra fria.<br />

Se pensados de acordo com a periodização da historiografia literária, ambos os<br />

poemas poderiam ser redimensionados nas estéticas romântica e simbolista,<br />

respectivamente, o que leva-nos a pensar, inicialmente, que a produção poética<br />

veiculada pelo periódico Ibirapuitã se constitua de poetas influenciados pelos<br />

movimentos anteriores ao modernismo, tão evidenciado nos anos 30 no que tange à<br />

produção literária advinda do centro do país e tão pouco problematizado pela tradição<br />

literária sulina.<br />

RECONHECENDO A “LITERATURA PELAS BEIRADAS” 7 ·: UMA TENTATIVA<br />

O resgate de textos não tão celebrados pelo cânone é ponto fulcral deste<br />

artigo, que tenta viabilizar, através do espaço dedicado à literatura em fontes<br />

primárias, especialmente o periódico Ibirapuitã (1938-1939), a inserção, no sistema<br />

literário sul- rio-grandense, de autores gaúchos marginalizados pela tradição. Inscrever<br />

esses autores que colaboraram de forma intensa com o periódico na história literária<br />

sulina, representa tentativa de reconhecimento das mais árduas e espinhosas para<br />

uma produção do interior que se construiu em circunstâncias desfavoráveis, mas que<br />

7 Refiro-me à expressão mencionada por Marcelo Backes em “A literatura gaúcha pelas<br />

beiradas”; acerca da produção literária do Estado que não se configura suficientemente bem<br />

ao lado da literatura brasileira, com uma gama de autores não reconhecidos por esse sistema;<br />

haja vista, a existência de algumas “beiradas” tais como geográficas, editoriais e midiáticas;<br />

aspecto que também se observa, em minha opinião, dentro do próprio sistema gaúcho, que<br />

muitas vezes exclui a produção do interior.<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((31


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!<br />

VANESSA OLIVEIRA JULIANU REGINA<br />

! !<br />

alcançou projeção nacional e internacional à época, redirecionando-a para outros<br />

pampas que não o do esquecimento. Há um visível esgotamento frente aos sistemas<br />

literários auto-excludentes, arbitrários e exacerbadamente subjetivos, onde se faz<br />

necessária a constante reescrita e releitura da história literária, com lentes de aumento<br />

para além de suas esferas centralizadoras. É necessário que o revisionismo que tanto<br />

afeta a historiografia literária gaúcha produza, de fato, mudanças visíveis em seu<br />

produto e que o cânone seja repensando frente a tantas formas de se fazer história da<br />

literatura, isto é, visualizar possibilidades de outras fontes, tal qual a fonte primária,<br />

que também se inscreve a margem desta escrita literária.<br />

Porém, como nos diz o poeta Milano (1938, p.8), ainda há uma esperança<br />

“Meu barquinho não descansa/meu barquinho sempre avança/Qual um soberbo batel”;<br />

uma esperança que, apesar de tudo, não morre, apenas se renova.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BACKES, Marcelo. A literatura gaúcha pelas beiradas. Revista Vox XXI. Porto Alegre,<br />

22 de setembro de 2002.<br />

COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte.<br />

Alegrete, Ano I, nº 1, janeiro 1938. Editorial.<br />

COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte.<br />

Alegrete, Ano I, nº 1, janeiro, 1938. Correio Amigo.<br />

MARTINS, Ana Luiza. De Revistas, Hebdomadários e Magazines In: Revistas em<br />

Revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República, São Paulo<br />

(1890-1922). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2001, p.<br />

111-162.<br />

MILANO, Antonio Brasil. Cantiga para a minha esperança. Ibirapuitã- Mensário de<br />

Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Ano I, nº 2, Fevereiro, 1938.<br />

MOREIRA, Alice Campos. Acervos de periódicos literários: estatuto, taxionomia e<br />

memória. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM PERIÓDICOS<br />

LITERÁRIOS BRASILEIROS, 2002, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PUCRS,<br />

2003.<br />

SCHMITT, Hernani de Carvalho. Canção das Horas Mortas. Revista Ibirapuitã.<br />

Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Fevereiro, 1938. Ano I nº 2.<br />

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado<br />

Aberto, 1992.<br />

ZILBERMAN, Regina; BORDINI, Maria da Glória. As pedras e o arco: fontes<br />

primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.<br />

32( | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


L i t e r a t u r a<br />

a rEcEPÇÃo crÍtica Do MoViMEnto<br />

SiMBoLiSta naS PÁGinaS Do JornaL cEarEnSE<br />

O PÃO (1892-1896)<br />

Luciana Brito<br />

Doutora em Letras pela universidade Estadual<br />

Paulista (unESP). Diretora e Professora do centro<br />

de Letras, comunicação e artes da universidade<br />

Estadual do norte do Paraná (uEnP/Jac) e Professora<br />

do Programa de Pós-Graduação em Letras da<br />

universidade Estadual de Londrina (uEL).<br />

contato: lbrito@uenp.edu.br


A RECEPÇÃO CRÍTICA DO MOVIMENTO SIMBOLISTA<br />

NAS PÁGINAS DO JORNAL CEARENSE O PÃO (1892-1896)<br />

Luciana Brito<br />

RESUMO: O artigo em questão tem por objetivo estudar a recepção crítica do movimento simbolista<br />

nas páginas do jornal cearense O Pão (1892-1896), um dos órgãos literários que mais colaborou para<br />

a consolidação das Letras e das Artes no Ceará. Foi nas colunas deste jornal, onde ecleticamente<br />

conviviam diversas tendências estéticas, que os poetas Lopes Filho, autor de Fantos (1893), e Lívio<br />

Barreto, autor de Dolentes (1897), e o contista Cabral de Alencar, publicaram seus primeiros textos<br />

simbolistas. Entretanto, alguns dos redatores do jornal, como é o caso de Antônio Sales, atacam<br />

impiedosamente o Simbolismo nacional. Vale ressaltar que tal ação é uma resposta a ataques vindos<br />

de outras revistas simbolistas espalhadas pelo país, como é o caso da Tebaida, órgão dos<br />

simbolistas do Rio de Janeiro, mas a nova escola é que passa a ser alvo das censuras dos redatores<br />

de O Pão.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Recepção crítica; Imprensa; Simbolismo; O Pão.<br />

THE CRITICAL RECEPTION OF THE SYMBOLIST MOVEMENT IN THE PAGES OF THE<br />

CEARENSE NEWSPAPER O PÃO (1892-1896)<br />

ABSTRACT: The article aims to study the critical reception of the Symbolist movement on the pages<br />

of the newspaper from Ceará, O Pão (1892-1896), a literary group which most contributed to the<br />

consolidation of Letters and Arts in Ceará. It was on the pages of this newspaper that different<br />

aesthetic tendencies like the poets Lopes Filho, the author of Fantos (1893) and Livy Baker, the<br />

author of Dolentes (1897), and the storyteller Cabral de Alencar published their first texts. However,<br />

some editors of the newspaper as Antonio Sales, mercilessly attack the national symbolism. It is<br />

important to emphasise that such action is a response to attacks from other Symbolist magazines<br />

across the country, as Tebaida from Rio de Janeiro, but it is the new school that becomes the focus<br />

of censure by the editors of O Pão.<br />

KEYWORDS: Critical reception; Press; Symbolism; O Pão.<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|(((!35(


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!<br />

LUCIANA BRITO<br />

! !<br />

INTRODUÇÃO<br />

Na segunda metade do século XIX, apesar de vários fatores concorrerem para o declínio<br />

econômico e político do Ceará, a atividade artística, principalmente a literária, foi intensa e fecunda<br />

em Fortaleza. Vários intelectuais formavam agremiações, espaços de sociabilidade onde discutiam<br />

os mais variados assuntos, principalmente os literários. O escritor cearense Leonardo Mota (1938),<br />

procurando fazer um levantamento das academias e grêmios literários que surgiram entre 1870 e<br />

1939, responsáveis pela propagação das letras no Ceará, concluiu que, de 1870 até 1900, foram<br />

trinta e sete os grupos que atuaram no contexto intelectual cearense, sendo que a maior parte surge<br />

na cidade de Fortaleza. E, segundo diversos estudiosos, como é o caso de Dolor Barreira (1948), foi<br />

de extrema importância para a história da literatura cearense as revistas e jornais literários veiculados<br />

por essas agremiações.<br />

O Ceará não podia eximir-se à proliferação das academias ou agremiações literárias em voga<br />

na Europa desde o século XVII e no país desde o século XVIII. Além disso, há outro motivo que<br />

também explica o aparecimento dessas sociedades na província: não havia no Ceará nenhum<br />

estímulo às produções intelectuais e artísticas bem como à publicação de livros. Sendo assim,<br />

intelectuais reuniam-se em agremiações em Fortaleza, tendo como intuito promover a fermentação<br />

de ideias, o gosto artístico e, principalmente, a formação de um público leitor. Para tanto, lançavam<br />

jornais e revistas em que publicavam os mais diversos tipos de textos que “além de sanar os<br />

problemas relacionados com as dificuldades eventuais de edição da obra em volume [...] também era<br />

uma interessante oportunidade [...] de lançar uma espécie de balão de ensaio, através do qual<br />

poderiam sondar a aceitação do público” (BRITO, 2003, p.60).<br />

Referindo-se às causas que determinaram o surgimento dessas sociedades na Capital<br />

cearense e sua grande importância intelectual, escreveu Pessoa no final do século XIX:<br />

[...] essas agremiações não deixam de ser interessantes e até certo ponto se justificam. No<br />

meio provinciano falece de todo o estímulo a qualquer produção de arte. [...] Não há como se<br />

celebrizar um gênio, fulgindo nessas colunas febris, consagradas a fins mais altos que acolher<br />

lucubrações literárias. Depois, o poeta, que é amanuense do governo, não tem guarida no jornal<br />

da oposição, e contista, que frequenta os salões e namora a filha do chefe político em oposição,<br />

nunca achará agasalho na folha oficial. A publicação de livros é um martírio: o preço da edição<br />

– exorbitante, e ninguém quer ou sabe lê-los, quanto mais comprá-los (PESSOA apud<br />

BARREIRA, 1948, p.63).<br />

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A RECEPÇÃO CRÍTICA DO MOVIMENTO SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL CEARENSE O PÃO (1892-1896)<br />

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Pessoa sabia das dificuldades do meio, inclusive fez parte de uma dessas agremiações que<br />

procuravam sacudir Fortaleza, o Centro Literário 1 . Intelectuais como ele, ou seja, que tinham<br />

interesse em publicar suas ideias, só encontravam certo desafogo nessas sociedades, nas quais<br />

discutiam variados assuntos, reuniam-se para lerem suas produções, fundavam jornais e revistas,<br />

desenvolviam seus talentos e partiam para voos mais largos, pois, afinal, vários escritores cearenses<br />

renomados, reconhecidos em todo o país, no início de suas carreiras, fizeram parte desses grupos,<br />

como é o caso de Juvenal Galeno, Araripe Junior, Rocha Lima, Tomás Pompeu, Adolfo Caminha,<br />

Antônio Sales, Oliveira Paiva, dentre outros.<br />

Dentre essas sociedades algumas tiveram existência curta e efêmera, outras intensa e<br />

fecunda, como é o caso da Padaria Espiritual 2 (1892-1898). Apesar do espírito jovial e brincalhão dos<br />

seus idealizadores, a verdade é que a Padaria Espiritual contribuiu muito para a promoção da<br />

literatura cearense. Além de ter lançado o jornal O Pão 3 , em que foram publicados vários contos,<br />

fragmentos e capítulos de romances, crônicas, poemas e textos de crítica literária, também foi a<br />

responsável pela publicação de um número considerável de livros.<br />

1 Em 27 de setembro de 1894, surge o Centro Literário, tendo como sócios fundadores Juvenal Galeno, Viana de<br />

Carvalho, Temístocles Machado, Papi Júnior, Álvaro Martins, Luiz Agassiz, Pedro Moniz, Alves Lima, Alfredo<br />

Severo, Jovino Guedes, Quintino Cunha, Frota Pessoa, Alcides Mendes, Farias Brito, Rodolfo Teófilo, José<br />

Olímpio, Eduardo Sabóia, Francisco Barreto, Tancredo de Melo, Almeida Braga e Belfort Teixeira (MOTA, 1932).<br />

De acordo com Mota (1932), o Centro Literário originou-se do afastamento de Álvaro Martins e Temístocles<br />

Machado da Padaria Espiritual. O Centro, que durou dez anos, organizou conferências literárias, editou obras,<br />

criou a revista Iracema, que lançou durante dois anos inúmeros textos, e prestou auxílio a grupos congêneres.<br />

2 A Padaria Espiritual surge, em 1892, das reuniões de um grupo de rapazes que se reuniam nas mesas do<br />

Café Java, um quiosque que ficava no centro de Fortaleza, para falar de literatura. O intuito maior do grupo era<br />

despertar nos cearenses, como fora de interesse de outras sociedades literárias, o gosto artístico,<br />

principalmente literário. Todavia, como já havia precedentes de sociedades literárias, muitas delas de traços<br />

tradicionais, então os integrantes da Padaria Espiritual, em especial seu idealizador, Antônio Sales, decidiram<br />

produzir algo original e, se necessário, até mesmo escandaloso, mas que repercutisse entre os cearenses.<br />

Desse modo, Antônio Sales deu um nome original ao grêmio, Padaria Espiritual, e, em seguida, elaborou seu<br />

inovador programa de instalação, que foi um verdadeiro sucesso.<br />

3 Preocupados em divulgar suas ideias e obras e, inclusive, impor-se socialmente, era natural que os<br />

idealizadores da Padaria espiritual tivessem um jornal que fosse porta-voz dos seus interesses. A ideia de “O<br />

Pão” surgiu junto com a ideia da “Padaria”, pois era difícil conceber uma sociedade literária sem um jornal que<br />

divulgasse as ideias inovadoras do grupo. O Pão, assim como a Padaria Espiritual, teve duas fases, a primeira,<br />

em que foram publicados os seis primeiros números, vai de julho a novembro de 1894. A segunda, em que há<br />

um diretor, Antônio Sales, e um gerente, Sabino Batista (1868-1899), inicia-se em 1895 e vai até 1896, e<br />

apresenta trinta números. No primeiro número dessa nova fase, há um artigo que explica a ausência assim<br />

como o retorno do jornal, que volta mais circunspeto e mais forte, e o mais importante, com novos “obreiros”, ou<br />

seja, novos sócios e correspondentes. Nesta fase, os redatores, cheios de otimismo e orgulho, apresentam-se<br />

satisfeitos com o jornal e a agremiação, já, então, reconhecida em todo o país e dispondo de sóciocorrespondentes<br />

nacionais e estrangeiros. O Pão, que era enviado a todas as sociedades literárias brasileiras,<br />

devido à sua excentricidade, despertava a simpatia pública.<br />

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LUCIANA BRITO<br />

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A ESTÉTICA SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL O PÃO (1892-1896)<br />

Foi nas colunas d’O Pão, onde ecleticamente conviviam diversas tendências estéticas<br />

(Romantismo, Realismo, Naturalismo e Parnasianismo), que os poetas Lopes Filho, autor de Fantos<br />

(1893), e Lívio Barreto, autor de Dolentes (1897), e o contista Cabral de Alencar, publicaram seus<br />

primeiros textos simbolistas. Todavia, alguns redatores do jornal escrevem críticas severas ao<br />

Simbolismo nacional. Vale dizer que tal ação é uma resposta a ataques vindos de fora, mas a nova<br />

estética é que passa a ser alvo das censuras dos redatores. É o caso, por exemplo, do artigo “Uma<br />

agressão”, publicado no n.º 18, em que Antônio Sales, poeta e romancista realista-naturalista, ataca<br />

impiedosamente Alves de Faria, poeta alagoano que pontificava na revista Tebaida (órgão dos<br />

simbolistas do Rio de Janeiro), que além de escrever uma carta criticando duramente o segundo livro<br />

de Antonio Sales, as Trovas do Norte, também mencionou a destruição da Padaria Espiritual. Diz<br />

Sales, em certo momento do seu artigo, que a carta que Alves de Faria lhe remeteu é um atestado<br />

do seu desequilíbrio mental, pois há muito tempo ele “não via tanta asneira junta” (SALES, 1895, p.<br />

02). Como o caluniador também havia censurado, no mesmo artigo, Olavo Bilac, Afonso Celso, Artur<br />

Azevedo, Carlos Dias e Coelho Neto, Antônio Sales comenta que é um regalo ser sovado em tão boa<br />

companhia.<br />

Alves Faria, ao mencionar a destruição da Padaria Espiritual em um de seus artigos, afirma:<br />

Alongando o olhar até esse pedaço de Norte para onde a ciência hidráulica conseguiu fazer<br />

derivar um cristalino veio, calmo e doce, da fonte Cristalina, parece-nos ver a imagem da Arte,<br />

quente e fumegante do forno da Padaria Espiritual, ereta em meio de um cesto de bolos e<br />

conduzida sobre um chiante carro de bois!<br />

E como ela vai desfigurada! Vemo-la inteiramente, através da distância, e nos parece antes<br />

uma condenada, lavada ao patíbulo da Crítica, triste e lacrimosa, de olhos doces e amêndoas<br />

confeitadas e lábios secos e duros de côdea! Pobrezinha! Falta-lhe apenas, para a perfeita<br />

apoteose do seu martírio, a verde cana, já sagrada à essência suavíssima (sic) da sua Doçura!<br />

(FARIAS apud CAROLLO, 1981, p. 397)<br />

Defendendo sua agremiação, diz Antônio Sales:<br />

Estes rapazes (padeiros) de quem S.S. fala tão desdenhosamente são artistas de finos nervos,<br />

tendo na Arte uma orientação segura e nítida, emoldurando a ideia simples e sã na estrofe ou no<br />

período singelo e claro, sem esses atavios supérfluos e requintados que alguns nevrotados (sic)<br />

inventaram com o fim de ocultar a compleição raquítica das suas produções. (SALES, 1895, p. 2)<br />

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A RECEPÇÃO CRÍTICA DO MOVIMENTO SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL CEARENSE O PÃO (1892-1896)<br />

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A afirmação do crítico é genérica demais, pois não corresponde aos estilos seguidos por todo<br />

o grupo, que não era tão homogêneo assim. Basta lembrar que Lopes Filho e Lívio Barreto, dois<br />

poetas indubitavelmente simbolistas, logo nos primeiros números do jornal do grêmio, já aparecem<br />

com seus poemas repletos de pessimismo e misticismo, cuja linguagem nada tinha de nitidez e muito<br />

menos de ideia “simples e sã”. Ao interrogar sobre o que consistia a “estética literária dos nevrotados<br />

(sic) reformadores da Arte de escrever no Brasil”, no caso a estética simbolista, responde o seguinte:<br />

Nisto simplesmente: sobre um fundo de lirismo doentio e incongruente tecer composições de<br />

formas arrevesada, de vocabulário exótico e rebuscado, com grandes gastos de maiúsculas e<br />

tudo besuntado de um misticismo piegas e de um fatalismo incoerente. (SALES, 1895, p.2)<br />

O “lirismo doentio e incongruente”, o “vocabulário exótico e rebuscado”, o “misticismo” e o<br />

“fatalismo incoerente” da estética simbolista, iam contra o ideal de arte defendido pelo crítico, cujas<br />

raízes eram calcadas na objetividade dos temas e na clareza da linguagem. No final do texto, conclui<br />

que a Padaria Espiritual não deve ser “banida” como afirma Alves de Faria, mas sim essa “igrejinha<br />

simbolista” (a Tebaida), “a bem do bom senso e do bom gosto” (SALES, 1895, p. 2). Neste<br />

fragmento, ocorre uma referência à famosa Questão Coimbrã, polêmica travada entre românticos e<br />

realistas, em Portugal, durante a segunda metade o século XIX. Os românticos, representados por<br />

Feliciano de Castilho, criticaram um grupo de jovens da Universidade de Coimbra, que defendiam<br />

novas ideias, diga-se, realistas. Antero de Quental, um desses jovens, rebate as críticas dos<br />

românticos com uma carta aberta conhecida por Bom Senso e Bom Gosto. Essa polêmica só se<br />

definiria mais tarde com as Conferências do Cassino Lisbonense, proferidas por Antero de Quental,<br />

Eça de Queirós e outros. Tal acontecimento entrou para a história de Portugal com o nome de<br />

Questão Coimbrã e marca oficialmente o início do Realismo na Península Ibérica. Assim como os<br />

portugueses, os membros de O Pão e da Tebaida também realizaram inúmeras trocas de ofensas<br />

através de seus respectivos jornais.<br />

A seção “Carteira”, no mesmo número em que Antônio Sales responde às críticas de Alves de<br />

Faria, tratando de Carlos Dias, que teria também atacado a Tebaida, informa haver este pintado “a<br />

debandada que vai por aquele viveiro de gênios, do qual já se desligaram Cruz e Sousa, B. Lopes e<br />

outros” (CARTEIRA, 1895, p. 3). E, aludindo à união existente entre os literatos do jornal O Pão, diz a<br />

seção: “Desunidos, eles não podem ver com bons olhos a união dos outros” (CARTEIRA, 1895, p. 3).<br />

A mesma seção, no número seguinte, o 19, volta a falar da revista Tebaida que certamente<br />

continuava insultando a Padaria Espiritual. Diz ela: “[...] esses decadentistas de meia tigela sempre<br />

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LUCIANA BRITO<br />

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que discutem arrepanham (sic) sua túnica de romeiros e deixam ver o paletó sovado e gorduroso de<br />

capadócios (sic)” (CARTEIRA, 1895, p. 2)<br />

Os ataques continuam no n.º 20, Bruno Jaci, isto é, José Carlos Júnior, publica um artigo<br />

muito expressivo intitulado “Com a Tebaida” respondendo às ofensas que um dos integrantes da<br />

revista Tebaida (órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro), cujo pseudônimo era “Pedro, o eremita”,<br />

lançara sobre a Padaria Espiritual. O padeiro inicia seu texto comentando que em um hospital “de<br />

doidos” na Inglaterra, estava sendo publicado um jornal redigido pelos próprios pacientes e quando<br />

recebeu o primeiro número do jornal A Tebaida, descobriu que estava diante do mesmo tipo de jornal.<br />

Para ele, a única diferença existente entre ambos é que os redatores de um estão recolhidos em um<br />

hospício, enquanto que os do outro andam soltos. Depois diz que: “Excetuadas duas ou três<br />

composições em que na Tebaida há senso comum, o mais é tudo coisa de nefelibatas, simbolistas,<br />

estradeiros de Santiago, etc.” (JÚNIOR, 1895, p. 2)<br />

Ao atacar os integrantes da Tebaida que haviam denegrido a imagem da Padaria Espiritual na<br />

imprensa carioca, o crítico acaba por insultar o movimento simbolista, na medida em que menciona,<br />

pejorativamente, os vocábulos “nefelibata”, “simbolista” e “estradeiros de Santiago”. O alvo dos<br />

ataques passa a ser o movimento como um todo. A terminologia utilizada para referir-se ao<br />

movimento, estrutura-se através do emprego pejorativo de termos que têm um significado de<br />

provocação, de conotação moralista, sarcástica e pejorativa. O crítico, não se libertando dos clichês<br />

tão em voga no momento entre os ensaístas que se referiram ao Simbolismo, não consegue<br />

apreender as inovações da nova estética. Ao ler o movimento, fez uso dos clichês que a crítica da<br />

época tanto apresentava nas suas apreciações dedicadas às obras simbolistas.<br />

O intenso uso de clichês e estereótipos por parte de muitos dos críticos que se referiram à<br />

corrente novista talvez possa ser resultado do fato de que a promoção do Simbolismo na literatura<br />

brasileira ocorre através de uma inquietação cultural que inseriu notícias e informações divulgando as<br />

últimas transformações operadas na literatura europeia, ligadas ao esgotamento das tendências<br />

estéticas orientadas pela concepção cientificista do mundo. São informações nem sempre<br />

esclarecedoras sobre o movimento na França, obtidos através do acesso a revistas e jornais ou da<br />

leitura de algumas poucas obras que dificilmente poderiam permitir uma visão satisfatória das novas<br />

posições. Daí a existência de clichês, de estereótipos, de informações genéricas nos textos críticos<br />

que comentavam a chegada da nova estética.<br />

A muitos pode parecer estranho o fato de a Padaria Espiritual (que tem sido considerada por<br />

alguns estudiosos, aliás, erroneamente, um grupo simbolista) lançar tão terríveis ataques aos<br />

cultores da nova seita, tendo em seu seio pelo menos dois poetas indubitavelmente simbolistas:<br />

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A RECEPÇÃO CRÍTICA DO MOVIMENTO SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL CEARENSE O PÃO (1892-1896)<br />

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Lopes Filho e Lívio Barreto. E parece mais estranha ainda a inclusão, no n.º 22 de O Pão, de um<br />

texto em que o próprio Lopes Filho, autor do primeiro livro simbolista cearense, justamente ao elogiar<br />

os Mármores, de Francisca Júlia, faz censura aos simbolistas do Sul do país. Depois de exaltar na<br />

jovem escritora os seus “versos corretos”, diz o poeta dos Fantos:<br />

Cruz e Sousa e outros, ultimamente, no Rio de Janeiro, têm-se constituído os arautos do<br />

decadismo; mas em quase todos esses moços – excetuando B. Lopes, Afonso Guimarães e<br />

Emiliano de Menezes – reina a mais bem acabada vocação artística para... para copiarem<br />

servilmente os novos de Portugal e França. (FILHO, 1895, p. 04)<br />

Deve-se advertir, entretanto, que já iam bem longe os tempos em que, sem conhecimento do<br />

que faziam os primeiros simbolistas do Paraná ou do Rio de Janeiro, Lopes Filho compunha os<br />

versos de seu livro ao influxo do Simbolismo português. Com o tempo, o padeiro foi, aos poucos,<br />

fugindo da ortodoxia da escola, apesar de nunca ter perdido os tons crepusculares do Simbolismo ou<br />

o pessimismo do Decadentismo. Junta-se a isso o fato do Pedro, da Tebaida, havê-lo atacado, a ele<br />

e a seu livro, o Fantos, duramente, como se pode ver no fragmento abaixo:<br />

A Padaria Espiritual e o Centro do mesmo nome são fábricas de rosas colossais, manejadas no<br />

grande forno do espírito Cearense pela pá do Sr. Antônio Sales, um padeiro de avental e<br />

cafurinha branca na cabeça, muito suado pelo calor do seu talento, enquanto o Sr. Lopes Filho<br />

agarra-se ao badalo colossal dos Fantos e dobra-o e redobra-o pavorosamente, de tal modo<br />

que o som se espalha pelo Norte até a extrema latitude setentrional do Brasil e desce Sul<br />

abaixo até as fronteiras com o Rio da Prata, como se fosse um Quasímodo das Letras,<br />

disforme, anguloso, corcunda, endemasiado (sic), cheio da grimace (sic) fantástica do Som.<br />

(FARIAS apud CAROLLO, 1981, p. 397)<br />

Tudo isso leva a crer que os seguidores da mesma corrente estética não se entendiam muito<br />

bem, o que, aliás, não é de se estranhar entre literatos. Apesar de que esses ataques ao<br />

Simbolismo, existentes nos artigos publicados em O Pão e escritos por Antônio Sales, José Carlos<br />

Júnior e pelo próprio Lopes Filho, podem ser explicados à luz da história.<br />

Em geral, uma revolução poética longe de ser resultado de um processo de sucessão<br />

amigável, supõe uma longa fase de lutas, polêmicas e debates, decorrentes da reação natural de um<br />

sistema até então dominante. E o movimento simbolista não fugiu a essa regra. Todavia,<br />

paralelamente a essa reação natural, o movimento simbolista conviveu com outros problemas de<br />

adaptação. O peso ideológico que marca desde cedo a literatura brasileira acaba sendo talvez o<br />

dado fundamental para compreendermos a chegada da nova estética. Era preciso “criar” uma<br />

realidade nacional, e a literatura ocupava um lugar privilegiado no campo da produção de bens<br />

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LUCIANA BRITO<br />

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simbólicos. A ideologia romântica do “nacionalismo artístico” acabou por levar a criação artística a<br />

ser entendida como prova da capacidade nacional. Sendo assim, as correntes que, desde o início do<br />

século XIX, orientam a produção literária brasileira são nacionalismo e nativismo.<br />

No âmbito literário, a necessidade de afirmação e participação do/no contexto nacional só eram<br />

possíveis mediante a utilização de uma linguagem que oferecesse alto grau de legibilidade calcada no<br />

pretexto patriótico e no papel didático que o literato deveria assumir, como afirma Antonio Candido:<br />

Correspondendo aos públicos pequenos e singelos a nossa literatura foi geralmente acessível<br />

como poucas, pois até o Modernismo não houve <strong>aqui</strong> escritor realmente difícil, a não ser a<br />

dificuldade fácil do rebuscamento verbal [...] A constituição do patriotismo como pretexto, e a<br />

conseqüente adoração pelo escritor do papel didático de quem contribuiu para a coletividade,<br />

deve ter favorecido a legibilidade das obras. Tornar-se legível pelo conformismo aos padrões<br />

correntes; exprimir os anseios de todos, dar testemunho sobre o país; exprimir ou reproduzir<br />

sua realidade [...] (CANDIDO, 1965, p.102)<br />

Desse modo, ao mesmo tempo em que se favoreciam as obras literárias que estabelecessem a<br />

legibilidade do real, no fundo o ideal de nacionalidade, reprimiam-se as obras de invenção, pois estas<br />

não correspondiam adequadamente à função que o modelo de linguagem legível e verossímil, oriunda<br />

do Romantismo, Realismo/Naturalismo e Parnasianismo, vinham preenchendo no que diz respeito a<br />

uma visão do real, do nacional. Ainda segundo Antonio Candido “Não espanta que os autores<br />

brasileiros tenham pouco de gratuidade que dá asas às obras de arte; e, ao contrário, muito da<br />

fidelidade documentária ou sentimental, que vincula a experiência bruta.” (CANDIDO, 1965, p.103)<br />

Neste contexto, cujas linhas mestras giravam em torno da referencialidade e da legibilidade<br />

do objeto literário, o artificialismo, tomado como verdadeira cosmovisão anti-naturalista, a<br />

sensibilidade “névrosée”, o gosto pelo vago e pelo indefinido, o esteticismo e sobretudo a linguagem<br />

poética rejeitando a objetividade e os padrões de estruturação lógica, associados ao gosto pelo<br />

mistério e hermetismo, próprios da corrente simbolista, - que aparece em grande parte como o<br />

começo do movimento de construção de uma linguagem não representativa – não poderiam ser<br />

facilmente adequados à realidade da literatura brasileira. O modelo simbolista representava a tomada<br />

de consciência dos limites da linguagem representativa. Ora, essa posição implicava um<br />

questionamento não só da possibilidade da reprodução realista, mas do próprio real, visto como algo<br />

não apreensível racionalmente. Ao passo que, no caso da literatura brasileira, o momento era o de<br />

estabelecer modelos de linguagem que favorecessem a legibilidade do real, do nacional, que<br />

assegurassem uma linguagem nacional e não uma crise desses modelos. Wilson Martins, ao tratar<br />

da literatura brasileira no final do século XIX, esclarece:<br />

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É que, contrariando as polarizações fáceis dos manuais, não só o Simbolismo estava longe de<br />

ser uma corrente predominante em 1894 (na verdade jamais chegaria a sê-lo), como, ainda, e<br />

talvez por isso mesmo, havia um anti-Simbolismo ao lado do Simbolismo. (MARTINS, 1978, p.<br />

450)<br />

Esse “anti-Simbolismo” a que se refere o escritor seria formado, em sua maioria, pelos críticos<br />

naturalistas e positivistas que dominaram grande parte do século XIX e tiveram seus pressupostos<br />

colocados em questão pelo aparecimento das obras simbolistas que, além de não se ajustarem as<br />

suas lentes naturalistas e positivistas, fizeram do desajustamento uma antirrepresentação,<br />

apontando, desse modo para os desvios entre literatura e história e, por consequência, para a crise<br />

dos métodos historiográficos. Daí a existência de inúmeros comentários incompreensíveis ou<br />

ataques à corrente simbolista por parte dos críticos, uma vez que as discussões tinham pouco de<br />

considerações polêmicas em torno de ideias e teorias de ordem literária e estética. A figura de Cruz e<br />

Sousa, alvo dos ataques mais fortes, é também o exemplo do rumo tomado pela luta: poucas<br />

indagações literárias, muitas ofensas pessoais e zombarias.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Como pôde ser visto, na fase em que o conceito de Decadentismo e Simbolismo circula como<br />

informação, isto é, principalmente entre 1887-94, a crítica naturalista, dirigida pelos pressupostos<br />

metodológicos de base cientificista, converge seus esforços para preocupações orientadas pelo<br />

critério de nacionalidade e para estudos interessados pelos métodos historiográficos. Com exceção<br />

de Araripe Júnior, cuja crítica distingue-se pela inclinação natural pelo ecletismo, pela formação<br />

humanista, os principais representantes da crítica estão voltados para a historiografia literária. É<br />

verdade que José Veríssimo, como crítico militante que foi, terá uma relação mais direta com os<br />

simbolistas, porém sua atuação ocorre numa fase em que a notícia do movimento já deixara de ser<br />

novidade, sendo interesse do crítico a avaliação de obras, ficando implícitas as considerações sobre<br />

a teoria da nova estética.<br />

Este tipo de comportamento perante a corrente simbolista não é caso isolado da literatura<br />

brasileira pois ocorre nas demais literaturas, não sendo raro o crítico que deixe de deplorar a<br />

obscuridade, o artificialismo, a sensibilidade névrosée, e o relaxamento das regras prosódicas por parte<br />

dos decadentistas. Todavia, no caso da literatura europeia, os traços que iriam mais tarde ser<br />

radicalizados pelos simbolistas, no sentido de uma mudança na função poética da linguagem, já estavam<br />

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delineados – diferentemente do que ocorre no contexto brasileiro – através de uma necessidade natural,<br />

por parte dos europeus, de libertar a linguagem de seu compromisso com a representação. As diferenças<br />

contextuais no caso da literatura europeia e brasileira são gritantes, e muitos críticos conseguem captar<br />

isso, inclusive o padeiro Antônio Sales que acaba por afirmar o seguinte:<br />

É este o espetáculo que nos oferece a intelectualidade européia, que nós começamos a<br />

macaquear como se estivéssemos nas mesmas desgraçadas condições psicológicas e sociais<br />

a que chegaram povos gastos pelo atrito de tantos anos de civilização crescente e devoradora.<br />

Não há dúvida que a moléstia do século começa a minar a intelectualidade brasileira, moléstia<br />

que não apareceu espontaneamente, mas que importamos mui simplesmente como se fosse<br />

um objeto da moda. (SALES, 1895, p. 05)<br />

O processo de repetir e absorver superficialmente os modelos de linguagem “como se fosse<br />

um objeto da moda” que a Europa urbanizada e industrializada envia é um dado que instiga o<br />

padeiro, pois diz respeito a nossa situação de colonizados, na medida em que tal processo revela um<br />

dos aspectos do sistema imitativo de uma literatura considerada periférica, assim como seu país. Foi<br />

possível a Antônio Sales perceber, de uma maneira fecunda, a questão da importação de modelos –<br />

mecanismo indispensável, mas insuficiente como se dava entre nós –, algo que era e ainda é, a<br />

pedra de toque de certa “consciência nacional”. Em outras palavras, ele percebe uma transposição<br />

imitativa de fórmulas, o que não é o mesmo que uma recriação.<br />

No caso especifico da Padaria Espiritual, os ataques ao Simbolismo, principalmente aos<br />

grupos simbolistas que <strong>aqui</strong> se formaram, além de serem resultado de diferenças estético-literárias<br />

também são consequência de outra polêmica. Trata-se da polêmica Norte/Sul que envolveu grande<br />

parte dos escritores renomados na defesa da literatura do Norte, enquanto os do Sul proclamavam a<br />

literatura sulista como verdadeira manifestação do novo pensamento. No caso, a Padaria Espiritual<br />

representava o Norte e a revista Tebaida, órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro, o Sul. Afirmando<br />

estarem em defesa dos ideais estéticos, os integrantes da Tebaida desenvolveram intensa<br />

campanha contra o grupo cearense da Padaria Espiritual que, como era natural, respondeu aos<br />

ataques. Com o tempo, as ofensas que ficavam inicialmente, por parte dos padeiros, ao nível<br />

pessoal, passam a ter como alvo o movimento simbolista em geral, como se viu no início do texto<br />

com os fragmentos transcritos dos artigos publicados nas páginas de O Pão.<br />

Vários fatores concorreram para que o movimento simbolista não fosse bem visto pelos<br />

padeiros e recebesse deles várias críticas. Mas o principal fator vai além dos interesses meramente<br />

pessoais ou regionais, como é o caso da polêmica Norte/Sul. Como já foi dito anteriormente, o que<br />

realmente inviabilizou a adaptação da corrente <strong>aqui</strong> no Brasil diz respeito à barreira imposta à obra de<br />

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invenção que não correspondia aos modelos literários pré-estabelecidos, baseados na legibilidade de<br />

um “certo real”, através dos quais pudesse ser elaborado uma representação da realidade brasileira,<br />

necessária para a formação de uma consciência nacional. Desse modo, apontando o que é brasileiro,<br />

o escritor passa a ser visto como o porta-voz da nacionalidade. Ao lado desse veto implícito/explícito<br />

à obra simbolista, ao que é ficcional, caberia talvez apontar que ele é reforçado por outras razões: na<br />

medida em que é enfatizado o documental, a “realidade” de que a obra pretende ser o retrato, ocorre<br />

uma ausência de indagação crítica, reflexiva por parte dos leitores, ao passo que o ficcional exige<br />

uma resposta ativa, de curiosidade filosófica do receptor, que o leva a inquirir sobre sua noção de<br />

realidade, contrária a uma formação autoritária, conservadora que acaba por influenciar o caráter da<br />

literatura brasileira.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1948.<br />

BRITO, Luciana. O Pão... da Padaria Espiritual (1892-1896) e sua produção crítica. 2003.148 f. (+<br />

anexo). Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual<br />

Paulista, Assis, 2003.<br />

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1965.<br />

CARLOS JÚNIOR, José. Com a Tebaida. O Pão, Fortaleza, n.º 20, 15 de julho de 1895.<br />

CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadentismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética. Brasília:<br />

INL_Mec; Rio de janeiro: LTC-Livro Técnicos e Científicos, 1981, vol. I.<br />

CARTEIRA. O Pão, Fortaleza, n.º 18, 15 de junho de 1895, p. 3.<br />

______. O Pão, Fortaleza, n.º 19, 1 de julho de 1895, p. 2.<br />

LOPES FILHO. Mármores. O Pão, Fortaleza, n.º 22, 15 de agosto de 1895, p.4.<br />

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978, v.4.<br />

MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Edésio, 1938.<br />

SALES, Antônio. Bibliografia. O Pão, Fortaleza, n.º 13, 01 de abril de 1895, p. 5.<br />

______. Uma agressão. O Pão, Fortaleza, n.º 18, 15 de junho de 1895, p. 2.<br />

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L i t e r a t u r a<br />

a Visita CRUel Dos GÊneRos:<br />

JenniFeR eGan e a sitUaÇÃo RoManesCa<br />

Daniel Baz Dos santos<br />

Doutorando em História da literatura pela Universidade<br />

Federal do Rio Grande (FURG), Mestre<br />

em História da literatura (FURG) e Graduado<br />

em letras Português-inglês (FURG).<br />

Contato: deucaliaoepirra@yahoo.com.br


A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS:<br />

JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA<br />

Daniel Baz dos Santos<br />

RESUMO: O romance A visita cruel do tempo, que deu a Jennifer Egan o Pulitzer de<br />

ficção e o National Book Critics Circle Award, ambos em 2011, permite uma discussão<br />

atualizada a respeito do romance como gênero híbrido, plurilinguístico e bivocal, tal<br />

qual Mikhail Bakthin o classificou. Além disso, provoca reflexão acerca do caráter<br />

dialógico destes recursos, que podem, como veremos, manter aberto o diálogo sobre<br />

o futuro do romance. Entre mortos e feridos, o realismo na ficção é posto mais uma<br />

vez em pauta, visto que A visita cruel do tempo trabalha no limite do experimentalismo<br />

e da mimese responsável por um efeito verossímil de realidade.<br />

PALAVRAS-CHAVE: gênero, romance, Bakhtin, ideologia<br />

A GOON VISIT FROM THE GENRE:<br />

JENNIFER EGAN AND THE NOVEL SITUATION<br />

ABSTRACT: The novel A visit from the goon squad, winner of the Pulitzer Prize for<br />

fiction in 2011, promotes an updated discussion about the novel concerning Mikhail<br />

Bakthin’s theory. Moreover, it incites a reflexion considering the dialogical character of<br />

the novel, which can sustain interesting topics regarding the future of the novel and its<br />

relations with reality.<br />

KEYWORDS: Genre, Novel, Bakhtin, Ideology<br />

A partir do trabalho de Jennifer Egan, em A visita cruel do tempo, é possível<br />

pensar a respeito do estatuto do romance enquanto gênero, produto e máscara da<br />

sociedade moderna ocidental, e refletir sobre seus limites de representação, se é que<br />

eles existem. Afinal, faltaram velas para as tantas mortes decretadas pelos intelectuais<br />

do século XX e a do romance foi somente mais uma delas, apesar das inúmeras<br />

demonstrações, como estas de Egan, de uma pós-vida longeva. Um dos pontos<br />

centrais desta discussão já está em textos de modernos precoces como Henry James,<br />

no visionário ensaio “O futuro do romance”. Este evoca a liberdade de composição do<br />

romance, que garante sua natureza imprevisível, ao mesmo tempo em que nos faz<br />

desconfiar de sua utilidade quando chegam tempos de monotonia (ou de vulgarização,<br />

como diz James).<br />

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DANIEL BAZ DOS SANTOS<br />

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O autor também é bem claro ao apontar que “O Romance é, de todos os<br />

retratos, o mais abrangente e elástico. Pode se estender aonde for – apreenderá<br />

quase tudo.” (JAMES, 1995, p. 58), amplitude assimilativa que estará na base da<br />

teoria bakhtiniana acerca do gênero. Antes de entrar nela, é preciso lembrar alguns<br />

acontecimentos mais próximos de Egan, que estimulam o olhar esperançoso ou<br />

descrente que se lança à forma romanesca. O primeiro deles envolve as experiências<br />

das novas vanguardas pós-década de 60 que, entre outros postulados, decretam o fim<br />

da narrativa. Os novos romancistas, como os franceses do nouveau Roman, testam<br />

uma espécie de anti-romance, textos que não têm mais a preocupação totalitária de<br />

um Balzac, Tolstoi e mesmo de Proust, e compactuam com a necessidade de dizer o<br />

mínimo, além da abstração do sentido humano dos textos. Como Alfredo Bernardinelli,<br />

no provocativo ensaio “Não estimulem o romance”, explica:<br />

50((|(Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012!<br />

[...] Os romancistas pareciam tão enfadados com o grande passado<br />

do romance, estavam tão paralisados pelo pesadelo de modelos<br />

inalcançáveis, que decidiram escrever contra o romance, para demolir<br />

suas estruturas. E, portanto, não narrar, não representar, apagar a<br />

personagem, não se misturar com o jornalismo, evitar a sociologia,<br />

ignorar a psicologia, pulverizar os eventos, escrever como se nada<br />

pudesse acontecer e ninguém pudesse agir. Enfim, acreditando ter<br />

aprendido as lições de Ulisses e de O castelo, o romance havia<br />

entrado para o território da autonegação da arte. Impregnado de<br />

autocrítica, não sabia o que fazer de si mesmo. (BERNARDINELLI,<br />

2007, p. 175)<br />

A resposta vem a seguir, da América Latina, quando o boom liderado por<br />

García Márquez renova o interesse pela narrativa e pelas grandes sagas, como a dos<br />

Buendía. Neste momento, “À autocrítica do romance (e de toda a arte) segue a<br />

autocrítica da autocrítica. Ou seja, à crítica, o retorno aos mitos e a todo tipo de mito.”<br />

(BERNARDINELLI, 2007, p. 177)<br />

Fica, no desenvolvimento do romance do século XX, a fissura entre uma forma<br />

narrativa de um lado, que se pensa e faz da autocrítica uma pedagogia da sagacidade,<br />

instruindo o leitor a também ser crítico e consciente do paradigma seletivo de toda<br />

obra; e outra, narrativa, que estabelece o pacto da ficção a partir da confiança do leitor<br />

no sintagma actancial. Duas culturas surgem desse complexo, uma da narração e<br />

outra da análise crítica. Problema que a história também sofreu nas suas duas<br />

tendências - serial e narrativa, ou evemencial – que a caracterizaram no século XX. 1<br />

1 A respeito disso, ver: FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, s/d.


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A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS: JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA<br />

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A menção a Bernardinelli não é gratuita, já que ele nos provoca a repensar o<br />

papel do romance na atualidade, quando afirma que o fortalecimento do regime<br />

democrático atenua a necessidade de uma forma, cuja primeira função seria a de<br />

permitir o trânsito de ideias minoritárias. O crítico italiano não diz nestes termos, mas<br />

com o Youtube, com a televisão atingindo um grau técnico incomparável e tendo-se<br />

outras manifestações narrativas da/na sociedade, como o cinema e a história em<br />

quadrinhos, fica difícil preservar o discurso romanesco sem cair-se no fetiche, no<br />

prazer solitário sem qualquer ligação com as demais séries que o cercam.<br />

Se pensarmos o desenvolvimento do romance e especificamente do romance<br />

norte-americano, verificamos que muitos de seus modelos canônicos exploram os<br />

conflitos entre o percurso individual do sujeito e o macrocosmo, como se a forma<br />

pudesse prever seus obstáculos posteriores. A tensão entre criar heróis individuais,<br />

mas que serão recebidos por intermédio da esfera pública e serão por ela<br />

ressignificados. Desde Moby Dick, passando por Ernest Hemingway, William Faulkner,<br />

John Steinbeck e John dos Passos, ainda na primeira metade do século passado, há a<br />

necessidade de envolver o percurso individual com alegóricos vínculos ao destino<br />

comum. Dos Passos, por exemplo, é exemplar na tentativa de unir experimentação<br />

discursiva com um rico panorama da realidade coletiva e relembra Egan quando<br />

assimila um gênero de fora, neste caso o cinematográfico, no discurso romanesco.<br />

Dando um salto para os autores vivos, Don DeLillo em sua obra-prima Submundo, usa<br />

de uma bola de beisebol, que passa de personagem a personagem, como símbolo da<br />

interconexão humana, um projeto que tenta problematizar, na contra-mão, os<br />

defensores da fragmentação e do individualismo como mote principal do romance.<br />

Baste lembrar hipóteses como a de Ian Watt, em A ascensão do romance, que inicia<br />

sua investigação apostando no grau de individualismo das personagens do romance,<br />

como, por exemplo, o uso de nomes próprios reais e particulares.<br />

E DeLillo não está sozinho, principalmente se pensarmos<br />

contemporaneamente. Um dos mais premiados autores da última década, Jonathan<br />

Franzen, também dedica seus monumentos ao uso da história individual ligada ao<br />

percurso coletivo, ideário que está expresso no seu Correções, de 2001, mas<br />

principalmente no seu aclamado Liberdade (2010), onde é traçado um panorama da<br />

sociedade americana das últimas gerações. Fica evidente a semelhança deste com A<br />

visita cruel do tempo. A diferença deste último reside no fato de uma crença no<br />

panorama social vir atrelada à pessoalização discursiva das consciências romanescas,<br />

isto é, das personagens. Considerando a provocação de Bernardinelli, poderíamos<br />

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DANIEL BAZ DOS SANTOS<br />

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antever que o romance sequer consiga responder mais a um mundo em que as<br />

individualidades estejam em contato ininterrupto e liberal. A mimese realça o processo<br />

de criação, mas não pretende perder o mundo de vista, e o mundo não precisa mais<br />

reconhecer sua imagem numa representação tão cheia de refrações. É neste<br />

momento que Bakhtin vem em nosso socorro.<br />

Para Bakhtin 2 , o romance é uma forma tipicamente moderna, componente<br />

inalienável do modo de vida capitalista, e cuja principal função é permitir que a<br />

heteroglossia social seja percebida por meio da dialogização da linguagem. É um<br />

gênero secundário (uma formação complexa, que utiliza um código elaborado,<br />

organizado em um sistema específico) que fundamenta um modo de pensar acerca do<br />

mundo, baseado na ação e na ideologia das personagens que o habitam. O eixo<br />

inaugural do romance enquanto gênero é a representação dos homens e de suas<br />

ideias, a partir dos seus ideologemas, e este só se sustenta pelo fato de haver<br />

sempre, no mínimo duas consciências em debate dentro de si, isto é, a autoral (nunca<br />

transposta plenamente para a forma) e a da personagem e seu mundo. Além disso, o<br />

romance é o mais dialógico dos gêneros discursivos; sua força reside no realce da<br />

palavra semi-alheia (BAKHTIN, 1998, p. 100). Trata todos os seus componentes como<br />

não-finalizáveis (característica da heteroglossia), sendo sempre experimental, pois<br />

questiona o mundo antes de aceitá-lo, testa suas formações discursivas, seus limites e<br />

incoerências e permite que um gênero em contato com outro adquira autoconsciência.<br />

O movimento de composição de Jennifer Egan permite vermos isso melhor, na<br />

sua tentativa exaustiva de aprender a cosmovisão do outro pelo contato mútuo das<br />

linguagens e esforçar-se por construir assim uma forma atualizada, quente, viva, como<br />

prova a análise da estrutura do livro. O enredo de idas e vindas do novo romance de<br />

Jennifer Egan conta a história de um amplo número de personagens, dos quais se<br />

destacam Lou, um figurão do mundo da música e de caráter questionável; Bennie,<br />

guitarrista punk, cujo grande feito foi descobrir os Conduits; Bosco, guitarrista da tal<br />

banda descoberta; Sasha, secretária de Bennie; Scotty, guitarrista da antiga banda do<br />

velho punk; entre muitos outros. Todos estes personagens servem para os dois efeitos<br />

principais produzidos pelo texto. Primeiro, permite que se trace um panorama vasto<br />

dos último 50 anos da sociedade norte-americana com suas contradições, vícios e<br />

virtudes. Paralelo a isso, as inúmeras personagens são mimetizadas por vários pontos<br />

2 Vale ressaltar que utilizamos uma síntese de Bakhtin que nos convence dentro do cosmos<br />

heterogêneo de suas propostas. A palavra romance, por exemplo, pode ter outros significados<br />

ao longo sua obra, como mostra Morson e Emerson (MORSON; EMERSON, 2008, p. 319).<br />

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de vistas, recursos de focalização e registros discursivos, que demonstram a natureza<br />

renovável da dinâmica romanesca atualmente.<br />

O primeiro capítulo do romance é, não ao acaso, narrado a partir de uma<br />

terceira pessoa razoavelmente tradicional que enfoca um momento na vida da<br />

personagem Sasha, cleptomaníaca secretária de Bennie, que frequenta<br />

constantemente sessões psicanalíticas com Coz. Os dois juntos empreendem<br />

exercícios que envolvem a narração do passado da secretária, com o intuito de curar<br />

seu distúrbio psicológico. Assim, as imagens do passado ligam-se sincronicamente<br />

com sua identidade de paciente, o que vincula naturalmente sua patologia com seu<br />

percurso existencial/narrativo, numa primeira amostra do duplo discurso/identidade,<br />

fundamental para o entendimento não só desta obra, como do romance como gênero.<br />

No segundo capítulo, outro prisma vem complementar o de Sasha, através da<br />

figura de Bennie, que também tem um complexo, uma patologia de origem psíquica<br />

que deseja curar. O complexo: uma estranha impotência sexual, aparentemente sem<br />

razão. A cura: beber café e... ouro. No terceiro capítulo, temos a introdução da<br />

primeira pessoa na figura de Rhéa, mudança necessária para que possamos conhecer<br />

a geração da década de setenta que resultou nos dois primeiros capítulos, assim<br />

como nos subsequentes. A visão limitada funciona análoga à paulatina fragmentação<br />

que caracteriza o grupo com o passar dos anos, numa representação in<strong>completa</strong> de<br />

um objetivo totalitário, qual seja, sintetizar as últimas gerações norte-americanas.<br />

Percebe-se a tentativa de Egan, por enquanto sutil, de aliar suas escolhas discursivas<br />

à mundivisão expressa pelos diversos seres que compõe sua história.<br />

A partir do quarto capítulo, essa experimentação com a forma romanesca fica<br />

cada vez mais impactante, a partir da introdução de múltiplos pontos de vista e<br />

estratégias discursivas, mas nosso interesse recai no capítulo nove, onde é narrada a<br />

entrevista da atriz Kitty Jackson, dada ao jornalista Jules Jones. Neste ponto, ficam<br />

mais palpáveis as contribuições de Bakhtin, uma vez que o grotesco e o cômico<br />

dominam o tom da narrativa. Em poucas linhas, o capítulo, imitando uma típica<br />

entrevista de revista (com o hilário título “Um almoço em quarenta minutos: Kitty<br />

Jackson revela tudo sobre amor, fama e Nixon!”), conta como Jules Jones tentará<br />

estuprar a célebre estrela durante o encontro. Bakhtin, observando o realismo<br />

grotesco, ou seja, o sistema de imagens da cultura cômico-popular legado pelo<br />

renascimento, explica como este degrada o sublime, sendo, na evolução do romance,<br />

um aspecto arcaico que garante a ambiência do alto e do baixo, do começo e do fim,<br />

da metamorfose como poética romanesca.<br />

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As ações do personagem são transmitidas a partir da típica linguagem<br />

jornalística, principalmente a do novo jornalismo, forma já híbrida, mesclada com<br />

ficção, expoente nos nomes de Norman Mailer, Tom Wolfe e Hunter S. Thompson, ou<br />

nos célebres “perfis” de Gay Talese, como mostra trechos como:<br />

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[...] Felizmente, a bandeja é a nossa sim (a comida chega mais<br />

depressa quando você está comendo com uma estrela de cinema):<br />

para Kitty, uma salada Cobb com folhas, tomate, peito de frango,<br />

abacate e bacon; para mim, um cheeseburger com fritas e salada<br />

Caesar (EGAN, 2011, p. 167) (grifo do autor)<br />

Trecho em que as duas mundivivências são refletidas nos pratos servidos<br />

como vulgares “correlatos objetivos”. O mesmo se vê em:<br />

[...] Pago a conta apressadamente. Vários motivos me levaram a<br />

orquestrar nossa saída: em primeiro lugar, quero arrancar alguns<br />

minutos extras de Kitty na tentativa de salvar a entrevista e, em um<br />

sentido mais amplo, minha outrora promissora e agora claudicante<br />

reputação literária.[...] Em segundo lugar, quero ver Kitty Jackson em<br />

pé e em movimento. Para isso, deixo-a seguir na frente ao sair do<br />

restaurante, serpenteando entre as mesas com a cabeça baixa como<br />

sempre fazem as mulheres excepcionalmente bonitas e também os<br />

famosos (sem falar em pessoas como Kitty, que se enquadram nas<br />

duas categorias. (EGAN, 2011, p. 175)<br />

Onde a temática sexual é o único indício do corte abrupto que se dará duas<br />

páginas a seguir, quando lemos “Kitty se vira para mim. Acho que esqueceu quem<br />

sou. Sou tomado por um impulso de jogá-la de costas na grama, e é o que faço.”<br />

(EGAN, 2011, p. 177). O ataque de Jules a atriz é inesperado por causa do registro<br />

em que ele acontece. A linguagem não sofre qualquer impacto a respeito da violência<br />

narrada e mantém seu caráter formal, elevado e até protocolar:<br />

[...] Voltemos ao instante em pauta: uma das minhas mãos tapa a<br />

boca de Kitty e faz o possível para imobilizar sua cabeça um tanto<br />

ágil, enquanto a outra tateia minha braguilha, que estou tendo<br />

dificuldade para abrir, talvez por causa das contorções de minha<br />

entrevistada sob mim. O que não controlo, infelizmente, são as mãos<br />

de Kitty, uma das quais conseguiu se enfiar dentro de sua bolsa<br />

branca que contém vários objetos: a foto de um cavalo, um celular do<br />

tamanho de uma batata chips que vem tocando sem parar há vários<br />

minutos, e uma lata de algo eu devo supor ser spray de pimenta, ou<br />

talvez alguma forma de gás lacrimogêneo, a julgar por seu impacto<br />

ao ser vaporizado em cheio sobre o meu rosto: uma sensação quente<br />

que me cega acompanhada por um jorro de lágrimas, uma sensação<br />

de aperto na garganta [...] e é então que ela se apodera de mais um<br />

objeto contido na mesma bolsa: um molho de chaves preso a um<br />

pequeno canivete suíço cuja lâmina diminuta e um tanto cega ela


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mesmo assim consegue usar para furar minha calça cáqui e minha<br />

batata da perna (EGAN, 2011, p. 178-179)<br />

O estilo eleito está em desarmonia com a temática dada. Esta pertence a uma<br />

cosmovisão distinta e que deve ser iluminada por um código-alteridade, que quase lhe<br />

é oposto. Poderíamos falar de carnavalização, de duas vozes (uma alta, outra baixa)<br />

que se iluminam para se conhecer melhor, mas preferimos falar de algo mais amplo,<br />

isto é, do riso.<br />

O riso, na teoria bakhtiniana é uma espécie de corretor da realidade, porque é<br />

o som que toda exterioridade produz. Por isso, realismo no romance é saber rir, já que<br />

o afastamento cômico é que permite a verdadeira experimentação investigativa. Ser<br />

realista é rir do mundo. Sendo assim, a questão do realismo não é uma adequação<br />

especular, pois a realidade ainda não terminou, e reside nas suas potencialidades, no<br />

seu devir. Portanto, uma forma cômica, que se permite o inacabamento contínuo e<br />

confia na autorregeneração, pode apresentar a essência da vida, a cosmovisão do<br />

mundo assim como ele é. 3<br />

A comicidade é uma das duas grandes entonações que fundamentam o<br />

desenvolvimento do romance e tal arcaica aparece com força em textos como A visita<br />

cruel do tempo. A realidade da palavra gritada (nunca imprimível) e a da palavra<br />

autoritária, cuja sintaxe tenta ordenar a realidade, são postas em conflito. É por isso,<br />

que o texto, neste ponto, se excede em coordenações e subordinações, apostos e<br />

outros tipos de recursos sintáticos hipotáticos, que pretendem organizar a matéria<br />

efervescente que o discurso relata, como em:<br />

[...] Por que não paro de mencionar – de ‘inserir’, como pode parecer<br />

– a mim mesmo nesta história? Porque estou tentando arrancar<br />

algum material legível de uma garota de 19 anos muito, muito<br />

simpática: estou tentando construir uma história que não apenas<br />

revele os segredos aveludados de seu coração, mas que também<br />

contenha ação e desenvolvimento, além de – que Deus me ajude –<br />

alguma indicação de significado. (EGAN, 2011, p. 171)<br />

A narração segue cada vez intercalando mais informações paralelas, mas é<br />

necessário que se perceba como a não-finalização do discurso é incorporada já em<br />

pseudo-prolepses, visto que tudo que é dito, ganha outro sentido, outra carga volitivo-<br />

emotiva depois do término do capítulo. Que fique claro que não se trata simplesmente<br />

da estratégia modernista da múltipla focalização (também presente <strong>aqui</strong>), mas da<br />

3 “O vir a ser não assinala a transformação necessária de cada significante em significado; o vir<br />

a ser é a produção constante (e misteriosa) de novos contextos para o discurso.”<br />

(HIRSCHKOP, 2010, p. 103)<br />

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solidariedade dialógica do discurso contaminado pelo acento do outro. O recurso<br />

garante, no plano da personagem, a ênfase na hesitação do sujeito, em conflito com o<br />

que irá ser confessado, mas também sinaliza para a tensão interna ao próprio discurso<br />

ao racionalizar um momento de perda de razão. Vale lembrar que o capítulo também<br />

está cheio de rodapés de toda ordem que só reforçam o caráter duplo, de várias<br />

camadas, assumidas pela linguagem.<br />

No capítulo seguinte, “Fora de corpo”, outra solução é encontrada para o<br />

mesmo problema da busca de imagens ambivalente fortes. Nele, o respeito à voz do<br />

outro é introduzido pelo uso da segunda pessoa discursiva, técnica sempre perigosa<br />

quando utilizada na ficção, podendo ser um problema para a verossimilhança. Não é o<br />

que acontece <strong>aqui</strong>. O capítulo segue o ponto de vista de Rob, amigo de Sasha, logo é<br />

a ela que a voz narrativa se dirige, como demonstra já a primeira frase: “Seus amigos<br />

estão fingindo ser todo tipo de coisa, o seu dever é chamar sua atenção quanto a isso”<br />

(EGAN, 2011, 182). Não sabemos se é uma instância discursiva superior que se dirige<br />

a Rob ou se é ele mesmo, e essa dúvida faz parte da indefinição identitária do<br />

personagem. Afinal, ele tem muitas dúvidas a respeito de sua opção sexual, parece<br />

amar Sasha; e seu percurso termina num suicídio no mar que não se sabe se é fruto<br />

de motivação pessoal ou se do acaso. Portanto, a voz discursiva preenche uma<br />

necessidade existencial: tentar absorver o eu de fora, mas mantendo sua centralidade.<br />

Toda esta parte usa de forma complexa o que Bakhtin chamou de “motivação pseudoobjetiva”.<br />

O conceito expressa os trechos dos romances em que a voz do outro se<br />

confunde com a do autor. O discurso chega a nós entre “aspas entonacionais”, uma<br />

vez que não sabemos se é autor ou personagem que fala. Assim, uma opinião que<br />

parece objetiva é na verdade a ideologia da personagem contaminando o discurso<br />

(BAKHTIN, 1998, p. 110). O efeito foi chamado de “estilo pictórico”, nas análises de<br />

Marxismo e filosofia da linguagem, quando as duas intenções se confundem,<br />

principalmente no uso do discurso indireto livre.<br />

Mas o grande impacto do livro, e o objeto mais importante de nossa análise a<br />

partir de agora, reside no penúltimo capítulo, em que uma nova personagem, Alison,<br />

filha de Sasha, tem sua intimidade narrada através de 76 slides, como em uma<br />

apresentação de PowerPoint. A escolha mais uma vez é precisa. Se o romance, em<br />

síntese, é “[...] um gênero híbrido capaz de representar a imagem do homem na<br />

linguagem.” (MACHADO, 1995, p. 20), então o uso de slides é o arcabouço necessário<br />

para representar o mundo da personagem e respeitar sua alteridade. Com<br />

naturalidade somos introduzidos – por meio de um tipo de discurso fragmentado, cheio<br />

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A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS: JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA<br />

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de elipses e espaços – à inquietude de Alisson com respeito à sua relação com seus<br />

familiares e às obsessões de seu irmão. Este passa seu tempo procurando e<br />

interpretando as pausas de músicas como “Foxy Lady”, de Jimmy Hendrix e “Young<br />

Americans”, de David Bowie. A leitura lacunar de gráficos e tabelas e a estranha<br />

coleção de pausas do irmão ajudam a reforçar a incompletude de um texto que exige<br />

que interpretemos seu silêncio.<br />

Estamos mais uma vez em território bakhtiniano, se notarmos que o uso da<br />

linguagem do PowerPoint envolve os fundamentos básicos da estilização - forma mais<br />

nítida do “aclaramento mútuo das línguas na dialogização interna (BAKHTIN, 1998, p.<br />

159) - que apenas o gênero romanesco consegue configurar. Estamos no plano do<br />

que Bakhtin chama de “variação”, isto é, o ato de por a prova a língua do outro<br />

estilizada, colocando-a em situações novas, contemporâneas (BAKHTIN, 1998, p.<br />

160). O mundo estilizado adquire nova consciência por intermédio do uso de material<br />

de outrem, neste caso, a intimidade da jovem Alisson, que vive a tensão de ser<br />

representada pelos gráficos e tabelas dos slides. Lembremos a capacidade do<br />

discurso do romance de admitir em sua constituição vozes ainda “quentes”, que,<br />

in<strong>completa</strong>s por natureza, já que as relações humanas que as criam e condicionam<br />

ainda estão abertas, podem assumir papéis ainda não previstos pelas relações reais.<br />

Como Bakhtin sustenta no início de “Epos e Romance”:<br />

O romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. [...]<br />

A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser<br />

consolidada, e não podemos ainda prever todas suas possibilidades<br />

plásticas. (BAKHTIN, 1998, p. 397)<br />

Dessa forma, o presente inacabado é aceito pelo romance, e insufla nele a<br />

incompletude semântica que garante sua regeneração, já que ele se torna uma forma<br />

de porvir, uma parte do diálogo histórico que lhe engloba e lhe reavalia<br />

paulatinamente, pois, diferente da épica, o romance admite a adequação da<br />

experiência ficcional à experiência pessoal do homem “de hoje”. A ênfase da forma<br />

épica envolve axiologias da memória e do absoluto e não do conhecimento e da<br />

experiência.<br />

Além disso, há algo também de paródico na estilização deste capítulo, já que,<br />

como vimos, a voz de uma intimidade é absorvida pela assepsia organizativa dos<br />

slides, num processo de mútuo desmascaramento, semelhante ao capítulo em que<br />

Jules entrevista Kitty. O acento de uma linguagem sobre outra que lhe é estranha<br />

consuma uma das funções do romance, isto é,<br />

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DANIEL BAZ DOS SANTOS<br />

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[...] a tradução ideológica da linguagem, a superação de seu caráter<br />

estranho – que só é fortuito e aparente. A modernização efetiva, a<br />

eliminação das fronteiras dos tempos, a descoberta do passado são<br />

as características do romance histórico.” (BAKHTIN, 1998, p. 401)<br />

Ao fim, ambas as vozes estão frouxas e formam o todo coerente da<br />

personagem, expressando sua ideologia em uma linguagem que a ilumine, seja por<br />

negação, seja por afiliação. Este uso paródico, a apropriação do gênero desconhecido,<br />

é fundamental para a permanência e imprevisibilidade do romance, e é a causa<br />

principal da reinterpretação da teoria dos gêneros feita pro Bakhtin, visto que<br />

[...] À diferença dos outros grandes gêneros, o romance se formou e<br />

se desenvolveu precisamente nas condições de uma ativação<br />

aguçada do plurilinguismo exterior e interior. Este é o seu elemento<br />

natural. É por isso que o romance encabeçou o processo de<br />

desenvolvimento e renovação da literatura no plano linguístico e<br />

estilístico. (BAKHTIN. 1998, p. 405)<br />

É <strong>aqui</strong> que precisamos nos deter mais um pouco. Estilizar, apropriar-se do<br />

estilo e mudar seu acento pelo uso do PowerPoint e da focalização de Alisson põe<br />

uma lógica familiar e mundana em contato com uma criação do discurso oficial e<br />

público. Estamos diante do medo da forma. O romance receia desaparecer e, como<br />

nos autores listados no início deste ensaio, os romancistas estabelecem novas<br />

maneiras de soprar vida em seu corpo amorfo. O PowerPoint é o som que a<br />

exterioridade da vida oficial produz em certos contextos fora do privado. É um estilo do<br />

alto, com tom e carga emotivo-volitiva própria. Possui um estilo que, como qualquer<br />

outro, denuncia um conjunto operante de procedimentos de acabamento estético.<br />

Logo, tem-se o uso de uma forma padronizada para criar um estilo individual, usa-se o<br />

lugar comum fora do seu lugar comum para torná-lo anômalo e justificar a função do<br />

gênero. O estilo está ligado a unidades temáticas determinadas, mas ao misturarmos<br />

influenciamos sua renovação, ampliamos sua ressonância, e, em sucessos mais<br />

contundentes, renovamos seu repertório.<br />

Contudo, a questão não existe apenas nesta esfera mais simples. O que está<br />

em jogo é o confronto de dois conjuntos ideológicos antagônicos que, frente a frente,<br />

mantêm-se pacíficos, mas, quando têm os limites de seus valores testados, atribuem<br />

outra ordem ao mundo conhecido. Estamos no plano estrito das ideologias. Como<br />

explica Valdemir Montello, falando da ideologia em Bakhtin, mais especificamente do<br />

diálogo entre várias delas,


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A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS: JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA<br />

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[...] A relação permanente entre esses diversos níveis faz com que<br />

todo o conjunto ideológico de uma dada sociedade se apresente<br />

como um conjunto único e indivisível, e em constante movimento,<br />

pois reage às transformações que se dão nas esferas produtivas.”<br />

(MONTELLO, 2005, p. 175).<br />

Quando se junta a linguagem oficial (Powerpoint) com a cotidiana/íntima,<br />

misturam-se duas ideologias que se mostram no eterno presente, sempre atuais,<br />

porque são frutos da realidade construída a partir das relações dos indivíduos, suas<br />

referências e símbolos. Mas como pensar essa característica do romance quando<br />

vivemos em tempos em que o cinismo expressa um grau elevado de descrença na<br />

criticidade como motor do pensamento e das formas secundárias de expressão<br />

humana. Como explica Vladimir Satale, em Cinismo e falência da crítica, o cinismo da<br />

sociedade capitalista consiste em fragilizar continuamente as formas e normas que ele<br />

próprio enuncia. O romance tem no riso o atributo que permite sobreviver em<br />

contextos como esses. O riso é a sua constituição irônica, ou seja, a estética<br />

romanesca ao privilegiar o afastamento, envolve a conciliação das várias vozes que<br />

lhe constituem. Ora, a estética é justamente a primeira esfera em que se percebe a<br />

desagregação da linguagem e dos valores por ela estipulados. No que diz respeito ao<br />

gênero romanesco, a corrosão de qualquer parcela do mundo pode ainda resistir.<br />

Basta pensar em um romance como Grande Sertão: Veredas e a pós-vida de<br />

arcaísmos e da entonação épica.<br />

Toda essa realidade, no plano da estética, sofreu inúmeras revisões a partir da<br />

estética modernista. Como explica Safatle:<br />

[...] Grosso modo, é possível afirmar que a concepção de forma<br />

crítica que vigorou de maneira hegemônica no modernismo tem força<br />

em situações históricas nas quais a ideologia pode ser pensada como<br />

recalcamento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da<br />

aparência para a essência. A obra de arte se estrutura a partir da<br />

dinâmica disponível à crítica social com suas temáticas da alienação<br />

da consciência no domínio da reificação da aparência. A ideia<br />

benjaminiana de crítica como “distância correta” só pode ser<br />

operativa diante de mecanismos ideológicos dessa natureza. No<br />

entanto, ela será marcada com o selo da obsolescência ao depararse<br />

com uma realidade social na qual a ideologia não responde a tais<br />

coordenadas. Nesse sentido, devemos insistir neste diagnóstico, já<br />

comentado em capítulos anteriores, sobre a ideologia ser,<br />

atualmente, autoirônica. Dessa forma, a crítica como “correta<br />

distância” seria impossível porque a ideologia já opera, a todo<br />

momento, uma distância reflexiva em relação àquilo que ela própria<br />

enuncia. Ou seja, a forma crítica esgotou-se porque a realidade<br />

internalizou as estratégias da crítica. (2008, p. 193-194) (grifos do<br />

autor)<br />

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DANIEL BAZ DOS SANTOS<br />

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O experimento no romance carrega sempre uma carga de alienação. Não há<br />

modernismo que não sinalize de algum modo para a autonomia dos processos<br />

constitutivos da arte, introduzindo na forma e na sua recepção a distância que garante<br />

a percepção das desaumotizações. O “estranhamento” dos formalistas russos foi só o<br />

primeiro impacto disto. Da mesma forma que a gramática da música não comportava o<br />

que o dodecafonismo de Schoenberg buscava expressar, uma vez que há a<br />

necessidade de combater a reificação e o fetichismo a partir de uma revisão das<br />

estruturas comunicativas, cresce a racionalização da arte, toda vez que somos<br />

levados a pensar no procedimento artístico pela ruptura de alguma convenção. Neste<br />

sentido, as experiências de certos escritores contemporâneos como Jennifer Egan<br />

reforçam uma postura crítica, no sentido de revisarmos para contestar uma tradição<br />

ainda não suficiente.<br />

Mas este movimento é ambíguo, pois, apesar de explicitar o método imanente<br />

ao sistema e revelar sua fraquezas e limitações, o procedimento não ignora nossa<br />

referência fora da experiência estética com fenômenos que não sejam artísticos. O<br />

PowerPoint é uma “voz” testada e aprovada como um comunicante útil em situações<br />

distintas, mas que permitem o acesso sem traumas a sua forma enunciativa. Qual a<br />

validade, portanto de revitalizar a forma romanesca por um campo enunciativo que já<br />

se convencionalizou fora de si? Num primeiro momento, pode-se pensar mais uma vez<br />

na distância cômica bakhtiniana, ao menos como uma forma do gênero conviver com<br />

a ironia do cinismo da modernidade atual. Como vimos, o PowerPoint é reacentuado<br />

pelo seu uso num campo que pertence a uma alteridade, mas faltou deixar visto que o<br />

riso produzido, ao perceber como ele ecoa em um terreno não-familiar, mostra a<br />

estratificação dos modelos sociais, ou seja, mostra que uma fala não se solidariza<br />

inteiramente com o discurso alheio (BAKHTIN, 1998, p. 113), pois isso finalizaria o<br />

diálogo ininterrupto das vozes. A autoparódia reinsere o presente ainda aberto e<br />

confronta-o com nossa “zona familiar”. Além disso, introduz uma nova temporalidade<br />

na forma - diferente da que viu Lukács, por exemplo, e sua ênfase no material já<br />

historicamente adensado pelo percurso das sociedades - a do tempo atual,<br />

vulgarizado nas formas do senso comum.<br />

As ideologias resistem mesmo quando cortadas de suas redes classicamente<br />

definidas de causas e efeitos diz ainda Safatle (2008, p. 11), e são mais visíveis em<br />

procedimentos ambíguos como em A visita cruel do tempo. A transgressão é limitada<br />

a outro horizonte, mas permite uma reavaliação, ainda que atenuada do esgotamento<br />

do romance. Ao utilizar um sintagma não previsto, não só se ilumina a sintaxe já<br />

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A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS: JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA<br />

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conhecida, como nos conscientiza a respeito do fato de nada sabermos sobre o futuro<br />

da linguagem. O mesmo pode ser visto em muitos experimentos contemporâneos.<br />

Para citar alguns, pode-se falar de Sebald, em Austerlitz, que utiliza fotos para compor<br />

seu romance, da mesma forma que o brasileiro Ferréz, em Capão Pecado. Tem-se<br />

também o exemplo do recente O amor nos tempos do blog, de Vinicius Campos, cuja<br />

composição simula a escrita de blogs para construir sua trama, entre outros.<br />

Introduzimos este ensaio com a provocação de Bernardinelli e a maneira como<br />

ele vê, na querela entre o romance em busca de uma totalidade social e da narração e<br />

o romance que se volta para si, a curva final do gênero que mais estimulou a<br />

democracia moderna e que, ao fim, percebe que ela não mais precisa dele. Além<br />

disso, mostramos como há, no desenvolvimento do gênero, o uso do particular como<br />

emblemático do todo, numa forma interna de negar as acusações de alienação e<br />

fetichismo do produto romanesco. Em Egan mais uma vez a saída é ambígua. Afinal, a<br />

estrutura bipolar da vida, individual e social, é unida, mas contra os excessos da<br />

liberdade do sujeito. 4 Assim como suas novas estratégias permitem que joguemos<br />

com convenções que já possuímos, mas deslocando-as de lugar, o romance comunica<br />

e desvela o comunicante.<br />

A racionalidade estética ainda é um setor privilegiado da crítica social da<br />

ideologia (SAFATLE, 2008, p. 180). Um novo gênero lançado no mundo não<br />

superobsoletiza o romance, da mesma maneira que as novas formas de interrelação<br />

das vozes sociais garantem sua existência. Todo gênero tem sua esfera, mas o<br />

romance não tem estilo. O plurilinguismo absoluto é seu ideal, na negação intensiva<br />

da língua única. O romance, portanto, não permite a pós-ideologia, pois só se sustenta<br />

a partir do esclarecimento mútuo de pelo menos duas delas e, por ser o único gênero<br />

literário que se formou depois do livro, sabe usar sua capacidade tipológica para<br />

manter o frescor do choque de ideologemas, já que conhece as possibilidades de seu<br />

media. Além disso, Ken Hirschkop, no excelente ensaio “Bakhtin, discurso e<br />

democracia”, demonstra que “Escrever romances expõe o trabalho da linguagem à<br />

visão do público. É a exploração consciente e a exposição da natureza social do<br />

discurso.” (HIRSCHKOP, 2010, p. 107) Desta maneira, o que distingue o romance é<br />

sua forma discursiva, e não sua forma linguística, visto que ele não tem apenas uma.<br />

A democracia é antes uma quimera, do que um modo de vida historicamente<br />

alcançado, porque frente à massificação da comunicação das mensagens<br />

4 Ideal que já está na obra teórica de Balzac: “Assim a obra a ser empreendida devia ter uma<br />

forma tripla: os homens, as mulheres e as coisas, ou seja, as pessoas e a representação<br />

material que elas dão ao seu pensamento; enfim, o homem e a vida.” (BALZAC, 2011, p. 389)<br />

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DANIEL BAZ DOS SANTOS<br />

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(democrática) escamoteia a falta da “existência de uma vontade coletiva fora do<br />

Estado que seja capaz de desafiar sua autoridade e, portanto, as instituições que<br />

oferecem aos indivíduos a oportunidade de uma forma diferente de existência de ação<br />

coletivas.” (HIRSCHKOP, 2010, p. 122-123), e conclui, desmembrando o que seria o<br />

ideal democrático de Bakhtin:<br />

62((|(Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012!<br />

[...] Nele a coletividade significa algo mais do que a concordância<br />

pacífica de pessoas isoladamente; ele se refere a uma forma de ação<br />

e análise que transforma todos os vínculos particulares em vínculos<br />

sociais, fazendo com que os interesses envolvidos na história estejam<br />

bem expostos à visão pública. (HIRSCHKOP, 2010, p. 122-123)<br />

Para a sociedade atual, esta seria uma função inalienável da romanesca.<br />

Como disse o lúcido Henry James: “o futuro do romance é intimamente ligado ao<br />

futuro da sociedade que o produz e consome” (JAMES, 1995, p. 63). Não há nada que<br />

a democracia possa fazer a respeito do romance, pois ele é sua face mais<br />

exemplarmente evoluída. Se este perecer, aquela pode estar com os dias contados.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de Estética (A Teoria do Romance).<br />

São Paulo: UNESP, 1998.<br />

BERNARDINELLI, Alfonso. Não incentivem o Romance e outros ensaios. São<br />

Paulo: Humanistas Editorial, 2007<br />

BALZAC, Honoré de. “História, sociedade e romance”. In: SOUZA, Roberto Acízelo de.<br />

(org.) Uma ideia moderna de literatura. Chapecó: Argos, 2011. p. 389-392.<br />

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.<br />

HIRSCHKOP, Ken. “Bakhtin, discurso e democracia”. In: Mikhail Bakhtin:<br />

Linguagem, cultural e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p. 93 – 129.<br />

MACHADO, Irene A. O romance e a voz. Rio de Janeiro: Imago, São Paulo: FAPESP,<br />

1995.<br />

MONTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth(0rg.) Bakhtin: Conceitos-chave.<br />

São Paulo: Contexto, 2005.<br />

MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma<br />

prosaística. São Paulo: Edusp, 2008.<br />

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.


L i t e r a t u r a<br />

antonio GraMsCi e JoÃo GuiMarÃes rosa:<br />

uM diÁLoGo (inter)naCionaL(PoPuLar)<br />

Héder Junior dos santos<br />

Mestrando em Letras pela universidade estadual<br />

Paulista (unesP), bolsista do CnPq e<br />

membro do Grupo de estudos e Pesquisa<br />

em Cinema e Literatura do Campus Marília<br />

da unesP.<br />

Contato: heder_eu@hotmail.com


!<br />

ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />

UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

Héder Junior dos Santos<br />

RESUMO: Este trabalho procura analisar as ideias do filósofo italiano Antonio Gramsci<br />

e do literato brasileiro João Guimarães Rosa. Primeiramente, procuramos discutir a<br />

fecundidade da incorporação das noções fornecidas pelo pensador marxista para<br />

refletirmos a importância de Rosa para o contexto do modernismo brasileiro. Em<br />

seguida, passamos a descrever o que para Gramsci seria uma arte “nacional-popular”<br />

e sua capacidade de romper com o distanciamento entre o intelectual e o universo<br />

popular, destacando ocorrer na realização formal, o espaço de encontro entre o local e<br />

o universal. A partir daí, tecemos considerações sobre a trajetória de Rosa e como ela<br />

acaba por fornecer elementos motores para seu projeto artístico de inspiração popular,<br />

sobre o qual, poder-se-ia considerar que, se não combativo, pelo menos ofereceu uma<br />

interpretação peculiar acerca do esfacelamento dos valores tradicionais em pleno<br />

processo de modernização brasileira.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular; Literatura brasileira; Fricções entre tradição e<br />

modernidade.<br />

ANTONIO GRAMSCI AND JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />

AN (INTER)NACIONAL(POPULAR) DIALOGUE<br />

ABSTRACT: This paper aims to analyze the ideas of the Italian philosopher Antonio<br />

Gramsci and the Brazilian writer João Guimarães Rosa. First, we discuss the possibility<br />

of incorporating some notions provided by the marxist thinker to reflect the importance<br />

of Rosa to the Brazilian modernism context. Then we describe what is a “nationalpopular”<br />

art to Gramsci and its ability to overcome the gap between the intellectual and<br />

the popular universe, praising that form is the space where regional and international<br />

values revel themselves. Thereafter, we consider Rosa’s trajectory and how it<br />

ultimately provides elements for his popular art project, upon which, it may be<br />

considered that, if not combative, at least it offered a peculiar interpretation about the<br />

disintegration of traditional values in the Brazilian modernization process.<br />

KEYWORDS: Popular Culture; Brazilian Literature; Friction between tradition and<br />

modernity.<br />

A cultura erudita busca renovar-se pelo<br />

aproveitamento mais ou menos bruto, mais ou<br />

menos elaborado, do que lhe parece ser a<br />

espontaneidade e a vitalidade populares. Nesse<br />

processo, o risco mais comum é repetir, talvez sem<br />

as riquezas da fantasia estética modernista, o<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!65!


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HÉDER JUNIOR DOS SANTOS<br />

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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES<br />

66!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

fenômeno ideológico e psicológico da projeção, de<br />

que os modernistas, aliás, não escaparam:<br />

projeções de neuroses, desequilíbrios,<br />

preconceitos, recalques e desrecalques do<br />

intelectual na matéria popular assumida como<br />

válvula de escape da subjetividade pequenoburguesa.<br />

Mas não será esse risco uma tendência<br />

profunda de toda cultura engendrada no seio de<br />

uma sociedade de classes? Se assim for, o tema<br />

crucial das relações entre cultura erudita e cultura<br />

popular deverá começar por um diagnóstico da<br />

cultura erudita. Até o momento, as observações<br />

mais felizes que conheço sobre o comprometimento<br />

do intelectual com sua classe estão na obra de<br />

Antonio Gramsci, [...] que seria necessário repensar<br />

para ver o quanto são aplicáveis às situações<br />

precisas da vida cultural brasileira.<br />

Alfredo Bosi<br />

Podemos considerar que Antonio Gramsci (1891-1937) foi um filósofo basilar<br />

para elaboração de vários conceitos-chave ainda hoje revisitados para se interpretar<br />

as condições sociais no capitalismo avançado. Alguns deles se tornaram termos<br />

recorrentes nos debates sobre a cultura e os processos sociais, como é, pois, o caso<br />

da noção de “nacional-popular”, a ser reincorporada e tratada neste artigo. A partir das<br />

reflexões do pensador italiano em questão, pode-se considerar que o referido conceito<br />

se relaciona à quebra do distanciamento estabelecido entre os intelectuais e artistas, e<br />

as classes subalternas que lhes fornecem substrato narrativo, ou melhor, que lhes<br />

providenciam conteúdo. Tem-se, segundo Gramsci, colocada a provocação maior ao<br />

artista dialético, a saber, tornar nacional e popular a vida de sujeitos comuns, sem<br />

elaborar representações calcadas em um olhar caracteristicamente pitoresco e<br />

pretensamente objetivo. A vida dos integrantes das camadas subalternas trazidas para<br />

a assim chamada “grande literatura” (ou uma literatura universalmente válida), sem<br />

dada folclorização ou se recorrer ao ato falacioso de um particularismo atroz, ao<br />

mesmo tempo em que confere problemas de caráter humano-universais às<br />

personagens emolduradas pela obra, sem que elas necessitem de afastar-se de seu<br />

chão histórico.<br />

Dito de outra forma, todavia, em conformidade com o filósofo marxista, uma<br />

obra de arte “nacional-popular” propõe-se a descortinar a vida popular encarnada de<br />

dramas complexos e não na condição de massa amorfa, atribuindo os dramas apenas


!<br />

!<br />

ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

! !<br />

às personagens representativas de dada elite, ou ainda a sujeitos inexistentes<br />

historicamente. O autor de Cadernos do cárcere estava contra certa arte fascista que<br />

desenhava heróis inatos, ausentes de terreno histórico, como foram representados,<br />

por exemplo, os santos da igreja oficial, cuja força simbólica fez com que tais criaturas<br />

nascessem como que iluminadas, escolhidas e especiais; e isto em termos políticos,<br />

como observou o pensador, aumentava o paternalismo, que por sua vez, se constituía<br />

em moeda de troca com o fascismo, no caso italiano. Assim se expressa Gramsci<br />

(1968), em Literatura e vida nacional, a propósito da postura adotada por intelectuais e<br />

artistas católicos, seu afastamento da matéria popular e os reverbérios desta diluição<br />

para a formação de uma moralidade laica e difusa na Itália:<br />

A literatura católica transpira apologética jesuíta, tal como o carneiro<br />

transpira, e cansa pela sua vulgar mesquinhez. A insuficiência dos<br />

intelectuais católicos e o pouco êxito de sua literatura são um dos<br />

mais expressivos indícios da íntima ruptura que existe entre a religião<br />

e o povo: este se encontra num miserável estado de indiferentismo e<br />

de ausência de vida espiritual ativa: a religião conservou-se na forma<br />

da superstição, mas não foi substituída por uma nova moralidade<br />

laica e humanista por causa da impotência dos intelectuais laicos (a<br />

religião não foi nem substituída nem intimamente transformada e<br />

nacionalizada, como em outros países, como o próprio jesuitismo na<br />

América: a Itália popular ainda está nas condições criadas<br />

imediatamente pela Contra-Reforma: a religião, na melhor das<br />

hipóteses, combinou-se com o folclore pagão e conservou-se neste<br />

estágio). (GRAMSCI, 1968, p. 109)<br />

ANTONIO GRAMSCI E OS ÓCULOS PARA OBSERVAR A ARTE: OUTRAS<br />

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES<br />

Ainda no livro anteriormente citado, Antonio Gramsci (1968) observa que,<br />

colocados em face de uma obra artístico-cultural, a perspectiva interpretativa deve<br />

necessariamente ser modificada, posto que tal objeto não se clarifica, como na<br />

ciência, pela revelação da essência contida no poder universal de leis gerais. Na<br />

interpretação do autor, de maneira distinta, a obra de arte se define por sua potencial<br />

particularidade; livre dos filtros da ciência, sintetiza em si a representação de um<br />

momento histórico particular, não necessariamente revelador da essência do real, mas<br />

em hipótese alguma descolada da realidade, já que toda obra é, conforme o filósofo<br />

marxista, um produto social e humano.<br />

De acordo com Gramsci, o artista que se atém ao conteúdo em detrimento da<br />

forma, mal ou bem, impulsiona certa batalha, a qual se pretende amparada na<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!67!


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HÉDER JUNIOR DOS SANTOS<br />

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realidade objetiva, e para isso elege determinada cultura, municiando-se d<strong>aqui</strong>lo que<br />

lhe é próprio e passando a discorrer “por uma determinada concepção do mundo,<br />

contra outras culturas e outras concepções do mundo” (GRAMSCI, 1968, p. 65). Essa<br />

interpretação muitas vezes corresponde à ação de concebermos o deles de acordo<br />

com a perspectiva do que fundamenta o que é nosso. Esse ponto é, pois,<br />

característico da atitude de dominação, uma vez que ao dizer do outro cria-se uma<br />

separação e um distanciamento propícios ao caráter hegemônico e à ação diante do<br />

que se crê primitivo e fraco. A imagem do outro, então alicerçada, cria conhecimentos<br />

– no âmbito intelectual e no senso comum – que são traduzidos em atitudes,<br />

possibilitando reações diversas. Daí tornar-se a ambiguidade, a característica da<br />

história da invenção das identidades nacionais, uma vez que permanece, ao longo<br />

dessa mesma historicidade, certo hiato entre quem fala (o eu) e sobre quem se fala (o<br />

outro), mesmo quando o primeiro se propõe a estabelecer com o segundo uma<br />

relação de circunvizinhança.<br />

Isto quer dizer que a ligação mostra-se permeada pela visão de mundo do<br />

observador e que, a priori, carrega determinados imperativos, perspectivas, como<br />

também preconceitos político-ideológicos, os quais se fazem notar no próprio corpo de<br />

suas alocuções. O distanciamento entre as partes, nessa dinâmica, agudiza a<br />

dificuldade encontrada pelos homens de letras em apreender a diversidade e<br />

pluralidade de vozes presentes nas várias territorialidades nacionais, quando sobre<br />

elas se debruçaram; a exemplo do sertão, no caso do Brasil 1 .<br />

Para Gramsci (1968), a obra de arte é fundamentalmente histórica e comporta as<br />

nuances e impasses do terreno social, cultural, econômico e político de que parte o<br />

artista, e que podem ser percebidos, consecutivamente, por meio da construção formal<br />

da obra. O produto artístico, comenta o pensador italiano, “é um processo e as<br />

modificações de conteúdo são também modificações de forma” (GRAMSCI, 1968, p.<br />

65). E com declarada ironia, observa a postura analítica de certas correntes da crítica de<br />

arte: “mas é ‘mais fácil’ falar de conteúdo do que de forma, pois aquele pode ser<br />

resumido logicamente” (GRAMSCI, 1968, p. 65, aspas do autor). De outra maneira,<br />

poderíamos dizer que os fenômenos artísticos têm autonomia relativa em relação aos<br />

fenômenos reais que buscam reproduzir. Algumas vezes, se aproximam mais da<br />

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!<br />

1 Seja entendido como antiquário cultural ou reserva por excelência do núcleo da raça, os<br />

discursos científicos, artísticos e historiográficos acabaram por especular a espacialidade<br />

sertaneja, associando-a alguma coisa familiar, pura, de raiz, algo que idealmente decanta<br />

brasilidade. Todavia, as intelecções sobre esse espaço são bem produtos de forças e<br />

interesses políticos, pois compuseram um sistema de representações que acabaram por<br />

introduzi-lo e reiterá-lo na consciência e na cultura nacionais.<br />

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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

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concretude do real, em outras, se afastam, visto a maior liberdade que têm os artistas<br />

em comparação com os cientistas, por exemplo, ao colocarem-se como produtores de<br />

discursos simbólicos com a finalidade de inteligir a realidade circundante. Esta postura<br />

distintiva, que reconhece a separação entre arte e ciência, nos resguarda do<br />

cometimento d<strong>aqui</strong>lo que Antonio Candido (1976, p. 7) denominou, em Literatura e<br />

sociedade, de “sociologismo crítico”, isto é, “a tendência devoradora de tudo explicar por<br />

meio dos fatores sociais”. Para que se possa ultrapassar o que o crítico nomeia de<br />

“aspectos periféricos da sociologia” e para se chegar a uma dimensão dialética entre a<br />

obra de arte e seus referenciais sociais, é necessário compreender o processo pelo qual<br />

o “externo” se torna “interno”, ou seja, considerar os fatores sociais como formadores da<br />

estrutura da obra. De maneira prática, o autor expõe de outra forma <strong>aqui</strong>lo que já<br />

assinalamos em Gramsci (1968), ou seja, da singularidade com que os produtos<br />

artísticos intelegem o real, quer dizer, a diferença entre arte e ciência, apontada pela<br />

relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece<br />

com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la<br />

rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese.<br />

(CANDIDO, 1976, p. 12).<br />

Retomando o debate em Gramsci:<br />

Vê-se então que ‘conteúdo’ e ‘forma’, além de um significado<br />

‘estético’, possuem também um significado histórico. ‘Forma<br />

histórica’ significa uma determinada linguagem, assim como<br />

‘conteúdo’ indica um determinado modo de pensar não apenas<br />

histórico, mas ‘sóbrio’, expressivo (sem necessidade de colocar as<br />

mãos no rosto), passional (sem que as paixões sejam exacerbadas<br />

como em Otelo ou no melodrama; em suma, sem a máscara teatral).<br />

Este fenômeno, creio, verifica-se apenas em nosso país, como<br />

fenômeno de massa, entenda-se, porque casos individuais ocorrem<br />

em toda a parte. Mas é preciso ficar atento: porque o nosso país é<br />

aquele no qual o convencionalismo arcaico sucedeu ao<br />

convencionalismo barroco; de qualquer modo, porém, sempre teatro e<br />

convenção. (GRAMSCI, 1968, p. 65-66, aspas do autor e grifo nosso)<br />

E o argumento não poderia ser diferente, sendo Gramsci um intelectual<br />

fortemente preocupado com a cultura italiana, formadora de uma “nação-sociedade<br />

italiana”. Por meio das reflexões acima transcritas, o pensador marxista acaba por<br />

fornecer também elementos analítico-argumentativos para sairmos de seu terreno<br />

histórico-social e transplantarmos suas ideias para outros tempos e espaços. É nesse<br />

sentido que segue o elogio de Marcos Del Roio (2007), presente no texto “Gramsci e a<br />

emancipação do subalterno”, a propósito da universalidade das reflexões do filósofo<br />

italiano, pois, conforme o autor, a obra gramsciana reitera “uma riqueza e uma<br />

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possível permanência no tempo, mas também abre a possibilidade de ser apropriada e<br />

decomposta por outras vertentes culturais e políticas” (DEL ROIO, 2007, p. 63).<br />

Destas palavras de Marcos Del Roio (2007) e daquelas proferidas por Alfredo<br />

Bosi (1992), por nós utilizadas como epígrafe, nascem as motivações deste artigo.<br />

ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?<br />

Sem a menor pretensão de esgotar a questão, neste trabalho, propomos uma<br />

reflexão que assimila e transculturaliza os debates de Antonio Gramsci sobre arte e<br />

cultura para o contexto do modernismo literário no Brasil, com o intuito de<br />

delinearmos, em termos gramscianos, a importância cultural de João Guimarães Rosa<br />

(1908-1967) e seu projeto de recriação de uma literatura de inspiração popular, sobre<br />

a qual, poder-se-ia considerar que, se não combativa, pelo menos ofereceu uma<br />

interpretação peculiar acerca do esfacelamento dos valores tradicionais em pleno<br />

processo de modernização brasileira.<br />

Quando a ideologia nacional-desenvolvimentista (1940-1950) desfrutava de<br />

forte prestígio nos círculos intelectuais, João Guimarães Rosa concebe uma obra<br />

centrada no cotidiano do Brasil rural, entendido pela intelligentsia saída do Estado<br />

Novo, como atrasado e em processo de extinção. Enquanto o processo de<br />

modernização parecia varrer e ocultar de uma só vez o Brasil do século XIX e<br />

apresentá-lo numa visão sofisticada através do projeto da nova Capital, Rosa sugere<br />

artisticamente um revirar de perspectivas sobre o espaço rural brasileiro, revelando<br />

por meio de seus narradores sociais a maneira secular de vida dos homens do sertão,<br />

vocalizando e apresentando discursos sobre a nação segundo a perspectiva da plebe<br />

rural brasileira, e colocando sua obra como palco para as disputas entre tradição e<br />

modernidade, rural e urbano, sagrado e profano, etc. Assim, ao colocarmos Sagarana,<br />

de 1946, Corpo de baile, de 1956, Grande sertão: veredas, de 1956, Primeiras<br />

estórias, de 1962 e Tutaméia, de 1967, lado a lado dos estudos, digamos assim, “não<br />

literários”, de uma geração de intelectuais das décadas de 1940 e 1950, notamos que<br />

a realização estética de Rosa acaba por tornar-se um registro etnográfico dos modos<br />

de viver no sertão, acentuando o imaginário do indivíduo citadino sobre a realidade<br />

emoldurada pela obra, não deixando de lembrá-lo sobre a permanência histórica da<br />

condição dos sertanejos e sua essência em nossa brasilidade 2 .<br />

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2 O imaginário depositado sobre a territorialidade sertaneja é pensado, neste trabalho, como<br />

uma espécie de “reservatório/motor”, à maneira como discutiu Juremir Machado da Silva<br />

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Tendo em vista que o literato mineiro constrói um discurso estético que visa a<br />

reforçar seu engajamento para a manutenção de uma cultura e memória sertaneja, o<br />

qual confere credibilidade e verossimilhança ao que é ensinado e transmitido através<br />

das relações de grupo – próprias das comunidades rurais emolduradas artisticamente<br />

por sua escritura –, defendemos a ideia de que a obra de Rosa, especialmente sua<br />

produção em prosa, não possui apenas uma implicação literária, inovadora e singular,<br />

mas que a mesma aproxima cultura erudita e popular, rigor etimológico, antropológico<br />

e arquivístico, além de seu evidente revisitar da tradição 3 . Tudo isso, atrelado ao<br />

caráter político da obra, que reside no fato de Rosa não apresentar um Brasil rural<br />

com o olhar impregnado pela ideologia dominante no período. Falamos de um Rosa<br />

intérprete a contrapelo e que, em linhas gerais, podemos avaliar que, apropria-se de<br />

um universo agrário e popular sem que o resultado disso seja uma produção artificial<br />

ou simplesmente descritiva, sob um ponto de vista intelectivo distanciado; não recria o<br />

locus sertanejo e suas particularidades como uma paisagem para seu argumento<br />

narrativo. O universo rústico e rural de que parte, tanto quanto permite a escrita, é<br />

preservado, e ao mesmo tempo reinventado, todavia, sem que se perca o referente<br />

original, fazendo, portanto, com que o mesmo adquira novas nuances e significações.<br />

Retornando à obra de Antonio Gramsci, podemos entender que a mesma intenta<br />

radiografar a sociedade moderna ocidental, em especial, a italiana. Isso leva o autor a<br />

discutir os problemas presentes no cerne das atividades ditas intelectuais, questionandose<br />

sobre o papel das mesmas para a configuração histórico-social dos indivíduos e das<br />

classes sociais. Daí os fenômenos artísticos e culturais se apresentarem como objetos<br />

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(2003), em As tecnologias do imaginário. Para o autor, o imaginário é, primeiramente,<br />

reservatório, na medida em que abrolha imagens, anseios, lembranças, experiências, “visões<br />

do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo<br />

individual/grupal, sedimenta um modo de viver, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no<br />

mundo” (2003, p. 11-12). Conforme Silva, o imaginário passa a ser uma “distorção” involuntária<br />

do vivido, do experienciado que, a seu ver, se naturaliza como “marca individual ou grupal”<br />

(2003, p. 12). O que ocorre de forma diferente com o “imaginado”, o qual, na interpretação do<br />

autor, é “projeção irreal que poderá se tornar real” (2003, p. 12). Dessa maneira, comenta<br />

Silva: “o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento<br />

propulsor.” (2003, p. 12). E se o imaginário é considerado pelo seu aspecto de “reservatório”,<br />

também assim o é “motor”, seguindo os apontamentos do autor. Visto sob esta perspectiva, o<br />

imaginário também pode ser entendido como “sonho que realiza a realidade, uma força que<br />

impulsiona indivíduos ou grupos” (2003, p. 12). Desse modo, acaba por operar “como<br />

catalisador, estimulador e estruturador dos limites das práticas. O imaginário é marca digital<br />

simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do vivido” (2003, p. 12).<br />

3 Entendida a noção de “tradição” conforme concebe Gerd Bornheim (1987, p. 20), isto é, um<br />

“conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos; não se trata apenas das formas<br />

de conhecimento ou das opiniões que temos, mas também da totalidade do comportamento<br />

humano, que só se deixa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma<br />

determinada sociedade”.<br />

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fundamentais de análise sócio-histórica. Nesse ponto, Gramsci se coloca como grande<br />

representante do marxismo no século XX. Mesmo que não tencionemos restringir seus<br />

escritos à realidade de seu país, ele tem nesta sociedade e em seus processos sociais a<br />

base material de sua análise. Ao tratar da questão das estruturas ideológicas constituídas<br />

pelas atividades intelectuais, artísticas e culturais, o estudioso marxista coloca sempre no<br />

horizonte um problema central para a Itália: a dissociação entre sua intelectualidade<br />

instituída e o seu povo; problema este que poderíamos considerar compreensível em um<br />

país que passa por um processo político de unificação de cima para baixo, ou de fora<br />

para dentro. Diz Antonio Gramsci:<br />

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Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente alguns<br />

deles seja de origem popular; não se sentem ligados ao povo<br />

(deixando de lado a retórica), não o conhecem e não percebem suas<br />

necessidades, aspirações e seus sentimentos difusos; em relação ao<br />

povo, são algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta, não uma<br />

articulação – com funções orgânicas – do próprio povo. (GRAMSCI,<br />

1968, p. 106-107)<br />

A exposição de Gramsci parece acomodar-se com dado conforto ao caso<br />

brasileiro: a noção de “nacional-popular” é, antes de qualquer coisa, o esfacelamento<br />

das fronteiras entre os intelectuais e o povo, apartamento este que está presente na<br />

formação de uma cultura, caracterizada por Carlos Nelson Coutinho (2008), de<br />

“intimista”, quer dizer, patenteada pelo elitismo cultural e que, amiúde, não é oriunda de<br />

uma preferência voluntária do intelectual e/ ou artista. Como se sabe, a cultura brasileira<br />

conecta-se de forma orgânica, seja com sua m<strong>aqui</strong>agem reacionária, seja democrática e<br />

progressista, a partir do “patrimônio cultural universal”, o qual conveio e convém como<br />

jardim inspirador e alimento substancial. Desse modo, se a essência de uma obra<br />

“nacional-popular” se estabelece por um modo de articulação entre os intelectuais e o<br />

povo, o que resultaria em “intelectuais orgânicos”, para utilizarmos um vocabulário<br />

gramsciano, a mesma não pode ser compreendida no tocante às personagens<br />

concretas ou mesmo o conteúdo tematizado, como fundamentalmente contrária ao<br />

universal, uma espécie de assertiva categórica de nossas pretensas genealogias<br />

culturais encerradas em si mesmas contra a abertura ao cosmopolitismo, entendido<br />

como detentor de dado potencial alienante. Não se trata de asseverar que tal atitude<br />

cosmopolita não exista no seio de nossa vida nacional, conforme Coutinho (2008, p. 2),<br />

“ela se manifesta sempre que a recepção de uma corrente cultural universal se faz de<br />

modo abstrato, sem nenhuma tentativa de concretizá-la e enriquecê-la no confronto com<br />

a realidade brasileira”. Dito de outra forma pelo estudioso:


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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

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[...] há cosmopolitismo abstrato todas as vezes que a ‘importação’<br />

cultural não tem como objetivo responder a questões colocadas pela<br />

própria realidade brasileira, mas visa tão-somente a satisfazer<br />

exigências de um círculo restrito de intelectuais ‘intimistas’. Nesse<br />

sentido, podemos afirmar que essa postura ‘cosmopolita’ é uma das<br />

manifestações da cultura elitista e não nacional-popular; é por<br />

estarem separados do povo, emparedados nos limites do ‘intimismo’,<br />

que certos intelectuais são incapazes de proceder àquela<br />

concretização e àquele enriquecimento do patrimônio universal.<br />

(COUTINHO, 2008, p. 2, aspas do autor)<br />

Este conflito é, segundo Antonio Candido (1980), recorrente na história literária<br />

brasileira, e se pudermos alargar a constatação do crítico para as artes em geral no<br />

Brasil, quando fala de “nossa vida espiritual”, sempre a defrontar localismo e<br />

cosmopolitismo. O fechamento sobre si mesmo versus a abertura para influências<br />

exteriores. Em Literatura e sociedade, Antonio Candido assim se coloca:<br />

Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida<br />

espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela<br />

dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos<br />

modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes<br />

violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma<br />

língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação consciente<br />

dos padrões europeus. Isto se dá no plano dos programas, porque no<br />

plano psicológico profundo, que rege com maior eficácia a produção<br />

das obras, vemos quase sempre um âmbito menor de oscilação,<br />

definindo afastamento mais reduzido entre os dois extremos. E para<br />

além da intenção ostensiva, a obra resulta num compromisso mais ou<br />

menos feliz da expressão com padrão universal. [...]<br />

Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem<br />

realmente consistido numa integração progressiva de<br />

experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado<br />

local (que se apresenta como substância da expressão) e os<br />

moldes herdados da tradição europeia (que se apresentam como<br />

forma de expressão). A nossa literatura, tomado o termo tanto no<br />

sentido restrito quanto amplo, tem, sob este aspecto, consistido numa<br />

superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de<br />

inferioridade que um pais novo, tropical e largamente mestiçado,<br />

desenvolve em face de velhos países de composição étnica<br />

estabilizada, com uma civilização elaborada em condições<br />

geográficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro,<br />

procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia<br />

ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre<br />

correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe<br />

propõe, e que por vezes se elevam em face deles como<br />

elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética e,<br />

portanto, grande parte de nossa dinâmica espiritual, se nutre<br />

deste dilaceramento [...] (CANDIDO, 1980, p. 109-110, grifo nosso)<br />

Dito isto, impossível não falarmos em relações (tanto de aproximação quanto<br />

de afastamento) entre o quadro italiano e o brasileiro, este último que busca a<br />

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formação de um sistema literário próprio, numa longa e conturbada história de nossa<br />

cultura e, portanto, também de nossa literatura.<br />

Antonio Candido finaliza sua Formação da literatura brasileira (1975)<br />

sentenciando estar no escritor Machado de Assis a concretização de um sistema<br />

literário brasileiro, em que o autor consegue incorporar dialeticamente os matizes<br />

externos das tradições literárias que nos servem de modelo e formação, compondo,<br />

pois, uma literatura que nos retrata, que fala de nós de forma sistêmica, desenvolvida<br />

pelo contato do local com o universal. Quando evoca o seguinte trecho do ensaio<br />

“Instinto de nacionalidade”, escrito por Machado de Assis, o analista da formação do<br />

sistema literário nacional parece engordar a constatação de José de Alencar, a<br />

propósito da superação do regionalismo que praticara, ao passo que o texto<br />

machadiano aponta, de maneira explicita, entre nós, uma determinação elementar do<br />

nacional-popular:<br />

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Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,<br />

deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua<br />

região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a<br />

empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é<br />

certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do<br />

seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no<br />

espaço. (MACHADO DE ASSIS apud CANDIDO, 1975, p. 368-369,<br />

grifo nosso).<br />

Ao que tudo indica, podemos avançar o período histórico analisado por Candido<br />

e pensar o Modernismo, não exclusivamente o da Semana de 22, mas sua<br />

continuidade, quando surgem criações literárias que dão conta de nossa realidade<br />

social, ligando e criando em nós um laço com nossas raízes e ao mesmo tempo se<br />

projetando artisticamente para fora, ou seja, esteticamente consequente com uma arte<br />

universal a partir de nossa realidade particular. Falamos de obras capazes de captar<br />

socialmente nossas estruturas essenciais e particulares de forma “esteticamente válida”,<br />

fornecendo um retrato vivo de momentos históricos fundamentais. Em Literatura e<br />

sociedade, Antonio Candido (1980), observa que o Modernismo “inaugura um novo<br />

momento na dialética do universal e do particular” (p. 119). Entendido pelo crítico como<br />

uma denominação que abarca, pelo menos, três fatores envoltos a produção artística<br />

nacional: “um movimento, uma estética e um período” (CANDIDO; CASTELLO, 1977, p.<br />

7), o Modernismo comporta um instante em que a literatura brasileira é “muito larga no<br />

seu âmbito”, quando investiga “outros setores da vida intelectual no sentido da<br />

diferenciação das atribuições, de um lado; da criação de novos recursos expressivos e<br />

interpretativos, de outro” (1980, p. 134). Historiando o movimento, Candido o divide em


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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

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três fases – a primeira, de 1900 a 1922; a segunda, de 1922 a 1945; e a terceira inicia<br />

em 1945. É da segunda fase em diante, comenta o estudioso, que se entrevê “mais<br />

humour, maior ousadia formal, elaboração mais autêntica do folclore e dos dados<br />

etnográficos, irreverência mais consequente, produzindo uma crítica mais profunda”<br />

(1980, p. 122). E prossegue o crítico literário nas considerações que particularizam a<br />

abordagem desta “segunda etapa” do Modernismo:<br />

Sobretudo a descoberta de símbolos e alegorias densamente<br />

sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adesão franca<br />

aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o<br />

mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade,<br />

a malandrice. É toda evocação dionisíaca de Oswald de Andrade,<br />

Raul Bopp, Mário de Andrade; este haveria, aliás, de elaborar as<br />

diversas tendências do movimento numa síntese superior. A poesia<br />

Pau Brasil e a Antropofagia, animadas pelo primeiro, exprimem a<br />

atitude de devoração em face dos valores europeus, e a<br />

emancipação de um lirismo telúrico, ao mesmo tempo crítico,<br />

mergulhado no inconsciente individual e coletivo, de que Macunaíma<br />

seria a mais alta expressão. (1980, p. 122, grifos do autor)<br />

E a propósito dos reverbérios destas predileções estéticas e políticas na<br />

literatura brasileira subsequente, interpreta Antonio Candido:<br />

A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a<br />

paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência<br />

como atitude; eis algumas contribuições do Modernismo que<br />

permitiram a expressão simultânea da literatura interessada, do<br />

ensaio histórico-social, da poesia libertada. (1980, p. 135)<br />

Assim, o antropofagismo modernista poderia ser apontado como efetivamente<br />

o caminho para nossa literatura. Candido observa em Guimarães Rosa a presença da<br />

dialética modernista, funcionando de forma consistente. Segundo o crítico, o literato<br />

mineiro representaria a concretização do projeto nacional, não um projeto de<br />

nacionalismo imposto de fora para dentro, mas construído de dentro para fora, do<br />

sertão para a cidade. Por meio da construção de sua linguagem, <strong>aqui</strong> entendida como<br />

um tratamento formal, o escritor em questão cria um tempo-espaço brasileiro, síntese<br />

das influências múltiplas externas e internas. Em suas narrativas, Guimarães Rosa<br />

não procura uma imitação caricatural do nosso contexto interno, ao contrário,<br />

descortina os impasses que existem em uma cultura multifacetada, que não é una e<br />

que se ressente de uma partição duradoura. Portanto, não mais se trata de tampar as<br />

fissuras de nossas fragmentadas e múltiplas influências culturais, mas de assumi-la<br />

como nossa cultura. E não fazê-la de forma romântica e idealizada, mas encarando<br />

seus impasses. De tal modo, se nos atentarmos ao nosso país, podemos notar que as<br />

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questões levantadas por Gramsci têm muito a descrever sobre uma nação colonizada<br />

por vários países europeus que trouxeram nas bagagens sua língua, sua cultura, seus<br />

valores e seus costumes, e <strong>aqui</strong> os estabeleceram. Mesmo que no confronto entre as<br />

realidades políticas, econômicas, sociais, históricas e culturais haja vários<br />

distanciamentos, o que nos interessa são as aproximações. Em outros termos, o que<br />

podemos aprender com Gramsci, e onde poderíamos, com nossa experiência cultural,<br />

ir além dele ao retornarmos o olhar para João Guimarães Rosa. Assim, introduzimos a<br />

quarta parte do nosso artigo, dedicada ao referido literato brasileiro.<br />

GUIMARÃES ROSA E O SERTÃO REVISITADO<br />

João Guimarães Rosa nasceu na pequena cidade de Cordisburgo, localizada<br />

no interior mineiro. Na primeira metade do século XX, o primeiro sinal de civilização<br />

vinha através da malha férrea e das escolas secundárias estrangeiras que se<br />

estabeleciam no interior dos Estados. Formado em Medicina em 1930, retornou ao<br />

interior para exercer tal profissão na pequena cidade de Itaguara, então distrito de<br />

Itaúna. Era exigido que viajasse no lombo de cavalo, percorrendo fazendas e visitando<br />

as famílias necessitadas de seu serviço. Em Itaguara, participou da Revolução<br />

Constitucionalista de 1932, primeiro como rebelde, depois como voluntário na Força<br />

Pública de Minas, onde conheceu Juscelino Kubistchek, quando este era médico–<br />

chefe do Hospital de Sangue. Em seguida, serviu no município de Barbacena como<br />

oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria, onde a rotina médica permitiu-lhe estudar<br />

idiomas, dedicar-se a escrita e realizar pesquisas nos arquivos do quartel sobre o<br />

jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São<br />

Francisco.<br />

Em pouco tempo, Rosa desistiu da carreira médica e prestou concurso para o<br />

Ministério do Exterior, onde poderia exercer um trabalho mais teórico e dedicar-se a<br />

escrita. Trabalhou como cônsul adjunto em Hamburgo na Alemanha a partir de 1938,<br />

quando explodiu a Segunda Guerra. Concedeu vistos aos judeus sem a anuência do<br />

Estado totalitário, devido ao bombardeio das cidades alemãs; escapou da morte<br />

algumas vezes, foi retido em Baden-Baden em 1942, quando o Brasil rompeu com a<br />

Alemanha, até seu retorno à terra natal alguns meses depois. Entre as missões em<br />

embaixadas na Europa e América do Sul, realizou excursões pelo interior do país<br />

(Mato Grosso e Minas Gerais em 1947, Caldas do Cipó, no interior da Bahia, com<br />

Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas e de novo a Minas Gerais, em 1952).<br />

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Nesse retorno, restabeleceu seu contato de infância com as histórias sertanejas,<br />

com o universo de sujeitos simples, personagens que recriou na ficção, como o vaqueiro<br />

Manuelzão, coordenador da comitiva que o acompanhou por 240 km, conduzindo a<br />

boiada entre a fazenda Sirga, em Três Marias, até a fazenda São Francisco em Araçaí,<br />

distrito de Paraopeba. Os moradores guardam na memória a comitiva de trezentos bois,<br />

e Rosa com uma caderneta pendurada no pescoço, em que anotava tudo o que via e<br />

ouvia, registrando o trabalho do vaqueiro, inquirindo-os incansavelmente, registrando a<br />

flora e fauna sertaneja, as crenças e expressões populares, as músicas, anedotas,<br />

canções, jogos e danças, os remédios caseiros, etc. Ao todo, preencheu 50 cadernos<br />

espiralados 4 . Guimarães Rosa conheceu tantos lugares e culturas diferentes, passou<br />

por experiências-limite e retornou a pequena localidade em que nasceu. Ao mesmo<br />

tempo em que ampliou sua visão de mundo, estabeleceu comparações que o levaram a<br />

uma compreensão mais arguta do que lhe era familiar.<br />

O autor realizava, em termos literários, o registro dos resquícios e a<br />

substituição de um Brasil primitivo, arcaico, e visceral de religiosidade, patriarcalismo,<br />

do universo masculino e rústico dos coronéis e jagunços, das pousadas e fazendas,<br />

riachos e veredas que perduraram ao longo de séculos quase imutável. Ele retrata as<br />

relações sociais e de poder estabelecidas, em declínio, mas que persistiram pelo<br />

período republicano e que contrastavam com os projetos de modernização e de<br />

consolidação política da nação brasileira e faziam refletir sobre as condições de<br />

transformação das pessoas em cidadãos e de integração nacional diante da<br />

diversidade dos vários Brasis. Quiçá, sua obra se apresente como contrapartida do<br />

projeto de modernização que culminou nos “anos dourados” com a proposta de<br />

construção da nova capital, a vitória da cidade sobre o sertão, da modernidade frente<br />

ao arcaico. Numa reflexão de Rosa sobre a familiaridade do escritor com a linguagem,<br />

em uma entrevista a Günter Lorenz, ele deixa entrever a superioridade e a<br />

universalidade do sertanejo e de seu universo sobre o homem da cidade:<br />

Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert,<br />

Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um<br />

homem que vivia com a língua e pensava o infinito... Acho que Goethe<br />

foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não<br />

escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. Zola, para<br />

tomar arbitrariamente um exemplo contrário, provinha apenas de São<br />

Paulo. De cada cem escritores, um está aparentado com Goethe e<br />

noventa e nove com Zola (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 79).<br />

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!<br />

4<br />

Atualmente, eles se encontram no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da<br />

Universidade de São Paulo (USP).<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!77!


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!<br />

HÉDER JUNIOR DOS SANTOS<br />

! !<br />

Esta comparação do sertanejo com o habitante da cidade decorre da convicção<br />

de que o sertanejo é um pensador, alguém que lida com a linguagem de forma<br />

orgânica, não originária de um cartesianismo, mas empírica, fruto do discernimento,<br />

das relações de grupo, da observação, de um amplo filosofar sobre as experiências do<br />

cotidiano. Na visão de Rosa, o sertanejo percebe o “idioma como metáfora de<br />

sinceridade” (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 78). Logo, o sertanejo é um pensador<br />

que reflete sobre a existência, o que diverge da ideia corrente do rústico homem do<br />

campo ocupado demais com trabalho manual. Nas palavras de Rosa, “Nós sertanejos<br />

somos diferentes da gente temperamental do Rio ou Bahia... Somos tipos<br />

especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer” (ROSA apud LORENZ,<br />

1991, p. 79). Esta perspectiva se aproxima da afirmação de Antonio Gramsci de que<br />

todo homem é um filósofo, no sentido que produz visões de mundo. Muitas vezes o<br />

senso comum que guia o sertanejo no seu manejo com as atividades do dia a dia,<br />

como as crenças, as preces, os remédios, previsões e soluções advindas da prática,<br />

sobre a qual o sujeito reflete e tira conclusões de maneira original e dinâmica. Muitas<br />

vezes a combinação destes elementos resulta em um tipo de coerência imperceptível<br />

ou inaceitável para o homem urbano e moderno. Então, quer dizer que a combinação<br />

dos elementos tem uma coerência própria, e não que a coerência esteja dispensada,<br />

pois adquire sentido naquele contexto em particular, para os sujeitos históricos<br />

envolvidos naquela ação ou comunicação. Contudo, tal sentido não permanece<br />

idêntico todo o tempo, muda cada vez que é atualizado pelos sujeitos sociais.<br />

Além disso, a narrativa de Rosa não é apenas resultado do contraste, mas<br />

também do encontro entre o urbano e o rural, a tradição oral e a cultura erudita, que<br />

tantas vezes esteve presente como parte integrante não explicitada da literatura. O<br />

próprio Guimarães Rosa era produto da combinação destas duas tradições, um<br />

médico formado, versado e estudioso de várias línguas, diplomata e escritor<br />

prestigiado, crédulo em superstições, curandeirismo, etc. O texto de Guimarães Rosa<br />

tornou-se o lugar de encontro destas duas tradições, através do qual podemos ouvir<br />

as vozes dos sertanejos e vaqueiros, representações de personagens reais que ele<br />

conheceu e com os quais conviveu. Importa destacar que cultura letrada e tradição<br />

oral não são universos isolados e impermeáveis, antes, elas se interpenetram, são<br />

retro alimentadas e se defrontam, principalmente, em momentos de conflitos entre os<br />

grupos sociais.<br />

78!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!


!<br />

!<br />

ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

! !<br />

UMA TENTATIVA DE ARREMATE: GUIMARÃES ROSA SOB O PRISMA DAS<br />

REFLEXÕES DE ANTONIO GRAMSCI<br />

Até o momento, discutimos a fecundidade de transplantarmos o ideário<br />

gramisciano para a realidade brasileira, mais especificamente, para o Modernismo,<br />

com o intuito de apreciarmos a obra de Guimarães Rosa, à luz dos debates sobre uma<br />

arte “nacional-popular”. Se entendermos que para a realização de uma obra de arte<br />

com caráter nacional e popular, a mesma deve provocar a ruptura que distancia o<br />

artista (o intelectual) e as classes sociais subalternas, através de um desempenho<br />

estético que redimensiona e atualiza os valores tradicionais, numa tensão dialética<br />

entre o regional e o universal, podemos julgar que a obra de Guimarães Rosa<br />

apresenta-se com tais características: é “nacional-popular”.<br />

Como já mencionamos, o projeto rosiano de recriação de uma literatura de<br />

inspiração popular se coloca combativo diante do esfacelamento dos valores<br />

tradicionais em pleno processo de modernização brasileira. Por meio de suas<br />

narrativas, Guimarães Rosa não procurou uma imitação caricatural do nosso contexto<br />

interno, mas descortinou os impasses provenientes de uma cultura multifacetada como<br />

a brasileira, uma cultura que não é una, mas hibrida. Atentando-nos aos valores<br />

dialetais propostos por Gramsci para certo julgamento artístico, podemos considerar<br />

que Rosa corporifica em suas narrativas, no plano da forma e do conteúdo, elementos<br />

de uma cultura popular – dos quais reiteramos a linguagem, os porta-vozes, as<br />

canções, as crenças, seus códigos, aproximando-se assim do povo que lhe fornece<br />

matéria narrativa. Com isso, Rosa demonstra seu interesse não apenas por tal<br />

temática (sertaneja), mas apresenta-se como divulgador dessa cultura, ou melhor,<br />

revela-se como uma espécie de guardião d<strong>aqui</strong>lo que se fala entre o povo, em<br />

especial, entre os sertanejos; demonstra a capacidade de se estabelecer um diálogo<br />

coeso entre a escrita e a oralidade; impõe-se a responsabilidade de cativar o leitor<br />

para as relações rurais de grupo. Em suma, Guimarães Rosa dispõe-se a deflagrar a<br />

“essência do sertanejo”. E isso se torna possível, principalmente, por seu projeto de<br />

captar e recriar a maneira como tais sujeitos percebem e reproduzem o mundo<br />

circundante.<br />

Como ressalta Paulo Rónai, a “transliteração desse universo opera-se num<br />

estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e, no entanto, determinado em sua<br />

essência pelas tendências dominantes [...] da fala popular” (RÓNAI, 1991, p. 532). A<br />

perspectiva empregada por Guimarães Rosa sobre a cultura popular não tem um<br />

caráter saudosista. O autor não apenas retoma práticas importantes que estão se<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!79!


!<br />

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HÉDER JUNIOR DOS SANTOS<br />

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dissolvendo, mas também ampara “atitudes” da modernidade. Contudo, mais do que<br />

demonstrar a importância dessas práticas populares, é necessário definir seu espaço<br />

em nosso meio e o quanto as histórias que aí se formam têm a nos dizer e a<br />

influenciar sobre nosso modo de ser, estar e nos expressar. No tocante ao plano<br />

temático das narrativas rosianas, é evidente a conservação da homogeneidade do<br />

espaço e personagens:<br />

80!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

Todas elas [as estórias] se desenrolam diante dos bastidores das<br />

grandes obras anteriores: as estradas, os descampados, as matas,<br />

os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória<br />

do escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos e rústicos,<br />

intocados pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos<br />

escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e<br />

as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles<br />

alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e<br />

mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros,<br />

criadores de cavalo, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros,<br />

cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos,<br />

prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras<br />

do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse mundo de sua infância<br />

o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas<br />

capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura <strong>aqui</strong><br />

tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e<br />

aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua<br />

compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe<br />

a mensagem com mais perfeição (RÓNAI, 1991, p. 531-32) 5 .<br />

Nos trabalhos de Guimarães Rosa, o familiar encontra seu ponto de<br />

comparação na estrutura léxica e gramatical de idiomas estrangeiros por ele<br />

estudados, no pensamento de filósofos e romancistas e na metodologia adotada.<br />

Dizia, por exemplo, que aprendeu “algumas línguas estrangeiras apenas para<br />

enriquecer a sua própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis” (ROSA apud<br />

LORENZ, 1991, p. 87). Muitas expressões intraduzíveis de outras línguas foram<br />

traduzidas para a obra de Guimarães Rosa com o intuito de o literato descrever seu<br />

universo sertanejo já que apenas renovando a língua, se pode renovar o mundo,<br />

parafraseando Rosa (apud LORENZ, 1991, p. 88). Como ele mesmo nos esclarece,<br />

seu método de escrita se baseava na:<br />

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!<br />

5 Interpolação nossa.<br />

utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer,<br />

para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu<br />

sentido original. Por isso, e este é o segundo elemento, eu incluo em<br />

minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que<br />

são linguagem literária e ainda têm sua marca original, não estão<br />

desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria


!<br />

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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)<br />

! !<br />

PALAVRAS FINAIS<br />

lingüística. Além disso, como autor do século XX, devo me ocupar do<br />

idioma formado sob a influência das ciências modernas e que<br />

representa uma espécie de dialeto. E também está a minha<br />

disposição esse magnífico idioma já quase esquecido: o antigo<br />

português dos sábios e poetas daquela época escolástica da Idade<br />

Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra (ROSA apud<br />

LORENZ, 1991, p. 81)<br />

A temática do Brasil do atraso versus o Brasil moderno, ou em vias de<br />

modernização, apresenta-se como o contraponto de um projeto nacional<br />

desenvolvimentista, consagrado como consensual pelo imaginário político. Guimarães<br />

Rosa foi testemunha e contemporâneo de um momento em que o Brasil passava por<br />

um processo de modernização que parecia varrer e ocultar de um só ímpeto o Brasil<br />

secular da cultura popular. O Brasil urbano e industrializado impunha-se sobre o Brasil<br />

rural, governado por coronéis e seus jagunços, povoado também por cangaceiros e<br />

camponeses. Mas apesar dos sinais de seu esfacelamento, este universo ainda<br />

estaria presente na paisagem cotidiana, e permaneceria na memória de uma geração<br />

cujas raízes procedem do meio rural, do sertão e todos os dilemas nele contido.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BORNHEIM. Gerd. O conceito de tradição. In: BORNHEIM, G., et al. Cultura<br />

brasileira: tradição/contradição. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora/ FUNARTE,<br />

1987, p. 13-29.<br />

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1992.<br />

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira:<br />

modernismo. 6. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Difel, 1977. Volume 3.<br />

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed.<br />

Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. v. 2.<br />

_________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 6. ed. São<br />

Paulo: Editora Nacional, 1980.<br />

COUTINHO, Carlos Nelson. “O nacional-popular como alternativa à cultura intimista”.<br />

Fundação Lauro Campos, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2008. Disponível em<br />

http://www.socialismo.org.br/. Acesso em 10 de junho de 2011.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!81!


!<br />

!<br />

HÉDER JUNIOR DOS SANTOS<br />

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DEL ROIO, Marcos. “Gramsci e a emancipação do subalterno”. Revista de<br />

Sociologia e Política, Curitiba, n. 29, p. 63-78, 2007.<br />

GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no<br />

Grande Sertão: Veredas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.<br />

GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.<br />

LORENZ, Günter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.).<br />

Guimarães Rosa. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. 2. ed. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1991, p. 62-97.<br />

RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, J. G. Primeiras estórias. 15. ed. Rio de<br />

Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

______. “Tutaméia”. In: COUTINHO, Eduardo F. (org). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.527-535.<br />

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, 2 v.<br />

SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina,<br />

2003.<br />

!<br />

82!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!


L i t e r a t u r a<br />

LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA<br />

METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

TANIA REGINA MONTANhA TOLEDO SCOPARO<br />

Mestre em Comunicação pela Universidade de Marília. Especialista em Mídias Integradas<br />

<br />

Literatura pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Integrante dos Grupos<br />

-<br />

<br />

<br />

taria<br />

Estadual de Educação do Paraná (SEED).<br />

Contato: taniascorparo@uol.com.br


LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA<br />

PARA O ENSINO MÉDIO<br />

Tania Regina Montanha Toledo Scoparo<br />

RESUMO: Propor novos modos de ler os veículos midiáticos é um desafio para os<br />

professores e para as escolas, como também condição para a inserção do sujeito no<br />

mundo atual. Nesse sentido, o cinema pode ser um grande recurso para o trabalho<br />

pedagógico, uma vez que sua leitura traz uma nova discursividade, uma nova<br />

linguagem. O objetivo deste artigo é apresentar uma proposta metodológica utilizando<br />

a mídia impressa, o romance O primo Basílio, e a mídia audiovisual, o cinema, com o<br />

filme homônimo da obra literária, na perspectiva do Método Recepcional. A intenção é<br />

propor esse método como recurso à leitura dos clássicos da literatura e ampliar os<br />

horizontes de expectativas da população discente.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Literatura. Cinema. Mídias. Método Recepcional<br />

LITERATURE AND CINEMA: METHODOLOGY FOR HIGH SCHOOL<br />

ABSTRACT: Proposing new ways of reading media spread is a challenge to teachers<br />

and schools as well a condition to the individual to take part of the modern world. Thus,<br />

the cinema can be a great resource for pedagogical work, as the its reading brings a<br />

new speech, a new language. The objective of this paper is to present a<br />

methodological proposal with the use of the printed media, the novel O Primo Basílio<br />

by Eça de Queirós; and the audio-visual media, the cinema, with the homonymous film<br />

of the literary work, in the perspective of the Reception Method. The intention is to<br />

propose this method as a resource to the reading of the classical literature and to<br />

amplify the horizons of students’ expectations.<br />

KEYWORDS: Reading. Literature. Cinema. Medias. Reception Method<br />

INTRODUÇÃO<br />

Ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico.<br />

(Paulo Freire, Pedagogia da Esperança, 1992)<br />

O presente artigo apresenta uma proposta metodológica para despertar o<br />

interesse do aluno nos grandes clássicos da literatura e devido à força dos meios de<br />

comunicação junto à sociedade moderna, propõe-se uma prática de ensino pautada<br />

na integração da linguagem verbal com outras linguagens, o que se costuma chamar<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((!85


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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

! !<br />

de aprendizagem de multiletramento: um diálogo entre a mídia impressa, o romance; e<br />

a mídia audiovisual, o cinema.<br />

A leitura está presente na vida do ser humano desde a infância, pois a criança,<br />

desde o berço, convive com diferentes formas de linguagem. Ela tem contato com a<br />

fotografia, o cinema, o som, a música, a pintura, a imagem, as histórias em<br />

quadrinhos, enfim, com linguagens que se articulam em vários momentos. E é essa<br />

articulação que pode ser explorada na escola. Segundo as Diretrizes Curriculares de<br />

Língua Portuguesa da Rede Pública do Estado do Paraná (2009), praticar a leitura em<br />

diferentes contextos requer que se compreendam as esferas discursivas em que os<br />

textos são produzidos e, posteriormente, circulam.<br />

De acordo com essa perspectiva, entende-se ser necessário que o professor<br />

aproprie-se de seu papel na formação de leitores e que ele próprio tenha na leitura<br />

fonte de aprimoramento e fruição, de forma que seu discurso não seja vazio. Para<br />

isso, cabe ao docente ousar, fazer diferente, mexer com a imaginação dos alunos,<br />

criar estratégias de motivação, passar rapidamente pelas concepções clássicas ou<br />

mais usuais e, enfim, focar as possíveis mudanças trazidas pelas novas tecnologias<br />

inovando sua prática pedagógica.<br />

Os meios de comunicação são ferramentas de apoio ao processo de ensino e<br />

aprendizagem. As diversidades de temas, de opiniões e as formas de leitura desses<br />

meios trazem uma nova discursividade, uma nova linguagem. Ler o discurso da mídia<br />

faz o sujeito se inteirar do mundo e da história contemporânea. Ao ler, o indivíduo<br />

estabelece relações com o outro e reafirma seus valores individuais.<br />

Segundo Freire (2006), não basta apenas ler a palavra e o mundo, mas<br />

também escrever sobre o mundo em busca de sua transformação. Para isso, o ensino<br />

e aprendizagem têm como tarefa aprimorar os conhecimentos discursivos dos alunos<br />

para que eles possam compreender os discursos que os cercam.<br />

A língua é considerada uma criação social por acompanhar as mudanças da<br />

sociedade. Ela coloca à disposição do indivíduo muitas possibilidades de repertório<br />

para o seu discurso: “A linguagem é vista como fenômeno social, pois nasce da<br />

necessidade de interação (política, social, econômica) entre os homens” (PARANÁ,<br />

2009, p. 16). Esse conceito sobre a linguagem tem como base teórica as reflexões de<br />

Bakhtin. O referido autor concentra suas atenções no discurso, como se pode<br />

perceber quando afirma que “Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as<br />

direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de<br />

participar, com ele, de uma interação viva e tensa” (BAKHTIN, 1988, p. 88). Nesse<br />

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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

! !<br />

sentido, todos os enunciados no processo de comunicação são dialógicos e levam em<br />

conta o discurso alheio. Sobre esse assunto, Proença (1996, p. 71) observa:<br />

[...] toda comunicação envolveria a interação de um falante, um destinatário e<br />

um “personagem” (de que se fala) envoltos por um horizonte comum que<br />

possibilita a compreensão dos elementos ditos e não ditos. [...] a realização de<br />

qualquer comunicação ou interação verbal envolve uma troca de enunciados,<br />

situa-se na dimensão de um diálogo. [...] À luz desses posicionamentos, o<br />

discurso literário envolve um cruzamento, um diálogo de vários textos.<br />

Nesse sentido, no ato da aprendizagem, espera-se que o aluno tenha contato<br />

com diversos textos, de diferentes esferas sociais, ancorados em atividades que lhe<br />

deem possibilidades de leitura, interpretação e reflexão da língua. Nesse contexto, os<br />

textos da mídia podem ser aliados no processo de ensino e aprendizagem.<br />

Considerando a força dos meios de comunicação junto à sociedade moderna,<br />

propõe-se neste artigo uma prática de ensino pautada no diálogo entre mídia e<br />

literatura, mais especificamente, entre cinema e romance. Essa escolha parte da<br />

crença que o saber escolar necessita constantemente de novas manifestações<br />

culturais e da expectativa de que os professores sejam preferencialmente educadores<br />

dialógicos, preocupados em buscar procedimentos interacionistas para uma efetiva<br />

mediação com os educandos.<br />

MÉTODO RECEPCIONAL: UMA PROPOSTA DE TRABALHO<br />

Para as Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa do<br />

Paraná (2009, p. 58), o ensino de literatura é pensado a partir dos pressupostos<br />

teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, de Jauss (1994) e Iser (1996),<br />

respectivamente. Essas teorias buscam formar um leitor capaz de sentir e de<br />

expressar o que sentiu com condições de reconhecer um envolvimento de<br />

subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor. O leitor nessa<br />

concepção é ativo, reformula hipóteses, considera todas as informações, sejam<br />

explícitas ou implícitas. É uma relação que se estabelece entre o leitor e a obra, num<br />

ato dialógico da leitura.<br />

Hans Robert Jauss, na década de 1960, teceu uma crítica aos métodos de<br />

ensino da época, que consideravam apenas o texto e o autor numa perspectiva<br />

formalista e estruturalista. Em 1994 elaborou a teoria da Estética da Recepção,<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((!87


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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

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apresentado sete teses com a finalidade de propor uma metodologia para reescrever a<br />

história da literatura:<br />

Na primeira tese, aborda a relação entre leitor e texto, afirmando que o leitor<br />

dialoga com a obra atualizando-a no ato da leitura. A segunda tese destaca o<br />

saber prévio do leitor, o qual reage de forma individual diante da leitura,<br />

influenciado, porém, por um contexto social.<br />

A terceira enfatiza o horizonte de expectativas, o autor apresenta a idéia de<br />

que é possível medir o caráter artístico de uma obra literária tendo como<br />

referência o modo e o grau como foi recebida pelo público nas diferentes<br />

épocas em que foi lida. A quarta tese aponta a relação dialógica do texto, uma<br />

vez que, para o leitor, a obra constitui-se respostas para os seus<br />

questionamentos.<br />

Na quinta, Jauss discute o enfoque diacrônico que reflete sobre o contexto em<br />

que a obra foi produzida e a maneira como ela foi recebida e re-produzida em<br />

diferentes momentos históricos. A sexta tese refere-se ao corte sincrônico, no<br />

qual o caráter histórico da obra literária é visto no viés atual.<br />

Na última tese, o caráter emancipatório da obra literária relaciona a<br />

experiência estética com a atuação do homem em sociedade, permitindo a<br />

este, por meio de sua emancipação, desempenhar um papel atuante no<br />

contexto social. (PARANÁ, 2009, p. 58-59, grifos nossos)<br />

Compartilhando da teoria de Jauss, Wolfgang Iser apresenta a Teoria do Efeito.<br />

Ele trabalha com os conceitos de “leitor implícito”; “estruturas de apelo” e “vazios do<br />

texto”. Para Iser (1996, p. 73) “ [...] a concepção de leitor implícito designa [...] uma<br />

estrutura do texto que antecipa a presença do receptor”. Assim, no ato da escrita<br />

ocorre uma previsão, por parte do autor, de quem será o seu interlocutor. Um leitor<br />

ideal, e nem sempre real.<br />

É na recepção que o texto significa, por isso ele permite múltiplas<br />

interpretações. Mas não aberto a qualquer interpretação. Há pistas, estruturas de<br />

apelo, que direcionam o leitor para o seu significado, para uma leitura coerente. Além<br />

disso, o texto também traz lacunas, vazios, que podem ser preenchidos conforme o<br />

conhecimento de mundo do leitor.<br />

Partindo desses pressupostos, as professoras Bordini e Aguiar (1993)<br />

elaboraram o Método Recepcional, que é o objeto de estudo nesse trabalho.<br />

O método apresenta cinco etapas, cabendo ao professor delimitar o tempo de<br />

aplicação de cada uma delas, de acordo com o seu plano de trabalho. No texto das<br />

Diretrizes encontra-se a descrição dessas etapas:<br />

A primeira etapa é o momento de determinação do horizonte de expectativa<br />

do aluno/leitor. O professor precisa tomar conhecimento da realidade sóciocultural<br />

dos educandos, observando o dia-a-dia da sala de aula. Informalmente,<br />

88 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

! !<br />

pode-se analisar os interesses e o nível de leitura, a partir de discussões de<br />

textos, visitas à biblioteca, exposições de livros, etc.<br />

Na segunda, ocorre o atendimento ao horizonte de expectativas, o professor<br />

apresenta textos que sejam próximos ao conhecimento de mundo e às<br />

experiências de leitura dos alunos. Para isso, é fundamental que sejam<br />

selecionados obras que tenham um senso estético aguçado, percebendo que a<br />

diversidade de leituras pode suscitar a busca de autores consagrados da<br />

literatura, de obras clássica.<br />

Em seguida, acontece a ruptura do horizonte de expectativas. É o momento<br />

de mostrar ao leitor que nem sempre determinada leitura é o que ele espera,<br />

suas certezas podem ser abaladas. [...]<br />

Após essa ruptura, o sujeito é direcionado a um questionamento do<br />

horizonte de expectativas. O professor orienta o aluno/leitor a um<br />

questionamento e a uma autoavaliação a partir dos textos oferecidos. O aluno<br />

deverá perceber que os textos oferecidos na etapa anterior (ruptura)<br />

trouxeram-lhe mais dificuldades de leitura, porém, garantiram-lhe mais<br />

conhecimento, o que ajudou a ampliar seus horizontes.<br />

A quinta e última etapa do método recepcional é a ampliação do horizonte de<br />

expectativas. As leituras oferecidas ao aluno e o trabalho efetuado a partir<br />

delas possibilitaram uma reflexão e uma tomada de consciência das mudanças<br />

e das <strong>aqui</strong>sições, levando-o a uma ampliação de seus conhecimentos.<br />

(PARANÁ, 2009, p. 74-75, grifos nossos)<br />

É inserida nesse contexto que se fará a proposta de atividade com o clássico<br />

de Eça de Queirós. O texto literário dialoga com outras áreas, com a arte<br />

cinematográfica, que pode servir de base para a ampliação dos horizontes de<br />

expectativas dos alunos/leitores.<br />

Essas teorias servem como suporte teórico para construir uma reflexão sobre o<br />

ensino de literatura na sala de aula, levando em conta o papel do leitor e a sua formação,<br />

pois a leitura não se restringe mais ao ato de juntar as letras para formar sílabas e<br />

posteriormente palavras. Orlandi (2000, p. 40), ao refletir sobre leitura afirma que:<br />

A convivência com a música, a pintura, a fotografia, o cinema, com outras<br />

formas de utilização do som e com a imagem, assim como a convivência com<br />

as linguagens artificiais poderiam nos apontar para uma inserção no universo<br />

simbólico que não é a que temos estabelecido na escola. Essas linguagens<br />

não são alternativas. Elas se articulam. E é essa articulação que deveria ser<br />

explorada no ensino da leitura, quando temos como objetivo trabalhar a<br />

capacidade de compreensão do aluno.<br />

Esse enfoque vai ao encontro da fala apresentada nas Diretrizes Curriculares<br />

de Língua Portuguesa, (2009). Conforme este documento, ler é familiarizar-se com<br />

diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais - jornalística, artística,<br />

judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária,<br />

bem como, a leitura de imagens, fotos, cartazes, propagandas, imagens digitais e<br />

virtuais, figuras que povoam com intensidade crescente o universo cotidiano,<br />

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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

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propiciando o desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno a perceber o<br />

sujeito presente nos textos e, ainda, tomar uma atitude de resposta diante deles.<br />

Sob esse ponto de vista, a leitura de textos diversos amplia o imaginário e a<br />

memória discursiva do leitor. É preciso, então, que a escola, como espaço privilegiado<br />

de aprendizagem, possa contribuir para a formação desse leitor, a qual exige que o<br />

professor também se capacite num leitor de textos, atuando como mediador,<br />

provocando os alunos a realizarem leituras significativas.<br />

DELINEAMENTO DA PROPOSTA METODOLÓGICA<br />

A proposta de trabalho em sala de aula apresentada <strong>aqui</strong>, de acordo com<br />

Bordini e Aguiar (1993), tem como objetivos: efetuar leituras compreensivas e críticas;<br />

ser receptivo a novos textos e a leitura de outrem; questionar as leituras efetuadas em<br />

relação ao seu próprio horizonte cultural; transformar os próprios horizontes de<br />

expectativas.<br />

Por meio dessa proposta, espera-se que o aluno de Ensino Médio se<br />

identifique como sujeito que pode sentir, pensar e transformar. Propõe-se uma<br />

atividade que interpele os sentidos, desloque significações e perturbe a aprendizagem,<br />

virando pelo avesso o conhecimento ilimitado do mundo.<br />

Obra escolhida: O primo Basílio - romance e adaptação fílmica.<br />

Para se trabalhar com filmes na sala de aula, o aluno não pode achar que o<br />

filme serve somente para não fazer lição na sala. O professor atento às adaptações<br />

para o cinema encontrará vasto material para propor atividades que estimulem a<br />

relação do aluno com o livro. Ele pode apresentar o filme como incentivo para a leitura<br />

do livro, conforme Nagamini (2004, p. 16): “O desenvolvimento de atividades<br />

abordando o processo de transposição é uma das possibilidades para despertar o<br />

interesse pela obra literária e estimular momentos de discussão e descoberta do livro,<br />

no espaço escolar”.<br />

Propõe-se uma análise do romance O primo Basílio, grande clássico da<br />

literatura portuguesa. Livre da contaminação novelesca comum no Romantismo,<br />

complexo, irônico, com rigor artístico, arma de ação revolucionária e reformadora de<br />

consciências. Assim são os romances de Eça de Queirós. Justamente por isso eles<br />

devem ser trabalhados na sala de aula: para permitir que os alunos conheçam textos<br />

clássicos e aprendam a apreciar a literatura de qualidade.<br />

90 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

! !<br />

Considerado um dos maiores escritores em prosa da literatura portuguesa, Eça<br />

de Queirós é autor múltiplo, inventivo, original. Ele realiza em suas obras a superação<br />

de um estilo, dando um salto para a modernidade literária, que antecipa em vários<br />

aspectos: a crítica da linguagem tradicional da narrativa, com enredo não linear,<br />

constante metalinguagem; o estilo anti-retórico, substantivo; a análise psicológica que<br />

anuncia a psicanálise; o humor sutil e permanente, destruindo as ilusões e pieguices<br />

românticas, a visão metafísica aguda e relativista de todos os valores, em sentido<br />

profundo, e por isso considerada pessimista; a linguagem repleta de ambigüidades e<br />

outros recursos estilísticos desconhecidos de seu tempo.<br />

Devido a isso é inquestionável a importância literária de O Primo Basílio.<br />

Considerado clássico da língua portuguesa, esta obra é um dos principais romances<br />

que representam o movimento Realista-Naturalista português. Como romancista com<br />

profunda consciência social, Eça fez o que lhe parecia mais lícito: inquietou-se diante<br />

das injustiças sociais e na veemência de suas denúncias, na profunda individualização<br />

de seus personagens, o artista revelou as próprias idéias e sentimentos.<br />

Enquanto intérprete do Realismo e do Naturalismo, Eça de Queirós cultivava o<br />

moderno pensamento filosófico e científico de sua geração. O mundo físico passava a<br />

ser visto e avaliado sob o prisma da ciência e da experimentação e os valores místicos<br />

e religiosos enaltecidos pelo Romantismo eram veementes atacados. A arte literária<br />

era uma arma de combate e ação social. Eça abordava, em suas obras, temas sociais:<br />

“a condição do clero, o parlamentarismo, a literatura, a educação, a condição da<br />

mulher, o adultério, o casamento, ou o jornalismo” (REIS, 2005, p. 13). Nesses<br />

contextos, ele concebeu O Primo Basílio, traçando um pequeno quadro doméstico,<br />

tendo a família como objeto de interesse. Suas obras são marcadas pelo naturalismo,<br />

que enfatiza o determinismo social para explicar a trajetória das personagens.<br />

Esses grandes temas de que se nutriu o Realismo-Naturalismo, Eça os acolheu<br />

e os disseminou por meio da ficção literária.<br />

A qualidade da narrativa, a complexidade com que conflitos são nela expostos,<br />

a força das ideias que transmitem e os questionamentos que suscitam dão status aos<br />

escritos de Eça. Devido a isso, propõe-se <strong>aqui</strong> uma atividade de leitura do romance O<br />

Primo Basílio e sua adaptação para o cinema, para alunos do Ensino Médio. Nessa<br />

atividade, será usado o Método Recepcional, de Aguiar e Bordini, para se trabalhar<br />

com os clássicos nas aulas de literatura; e serão analisados alguns aspectos do<br />

processo de transcodificação da linguagem da narrativa literária para a linguagem<br />

cinematográfica, para motivar a leitura <strong>completa</strong> das obras.<br />

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O MÉTODO RECEPCIONAL ALIADO À TECNOLOGIA NA PRÁTICA<br />

EDUCACIONAL<br />

Os procedimentos didáticos <strong>aqui</strong> adotados têm origem em algumas sugestões<br />

encontradas no texto de Aguiar e Bordini - Literatura e formação do leitor: alternativas<br />

metodológicas, 1993; e também criadas por nós para a elaboração deste trabalho.<br />

As etapas de desenvolvimento: procedimentos didáticos<br />

Conteúdo da aula: mulheres ontem e hoje<br />

Objetivo da aula: conhecer as personagens femininas mais significativas de Eça de<br />

Queirós. Perceber como algumas delas são mulheres de personalidades fortes,<br />

misteriosas, ambíguas, estrategistas, que põem em prática seus projetos, inclusive<br />

arrastando ou levando consigo os homens que elas dominam. Ênfase para as<br />

personagens femininas: Luisa, Juliana e Leopoldina.<br />

Filmografia: O Primo Basílio<br />

DETERMINAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS – CINCO ETAPAS<br />

Etapa 1. Em um primeiro momento, para verificar o conhecimento dos alunos nos<br />

diversos gêneros existentes nas esferas sociais, o professor pede aos alunos que<br />

falem sobre a mulher na sociedade e quais são as leituras midiáticas disponíveis no<br />

seu cotidiano. No quadro negro reproduz um mapa mental das mídias mencionadas.<br />

Modelo:<br />

Quadro 01: Mapa mental<br />

Leitura<br />

Letras<br />

Musicais<br />

Leitura<br />

Mídia<br />

TV<br />

Leitura<br />

Imagens<br />

Pinturas<br />

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Leitura<br />

Internet<br />

Formação<br />

do Leitor<br />

(a mulher)<br />

na<br />

sociedade)<br />

Leitura<br />

Mídia<br />

Cinematogr<br />

áfica<br />

Leituras<br />

Literárias<br />

Leituras<br />

Mídias<br />

Impressas


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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

! !<br />

Segundo Newman & Mara (1995), esse formato de esquema organiza<br />

graficamente as idéias e não há hierarquia. Ele reflete a estrutura cognitiva do aluno,<br />

uma ferramenta confiável para representar o conhecimento. Com esse mapa os<br />

alunos perceberão que já conhecem várias mídias e que as utilizam para pesquisa,<br />

mas reconhecerão que falta pesquisar em várias outras para ampliar mais o<br />

conhecimento sobre determinado assunto.<br />

Etapa 2. O professor traz para a sala de aula uma quantidade grande de artigos de<br />

mídia impressa que fala da mulher (passado e presente) e os distribui entre os alunos.<br />

Propõe leitura livre, cada um escolhe a matéria que quer ler.<br />

Etapa 3. Terminada a leitura, o professor promove um debate informal sobre os vários<br />

assuntos sobre a mulher e suas implicações. O professor sugere que os alunos<br />

levantem, das matérias lidas, os elementos que mais os tocaram. Poderão aparecer os<br />

mistérios, a profundeza e a riqueza da alma e do psiquismo da mulher.<br />

Etapa 4. Depois dessa primeira abordagem, o professor pode levar os alunos para o<br />

laboratório de informática e solicitar uma navegação por sites da internet que retratam<br />

as mulheres atuais. Nessa atividade, o professor precisa tomar alguns cuidados. É<br />

muito fácil se perder no meio de tantas informações, tantos sites diferentes, tantos<br />

links. Portanto é necessário passar a eles um roteiro de busca com os links<br />

preestabelecidos. O grande desafio é manter o objetivo da busca diante das<br />

diversidades de informações. Tem que haver critérios para a busca, para navegar com<br />

eficiência é necessário ter novas atitudes, decisões rápidas para extrair a informação<br />

desejada. O professor, também, precisa ter consciência que não adianta proibir o uso<br />

de certos programas na internet, pois os alunos usam o MSN, o Orkut, o e-mail, os<br />

chats, em casa, então é importante conscientizar os alunos sobre o uso da internet e<br />

suas consequências. A escola tem que incentivar o uso, tem que usar na sala de aula,<br />

mas de forma ética, para que os alunos possam identificar os riscos que correm se<br />

usarem sem responsabilidade, tornando-se vítimas.<br />

Nesse sentido, para usar o computador na sala de aula é preciso:<br />

desprender do que vem sendo feito na escola tradicionalmente há anos e<br />

vislumbrar uma nova realidade do ensino. Nessa nova realidade não há lugar<br />

para a decoreba nem para o que não é significativo para o aluno. O que está<br />

valendo são todas as tentativas de fazer com que o aprendiz se envolva na<br />

construção do seu próprio conhecimento. É também importante lembrar que a<br />

obtenção de resultados satisfatórios com o uso do computador depende de<br />

como esse equipamento está sendo usado. O computador não faz nada<br />

sozinho e nem faz milagres. Ele tem muitos recursos e nos dá acesso a uma<br />

infinidade de informações, no entanto, cabe ao professor planejar o uso desses<br />

recursos e informações em sua sala de aula. (COSCARELLI, 1999, p. 13)<br />

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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

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Enfim, cabe ao professor tornar o computador um grande aliado, um<br />

instrumento de auxílio para suas aulas. Pelas suas muitas possibilidades de uso,<br />

viabiliza aulas mais atrativas e estimula o conhecimento dos educandos para que se<br />

tornem mais críticos e melhores cidadãos no futuro.<br />

Após a pesquisa no computador, o professor promoverá novo debate e<br />

discussões sobre o papel da mulher moderna na sociedade atual.<br />

Etapa 5. Montar um painel sobre o assunto pesquisado e expor para que outros alunos<br />

possam interagir com o tema.<br />

ATENDIMENTO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS<br />

Em outra aula, para atender aos interesses dos alunos pela mulher, o<br />

professor direciona o assunto para as mulheres de outra época, as retratadas por Eça<br />

de Queirós. São duas etapas<br />

Etapa 1. Colocar no quadro o tema: Mulheres queirosianas – mistérios, ambigüidades<br />

e traições. Apresentar as características de algumas delas: Luisa, Leopoldina e Juliana<br />

(O Primo Basílio), Maria Eduarda (Os Maias), Amélia (O crime do padre Amaro).<br />

Depois distribuir fragmentos de textos retirados dos romances apresentando as<br />

personagens: O Primo Basílio (capítulo I ); Os Maias (capítulo XV); O crime do padre<br />

Amaro (capítulo IV), de Eça de Queirós. Por essa mostra, o aluno perceberá que, na<br />

literatura de Eça a mulher deixa de ser aquela heroína idealizada dos românticos e se<br />

apresenta como um ser humano completo, com virtudes e vícios, força e fraqueza,<br />

sonhos e desejos. As mulheres em Eça são personagens fortes, profundas,<br />

inteligentes e ativas, que comandam suas vidas, manipulam seus homens, são<br />

misteriosas e ambíguas e têm uns olhares... inexplicáveis, arrebatadores...<br />

destruidores!....<br />

Etapa 2. Dividir a turma em grupos e cada um vai estudar as características de uma<br />

dessas personagens. Depois vão expor para a turma o que descobriram em relação a<br />

cada personagem e farão uma comparação com as mulheres de hoje. Apresentarão<br />

as conjunções e as disjunções em relação a elas.<br />

RUPTURA DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS<br />

Como a atividade de exploração das características e a comparação entre as<br />

mulheres revelarão um conjunto de elementos textuais que atrairão os leitores com<br />

evidente predominância (as descrições das personagens conterão os temas: sedução,<br />

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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

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ciúmes, traição, aventura etc.) - esse será o meio de efetuar a transição para uma<br />

literatura de ordem mais exigente. São cinco etapas.<br />

Etapa 1. Assistir ao filme homônimo adaptado do romance O primo Basílio. Depois,<br />

em sala de aula, passar algumas cenas selecionadas para fazer uma análise.<br />

Etapa 2. Ao ler os fragmentos dos romances e assistir ao filme, os alunos estarão<br />

preparados e motivados para a leitura integral do romance. Propor, portanto, a leitura<br />

do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Num prazo marcado, segundo<br />

orientações do professor, a turma se dividirá em três grandes grupos, cada um<br />

encarregado de contar, por escrito, a história de uma das personagens do romance,<br />

ou seja, Luísa, Leopoldina e Juliana em O primo Basílio. A vida de cada personagem<br />

deverá ser narrada de forma a servir posteriormente de roteiro para teatralização.<br />

Assim sendo, deve conter todos os indicadores de espaço, sequências de ações,<br />

tempo e caracterização das personagens, bem como as falas.<br />

Etapa 3. Estudar com mais atenção as personagens dos textos, do romance e do filme<br />

e suas respectivas funções dramáticas dentro da história. Compará-las fazendo um<br />

quadro de semelhanças e diferenças.<br />

Etapa 4. Analisar os aspectos cinematográficos para a composição da significação<br />

das imagens do filme. Napolitano (2006) faz uma distinção das técnicas fílmicas:<br />

a) a trilha sonora (ruídos, efeitos e música: são elementos expressivos<br />

fundamentais, cuja função é reforçar os efeitos emocionais ou o sentido de uma<br />

sequência);<br />

b) a fotografia (responsável pela qualidade, pela textura, pelo sombreamento e<br />

pelo colorido da imagem que se vê na tela);<br />

c) O figurino (elemento expressivo que é visto como puramente instrumental ou<br />

ornamental, o figurino também pode expressar mensagens e reforçar identidades das<br />

personagens ou de determinadas épocas);<br />

d) a câmera (ponto de vista e enquadramento: a câmera guia o olhar, organiza o<br />

quadro cênico, enfatiza determinados personagens ou objetos pelo enquadramento -<br />

plano geral, plano americano, plano médio, primeiro plano -, conduz o olhar pelo<br />

mundo fílmico por meio de seus movimentos e ângulos).<br />

Xavier (2005, p. 27, grifos nossos) explica melhor a expressividade do discurso<br />

a partir desses planos, que são as tomadas de cenas entre dois cortes. Deixar-se-á a<br />

palavra com o autor para explicar as nomenclaturas e as técnicas básicas:<br />

Classicamente, costumou-se dizer que um filme é constituído de seqüências –<br />

unidades menores dentro dele, marcadas por sua função dramática e/ou pela<br />

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sua posição na narrativa. Cada seqüência seria constituída de cenas – cada<br />

uma das partes dotadas de unidade espaço-temporal. Partindo daí, definamos<br />

por enquanto a decupagem como o processo de decomposição do filme (e<br />

portanto das seqüências e cenas) em planos. O plano corresponde a cada<br />

tomada de cena, ou seja, à extensão de filme compreendida entre dois cortes,<br />

o que significa dizer que o plano é um segmento contínuo da imagem.<br />

Assim, é na articulação dos planos que se produz um sentido coerente para o texto<br />

visual. Xavier (2005, p. 27), ao tomar conceitos de decupagem clássica, classifica quatro<br />

planos, e é nessa perspectiva que se propõe a análise para os alunos:<br />

• Plano Geral: cenas amplas, mostra todo o espaço da ação;<br />

• Plano Médio ou de Conjunto: mostra o conjunto de elementos envolvidos na<br />

ação (figuras humanas e cenário);<br />

• Plano Americano: corresponde ao ponto de vista em que as figuras humanas<br />

são mostradas da cabeça até a cintura, aproximadamente;<br />

• Primeiro Plano (close-up): focaliza um detalhe.<br />

e) os objetos: “[...] Desempenham o seu papel, atualizam comportamentos, participam da<br />

essência e da existência dos conflitos. Poderão ser interpretados à escala de símbolos, mas<br />

apresentam-se com os mesmos direitos dos vivos, porque com eles vivem os pontos de<br />

vista que compõem a trama romanesca” (MENDONÇA, 1977, p. 36).<br />

Para melhor entender a função dos objetos, faremos uma análise de dois<br />

pormenores descritos na obra de Eça. Assim subsidiaremos melhor o professor em<br />

sua prática. Os objetos analisados serão o romance A Dama das Camélias e a Voltaire<br />

que compõem o espaço da sala de visitas da casa de Luísa e juntamente com este a<br />

iluminação do ambiente, a cor, que compõem o quadro doméstico do lar da<br />

personagem. Esses objetos, também chamados de pormenores, segundo Mendonça<br />

(1977), são muito importantes para uma compreensão plena dos objetivos de Eça e de<br />

Daniel Filho, romance e filme respectivamente, colaborando decisivamente para a<br />

compreensão do código dramático.<br />

A amplitude dos múltiplos significados e interpretações que os pormenores<br />

concedem ao leitor remete às palavras de Souza (1990, p. 56), ao comentar a<br />

descrição dos pormenores na obra de Eça:<br />

Eu entendo que detalhes, geralmente tidos como irrelevantes, por vício de<br />

leitura atenta unicamente aos núcleos temáticos, acabam, se forem<br />

devidamente organizados e inseridos no intertexto, por esclarecer o significado<br />

dos elementos primordiais da estrutura romanesca, e ajudam-nos a melhor<br />

compreender a extrema subtileza do ‘processo’ queirosiano.<br />

96 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

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ANÁLISE DOS OBJETOS<br />

O romance A Dama das Camélias e a voltaire<br />

No romance, logo no início da narrativa, aparecem os objetos: o romance A<br />

Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, que marca o indício do drama da<br />

personagem principal; e a voltaire 1 que colabora para o adultério. Em uma cena inicial,<br />

capítulo 1, Luisa, estendida na voltaire, lia um livro tranquilamente:<br />

Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao<br />

aparador por detrás duma compota um livro um pouco enxovalhado, veio<br />

estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso<br />

dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.<br />

Era a Dama das Camélias. (QUEIRÓS, 1996, p. 16, grifos nossos)<br />

Primeiramente uma análise da Voltaire, que tem no romance uma utilização<br />

específica, pois sublinha o estado de espírito de Luísa, e também tem um significado<br />

considerável no jogo do adultério. Traduz a preguiça, o cansaço, o alheamento de<br />

Luísa: “E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire [...] deixara-se ficar<br />

na voltaire esquecida, absorvida, sem pedir luz” (capítulo 3, p. 55-56) ou “Luísa subiu<br />

daí a pouco com um largo roupão, muito fatigada; estendeu-se na voltaire; sentia virlhe<br />

uma sololência” (capítulo 4, p. 79). Por meio dela, interpretam-se as intenções da<br />

personagem: sentada na voltaire, pensava “Que vida interessante a do primo Basílio!<br />

O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir” (capítulo 3,<br />

p. 56). A sua importância equivale a de um personagem ativo na diegese: “E estendida<br />

na voltaire [...] lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio”<br />

(capítulo 1, p. 17), como se vê, o objeto estava sempre presente quando pensava no<br />

primo, revelando pensamentos íntimos, que colaboravam para a traição.<br />

O romance, A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, narra a história<br />

de uma elegante cortesã francesa, em meados do século XIX, que encanta por sua<br />

beleza e mantém um romance impossível com um rico homem da emergente<br />

burguesia urbana. Na história, ela ficou conhecida como a guardiã da falsa moral<br />

burguesa da época. Esse enredo é bastante revelador, pois antecede, como elemento<br />

proléptico 2 , o drama que Luísa sofrerá. Apesar de histórias muito diferentes, Luísa<br />

agirá, no decorrer da narrativa, como uma mulher volúvel ao se relacionar com outro<br />

1 Voltaire, palavra francesa, um tipo de poltrona.<br />

2 A prolepse corresponde a todo o movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja<br />

ocorrência, na história, é posterior ao presente da ação (cf. Genette)<br />

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homem, fora do casamento, viverá um romance proibido e morrerá por causa disso,<br />

devido aos falsos conceitos moralizantes da época.<br />

Etapa 5. Propor a análise das imagens. Abaixo um modelo, do filme O primo Basílio:<br />

Fig. 01: Luísa e Leonor na sala<br />

conversando<br />

Fig. 03: O casal aos pés do sofá<br />

Nessas imagens procure identificar:<br />

Quadro 02 - Análise das imagens para os alunos<br />

Elementos que indicam o uso da<br />

metalinguagem (diálogo entre os textos verbal<br />

(romance) e audiovisual (filme)):<br />

Nessa descrição, o sofá é elemento<br />

determinante na ação. Este pormenor não é<br />

despiciendo, ele faz sentido dentro da ação da<br />

narrativa. Não é por acaso que o sofá está<br />

presente nas ações da história. Ele participa do<br />

evento que mudará a vida de Luísa, constitui,<br />

assim, o cerne da história. O diretor do filme<br />

soube adequar os objetos às necessidades da<br />

ação, sem eles esta não seria tão perfeita.<br />

Observar o objeto sofá nas cenas e analisar<br />

sua importância para a composição do drama:<br />

98 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012<br />

Fig. 02: Basílio e Luísa: traição<br />

Fig. 04: Juliana sondando a sala<br />

Observar se o romance e as imagens acima<br />

deixam perceber ou não a ideologia dos<br />

autores:<br />

Analisar os efeitos de iluminação, cor, figurino,<br />

planos (geral, médio, americano, close-up):


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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

! !<br />

QUESTIONAMENTO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS - QUATRO ETAPAS<br />

Etapa 1. Elaborar um roteiro para um documentário, um telejornal. Os seus aspectos<br />

técnicos devem ser analisados antes de sua confecção: o cenário, as técnicas de<br />

produção (vinheta, enquadramento, entrevistas, opinião etc.).<br />

Etapa 2. Solicitar aos alunos que saiam a campo para fazer um documentário sobre o<br />

tema “Mulheres: ontem e hoje”, apoiando-se em entrevistas com as mulheres da<br />

sociedade da comunidade dos alunos. Para isso é elaborado um roteiro de entrevista<br />

pelos alunos, contendo as perguntas que lhes interessem.<br />

Etapa 3. De posse do roteiro organizado, os alunos dividem-se em dois grupos e cada<br />

um entrevista as mulheres selecionadas (jovens e idosas).<br />

Etapa 4. Com base nessa entrevista, cada grupo, valendo-se de algumas reportagens<br />

lidas na sala de aula, na internet e vista na TV como modelo, escreve e edita a sua<br />

reportagem em vídeo. Esse telejornal deverá incidir sobre as diferenças entre a<br />

situação das mulheres jovens e das idosas, observando-se as conjunções e as<br />

disjunções; e também as vantagens e as desvantagens.<br />

O telejornal possibilita ver e ouvir o mundo, o que nele acontece, construindo<br />

assim um conhecimento histórico-social. Nas palavras de Umberto Eco (1970, p. 363):<br />

“Há na comunicação pela imagem algo radicalmente limitativo, de insuperavelmente<br />

reacionário. E, no entanto, não se pode rejeitar a riqueza de impressões e descobertas<br />

que, em toda história da civilização, os discursos por imagens deram aos homens”.<br />

AMPLIAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS<br />

A discussão anterior possivelmente levou à constatação de que a diferença<br />

básica entre os problemas e comportamentos das mulheres na sociedade moderna<br />

está relacionada à posição social, à cultura, ao emprego, à idade, ao preconceito etc.<br />

São duas etapas.<br />

Etapa 1. De posse dos dados coletados, o professor prepara para a aula seguinte dois<br />

cartazes, cada um com uma dessas questões, entre outras: 1) como a sociedade<br />

determina o comportamento das mulheres?; 2) Que problemas sociais, culturais<br />

afetam a mulher moderna?.<br />

Os cartazes são afixados na parede para serem debatidos entre os alunos. O<br />

professor os incentiva a relacionar as questões propostas com todo o conteúdo<br />

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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

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desenvolvido nas aulas anteriores de literatura e com outros livros que tratem de<br />

assunto sobre a mulher.<br />

Etapa 2. Indicar outros livros de Eça de Queirós e de outros autores que falam da<br />

mulher. É estipulado um prazo para a leitura dos livros indicados. No dia marcado, os<br />

leitores discutem as dimensões sociais, culturais e outras em que as mulheres dos<br />

textos foram inseridas pelo autor.<br />

É importante ressaltar que, em atividades dessa natureza, os alunos<br />

problematizam as produções de jornal, revista, TV, cinema etc., aprendem a tirar<br />

significados das imagens e compará-las com o conteúdo verbal do texto escrito e<br />

descobrem que a mídia é um recurso tecnológico importante para o ensinoaprendizagem.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A escola tem compromisso com a construção da cidadania. Por isso, em sala<br />

de aula, cabe à prática educacional voltar-se para a compreensão da realidade social<br />

e dos direitos e responsabilidades em relação à vida das pessoas inseridas na<br />

sociedade. Nessa perspectiva é que foi incorporada como tema, a mulher, a<br />

contemporânea, em comparação com aquela do século XIX. Suas semelhanças e<br />

diferenças para melhor compreensão da realidade social de cada uma delas.<br />

A abordagem <strong>aqui</strong> proposta teve a intenção de fornecer subsídios aos alunos<br />

para auxiliá-los a superar os problemas com a leitura e a atribuição de significados que<br />

decorrem do modo de construir o texto. Para isso, foram propostos novos<br />

conhecimentos que atiçam a imaginação - fundamento de todo ato de leitura, seja de<br />

textos verbais ou não – leitura do mundo, desenvolvendo leitores críticos, atuantes,<br />

que saibam o papel social que desempenham dentro da sociedade.<br />

Os desafios para formar o aluno leitor do texto verbal e não-verbal são de<br />

várias ordens, desde as escolhas das estratégias de incentivo à leitura até a<br />

concorrência com outras linguagens, sobretudo as visuais e audiovisuais. Então foi a<br />

intenção deste artigo aproveitar essa concorrência para propor atividades que<br />

estimulem a leitura dessas artes no ensino e aprendizagem.<br />

Por tudo que foi pesquisado e analisado, acredita-se que as atividades voltadas<br />

para o ensino da leitura e da literatura aliadas à tecnologia podem constituir-se em<br />

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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO<br />

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atividades significativas, nas quais os alunos vislumbrem uma situação real que as<br />

justifique.<br />

Ao apresentar na sala de aula grandes clássicos da literatura, utilizando o<br />

Método Recepcional, pretendeu-se possibilitar aos alunos uma efetiva participação em<br />

diferentes práticas sociais, utilizando a leitura com a finalidade de inseri-los nas<br />

diversas esferas de interação.<br />

Enfim, espera-se que o estudo realizado <strong>aqui</strong> contribua para a elaboração de<br />

outras práticas, com diferentes metodologias. Isso porque se crê em professor como<br />

sujeito ativo, que faz da sua prática um espaço para a produção de novos saberes,<br />

mais próximos à realidade de sua população discente.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.<br />

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São Paulo: Ática, 1994.<br />

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Eça de Queiroz. Revista de Letras. Assis, v. 19, p. 9-37, 1977.<br />

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adaptações. São Paulo : Cortez, 2004.<br />

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Contexto, 2006.<br />

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TANIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO<br />

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NEWMAN, Betsy; MARA, Joseph. Tecnologia educacional: uma visão política.<br />

Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

O primo Basílio. Direção e Produção de Daniel Filho. Estúdio/Distribuidora Buena<br />

Vista / Globo Filmes / Miravista / Lerely Produções, 2007. DVD (101 min): son, color,<br />

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ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e precedimentos. Campinas: Pontes,<br />

2000.<br />

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Rede<br />

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PROENÇA, Domício filho. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1996.<br />

QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. Edição integral. São Paulo: Nova Cultural, 1996.<br />

REIS, Carlos. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa; Imprensa-Nacional-Casa<br />

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SOUZA, Américo Guerreiro. Micoestruturas em Eça de Queirós: jogos de luz e de<br />

sombra n’Os Mais. In: REIS, Carlos (Coord.). Leitura d’Os Maias: semana de estudos<br />

queirosianos. Coimbra: Livraria Minerva, 1990.<br />

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilmes, 2003.<br />

__________. Do texto ao Filme: a trama, a cena e a construção do olhar do cinema. In<br />

PELEEGRINI, Tânia. [et al.]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: SENAC,<br />

2003.<br />

__________. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São<br />

Paulo: Paz e Terra, 2005.<br />

Site consultado<br />

http://webeduc.mec.gov.br/midiaseducacao/material/tv/tv_intermediario/p_01.htm -<br />

acessado em 26/11/2011<br />

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L i n g u í s t i c a<br />

ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO<br />

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA<br />

ESTRANGEIRA<br />

ANDRéIA DIAS IANUSkIEwTZ<br />

Doutoranda junto ao Programa de Pós-<br />

<br />

Federal de São Carlos e Professora do Ensino


ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO<br />

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

Andréia Dias Ianuskiewtz<br />

RESUMO: Discutir questões (inter)culturais em aula de língua estrangeira não significa<br />

meramente transmitir informações culturais estanques; significa adotar a perspectiva do<br />

intercultural como processo de diálogo entre pessoas pertencentes a culturas diferentes,<br />

diálogo este, que deve promover a integração, permitindo ao educando encontrar-se com<br />

a cultura do outro sem deixar de lado a sua, incentivando o respeito a outras culturas, a<br />

superação de preconceitos culturais e do etnocentrismo. No ensino de línguas baseado<br />

em uma perspectiva intercultural busca-se desenvolver a habilidade de usar a língua de<br />

forma social e culturalmente adequada. Considerando-se tais pressupostos, pretendemos,<br />

na primeira parte deste artigo, tecer reflexões sobre a questão da interculturalidade no<br />

ensino-aprendizagem de língua estrangeira e, em seguida, analisar trechos de três livros<br />

didáticos de língua inglesa, verificando como são propostas atividades pedagógicas que<br />

podem ser bem sucedidas e cumprir um dos importantes papéis da abordagem<br />

intercultural que é levar o aprendiz à reflexão sobre a língua estrangeira e sua(s)<br />

cultura(s) e sobre a língua materna e sua(s) cultura(s).<br />

PALAVRAS-CHAVE: Interculturalidade; língua estrangeira; material didático; língua<br />

inglesa.<br />

ABSTRACT: Discussing intercultural issues in a foreign language class doesn’t mean<br />

mere transmission of stagnant cultural information; it means to adopt an intercultural<br />

perspective as a dialogue process among people who belong to different cultures. This<br />

dialogue must promote integration, allowing the students to meet the other’s culture<br />

without putting their own culture aside, encouraging the respect for other cultures, the<br />

overcoming of cultural prejudice and ethnocentrism. Language teaching based on an<br />

intercultural perspective aims to develop the ability of using the language in a socially and<br />

culturally appropriated way. Considering these assumptions, in the first part of this paper<br />

we aim to reflect on the subject of interculturality in foreign language teaching and<br />

learning. Next, we will analyse sections of three didactic books for English teaching,<br />

verifying the way pedagogical activities are presented and how they can be effective in<br />

leading students to reflect on the foreign language and its culture(s) and on the mother<br />

tongue and its culture(s).<br />

Keywords: Interculturality; foreign language; didactic material; English language.<br />

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ANDRÉIA DIAS IANUSKIEWTZ<br />

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1. CULTURA/INTERCULTURALIDADE E ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

De acordo com Kumaravadivelu (2008), embora o componente cultura seja parte<br />

integral do ensino de língua estrangeira (LE) há muito tempo, não era considerado, até<br />

recentemente, um conteúdo explícito do currículo do ensino de línguas: era visto como um<br />

subproduto do ensino-aprendizagem de LE. Segundo o autor, é somente após a Segunda<br />

Guerra Mundial, quando o comércio e a comunicação internacional se tornam difundidos, que<br />

os profissionais da área de ensino-aprendizagem de línguas reconhecem a necessidade de<br />

se “ensinar cultura” explicitamente. Nos anos noventa, a preocupação com a inserção de<br />

aspectos culturais nas aulas de LE, juntamente com a noção de multiculturalismo, adquire<br />

maior relevância. Rozenfeld (2007, p.69) afirma que existe, atualmente, uma visão<br />

amplamente difundida de que alunos de LE necessitam, além do conhecimento da gramática<br />

da língua-alvo, da “habilidade de usar a língua de forma social e culturalmente adequada”,<br />

pois entende-se que “a simples <strong>aqui</strong>sição de sistemas linguísticos não é garantia de<br />

compreensão nem de paz entre os povos” (BARBOSA, 2009, p.115).<br />

Segundo Corbett (2008), há, hoje em dia, em muitas aulas de LE ao redor do<br />

mundo, uma crescente demanda para que professores combinem as quatro habilidades<br />

linguísticas (reading, writing, listening, speaking) a um conjunto de habilidades e<br />

competências interculturais. Porém, Kramsh (1993) atenta para o fato de que a<br />

aprendizagem da cultura na área de LE não deve ser vista como uma quinta habilidade<br />

(além das outras quatro acima citadas), mas sim, como um aspecto que precisa estar<br />

sempre presente na aula de LE. Almeida Filho (2002) corrobora essa reflexão e elucida<br />

que a cultura, ao invés de ser uma “franja” na aula de LE, deve ocupar o mesmo lugar da<br />

língua, quando essa se apresenta como ação social propositada.<br />

Cleary (2008) aponta que a cultura sempre ocupou lugar importante no ensinoaprendizagem<br />

de línguas, mas que nos últimos anos, o foco tem mudado para seus<br />

aspectos sociais e comportamentais, com ênfase na consciência cultural (cultural<br />

awareness), como fator primordial para a comunicação efetiva. De acordo com a autora,<br />

consciência cultural é um tema complexo e vai além da aprendizagem sobre povos ou<br />

culturas, abrangendo a) a consciência sobre a bagagem cultural do próprio aprendiz e a<br />

bagagem cultural do outro e o modo como essas influenciam seus comportamentos e b) o<br />

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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

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conhecimento de como interpretar, negociar e explicar a diversidade cultural para auxiliar<br />

na comunicação efetiva com pessoas de outras culturas.<br />

Assim como Cleary (2008), acreditamos que ao entendermos e refletirmos sobre<br />

nossa cultura e nosso comportamento, o qual também é culturalmente influenciado,<br />

estamos mais preparados para compreender a cultura e o comportamento alheio, e<br />

assim, criarmos a base para uma comunicação intercultural bem sucedida.<br />

Corbett (2010) pontua que os significados atribuídos ao termo “intercultural” têm<br />

mudado constantemente, à medida que o conceito é adotado e adaptado pela ampla<br />

comunidade de estudiosos de línguas. Segundo o autor, as origens do conceito<br />

“intercultural” remetem à preocupação pelo que acontece, quando pessoas de diferentes<br />

backgrounds, que fazem uso de uma língua em comum, enfrentam problemas de<br />

comunicação por não compartilharem uma série de crenças, atitudes e suposições sobre<br />

o que pode ser considerado um padrão de comportamento “normal”. O autor esclarece<br />

que, embora o ensino de línguas com enfoque intercultural ainda inclua a preocupação<br />

com situações nas quais ocorrem falhas de comunicação, atualmente vai além desse foco<br />

limitado, e tem como objetivo a comunicação além das barreiras culturais. A abordagem<br />

intercultural no processo de ensino-aprendizagem de línguas seria uma resposta à<br />

necessidade de preparar os alunos para lidarem com diferenças em atitudes, crenças e<br />

comportamentos, com respeito, humildade e tolerância.<br />

Desse modo, entendemos que em uma dimensão intercultural de ensino de LE,<br />

objetiva-se a promoção de uma ação integradora entre falantes oriundos de diferentes<br />

culturas, de modo que possam construir novos significados, sempre sensibilizados para o<br />

respeito às diferenças e diversidades culturais do outro. De acordo com Barbosa (2009,<br />

p.122), a abordagem intercultural vai além do conhecimento habitual dos fatos culturais;<br />

ela “visa permitir a compreensão da maneira pela qual esses fatos estão interligados”. A<br />

autora <strong>completa</strong> que:<br />

Nessa perspectiva, o professor de língua deixa de ser apenas o<br />

“empresário” de um determinado desempenho linguístico, para tornar-se<br />

o catalisador de uma competência crítica e cultural em expansão<br />

contínua. (BARBOSA, 2009, p.130)<br />

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Almeida Filho (2002, p.211) compartilha as mesmas reflexões e acrescenta a ideia<br />

de que o termo “intercultural implica a noção de reciprocidade de viver (mesmo que<br />

temporariamente) na esfera cultural do outro e simultaneamente ter o outro<br />

confortavelmente na nossa esfera cultural”.<br />

Em 2001, o documento Common European Framework of Reference for<br />

Languages: Learning, Teaching and Assessment foi publicado pelo Conselho Europeu.<br />

Kumaravadivelu (2008) aponta que um conteúdo importante desse quadro é o<br />

desenvolvimento do tema interculturalidade no ensino-aprendizagem de línguas, que<br />

objetiva promover a consciência intercultural do aprendiz de LE. Tal consciência<br />

compreende, além do conhecimento objetivo da relação entre o “mundo de origem” e o<br />

“mundo da comunidade alvo” (similaridades e diferenças), uma conscientização de como<br />

cada comunidade é vista da perspectiva do outro, geralmente na forma de estereótipos.<br />

Corbett (2008) elucida que, no ensino-aprendizagem de línguas, o conhecimento e<br />

habilidade interculturais juntam-se ao conhecimento e habilidade linguísticas na<br />

investigação dos seguintes tópicos:<br />

• como construímos noções de nós próprios e dos outros;<br />

• como interagimos e construímos um senso de comunidade;<br />

• como respondemos politicamente à globalização;<br />

• como podemos relacionar o comportamento dos outros às suas atitudes e crenças;<br />

• como podemos ter empatia, respeito e valorizar as crenças dos outros.<br />

Sendo assim, o ensino de línguas, em uma abordagem intercultural, deve buscar<br />

“a reflexão, sensibilização e compreensão de aspectos da cultura-alvo, assim como sobre<br />

a própria cultura” (ROZENFELD, 2007, p.72). Nessa perspectiva, o processo de ensinoaprendizagem<br />

de LE não se restringe à explicitação de fatos e comportamentos em<br />

diferentes culturas; ele vai além, em busca da sensibilização de todos os indivíduos<br />

envolvidos na interação, para que possam agir na tentativa de compreenderem e<br />

respeitarem uns aos outros, “construindo novos significados e redescobrindo suas<br />

próprias identidades” (PAIVA, 2009, p.47).<br />

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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

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Portanto, discutir questões culturais em sala de aula não significa meramente<br />

transmitir informações culturais estanques. Significa, sim, adotar a perspectiva do<br />

intercultural como processo de diálogo entre pessoas pertencentes a culturas diferentes;<br />

diálogo este que promove a integração e o respeito à diversidade e permite ao educando<br />

encontrar-se com a cultura do outro sem deixar de lado a sua, ao incentivar o respeito a<br />

outras culturas, a superação de preconceitos culturais e do etnocentrismo.<br />

Porém, há de se pensar em como podemos incorporar questões culturais ao<br />

conjunto de práticas pedagógicas de professores de LE. Holliday, Hyde e Kullman (apud<br />

KUMARAVADIVELU, 2008) identificam três grandes dificuldades a respeito do “ensino de<br />

cultura” na área de ensino-aprendizagem de LE, tanto no campo teórico quanto no campo<br />

prático: primeiramente, os autores apontam que apenas “problemas” e “dificuldades”<br />

culturais são o foco dos estudos. Em segundo lugar, o estudo da cultura estaria limitado<br />

ao estudo de padrões de comportamento e valores fixos. E por último, cultura, do modo<br />

limitado em que é idealizada, torna-se a explicação necessária e suficiente dos conflitos<br />

interculturais. Atkinson (apud KUMARAVADIVELU, 2008) conclui que a maioria dos<br />

profissionais de LE vê cultura como entidades geograficamente e nacionalmente distintas,<br />

com sistemas de regras e normas que determinam o comportamento pessoal. O autor<br />

acredita que precisamos desenvolver uma noção de cultura que leve em conta o cultural<br />

no individual e o individual no cultural.<br />

A sala de aula de LE, segundo Corbett (2010), é um lugar privilegiado para a<br />

exploração de aspectos interculturais, porque proporciona o tempo e espaço para<br />

encontros com “outros”, encontros esses, regulares, e que possibilitam reflexão e<br />

discussão sobre nossos comportamentos, atitudes e crenças, comparando-os com o<br />

outro. Bizarro e Braga (2005, p.828-829) também reconhecem a aula de LE como espaço<br />

onde o encontro com o outro assume particular significado:<br />

Hoje, ela [a aula de LE] constitui-se, fundamentalmente, como um espaço<br />

de interação cultural, onde se evidencia a heterogeneidade das pessoas<br />

(professor/a e alunos/as) que a frequentam, heterogeneidade esta feita<br />

de diferenças, mas também da ocorrência de similitudes, umas e outras<br />

detectáveis não só no conhecimento e no uso que se faz/tem da língua<br />

em estudo, mas também no aspecto sócio-relacional que ela instaura, e,<br />

ainda, heterogeneidade face aos falantes autóctones da língua<br />

estrangeira que é objeto de estudo.<br />

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ANDRÉIA DIAS IANUSKIEWTZ<br />

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Podemos afirmar que a educação intercultural oferece também ao professor de<br />

línguas um novo conjunto de contextos, propósitos e motivações, que lhe permitem<br />

explorar outras culturas e mediar quando a má comunicação ocorre devido a questões<br />

culturais. O educador, nesse contexto, tem como objetivo promover habilidades de<br />

“descentralização”, encorajando o aprendiz a ver sua cultura através dos olhos do outro e<br />

também a simpatizar com as atitudes e crenças do outro (CORBETT, 2008, 2010).<br />

2. QUAL CULTURA DEVEMOS “ENSINAR” NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA?<br />

Após reconhecermos que enriquecer nossas aulas com informações e conteúdos<br />

(inter)culturais auxilia o aprendiz de LE a desenvolver sua consciência cultural, devemos<br />

refletir sobre qual cultura devemos “ensinar”. Cleary (2008) lembra que o idioma inglês,<br />

conforme afirmam Carter e Nunan (2001) em Cambridge Guide to Teaching English to<br />

Speakers of Other Languages, não pertence mais ao Reino Unido ou aos Estados Unidos:<br />

ele é uma fonte diversa e diversificada para a comunicação global. Desse modo, Cleary<br />

(2008) acredita que o componente cultural que apresentamos aos nossos alunos deve ser<br />

representativo de todos os contextos e situações nos quais a língua inglesa é falada,<br />

refletindo assim, a diversidade e pluralidade de seus usuários.<br />

Outra questão importante a considerar, de acordo com Cleary (2008), seria decidir<br />

quais aspectos culturais incluir nas aulas de línguas. De acordo com a autora, a maioria<br />

dos livros didáticos para o ensino da língua inglesa abordam aspectos tradicionais da<br />

cultura. No entanto, concordamos com Cleary (2008), que a melhor maneira de<br />

integrarmos o ensino do componente cultural à aula de LE seria usarmos o modelo de<br />

culture-enriched instruction, substituindo o conteúdo acadêmico por informação cultural<br />

significativa, e promovendo, desta maneira, tanto as habilidades linguísticas, quanto o<br />

conhecimento e a competência cultural.<br />

Ao ensinarmos LE por meio de um amplo escopo de referências culturais,<br />

oferecemos ao aprendiz oportunidades de desenvolver importantes competências<br />

cognitivas e culturais, sem com isto, comprometer seu desenvolvimento linguístico.<br />

Rozenfeld (2007) afirma que:<br />

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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

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No campo linguístico, o EI (ensino intercultural) acontecerá, no momento<br />

em que alunos, ao se defrontarem com a LE, formularão questões sobre<br />

o significado de palavras, o entendimento das estruturas e tecerão<br />

comparações entre a LM e a língua-alvo. Nesse momento, busca-se o<br />

reconhecimento de que as pessoas utilizam outras ferramentas e outros<br />

meios para expressar determinados desejos, ou certas opiniões. Aceitar<br />

isso sem estranhamento, assim como buscar a relativização do outro e<br />

do eu, marca uma mudança de paradigma na aprendizagem de LE, a do<br />

ensino intercultural. Busca-se a normalização do outro e o estranhamento<br />

do normal, tanto no campo linguístico, quanto cultural (Vollmuth, 2002).<br />

Ocorre o reconhecimento não só de que o outro vive e se comunica de<br />

forma diferente, com o mesmo direito que o eu, mas que o mundo até<br />

então absolutamente tomado como próprio e normal é relativo.<br />

(ROZENFELD, 2007, p.73, grifos do autor)<br />

A autora destaca o conceito de competência intercultural (CI) e esclarece que ele<br />

surgiu a partir dos pilares da relação entre língua e cultura na interação. Baseando-se em<br />

Volkmann, Rozenfeld elucida que a CI se refere à capacidade e habilidade do aprendiz de<br />

LE, “de conhecer as diferenças entre a cultura-alvo e a própria, de reconhecer essas<br />

diferenças em situações concretas e de desenvolver estratégias para lidar de forma<br />

compreensiva com os costumes da outra cultura” (ROZENFELD, 2007, p. 79). Vollmuth<br />

(apud ROZENFELD, 2007, p. 79) vai além e afirma que como CI “não é o simples<br />

conhecimento do outro, mas também reflexão sobre o outro, é necessário que se teça<br />

reflexões e comparações acerca também de si mesmo”. A CI compreenderia, então, a<br />

capacidade de entendimento do outro, a partir da análise do eu, da sensibilização para as<br />

diferenças e evidenciaria a necessidade de reflexão quanto à própria cultura e aos próprios<br />

valores. Ela tornaria possível o preparo de alunos e professores para a tolerância, aceitação<br />

e compreensão do outro, bem como para possíveis reformulações de (pré) conceitos.<br />

3. ATIVIDADES PEDAGÓGICAS EM LIVROS DE LÍNGUA INGLESA QUE ABORDAM<br />

ASPECTOS INTERCULTURAIS<br />

Após refletirmos sobre o ensino de línguas em uma perspectiva intercultural e<br />

ressaltarmos sua importância, observaremos, a seguir, como são propostas atividades<br />

pedagógicas que abordam aspectos interculturais, retiradas de três livros didáticos de<br />

Inglês LE: English File 1 , Total English 2 , e Face2Face 3 .<br />

1<br />

OXENDEN, C.; SELIGSON, P. English File (Elementary). Oxford: Oxford University Press,<br />

1996.<br />

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ANDRÉIA DIAS IANUSKIEWTZ<br />

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Atividades do livro English File<br />

2 ACKLAM, R.; CRACE, A. Total English (Pre Intermediate). Essex: Pearson Education, 2005.<br />

3 REDSTON, C.; CUNNINGHAM, G. Face2Face (Upper Intermediate). Cambridge: Cambridge<br />

University Press, 2006.<br />

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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

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Atividades do livro Face2Face<br />

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Atividades do livro Total English<br />

O livro English File propõe que os alunos primeiramente citem três coisas que são<br />

tipicamente inglesas. Em seguida, é sugerida a leitura do texto intitulado Tipicamente<br />

inglês?, no qual são apresentados vários estereótipos a respeito dos ingleses, tais como:<br />

moram em casas, trabalham em escritórios, leem o The Times, bebem chá às cinco,<br />

assistem à BBC, não fumam, têm gatos ou cães, gostam da família real, não falam<br />

nenhuma língua estrangeira, etc. Os alunos verificam, então, se os três fatos que citaram<br />

no primeiro exercício aparecem no texto.<br />

Após a verificação, outro texto é apresentado aos alunos; nele, duas pessoas<br />

inglesas se apresentam: Catherine e Terry. O foco gramatical é a prática da adição do –s<br />

nos verbos conjugados na 3ª pessoa do singular no presente simples. Porém, ao<br />

<strong>completa</strong>rem os verbos, os aprendizes refletirão sobre os estereótipos contidos no primeiro<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((!115


!<br />

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ANDRÉIA DIAS IANUSKIEWTZ<br />

! !<br />

texto, pois: Catherine trabalha em um hotel (não em um escritório), bebe tanto chá como<br />

café, fuma em média cinco cigarros por dia e lê o The Independent, ao passo que Terry<br />

mora em um apartamento (e não em uma casa), assiste TV a cabo (e não a BBC), lê o The<br />

Sun, não gosta de gatos e nem da família real e fala duas línguas estrangeiras.<br />

A primeira atividade proposta pelo livro Face2Face propõe aos alunos que<br />

discutam em grupos quais são os quatro adjetivos que melhor descrevem os ingleses. Em<br />

seguida, devem ler o texto O que todo visitante à Inglaterra precisa saber, que consiste<br />

em uma resenha crítica escrita por Henry Hardcastle sobre o livro Observando os<br />

ingleses, de Kate Fox. Na resenha o autor discute o estereótipo vinculado ao povo inglês<br />

como sendo frio e hostil e explica que na verdade, os ingleses têm dificuldade de<br />

conversar com pessoas com as quais não têm intimidade, por serem muito reservados.<br />

Após a leitura do texto e do ponto gramatical (o uso de verbos com a terminação<br />

ing), há um exercício que sugere ao aluno imaginar que um turista inglês está vindo ao<br />

seu país. É solicitado a ele, então, que liste oito dicas sobre códigos de conduta em seu<br />

país. São dadas ao aluno algumas ideias sobre os temas que pode abordar, tais como:<br />

comportamento nos transportes públicos, filas, puxar conversa com estranhos, falar alto,<br />

entre outros. O aluno deve usar verbos com a terminação ing em suas frases.<br />

Nessa atividade, a fim de sensibilizar os alunos para diferenças culturais e promover<br />

o encontro entre culturas via linguagem, os alunos são incentivados a refletir sobre<br />

comportamentos de pessoas de seus países. Os alunos podem, dessa forma, relacionar o<br />

novo conhecimento cultural a si próprios e ao seu mundo. Rozenfeld (2007) destaca a<br />

importância de definirmos estratégias didáticas que favoreçam a reflexão e revisão pessoal<br />

sobre valores do mundo e que possibilitem e intensifiquem as trocas culturais.<br />

O livro Total English propõe uma atividade de leitura que se inicia com a seguinte<br />

pergunta: O que lhe vem à cabeça quando pensa sobre os ingleses? Após discussão dos<br />

itens levantados, os alunos leem o texto Olhando para a Inglaterra, no qual se destaca<br />

logo no início a seguinte afirmação: “Há ideias sobre a Inglaterra e sobre os ingleses que<br />

não são verdadeiras”. O texto identifica alguns estereótipos que existem sobre a Inglaterra<br />

e os ingleses e os desconstrói, como por exemplo: embora os ingleses gostem de chá,<br />

não param todas as tardes para bebê-lo; apesar de o tempo ser bastante instável, não<br />

116 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


!<br />

!<br />

ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

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chove todos os dias no país; o fato de permanecerem em silêncio durante as viagens no<br />

metrô, não significa que os ingleses sejam antipáticos; significa apenas que não têm o<br />

hábito de iniciar conversa com pessoas que não conhecem.<br />

4. REFLEXÕES FINAIS<br />

Observamos que as atividades propostas nos três livros analisados propiciam<br />

experiências sócio-interativas envolventes, as quais podem promover ação linguística<br />

comunicativa na língua alvo e favorecer o trabalho pela consciência cultural do outro e da<br />

própria cultura do aprendiz. Nelas, o conteúdo cultural é abordado sem que haja uma<br />

delimitação entre língua e cultura, ou seja, o componente cultural não constitui um apêndice<br />

no ensino de línguas, nem se limita ao ensino de curiosidades e exotismos que podem levar<br />

a criação de estereótipos. Ao contrário, as atividades propostas possibilitam a abordagem,<br />

discussão e quebra de estereótipos a respeito da cultura da língua alvo. Os autores desses<br />

livros parecem compartilhar da ideia de que não se pode desassociar língua e cultura,<br />

considerando-se a maneira como as atividades foram propostas e os tópicos apresentados.<br />

Nas atividades dos livros em questão, os alunos são levados, primeiramente, a<br />

apresentar as imagens que trazem da cultura inglesa e em seguida, têm a oportunidade<br />

de averiguar, por meio da leitura de textos, se suas representações a respeito da cultura<br />

da língua alvo são ideias estereotipadas ou não. Portanto, as atividades estimulam a<br />

análise comparativa de aspectos da cultura britânica com a cultura do aluno, favorecendo,<br />

assim, a autopercepção e a percepção de aspectos de outras culturas, conforme propõem<br />

Byram et al (2002).<br />

É importante, como educadores envolvidos com o ensino de línguas, termos em<br />

mente que o ensino intercultural deve despertar a curiosidade dos alunos a respeito de<br />

outras culturas, auxiliá-los a reconhecer que as variáveis socioculturais afetam o<br />

comportamento das pessoas e que a comunicação eficiente depende da maneira como,<br />

culturalmente condicionadas, as pessoas pensam e agem. O ensino intercultural deve<br />

conduzir a reflexões que levem o aprendiz a perceber a expressão de uma cultura por<br />

meio de pessoas, costumes, comportamentos e hábitos. Dessa forma, “o ato de<br />

comunicação se caracterizará por processos dialógicos que envolvem muito mais a<br />

compreensão que o mero conhecimento do outro” (SCHINELO, 2009, p.56).<br />

Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012(|((!117


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ANDRÉIA DIAS IANUSKIEWTZ<br />

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Ensinar uma LE não significa transmitir valores culturais do povo que a fala;<br />

significa, entre outros aspectos relevantes, permitir ao aprendiz o acesso a outras<br />

culturas, outros modos de pensar o mundo. Ao ensinarmos uma nova língua, também<br />

contribuímos para a formação de indivíduos que se veem como cidadãos do mundo,<br />

trabalhamos com noções de quem somos e com questionamentos sobre a relação dessa<br />

nova língua com nossas identidades individuais e coletivas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

ACKLAM, R.; CRACE, A. Total English (Pre Intermediate). Essex: Pearson Education, 2005.<br />

ALMEIDA FILHO, J.C.P. Língua além de cultura ou além da cultura, língua? Aspectos<br />

do ensino da interculturalidade. In: CUNHA, M.J.C & SANTOS, P. Tópicos em Português<br />

Língua Estrangeira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p.209-215.<br />

BARBOSA, L. M. A.O Componente Cultural na Linguística Aplicada. São José do Rio<br />

Preto: APLIESP - Associação dos Professores de Língua Inglesa do Estado de São<br />

Paulo, 2009, p.115-134.<br />

BIZARRO, R.; BRAGA, F. Da(s) cultura(s) de ensino ao ensino da(s) cultura(s) na aula<br />

de Língua Estrangeira. Universidade do Porto. Faculdade de Letras , p.823-835, 2005.<br />

BYRAM, M.; GRIBKOVA, B.; STARKEY, H. Developing the intercultural dimension in<br />

language teaching: a practical introduction for teachers, 2002. (<strong>versão</strong> eletrônica) Disponível<br />

em: < http://www.lrc.cornell.edu/director/intercultural.pdf>. Acesso em: 6 de jan. 2012.<br />

CLEARY, M. Culture in ELT. New Routes, São Paulo, n.36, p. 32-33, set. 2008.<br />

CORBETT, J. Developing Intercultural Language Awareness. New Routes, São Paulo, n.<br />

34, p. 26-27, jan. 2008.<br />

CORBETT, J. Explore, Reflect and Discuss: Intercultural Activities for the Language<br />

Classroom. New Routes, São Paulo, n. 42, p. 14-18, set. 2010.<br />

KRAMSCH, C.J. Context and Culture in Language Teaching. Oxford: Oxford University<br />

Press, 1993.<br />

KUMARAVADIVELU, B. Cultural Globalization and Language Education. New Haven<br />

(EUA): Yale University Press, 2008.<br />

OXENDEN, C.; SELIGSON, P. English File (Elementary). Oxford: Oxford University Press, 1996.<br />

PAIVA, A.F. Perspectivas (inter)culturais em séries didáticas de português língua<br />

estrangeira. 118f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de São<br />

Carlos, 2009.<br />

REDSTON, C.; CUNNINGHAM, G. Face2Face (Upper Intermediate). Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 2006.<br />

ROZENFELD, C.C.F. Crenças sobre uma língua e cultura-alvo (alemã) em dimensão<br />

intercultural de ensino de língua estrangeira. 197f. Dissertação (Mestrado em<br />

Lingüística) – Universidade Federal de São Carlos, 2007.<br />

SCHINELO, L.M. Aspectos interculturais no ensino de espanhol em contato com o<br />

português em canções em livros didáticos. 168f. Dissertação (Mestrado em<br />

Lingüística) – Universidade Federal de São Carlos, 2009.<br />

118 | Revista(Iluminart(|(Ano(IV(|(nº(8(5(Nov/2012


L i n g u í s t i c a<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA:<br />

A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS<br />

PAULA TATIANA DA SILVA<br />

Doutoranda em Estudos da Linguagem pela<br />

Universidade Estadual de Londrina (UEL),<br />

Mestre em Estudos da Linguagem (UEL) e Licenciada<br />

em Letras.<br />

Contato: paulasilva_uel@yahoo.com.br


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO<br />

NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS 1<br />

Paula Tatiana da Silva<br />

RESUMO: Neste trabalho, com base na Semântica Argumentativa, analisamos os<br />

recursos semântico-argumentativos de um texto publicitário. Trata-se de um anúncio<br />

do Perfume do Brasil, da linha Natura Ekos, em que o locutor elabora os argumentos<br />

dos textos linguístico e imagético, valorizando a riqueza da biodiversidade do Brasil,<br />

além de destacar, sutilmente, o compromisso com a preservação ambiental e com as<br />

comunidades locais. Recursos linguísticos como adjetivação, recursos gráficos e<br />

operadores argumentativos destacam-se na análise da propaganda, bem como o texto<br />

não verbal, que faz referência a nosso país.<br />

PALAVRAS-CHAVE: recursos argumentativos; ecopropaganda; Natura Ekos.<br />

ECHOES OF THE BRAZILIAN BIODIVERSITY: THE ARGUMENTATION ON!<br />

NATURA EKOS ADVERTISEMENT<br />

ABSTRACT: In this paper, which is based on Argumentative Semantics, we analyzed<br />

the semantic-argumentative’s features of a publicity text. This is an announcement of<br />

Brazil's Perfume, Natura Ekos line, in which the speaker develops the language and<br />

imagery text arguments, enhancing the rich biodiversity of Brazil, and highlights, subtly,<br />

the commitment to environmental preservation and with local communities. Language<br />

resources such as adjectives, graphics and argumentative operators stand out in the<br />

analysis of the advertisement, as well as the non-verbal text, which refers to our<br />

country.<br />

KEYWORDS: argumentative resources; eco advertisement; Natura Ekos.<br />

INTRODUÇÃO<br />

O discurso publicitário verde tem se tornado frequente nas últimas décadas,<br />

em decorrência das preocupações ambientais nos mais diversos setores da<br />

sociedade. Atualmente, por exemplo, um evento mundial que ganhou destaque na<br />

mídia foi o Rio+20 (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento<br />

Sustentável). A denominação Rio+20 refere-se aos vinte anos decorridos desde a<br />

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!<br />

1<br />

!Artigo desenvolvido a partir da dissertação de mestrado da autora: “Discurso argumentativo:<br />

biodiversidade e preservação ambiental na propaganda da Natura Ekos”.!<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!121!


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PAULA TATIANA DA SILVA<br />

! !<br />

realização, na cidade do Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas sobre<br />

Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92 ou Eco-92.<br />

As empresas em geral, diante do tema em voga e dos inúmeros problemas<br />

que assolam o meio ambiente, como o desmatamento indiscriminado, a emissão de<br />

gases poluentes na atmosfera, a poluição dos rios e a extinção de espécies vegetais e<br />

animais, perceberam a necessidade de posicionarem-se de forma comprometida<br />

perante a sociedade, a fim de amenizarem os danos que causam à natureza.<br />

Considerando o fato de que a preocupação da sociedade interfere de forma<br />

direta na aceitação dos produtos pelo consumidor, as empresas passaram a divulgar,<br />

de modo criativo, maior consciência e atitudes ecológicas em seus anúncios<br />

publicitários. A “criatividade é, sem dúvida alguma, um grande diferencial [...]<br />

criatividade para entender o modo de pensar do consumidor, antever tendências,<br />

detectar necessidades, desejos e expectativas do anunciante” (MAINARDES, 2003).<br />

Na propaganda selecionada para análise, a estratégia é divulgar um produto<br />

desenvolvido com as essências da biodiversidade brasileira. O apelo é a divulgação<br />

da “verdadeira essência do nosso país”, o Perfume do Brasil, além de “mais um<br />

produto inovador: a Água de Banho”, utilizando recursos argumentativos como a<br />

adjetivação, o recurso gráfico, o operador argumentativo, além da intertextualidade.<br />

1. SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA E ARGUMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA<br />

A Semântica Argumentativa foi apresentada, em 1976, por Oswald Ducrot e<br />

Jean-Claude Anscombre, em um artigo intitulado “L’argumentation dans la langue”<br />

publicado na revista Langages.<br />

Os trabalhos desenvolvidos por Ducrot revelam expressiva importância<br />

histórica (GUIMARÃES, 1998). Seus estudos são de base estruturalista, procurando<br />

descrever os fatos da língua a partir da própria língua e não por meio de<br />

acontecimentos no mundo. Além de Saussure, Émile Benveniste, com a Teoria da<br />

Enunciação, também influenciou as pesquisas de Ducrot, em especial seus estudos<br />

sobre enunciação, enunciado e enunciadores, por exemplo.<br />

Segundo Oliveira (2004, p.123), a Semântica Argumentativa “preocupa-se<br />

com as relações entre locutor e alocutário em determinada situação discursiva,<br />

direcionando o sentido do texto por meio de uma grande variedade de procedimentos”.<br />

Os anúncios publicitários impressos, por exemplo, apresentam os mais diversos<br />

122!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 !<br />

! !<br />

recursos linguísticos e imagéticos, em que o locutor direciona o seu discurso a um<br />

alocutário, colocando em evidência a marca de um produto e/ou a propagação de<br />

valores e ideias.<br />

Para que a mensagem veiculada atinja o objetivo desejado, levando um<br />

produto a sobressair-se em um universo de opções, o locutor apresenta não só<br />

inúmeros recursos argumentativos, que a Semântica Argumentativa considera<br />

direcionadores de enunciados, como também alguns valores que a sociedade prioriza.<br />

Nesse sentido, a Natura Ekos assume, em seu discurso, a valorização da<br />

biodiversidade brasileira e, consequentemente, dos produtos elaborados a partir dela.<br />

2. DISCURSO PUBLICITÁRIO VERDE<br />

A postura adotada por algumas empresas, como a Natura, revela que seu<br />

conceito de marketing está baseado no que Kotler (2000, p.47) nomeia como<br />

marketing societal, e estabelece que a organização deve priorizar o bem-estar da<br />

sociedade como um todo, valorizando os interesses e os desejos do público-alvo,<br />

mostrando-se mais eficaz que os concorrentes.<br />

O autor acrescenta que o marketing societal exige considerações sociais e<br />

éticas nas práticas das empresas, devendo equilibrar os lucros, a satisfação e o<br />

desejo dos consumidores, além de atender ao interesse público.<br />

Dentro da linha de marketing societal, ganha destaque o marketing ambiental<br />

que surge como uma proposta complementar necessária na sociedade<br />

contemporânea, a qual vem tentando corrigir os excessos praticados durante séculos<br />

pelos seres humanos contra as riquezas naturais do planeta Terra. Assim, “[...] as<br />

empresas, em geral, precisam adotar uma política ambiental que permita o maior<br />

controle de seus resíduos e ao mesmo tempo procure promover, ao menos em parte,<br />

a recuperação do meio ambiente já tão degradado” (OLIVEIRA, 2002, p.112).<br />

No Brasil, ao longo das últimas décadas, inúmeras empresas assumiram<br />

compromisso com a questão ambiental, procuram disseminar a importância do uso<br />

racional de água e de energia elétrica; divulgam a utilização de refis e embalagens<br />

recicláveis e recicladas; preocupam-se com os dejetos produzidos por suas indústrias;<br />

investem na modernização para zerarem os testes feitos em animais; visam ao<br />

desenvolvimento sustentável; além de inúmeras outras medidas que só vêm a<br />

contribuir para a preservação do ambiente natural e, também, para a boa imagem da<br />

empresa.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Out/2012!|!!!123!


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PAULA TATIANA DA SILVA<br />

! !<br />

O discurso ecológico assumido pelas empresas, nos anúncios publicitários<br />

nacionais, apresenta-se, às vezes, de maneira “sutil”, em decorrência das próprias<br />

características que perpassam esse gênero textual que deixou de ser objetivo há<br />

muito tempo.<br />

Sendo assim, a propagação de ideias ecológicas, em anúncios impressos,<br />

demonstra, também, o interesse das empresas em destacarem suas marcas dentre as<br />

muitas existentes no mercado, pois as maiores mudanças ocorridas na postura das<br />

empresas são decorrentes da exigência do mercado, que, devido à competitividade,<br />

estabelece que a responsabilidade da empresa vai além da qualidade do produto<br />

oferecido, e passa a exigir, também, a ética ambiental (OLIVEIRA, 2002, p. 112).<br />

3. ANÁLISE DO CORPUS<br />

124!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

(Superinteressante. Ago. 2003)


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 !<br />

! !<br />

3.1 Transcrição da propaganda<br />

Assinatura do perfume:<br />

Perfume do Brasil de Natura Ekos.<br />

A verdadeira essência do nosso país.<br />

Título:<br />

Um país encontra a sua essência.<br />

Texto:<br />

1. O Perfume do Brasil é fruto do<br />

2. delicado equilíbrio do homem com<br />

3. a floresta. É elaborado a partir do<br />

4. breu branco, uma resina nobre, só<br />

5. encontrada nas nossas matas,<br />

6. que traz no seu aroma a pura<br />

7. expressão da natureza feminina.<br />

8. Revelar essa preciosidade é o que faz<br />

9. do Perfume do Brasil uma descoberta<br />

10. única na perfumaria mundial.<br />

11. Sinta a exuberância da nossa<br />

12. biodiversidade, que, para ser<br />

13. preservada, é aproveitada em harmonia<br />

14. com a vida das comunidades locais.<br />

15. E da sabedoria desses povos surge mais<br />

16. um produto inovador: a Água de Banho.<br />

17. Um mergulho na alma brasileira<br />

18. que faz do ritual do banho<br />

19. uma nova experiência<br />

20. para os sentidos.<br />

21. Converse com uma Consultora Natura<br />

22. para saber mais sobre a linha Natura Ekos.<br />

23. Elas estão usando este bóton.<br />

24. Seja você também uma Consultora Natura.<br />

25. Ligue 0800-115566<br />

26. ou acesse www.natura.net<br />

Natura bem estar bem. Natura Ekos. Viva sua natureza.<br />

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PAULA TATIANA DA SILVA<br />

! !<br />

3.2 Análise das imagens<br />

3.2.1 Análise da Imagem 1<br />

Na imagem 1, dentro da moldura do plano retangular da fotografia, há um<br />

trabalho artesanal de entrelaçamento de bambu (de cor verde), sobre o qual se<br />

encontra uma cesta, em forma de losango, feita de palha de muriti (de cor amarelopalha).<br />

Dentro da cesta, há um frasco de perfume, cujo formato permite que se adapte<br />

perfeitamente ao recipiente circular, onde foi colocado. As formas geométricas,<br />

retângulo, losango e círculo, em conjunto com o verde e os tons de amarelo, foram<br />

escolhidas com um propósito argumentativo claro: fornecer aos enunciatários<br />

elementos que os levem a associar o Perfume do Brasil à nação brasileira.<br />

Assim, há o texto fonte bandeira do Brasil (o intertexto), cujo formato e cores<br />

estabelecem um diálogo com a imagem elaborada pelo locutor da propaganda. Esse é<br />

um caso de intertextualidade implícita, pois na propaganda não se menciona que<br />

aquela imagem utilizou a bandeira nacional como fonte, cabendo ao leitor, por meio de<br />

sua memória discursiva, perceber a semelhança.<br />

126!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 !<br />

! !<br />

[...] a intertextualidade será implícita quando se introduz no texto<br />

intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o objetivo quer<br />

de seguir-lhe a orientação argumentativa, quer de colocá-lo em<br />

questão, para ridicularizá-lo ou argumentar em sentido contrário [...] o<br />

produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de<br />

reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em<br />

sua memória discursiva [...] (KOCH, 2004, p. 146).<br />

Koch (2004) destaca que, se o interlocutor não fizer o reconhecimento do<br />

fenômeno da intertextualidade, resgatando o primeiro texto, a construção do sentido<br />

será prejudicada. A intertextualidade com a bandeira brasileira, nessa propaganda, é<br />

um recurso importante para que a persuasão alcance o objetivo pretendido,<br />

considerando que o nome do produto anunciado foi estrategicamente elaborado<br />

para evidenciar a cor local do país de onde vieram as essências desse perfume e<br />

onde ele foi fabricado.<br />

3.2.2 Análise da Imagem 2<br />

Na imagem 2, o “Perfume do Brasil” e a “Água de Banho” são apresentados<br />

em um cenário simples, que se torna sofisticado com a presença dos produtos, como<br />

se a Natura tivesse se inspirado na natureza para criá-los.<br />

Assim, o locutor fornece elementos que combinam entre si e formam a linha<br />

Natura Ekos: produtos extraídos do contexto das populações tradicionais, e<br />

transformados por meio da tecnologia desenvolvida pela empresa Natura.<br />

É necessário destacar que as formas geométricas similares às da bandeira do<br />

Brasil contrastam com a assimetria dos vidros dos perfumes, cujo designer estabelece<br />

diferenciação desse produto sobre os demais existentes no mercado. Elabora-se,<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Out/2012!|!!!127!


!<br />

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PAULA TATIANA DA SILVA<br />

! !<br />

assim, um argumento a favor da particularização da linha Ekos e, consequentemente,<br />

da empresa Natura, que pretende ser reconhecida como a “família Natura”, possuidora<br />

de uma essência própria, que lhe é única.<br />

3.3 Análise linguística<br />

Nesse anúncio publicitário, as características do texto argumentativo<br />

combinam-se a marcas linguísticas que o aproximam de uma prosa poética, utilizando<br />

vários recursos para alcançar a persuasão: estruturação em versos; linguagem mais<br />

subjetiva; rimas internas (delicado/ elaborado; perfumaria/harmonia/sabedoria;<br />

preciosidade/biodiversidade); figura de linguagem sinestesia ( “que traz no seu aroma”/<br />

“sinta a exuberência”/ “uma experiência nova para os sentidos”).<br />

128!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

Convence-se pela reiteração da informação. A quantidade substitui o que<br />

seria um teor informativo capaz de convencer. A baixa informação<br />

referencial é compensada por uma estetização cada vez mais<br />

sofisticada. O uso da função poética da linguagem é uma das marcas da<br />

publicidade atual. [...] Dessa forma, as propagandas não são feitas<br />

unicamente para um potencial consumidor; elas se destinam ao receptor<br />

de propagandas, que as consome como resultado de uma ação muito<br />

próxima do trabalho artístico. (SILVA, 2005, p. 236).<br />

A seguir, examinaremos alguns casos de adjetivação posposta e anteposta,<br />

além dos recursos gráficos e operadores argumentativos.<br />

3.3.1 Adjetivação<br />

A adjetivação anteposta, segundo Neves (2000), ocupa posição mais<br />

marcada, cria efeitos de sentido, principalmente relacionados à subjetividade, sendo<br />

muito utilizada na linguagem literária.<br />

Em geral, a anteposição do adjetivo cria ou reforça o caráter avaliativo –<br />

mais subjetivo – da qualificação. Esse fato pode ser verificado não<br />

apenas nos casos da ordem pertinente, como também nos casos da<br />

ordem livre. Isso significa que, mesmo nos casos em que, com as duas<br />

colocações, se chega a uma mesma acepção básica, na verdade não<br />

resultam construções de valor absolutamente idêntico, do ponto de vista<br />

comunicativo. (NEVES, 2000, p. 203).<br />

Nas seguintes ocorrências: verdadeira essência (assinatura do perfume);<br />

delicado equilíbrio (linha 2); pura expressão (linha 6); nova experiência (linha 19), a


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 !<br />

! !<br />

anteposição dos adjetivos é uma marca subjetiva do locutor, que qualifica o<br />

substantivo, deixando sua avaliação evidente.<br />

Ao deixar a linguagem mais subjetiva, por meio dos adjetivos antepostos, o<br />

locutor contribui para a argumentatividade da propaganda, pois permite que, em conjunto<br />

com a estrutura poética do texto, o anúncio seja assemelhado a uma poesia. Possibilita,<br />

portanto, o alcance de certa “leveza” desta propaganda, em que, novamente, estão<br />

presentes os elementos da simplicidade e da sofisticação, observados na imagem 2 .<br />

A adjetivação mais corrente, ou seja, a que se expressa imediatamente após<br />

o substantivo, está na posição posposta (NEVES, 2000, p. 201). Por ter características<br />

mais objetivas, essa adjetivação é conhecida como não afetiva. Nessa propaganda,<br />

identificamos sete casos de posposição do adjetivo: resina nobre (linha 4); natureza<br />

feminina (linha 7); descoberta única (linha 10); perfumaria mundial (linha 10);<br />

comunidades locais (linha 14); produto inovador (linha 16); alma brasileira (linha 17).<br />

Tais adjetivos, quando qualificam substantivos relacionados ao produto<br />

anunciado (resina nobre, perfumaria mundial, descoberta única e produto inovador),<br />

estabelecem a autenticidade do perfume, pois o locutor classifica-o como sendo o<br />

único, portanto, de qualidade superior a qualquer outro, pois é inovador, feito com uma<br />

resina nobre e, por isso, reconhecido mundialmente. Ocorre a exaltação das<br />

características do produto, visando não só à persuasão do público-alvo para levá-lo à<br />

compra, mas também à divulgação do anúncio aos leitores da revista em geral.<br />

Nas linhas 6 e 7, encontramos “[o breu branco, uma resina nobre,] que traz no<br />

seu aroma a pura/ expressão da natureza feminina”, o trecho destacado foi<br />

cuidadosamente selecionado pelo locutor visando repercutir, de maneira mais poética,<br />

no público a que se destina o produto anunciado: o feminino. Assim, segundo o<br />

locutor, o Perfume do Brasil foi tão bem elaborado pelos laboratórios da Natura que<br />

ele passa até a ser sinônimo da “pura expressão da natureza feminina.”<br />

3.3.2 Recursos gráficos<br />

Os textos foram escritos em letra cursiva, popularmente, é a escrita em “letra<br />

de mão”. Antes do advento da imprensa, desenvolvida pelo alemão Johannes<br />

Gutenberg no século XV, o conhecimento da escrita e da leitura se restringia aos<br />

religiosos católicos e a outras pessoas, em número pouco expressivo. Como não era<br />

possível produzir livros em grande escala, havia um trabalho minucioso com as letras,<br />

portanto, um processo demorado, que exigia atenção, tempo e paciência.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Out/2012!|!!!129!


!<br />

!<br />

PAULA TATIANA DA SILVA<br />

! !<br />

Ao utilizar essa tipologia de escrita, o locutor pretende fazer a<br />

correspondência dos cuidados exigidos na elaboração de textos escritos em letra<br />

cursiva, com o cuidado com que o Perfume do Brasil e a Água de Banho foram<br />

desenvolvidos: com as minúcias de um trabalho artesanal, onde estão presentes a<br />

emoção, a subjetividade.<br />

A subjetividade e a emoção evidenciados nesse recurso gráfico em conjunto<br />

com as imagens e os adjetivos anteriormente analisados fornecem os elementos<br />

necessários para enriquecer a propaganda, mostrando a harmonia alcançada entre<br />

textos verbais, não verbais e a configuração da arte gráfica do anúncio.<br />

3.3.3 Operador argumentativo<br />

Indicando restrição, o operador só (linha 4) aponta o argumento para uma<br />

direção determinada, promovendo a exclusividade de algo. No caso, o que se torna<br />

exclusivo é o nosso país, pois o breu branco é uma resina nobre só encontrada nas<br />

nossas matas. Está implícita a referência à biodiversidade brasileira, além de exaltá-la,<br />

já que apenas nas florestas do Brasil é possível encontrar a essência que deu origem<br />

ao produto anunciado.<br />

breu branco SÓ encontrado em nosso país<br />

resina nobre<br />

130!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

(apenas/indica restrição)<br />

ARGUMENTO A ARGUMENTO B<br />

A exclusividade do breu branco, nas matas brasileiras, aponta para a<br />

unicidade do produto anunciado, tornando-se o único disponível no mercado, “uma<br />

descoberta única na perfumaria mundial”.<br />

Apesar de os operadores serem um importante recurso argumentativo, o único<br />

utilizado na propaganda foi o só. Isso porque, como já destacamos anteriormente, esse<br />

anúncio utiliza uma linguagem particular, mais próxima da linguagem poética,<br />

procurando distanciar-se de uma linguagem puramente argumentativa. Essa<br />

característica não empobrece o texto e nem o torna menos persuasivo, pelo contrário,<br />

ressalta o caráter sutilmente argumentativo assumido pelo locutor.


!<br />

OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 !<br />

! !<br />

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Para concluir esta análise, é necessário destacar o duplo sentido, a polissemia<br />

da palavra “essência” presente na assinatura do perfume (página 1) “A verdadeira<br />

essência do nosso país.”, e no título da propaganda (página 2) “Um país encontra a sua<br />

essência.” Essa palavra pode tanto ser compreendida como o óleo fino e aromático que<br />

se extrai de plantas, flores ou raízes para dar origem a alguma fragrância, como também<br />

a característica central e mais importante de algo, no caso, do Brasil.<br />

Essência no sentido de fragrância (outras empresas brasileiras podem até já<br />

ter elaborado outras essências, mas essa será reconhecida como a marca de nosso<br />

país) e, também, <strong>aqui</strong>lo que caracteriza o Brasil, no mais próprio de sua existência.<br />

Ressaltamos que, nessa propaganda, não há a preocupação de colocar em<br />

evidência o comprometimento da empresa com o meio ambiente, o que se destaca é<br />

a riqueza da biodiversidade brasileira, tornando possível a divulgação de uma marca<br />

da linha Natura Ekos, capaz até mesmo de ser caracterizada como “A verdadeira<br />

essência do Brasil”.<br />

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

GUIMARÃES, Eduardo. História, sujeito, enunciação. Caderno de estudos<br />

lingüísticos., Campinas, (35):109-116, jul./dez.1998.<br />

KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes<br />

temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10 ed. Trad.<br />

Bazán Tecnologia e Linguística. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2000.<br />

MAINARDES, Rogério. A nova publicidade. Gazeta do Povo. Curitiba, 16 de julho de<br />

2003. Opinião.<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo:<br />

Editora UNESP, 2000.<br />

OLIVEIRA, Esther Gomes de. Argumentação: da Idade Média ao Século XX. SIGNUM:<br />

estudos lingüísticos. Londrina, n. 7/2, p.109-131, dez.2004.<br />

OLIVEIRA, Maria José da Costa. Meio ambiente e mercado. Comunicarte. Campinas,<br />

v. 9 – n.25. p. 109-123. 2002.<br />

SILVA, Edson Ribeiro da. O uso da polissemia em um texto publicitário. Entretextos.<br />

Londrina, v.5, p. 235 – 244, jan./dez. 2005.<br />

SILVA, Paula Tatiana da. Discurso argumentativo: biodiversidade e preservação<br />

ambiental na propaganda da Natura Ekos. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos<br />

da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina 2009.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Out/2012!|!!!131!


L i t e r a t u r a<br />

versos aMBÍGUos eM SOLOMBRA,<br />

De CeCÍlia Meireles<br />

Delvanir lopes<br />

Doutor em letras pela Universidade estadual<br />

paulista (Unesp) e Docente de literatura Brasileira<br />

/ literatura infanto-Juvenil na Faculdade<br />

Centro paulista (FaCep).<br />

Contato: delvanirlopes@professor.sp.gov.br


!<br />

VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

Delvanir Lopes<br />

RESUMO: Solombra (1963), última obra madura publicada em vida por Cecília<br />

Meireles (1901-1964), deixa transparecer desde o título a possibilidade da<br />

ambiguidade. O termo arcaico que, segundo Cecília, se refere à sombra, sugere,<br />

contudo, a possibilidade de outras leituras: uma delas é perceber a luminosidade nos<br />

versos abstratos da obra, o que destoa de grande parte dos críticos. A partir daí, nos<br />

28 poemas da obra, as ambivalências se multiplicam e evoluem para os paradoxos. O<br />

intuito principal deste artigo, portanto, é o de mostrar que a ambiguidade é presente e<br />

pertinente em Solombra, ampliando-se em paradoxos e em outras discussões que a<br />

obra contempla, entre elas: a morte, a angústia e a dor da existência. O auxílio à<br />

nossa leitura se dará com algumas ideias vindas da filosofia existencialista, sobretudo<br />

na figura do pensador Martin Heidegger (1889-1972) que desenvolve a discussão e<br />

nos auxilia na compreensão da possibilidade de ambiguidade em Solombra.<br />

PALAVRAS-CHAVE: ambiguidade, Solombra, existencialismo, poesia<br />

AMBIGUOUS VERSES IN SOLOMBRA OF CECÍLIA MEIRELES<br />

ABSTRACT: Solombra (1963), last mature work published by Cecilia Meireles (1901-<br />

1964) during her lifetime, makes clear from the title the possibility of ambiguity. The<br />

term archaic which, according to Cecilia, refers to the shadow, suggests, however, the<br />

possibility of other readings: one is realize the light lines in the abstract book, which is<br />

not possible to part of the critics. From there, in the 28 poems of the work, the<br />

ambivalences multiply and evolve to the paradoxes. The purpose of this paper<br />

therefore is to show that ambiguity is present and it is relevant in Solombra, expanding<br />

into paradoxes and in other discussions that the work includes, among them: death,<br />

anguish and pain of existence. The aid to our essay will be given by some ideas from<br />

the existential philosophy, especially in the figure of the philosopher Martin Heidegger<br />

(1889-1972), who develops the discussion and helps us to comprehend the possibility<br />

of ambiguity in Solombra.<br />

KEYWORDS: ambiguity, Solombra, existentialism, poetry<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa<br />

pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro,<br />

e a vida um sonho de futuros nascimentos.<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1273)<br />

Solombra, de 1963, foi a última obra madura publicada por Cecília Meireles em<br />

vida. O livro é considerado por muitos como a mais abstrata e de difícil compreensão,<br />

mas mantém nos versos a musicalidade e a beleza dos versos cecilianos que atraem<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!135!


!<br />

!<br />

DELVANIR LOPES<br />

! !<br />

e fascinam o leitor. Solombra é, podemos dizer, misteriosa e clara, sombra e luz,<br />

ambígua o tempo todo. Assim, enquanto é ela própria instrumento de revelação e<br />

parece que nos deixa diante do conhecido, ao mesmo tempo se mostra enigmática e<br />

nos obscurece o pensamento.<br />

Cecília Meireles, em entrevista a Pedro Bloch, afirmou ter encontrado o termo<br />

solombra ao acaso e que se tratava de um antigo nome para designar sombra.<br />

Contudo, o termo escolhido por ela levou, nos poucos estudos que há sobre a obra, a<br />

dissonâncias, pois carrega em si a ambiguidade e amplia a discussão sobre o jogo<br />

paradoxal de Solombra: sombra e claridade. O termo, antes nas sombras, ganha nova<br />

vida e novas conotações, é iluminado novamente e ilumina. Em citação que,<br />

infelizmente, só encontramos em artigo de Chrisani Mendes, que fez apurado estudo<br />

(1968) a respeito da metáfora em Solombra, Carlos Drummond já manifestava a<br />

ambiguidade que a palavra-título carregava:<br />

136!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

SOLOMBRA – Sombra. Sombra só? Sol e Sombra? Sol em sombra?<br />

Em torno dela multiplicam-se as conotações que se gravam em nós,<br />

em som, forma, côr e sugestão e também em signos que temos de<br />

decifrar continuamente pois são símbolos de interrogações,<br />

especulações transcendentes. (ANDRADE, apud MENDES, 1968,<br />

não paginado)<br />

Avistar os limites da sombra e da luz que o jogo de palavras cecilianas propõe<br />

leva à análise do interior humano que também é ambíguo e desconhecido e permeado<br />

por tênues linhas que separam a luz das sombras. Entrar em si é como arriscar-se no<br />

ignorado em que lampejos de luz surgem repentinamente e logo em seguida<br />

desaparecem engolidos pela escuridão. Isso remete às situações-limite que cercam o<br />

ser humano o tempo todo e que, de certo modo, movimentam o estar-no-mundo. O<br />

limite da sombra é a luz e o contrário também é verdadeiro, o que pode ser ampliado<br />

na afirmação de que esses dois momentos estão intimamente unidos, sempre<br />

incompletos e coexistindo latentes um dentro do outro.<br />

Solombra admite essa compreensão paradoxal, comporta a ambiguidade: “O<br />

mistério todo está nisto. Este momento da emoção em que há claridade, mas tudo<br />

envolto na penugem da noite – a vida se recolhendo, se revisando.” (AYALA, 1964,<br />

não paginado) Depois destas considerações percebemos que a partir do título da obra<br />

podemos conjecturar que não se tratará de um livro voltado apenas à melancolia, à<br />

solidão, à sombra e à morte. Ainda que Cecília Meireles se volte para estes temas,<br />

não trabalha com eles de forma finalista e enfadonha, mas utiliza-se de tais recursos


!<br />

!<br />

VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

! !<br />

para demonstrar a possibilidade do devir, da transformação, do processo inevitável a<br />

que a existência caminha minuto a minuto.<br />

Se o título Solombra, segundo nossa interpretação, antevê que a temática da<br />

obra estará além do significado lexical da palavra, isso se verifica na leitura dos tantos<br />

paradoxos e ambiguidades que se leem nos poemas. Embora seja entendida como<br />

sombra, tal palavra-título viveu de novo e o re-nascimento sempre indica mudança.<br />

Nesse âmbito, ainda que poeticamente, podemos citar Pedro Bloch: “Solombra, a<br />

última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós, é só luz.” (BLOCH,<br />

1989, p. 36)<br />

Demonstrar de que forma se dá o movimento, nos poemas, das sombras para<br />

a luz é um dos intuitos desse artigo. O trabalho da poetisa é com a palavra que é o<br />

símbolo que permite a comunicação entre os mundos real e transcendente – ou o seu<br />

mundo e o mundo transcendente. É a própria Cecília quem, em entrevista a Walmir<br />

Ayala, afirma: “Parece que os poemas são apenas o resultado de um diálogo do<br />

espírito com o mundo. Do meu espírito ou do Espírito. [...] De permeio está,<br />

naturalmente a palavra, por ser a forma de expressão literária.” (AYALA, 1958, não<br />

paginado)<br />

A autora percebe a palavra como o elemento que permite a comunicação entre<br />

os mundos e o poeta como aquele que trava uma relação diferenciada com ela. No<br />

entanto esse diálogo não é claro, mas sempre insinuado verbalmente. Daí o uso<br />

extremado de metáforas que levam à apreensão da essência por meio da associação<br />

de ideias e de imagens e que não pretendem ser evidentes, mas lançar o leitor a<br />

realizar uma série de associações livres. O poeta torna-se o “entre”, portanto. Na<br />

perspectiva simbolista, tão evidente em Cecília Meireles, isso lhe faculta a capacidade<br />

de entender o enigma das “correspondências” e tornar-se, como sugeria Baudelaire,<br />

um decifrador:<br />

A linguagem cifrada não é direta, mas não está separada da<br />

realidade empírica, por isso num poema tudo pode ser visto como<br />

linguagem cifrada, tudo é linguagem da transcendência, mas para<br />

que se torne cifra depende de uma existência que a interprete,<br />

atualizando-a em sua liberdade, que é o caso do poeta. (LOPES,<br />

2004, p. 129)<br />

Se o poeta, enquanto existente, é o que decifra a linguagem transcendente e a<br />

torna cifra, nós podemos participar dessa relação entre o poeta e o Tu buscando o<br />

desvelamento dessas cifras. Nesse sentido a poesia de Cecília torna-se ambígua: é<br />

enigmática para clarificar, é cifra que espera revelação. A clarificação se dá aos<br />

poucos, digerindo as imagens que a poesia forma não numa interpretação imediata de<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!137!


!<br />

!<br />

DELVANIR LOPES<br />

! !<br />

suas palavras e que, sabemos, não será jamais <strong>completa</strong>.<br />

Isso posto, Solombra passa a ser um grande símbolo que o poeta-vate usa<br />

para indicar o caminho à ideia, ao pensamento. E como sabemos o símbolo sugere,<br />

mas não descreve. Assim, ainda que solombra faça referência direta à sombra, ela<br />

quer dizer muito mais. A pista ceciliana colocada no título do livro – nome que indica<br />

sombra – pode dar indicações ao leitor, mas não revela o enigma. Basta atentarmos<br />

para a epígrafe da obra de Cecília Meireles em que o eu-lírico está entre vozes vindas<br />

do Céu e a da Terra:<br />

138!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

Levantei os olhos pra ver quem<br />

falara. Mas apenas ouvi as vozes<br />

combaterem. E vi que era no Céu<br />

e na Terra. E disseram-me: Solombra. (MEIRELES, 2001, p. 1262)<br />

Vozes que combatem no céu e na terra e são ouvidas pelo poeta que, entre<br />

elas, apenas levanta os olhos para tentar decifrar quem fala. Em Solombra não há,<br />

portanto, uma única voz que fala e todas dizem juntas “solombra”. Neste sentido<br />

poderíamos considerar como, ao menos aceitável, a hipótese de que a obra ceciliana<br />

não é só Terra, só penumbra, mas carrega outro viés, do Céu, da luz, uma vez que o<br />

céu é considerado na simbologia como princípio masculino e relacionado à claridade<br />

enquanto a terra é o princípio feminino, passivo e escuro.<br />

O estudo analítico que faremos de alguns versos de Solombra procurará<br />

demonstrar neles, além da presença da ambiguidade, a evolução desta discussão<br />

para o paradoxo. Para isso nos valeremos em alguns momentos da filosofia da<br />

existência na figura de Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão. Embora não<br />

haja indícios de que Cecília possa ter sido leitora de Heidegger, de certo modo ambos<br />

trabalham com temas em comum o que os aproxima: questões relacionadas à<br />

existência humana, ao homem preso à evanescência do tempo, ao ser angustiado<br />

diante da morte e às interrogações sobre os porquês do existir. Em Solombra, obra<br />

escolhida para análise de alguns versos, também encontramos tais temas.<br />

2. SOL E SOMBRA<br />

Solombra deixa transparecer que se volta para os dois lados de uma mesma<br />

moeda: ora reveste-se de uma aura de negrume, de escuridão, de ausência; em<br />

outros momentos, ainda que mais timidamente, mas não menos ativo, revela um lado<br />

mais claro, luminoso e desvelador.


!<br />

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VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

! !<br />

Contudo, se a aura de sombra prevalece em Solombra e em raros momentos a<br />

luminosidade dá algum lampejo, é natural que os estudiosos se detenham,<br />

primeiramente, nessa caracterização e que busquem em Solombra traços que<br />

traduzam a obscuridade, a negatividade, afinal é o que a palavra-título indica,<br />

reforçados pela declaração da própria autora. Isso se dá também pela recorrência de<br />

motivos voltados à “escuridão” na poética ceciliana que são:<br />

a brevidade da existência, o sofrimento das condições de vida do<br />

plano terrestre, a impossibilidade de comunicação com as pessoas, o<br />

sentimento de incapacidade de mudar as circunstâncias existenciais,<br />

a necessidade de aceitação dessas condições, por serem etapas a<br />

percorrer no processo evolutivo espiritual. (MELLO, 2002, p. 191)<br />

Mesmo a partir desses conceitos-chave e, talvez, a evidência de que se tratará<br />

de obra de sombra dividem-se as interpretações sobre Solombra. Na maioria delas a<br />

obra é ligada somente ao sentimento de nadificação da existência ou a um lamento<br />

repetitivo sobre o que se perdeu e ao sofrimento que isso gera no eu-lírico:<br />

Um poeta português disse que [Cecília] escrevia à beira mágoa; a<br />

poesia de Solombra vem de dentro dela como enunciação feita do<br />

ponto de vista da distância e da ausência do que se perdeu. É a<br />

experiência da ruína e do sofrimento da perda que a caracteriza.<br />

(HANSEN, 2005, p. 7)<br />

Porém há também algumas percepções dissonantes, como a de Hiudéa<br />

Boberg que percebe outro viés na obra ceciliana. Boberg encontra nos versos da obra<br />

associações que exploram a luminosidade e todas as suas relações o que cria,<br />

segundo ela, “contrastes líricos”. E acrescenta que ainda que o termo solombra<br />

“colabore para caracterizar a atmosfera obscura em que o ser humano se debate – o<br />

mundo sensível e suas limitações – percebe-se que também a luminosidade, ou a<br />

busca do mundo ideal, acentua-se através da vasta gama de símbolos que percorre o<br />

livro.” (BOBERG, 1989, p. 213)<br />

A respeito do símbolo proposto por Cecília a ambiguidade permanece.<br />

Solombra é só sombra ou é sol, como já questionou Drummond? Ou são as duas<br />

instâncias paradoxalmente convivendo? Como vimos, na epígrafe da obra as ideias de<br />

luz e sombra aparecem unidas em Solombra, assinalando para uma leitura que não se<br />

prenda somente à escuridão, mas que contemple as duas instâncias. Semelhante a<br />

isso é o que lemos em alguns versos da obra:<br />

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DELVANIR LOPES<br />

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140!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa<br />

pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro,<br />

e a vida um sonho de futuros nascimentos. (MEIRELES, 2001, p.<br />

1273)<br />

Sobre um passo de luz, outro passo de sombra. (MEIRELELES,<br />

2001, p. 1277)<br />

As instâncias sol e sombra estão sempre no limiar, no umbral e na obra são<br />

inseparáveis já que uma só tem significação a partir da existência da outra. O limite<br />

entre ambas é que indica a possibilidade de transição e de transcendência, ou seja, o<br />

que aparentemente separa é o que pode unir. Perceberemos que a fronteira tão<br />

delicada de luz e escuridão é um dado positivo em Solombra e que ela acaba levando<br />

à discussões mais profundas, entre elas, a discussão a respeito do paradoxo.<br />

3. AMBIGUIDADES E PARADOXOS EM SOLOMBRA<br />

A ambiguidade, propriedade presente nas unidades linguísticas (morfemas,<br />

palavras, locuções, frases), é a admissão de mais de uma leitura, embora o contexto<br />

linguístico acabe indicando frequentemente qual a interpretação correta a ser dada.<br />

Contudo, na linguagem poética nem sempre o processo interpretativo mostra-se tão<br />

simples. Em Solombra o ponto de partida dos comentários é a ambiguidade constante<br />

na obra entre a luminosidade e a escuridão. Esta ideia principal permanece e ampliase<br />

na discussão do paradoxo.<br />

Conforme afirmação de Margarida Maia Gouveia a escrita ceciliana é a de um<br />

“discurso do paradoxo” em que realidades heterogêneas coexistem, transfigurando a<br />

visão de mundo estabelecida: “a uma temática motivada pela vida como exílio e<br />

sofrimento, pela dispersão e cisão do eu, é oposta a consideração da poesia como<br />

diálogo possível e como presença que configura poeticamente o mistério.” (GOUVEIA,<br />

2002, p. 143) E esta escrita paradoxal é evidente em Solombra o que faz com que a<br />

leitura dos versos da obra ofereça várias interpretações e que os sentidos das<br />

palavras mostrem diferentes pontos de vista.<br />

O paradoxo apresenta uma aparente falta de nexo, uma contradição entre duas<br />

ideias quando referentes à opinião comum. No sentido existencial, segundo<br />

Kierkegaard (1813-1855), o paradoxo é um argumento que por ser inusitado reflete o<br />

absurdo em que está imersa a existência humana. O paradoxo é interessante porque<br />

propõe algo que aparentemente não pode ser tal como se diz que é. Por exemplo:<br />

como pode sol e sombra estar convivendo numa mesma palavra? Vejamos alguns


!<br />

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VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

! !<br />

outros momentos em que os paradoxos estão presentes em Solombra e o modo como<br />

eles refletem nas demais concepções da obra. O primeiro poema assim se inicia:<br />

Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama<br />

pousa enigmas do olhar como, entre céus antigos,<br />

um outro Sol descendo horizontes marinhos? (MEIRELES, 2001, p.<br />

1263)<br />

Nessa estrofe percebemos que o eu-lírico está em diálogo com o Tu, diálogo<br />

esse que permeia toda a obra. Questiona-o duas vezes. Na primeira procura situá-lo<br />

para que não precise esperar sempre pela sua manifestação na noite, mas também<br />

possa saber onde encontrá-lo caso queira. Este pensamento se repete em outro<br />

poema do livro, onde lemos: “Dizei-me onde é que estais, em que frágil crepúsculo!”<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1279) Já a segunda pergunta é mais abstrata e bastante<br />

simbólica. Nela o Tu é comparado a “outro Sol”. O paradoxo dessa questão está em o<br />

sujeito-lírico afirmar que o Tu traz a flama que pousa enigmas do olhar. Ou seja,<br />

aparentemente contraditório, o Tu que deveria clarear utiliza-se da luz para trazer<br />

ainda mais enigmas ao eu-lírico quando o mais óbvio seria que viesse para terminar<br />

com as dúvidas, iluminar a sua existência. Desse modo o que é aparentemente<br />

evidente acaba por tornar-se ainda mais obscuro.<br />

Tal ambiguidade é qualidade do Tu que surge em momentos de extrema<br />

escuridão e a luz que porta aumenta as dúvidas do sujeito-lírico. Em outros versos de<br />

Solombra o mesmo paradoxo aparece e por isso o consideramos uma figura-chave na<br />

obra: ele revela e esconde num movimento contínuo. Tais versos parecem ofuscar a<br />

verdade das coisas e contrariar o pensamento humano lançando desafios à<br />

inteligência. O caminho que leva à descoberta da verdade é paradoxal porque parece<br />

ser ilógico.<br />

O Sol descendo horizontes marinhos remete-nos ao crepúsculo, que é a<br />

luminosidade que se produz no céu entre a noite e o nascer do sol ou entre o pôr-dosol<br />

e a noite devido à dispersão da luz solar na atmosfera. O Ser está neste limiar da<br />

luz do dia e da escuridão da noite. É um misto de luz e sombra, é o lusco-fusco. É<br />

onde a mudança acontece, seja para adentrar na noite ou para sair dela: “No<br />

entardecer, o dia se põe num poente que não é nenhum fim, mas somente a<br />

inclinação para preparar aquele declínio pelo qual o estrangeiro adentra o começo de<br />

sua travessia.” (HEIDEGGER, 2003, p. 419)<br />

Os paradoxos vão se multiplicando justamente porque as palavras-símbolo<br />

escolhidas comportam a ambiguidade: o Tu que vem sobre noites – e noite é símbolo<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!141!


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DELVANIR LOPES<br />

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de ignorância e insegurança, mas também o momento em que a revelações podem<br />

acontecer; a flama que pousa enigmas – onde os sentidos dos símbolos são<br />

invertidos; o sol que desce horizontes marinhos – e que nesse movimento provoca não<br />

a morte, mas o renascimento dos dias.<br />

evidentes:<br />

Analisemos outros versos de Solombra em que os paradoxos também são<br />

142!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

Há mil rostos na terra; e agora não consigo<br />

recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te?<br />

Só vejo o que não vejo e que não sei se existe.<br />

[...]<br />

Qualquer palavra que te diga é sem sentido.<br />

Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.<br />

Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo. (MEIRELES,<br />

2001, p.1264 )<br />

O poema como um todo se refere ao eu-lírico que, aparentemente, está<br />

desanimado com o diálogo com o Tu porque este parece não se efetivar. O Tu que<br />

vinha sobre noites no primeiro poema de Solombra agora tem a existência colocada<br />

em dúvida quando o sujeito-lírico diz: Onde estás? Inventei-te? Só vejo o que não vejo<br />

e que não sei se existe. Assim, ao mesmo tempo em que desconfia da existência do<br />

Tu não quer acreditar que ele seja invenção de sua mente, uma vez que ele “vem”,<br />

ainda que na escuridão.<br />

Os mil rostos na terra não dão indicação de como seja o Tu ou,<br />

paradoxalmente, podem ser caminhos para a relação com ele. Para o eu-lírico, porém,<br />

é como se eles não existissem, não se recorda de nenhum deles. O que importa é a<br />

relação dele com o Tu e nada mais. O modo de manifestação do Tu não é comum e a<br />

relação que trava com o sujeito-lírico é de confiança, afinal o que não vê pode<br />

experimentar e isso lhe basta; entrega-se a ele sem o ver – só vejo o que não vejo.<br />

Tais palavras indicam a relação mística que há entre o Tu e o eu-lírico, uma relação de<br />

confiança incondicional. Não é preciso ver parar crer, mas demonstrar a procura pela<br />

possibilidade de comunicação com o espiritual. O Tu está presente em tudo, pessoas<br />

e coisas. Contudo, ele só se mostra para quem estiver livre para vê-lo, o que só é<br />

possível quando o indivíduo se desprende da relação utilizável com as coisas.<br />

Heidegger chamará o contrário disto de “vida inautêntica”, que é o fato de nos<br />

deixarmos absorver em nossa relação com os objetos e por conta disso não<br />

enxergarmos mais nada.<br />

No segundo terceto do mesmo poema o eu-lírico continua se dirigindo ao Tu,<br />

mas amplia esse diálogo ao outro que está no mundo como ele dizendo: Quem me vê


!<br />

!<br />

VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

! !<br />

não me vê, que estou fora do mundo. Assim, o mesmo paradoxo que se apresentava<br />

diante do Tu, quando o eu-lírico dizia “ver o que não via” mostra um paralelo nesse<br />

terceto em que o outro que “vê o eu-lírico não o vê”, já que está fora do mundo. Os<br />

motivos são bastante parecidos. Nesse caso estamos pensando no mundo real em<br />

que, caso viva-se na inautenticidade, Qualquer palavra que [se] diga é sem sentido ou<br />

é como um sonho que retira o eu-lírico da realidade.<br />

O ser humano não existe da mesma forma que as demais realidades, mas ele<br />

é o “lugar” em que o mundo pode se revelar com uma infinidade de ângulos e vieses<br />

interpretativos. Por isso está no mundo, mas não pertence a ele, como vimos. Em<br />

Solombra o eu-lírico apresenta-se como o ser-no-mundo, mas não do-mundo, o que<br />

significa dizer que percorre seu caminho existencial na trama da existência fazendo<br />

uso das coisas para atingir seu projeto maior que é o vir-a-ser. Chrisani Mendes, que<br />

estudou a obra poucos anos depois da sua edição, salientou que “Solombra é o forado-mundo<br />

de Cecília Meireles” (MENDES, 1968, não paginado), ou seja, as coisas do<br />

mundo não são fins, mas meios para o eu-lírico vir-a-ser autêntico. Estar no mundo,<br />

mas não pertencer a ele – estou fora do mundo -, é o que nos diz o eu-lírico de<br />

Solombra.<br />

Assim, ao ver o eu-lírico o que se vê é a sua aparência e não o que se passa<br />

em seus pensamentos ou quais são seus anseios. O maior deles é o desejo de<br />

relacionar-se com o Tu. A atitude de ser fora do mundo torna o eu-lírico preparado<br />

para o diálogo: percebe que deve utilizar-se das coisas caso estas sirvam para elevá-<br />

lo até o Tu, transcender. Desse modo é que ver o sujeito-lírico é o mesmo que não vêlo<br />

por completo.<br />

Podemos, por fim, entender também algumas expressões de Solombra como<br />

oximoros, uma antiga figura poética em que se combinam palavras ou expressões que<br />

além de contrastantes são contraditórias, assemelhando-se ao paradoxo. Tais<br />

expressões que parecem excluírem-se mutuamente, no contexto reforçam a<br />

expressão. Citemos alguns dos oximoros encontrados em Solombra: “Ó luz da noite...<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1273) e “é que morremos – e num lúcido segredo” (MEIRELES,<br />

2001, p, 1281). Neles Cecília Meireles revela-se extremamente engenhosa com as<br />

palavras, aliando o que poderíamos achar comumente contraditório. Na verdade, em<br />

poucas palavras a escritora encerra um profundo sentido ao seu livro Solombra,<br />

alimentando as indagações e as interpretações acerca de sua obra. Ou seja, esconde<br />

e clareia ao mesmo tempo, como o “claro enigma” drummondiano.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!143!


!<br />

!<br />

DELVANIR LOPES<br />

! !<br />

Reforçando o que dissemos, Margarida Maia Gouveia afirma que é frequente<br />

encontrar em Cecilia “uma estrutura antitética, em certos casos da natureza do<br />

oximoro, que se sente procurar expressar o que de exprimível é possível numa relação<br />

com o transcendente”. [...]. Na poesia de Cecília, tudo tende a resolver-se no seu<br />

contrário. (GOUVEIA, 2002, p. 143) No oximoro, que é utilizado na poesia mística<br />

como um jogo de conceitos que favorece a contemplação, os contrários coincidem.<br />

Assim é que em Solombra os oximoros também fazem sentido e reforçam ainda mais<br />

as figuras do paradoxo e da ambiguidade, presentes em vários momentos da obra.<br />

4. CONCLUSÕES<br />

Pelas considerações feitas podemos ponderar como provável a hipótese de<br />

que a obra ceciliana não é só penumbra, mas carrega outro viés, o da luz. Isso posto<br />

só reforça nossa proposição sobre o caráter polissêmico do símbolo proposto por<br />

Cecília Meireles: Solombra. Heidegger, pensador alemão, em A caminho da<br />

linguagem, também reforça o traço da poesia ter múltiplos sentidos: “Não<br />

conseguiremos escutar nada sobre a saga do dizer poético enquanto formos ao seu<br />

encontro guiados pela busca de um sentido unívoco.” (HEIDEGGER, 2003, p. 63) Esta<br />

consideração do pensador alemão reflete, por sua vez, a proposta dos simbolistas: a<br />

palavra, enquanto símbolo, permite múltiplas associações.<br />

Cecília Meireles alimentou a ambivalência e trouxe enigmas ao seu leitor o que<br />

torna a sua obra sempre por descobrir, sempre pronta para novas abordagens, sem se<br />

esgotar e abandonando a obviedade. É a tal “poesia filosófica” amparada na vida que<br />

faz nascer em Cecília esse simbolismo tão sui generis. (MERQUIOR, 1960, p. 7) São<br />

manifestações que não podem ficar encerradas em palavras porque elas sempre<br />

dizem algo mais.<br />

Em Cecília Meireles, de modo especial Solombra, o que entendemos como<br />

limitado ganha dimensão de ilimitado, o aparentemente contraditório e ilógico mostra<br />

seu lado de verdade e coerência. Acreditamos que os jogos paradoxais conferem<br />

movimento aos poemas, instigam ainda mais o leitor que já havia ficado intrigado com<br />

o título perfeitamente eleito pela poetisa.<br />

As estruturas antitéticas por ela propostas conseguem expressar de modo<br />

condensado o que não é de fácil expressão: a relação com o transcendente e com o<br />

mundo. Neste sentido é que a partir dos paradoxos podemos encontrar na leitura de<br />

Cecília Meireles um ponto de vista que não se prende somente à dor, solidão e a<br />

144!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!


!<br />

!<br />

VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES<br />

! !<br />

angústia, justamente pelo fato de que tais elementos, quando aparecem, são<br />

trampolins para momentos de esperança, renovação e transcendência.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AYALA, W. Solombra: um livro de Magia. In: Leitura. Janeiro 1964. (Resenha de<br />

Livros)<br />

______ A véspera do livro: Obra Poética de Cecília Meireles. Correio da Manhã, Rio<br />

de Janeiro, 30/11/1958. (sem paginação).<br />

BLOCH, Pedro. Pedro Bloch entrevista Cecília Meireles. In: ______. Vida,<br />

pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira: entrevistas. Rio de<br />

Janeiro: Bloch Editores, 1989, p. 31-36.<br />

BOBERG, H. T. R. O canto e a lida - percurso esotérico e místico da poesia de<br />

Fernando Pessoa e Cecília Meireles. 1989. 292 f. Dissertação (Mestrado),<br />

UNESP/FCLAssis, 1989.<br />

GOUVEIA, M. M. Cecília Meireles: Uma poética do eterno instante. Portugal:<br />

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002.<br />

HANSEN, J. A. Solombra ou a sombra que caiu sobre o eu. São Paulo: Hedra,<br />

2005.<br />

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback.<br />

Petrópolis (RJ): Editora Vozes/ Editora Universitária São Francisco, 2003.<br />

LOPES, D. A poética de Cecília Meireles e a relação com a Filosofia da Existência<br />

– ou da angústia e transcendência em Metal Rosicler. 2004. 224 f. Dissertação<br />

(Mestrado) – UNESP/ FCL-Araraquara, 2004.<br />

MEIRELES, C. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

MELLO, A. M. L. Viagem aos confins da noite: Solombra. In: Poesia e Imaginário.<br />

Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.<br />

MENDES, C. A Metáfora e Cecília Meireles (Estudo Crítico de Solombra). Jornal de<br />

Letras, RJ, Faculdade de Direito de Petrópolis, 8/1968 (não paginado).<br />

MERQUIOR, José G. Poesia para amanhã: Metal Rosicler. Jornal do Brasil. Rio de<br />

Janeiro, 10 de Setembro de 1960, Suplemento Dominical, p. 7.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!145!


L i t e r a t u r a<br />

A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM<br />

LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

NAtÁLIA MOREIRA VIANA<br />

Mestranda em História da Literatura pela Universidade<br />

Federal do Rio Grande (FURG), Especialista<br />

em Educação de Jovens e Adultos<br />

na diversidade (FURG) e Licenciada em Letras<br />

– Língua Portuguesa, Língua Espanhola e res-<br />

<br />

Contato: natalia.viana.84@gmail.com


!<br />

A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM<br />

LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

Natália Moreira Viana<br />

RESUMO: Sendo a diáspora um tema em debate dentro da cultura contemporânea,<br />

pretende-se, neste artigo, dialogar sobre este conceito com base na compreensão da<br />

escritora cubana Aimée G. Bolaños e de seus estudos em alguns teóricos como<br />

Edward Said e Stuart Hall, entre outros. Pretende-se ainda, a exemplo do livro de<br />

poesias Las palabras viajeras (2010), da mesma escritora, analisar algumas de suas<br />

poesias a fim de demonstrar como o indivíduo escritor, que vive o processo de<br />

migração, independente de ser forçado ou não, acaba deixando por refletir em sua<br />

escrita os deslocamentos vividos, expressando suas dores, alegrias e descobertas.<br />

PALAVRAS-CHAVE: poesia; diáspora; entre-lugar<br />

AIMÉE G. BOLAÑOS’ DIASPORA IN LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

ABSTRACT: As the diaspora is a topic of debate within the contemporary culture, this<br />

article aims to discuss this concept based on the understanding of the Cuban writer<br />

Aimee G. Bolaños and her studies on some theorists such as Edward Said and Stuart<br />

Hall, among others. In addition, this study also aims to analyze, following the example<br />

of the poetry book entitled Las palabras viajeras (2010), by the same writer (Aimee G.<br />

Bolaños), some of her poems to show how the individual writer, who lives the migration<br />

process, regardless of whether forced or not, ends up not reflecting the displacements<br />

experienced and not expressing the pain, joys and discoveries in the writing.<br />

KEYWORDS: Poetry; diaspora; in-between place<br />

Aimée G. Bolaños, cubana que reside no Brasil há aproximadamente quinze<br />

anos, é poeta, leitora e escritora de ficção. Atualmente, é professora de Literatura<br />

Hispano-Americana no curso de Graduação em Letras e professora na disciplina de<br />

Tópicos Avançados de História da Literatura pertencente ao curso de Pós-Graduação<br />

em Letras, ambos da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Dentre algumas<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!149!


!<br />

NATÁLIA MOREIRA VIANA<br />

! !<br />

publicações da escritora, em relação ao conceito de diáspora, está o texto para o<br />

Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010).<br />

Aimée foi docente na Universidad Central de Las Villas, em Cuba, e fez seu<br />

doutorado em Rostock Universität, Alemanha, sem contar os momentos em que foi<br />

professora visitante fora de seu país. A partir disto, entende-se que devido aos<br />

deslocamentos entre diferentes culturas, tais mobilidades acabam por refletir na<br />

escrita da poeta. Conforme afirma a própria escritora: “Soy yo, pero no yo misma, tal<br />

vez y además, las Otras que me habitan en el viaje inacabado de mi diáspora”<br />

(BOLAÑOS, 2010a, contracapa). Por esta afirmação que se buscará em alguns<br />

poemas do livro Las palabras viajeras (2010) traços que demonstrem a marca<br />

diaspórica característica desta escritora.<br />

Para Baumgarten,<br />

150!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

O problema da diáspora tem marcado profunda e historicamente a<br />

vida de autores cubanos, anteriores e posteriores à Revolução<br />

comandada por Fidel Castro, daí ser o mesmo uma recorrência<br />

temática em suas obras. (BAUMGARTEN, 2006, p. 80)<br />

A partir da afirmação do professor, percebe-se que o tema diáspora é típico<br />

dos indivíduos escritores que passaram pelo processo de migração, independente de<br />

ser um deslocamento forçado ou incentivado. Ao lembrar a origem grega do termo<br />

diáspora que remete ao significado de dispersar ou semear, cabe ressaltar a maldição<br />

que atingiu tal termo no contexto do Velho Testamento, o que ditou o êxodo do povo<br />

judeu: “Serás disperso por todos os reinos da terra” (BOLAÑOS, 2010b, p. 167). Na<br />

contemporaneidade, o conceito de diáspora é desenvolvido de maneira mais produtivo<br />

nas ciências sociais e abre-se para a reflexão, intensificando a análise das práticas<br />

culturais dos movimentos migratórios desta época, tornando-o complexo e até<br />

contraditório.<br />

A produção de literatura, por emigrantes, muito tem a contribuir na investigação<br />

do termo diáspora. Edward Said (2003), teórico que discorre sobre conceituar o termo<br />

diáspora numa concepção pós-modernista, afirma que o intelectual cosmopolita é uma<br />

figura da realidade transnacional. É por isso que Said relaciona o termo diáspora a<br />

uma visão moderna que vai muito além do exílio e do regresso, mas sim a uma<br />

multiplicidade de identidades em trânsito, ou seja, a diáspora para ele se dá numa<br />

!


!<br />

A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

! !<br />

perspectiva não negativa, mas embebida de questionamentos do eu que motivam a<br />

escrita desta trajetória para muitos escritores diaspóricos.<br />

Said aponta ainda que o exílio:<br />

[...] é a vida levada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada,<br />

contrapontística, mas, assim que nos acostumamos com ela, sua<br />

força desestabilizadora entra em erupção novamente. (SAID, 2003, p.<br />

60)<br />

O entrar em erupção, conforme aponta Said, talvez possa ser pensado e<br />

revelado no procedimento da escrita destes indivíduos, sendo este o momento de<br />

expressar as perdas, de refletir profundamente a respeito da condição de emigrante,<br />

isto é, de buscar no passado e no presente formas que expressem sua identidade em<br />

trânsito. É entre uma cultura distinta das suas tradições que o exilado se autoafirma<br />

um ser nacionalista, evidenciando sua pátria, mesmo que sua saída desta não tenha<br />

se originado por uma decisão de escolha, mas sim de imposição.<br />

Aimée G. Bolaños em seu texto Diáspora, que está presente no Dicionário das<br />

mobilidades culturais: percursos americanos (2010) apresenta o discurso de alguns<br />

teóricos a respeito da diáspora. Cita, por exemplo, James Clifford que, ao estudar tal<br />

temática, reflete sobre a construção de lares longe do próprio lar e ainda, interessa-se<br />

pelo fenômeno contemporâneo da dimensão diaspórica. Ainda sobre o mesmo teórico,<br />

Bolaños (2010b, p. 169) aponta que este “apresenta a diáspora como um termo<br />

desestabilizador que fala de roteiros e raízes, cambiantes nas condições do mundo<br />

globalizado”.<br />

Aimée apresenta ainda, em seu texto, a compreensão de diáspora entendida<br />

por Atvar Brah. Segundo Bolaños, para A. Brah:<br />

A diáspora é um conceito geral, abrangente, daí sua força e fraqueza<br />

[...] Embora a palavra evoque trauma e separação, presentes em<br />

qualquer migração, diáspora também significa esperança e começo.<br />

Nomeia os novos lugares de contestação sociocultural, onde as<br />

memórias colidem para se refazer. (BOLAÑOS, 2010b, p. 170)<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!151! 151!<br />

!


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NATÁLIA MOREIRA VIANA<br />

! !<br />

Desta forma, A. Brah afirma que, mesmo a diáspora sendo fundada numa<br />

perspectiva de dispersão, quando retratada num sentido contemporâneo, esta<br />

evidencia não apenas o desejo do regresso para a terra natal, mas especialmente, a<br />

nova localização. Como em toda diáspora o indivíduo tem consciência da sua origem,<br />

mas acaba dando a esta um espaço de subtexto em sua escrita.<br />

Pode-se ratificar esta consciência de origem, por exemplo, no poema intitulado<br />

“Morada”, pertencente ao capítulo “Memorias”, do livro Las palabras viajeras (2010):<br />

mi nueva casa es un puente<br />

sobre um río que pasa<br />

cuando lo atravieso<br />

me sé en verdadera morada<br />

mi nueva casa es un camino<br />

sobre una tierra alada<br />

cuando ando celebro<br />

cada uno de mis pasos. (BOLAÑOS, 2010, p. 26)<br />

De acordo com o poema nota-se que a reflexão se dá a respeito da nova<br />

morada, sendo a “ponte” uma forma metafórica de representar este entre-lugar que<br />

habita o indivíduo diaspórico. Além disso, o “río”, citado no poema, pode ser pensado<br />

como a identidade deste próprio sujeito que vive em constante deslocamento,<br />

movimento, assim como as águas. Ao citar, na segunda estrofe, que sua nova casa é<br />

um caminho, o eu lírico aponta a nova morada como um lugar que, assim como o seu<br />

“río” também é passível de deslocamento constate. Com isso, a partir de tais<br />

simbologias, o sujeito diaspórico celebra suas múltiplas identidades que vivem em<br />

trânsito devido a sua condição de emigrante.<br />

Junto a este fator está a escrita sobre a viagem que narra os diversos<br />

contextos de múltiplas culturas ao qual o sujeito da diáspora vive e revive. Conforme<br />

questiona Stuart Hall (2003, p. 28): “Como podemos conceber ou imaginar a<br />

identidade, a diferença e o pertencimento após a diáspora?”. De acordo com Hall, é de<br />

senso comum, sobre o conhecimento da identidade cultural, que esta seja fixada no<br />

nascimento, através dos parentescos. Entretanto, tal afirmativa não procede quando<br />

relacionada a um indivíduo da diáspora, pois este pode colocar-se em dúvida sobre<br />

seu local e cultura de pertencimento. Assim, podemos observar no poema “Ante la<br />

puerta”:<br />

152!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

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A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

! !<br />

estoy ante la puerta<br />

¿dueña de las pruebas?<br />

¿o en el desafío?<br />

¿de las llegadas o las despedidas?<br />

estoy en el umbral<br />

¿de qué lado estoy?<br />

¿transgresora o guardiana?<br />

¿volviendo o de partida? (BOLAÑOS, 2010, p. 34)<br />

Nas palavras de Bolaños (2010b, p. 170-171) “o sujeito diaspórico transformase<br />

na viagem transcultural, sendo transformador também dos espaços em que<br />

transita, efetiva formulação de mão dupla”. Assim, ao mesmo tempo em que se<br />

questiona quanto ao seu pertencimento, o sujeito diaspórico sabe que sua condição<br />

não é unívoca e, por isso, desfruta desta situação em uma escrita reflexiva<br />

interrogando-se, por exemplo, “¿de qué lado estoy?”. Na tentativa de descobrir-se e<br />

descobrir o seu próximo, o sujeito não aponta para o fato de que “a cultura não é uma<br />

questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. (HALL, 2003, p. 43).<br />

É nesta “formulação de mão dupla” que, mesmo perante os questionamentos, é<br />

possível ao sujeito diaspórico estabelecer uma relação paradoxal de dúvida e certeza.<br />

Ao afirmar no primeiro verso “estoy ante la puerta”, percebe-se através do eu lírico, a<br />

consciência de um indivíduo que encontra-se no começo de um movimento, ou seja,<br />

no princípio de conhecer um novo mundo, pois a “puerta” pode significar a abertura ou<br />

o fechamento para uma nova cultura. Entretanto, num segundo momento, quando no<br />

quinto verso expressa “estoy en el umbral”, este sujeito afirma sua condição de<br />

iniciante, podendo estar na entrada desta porta da qual ele desconhece o caminho que<br />

irá está por vir e ele deverá seguir.<br />

Verifica-se também em Gustavo Pérez Firmat que ao desenvolver o conceito<br />

de três categorias de poética diferenciadas: a literatura do imigrante, do exilado e<br />

étnica dos cubano-americanos, tais categorias podem ao mesmo tempo contribuir na<br />

escrita uma das outras. Enquanto uma categoria caracteriza-se pelo idioma de partida<br />

e outra no idioma de chegada, a terceira categoria não tem crise identitária e desfruta<br />

da sua dualidade. O que Firmat aponta ainda é que o exilado pode aprender do<br />

escritor cubano-americano a arte do oxímoro. E mais, tais categorias distintas podem<br />

mesclar-se na escrita de uma mesma poeta, conforme é possível notar no poema<br />

“Mítico”, incluso no capítulo “Autorretrato”, também do livro Las palabras viajeras:<br />

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NATÁLIA MOREIRA VIANA<br />

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me tramo en el hogar del universo<br />

cuyo centro imprevisible trazo<br />

hilos entran y salen de mi vientre<br />

mientras la espiral de mis ovillos<br />

forma este impar mundo-casa<br />

mi ser dual preso también atrapa<br />

soy celosa protectora de una estirpe<br />

a cada ciclo de devoración renazco<br />

el sol ciño con redes poderosas<br />

de mí nacidas en gestación solitaria<br />

para que los fieros amantes de la noche<br />

se reproduzcan en mis confusas tramas<br />

hacedora de infinitos ilegibles<br />

fiel a lo ilusorio del tejido<br />

semejante a lo mismo y lo diverso<br />

soy la intricada tela que imagino<br />

Ariadna, Araña, Airó<br />

Velada Maya<br />

Yo (BOLAÑOS, 2010, p. 39)<br />

Inicialmente, pode-se analisar a seção da qual o poema “Mítico” está inserido.<br />

Sendo o capítulo “Autorretrato” o escolhido pela poeta, pode-se pensar que tal escolha<br />

não foi em vão, pois ao retratar-se em “Mítico”, a poeta esta desenhando a si mesma,<br />

ou seja, representando-se através do seu olhar em outros olhares, fazendo de sua<br />

diáspora uma vida mítica e simbólica. Além disso, a poeta expressa em “Mítico” a<br />

busca de si mesma em sua viagem inacabada, sendo este tema recorrente dentre as<br />

poetas de diáspora cubana.<br />

Ao expressar nos versos “me tramo en el hogar del universo”, e “soy celosa<br />

protectora de una estirpe” a poeta demonstra consciência de seu lugar de origem;<br />

entretanto, ao simbolizar sua vida através de um novelo, pode-se ter a ideia de uma<br />

vida em espiral, o que simbolicamente pode expressar uma vida em disseminação<br />

onde passado e presente cruzam-se constantemente formando “este impar mundocasa”,<br />

ou talvez, construindo a identidade deste sujeito poético. Com isso, percebe-se<br />

que embora o sujeito tenha consciência de sua origem fixa quanto à sua vida atual,<br />

esta é representada num oxímoro cultural, sendo este uma arte característica do<br />

escritor cubano-americano. Nada melhor que passado e presente estarem<br />

representados em uma mesma linha neste poema.<br />

Ao pensar na identidade cultural da poeta, outro traço a ser marcado é o verso<br />

“a cada ciclo de devoración renazco”, que pode ser remetido ao mito de Prometeu. A<br />

partir disso, a exemplo deste mito que expressa a regeneração diária do indivíduo, o<br />

sujeito diaspórico também renasce e inicia uma nova vida em seu entre-lugar<br />

154!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

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A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

! !<br />

constantemente. Relacionando o mito de Prometeu a escritora, é possível entender tal<br />

representação não apenas por sua condição de emigrante, mas também por sua<br />

passagem em outras culturas.<br />

No verso “soy la intrincada tela que imagino”, outro mito é possível desvelar: o<br />

mito de Ariadne, pois no momento em que a poeta se conceitua como uma tela, pode-<br />

se dizer que por evidenciar Ariadne, Bolaños nada mais é do que sua própria<br />

construção, ou seja, esta se tece conforme seus deslocamentos a motivam. Ainda<br />

através do mesmo mito e da significação de um labirinto, pode-se perceber outra<br />

representação desta escritora da diáspora no poema “História adversativa con final<br />

feliz”, quando em seus últimos versos consta “ella vive para siempre amada; en su<br />

isla-hilo-laberinto; un dia del tiempo humano; habrá de morir feliz”. Desta forma, tais<br />

versos denunciam que apesar da vida em um labirinto, “o seu poder redentor<br />

encontra-se no futuro, que ainda esta por vir. (HALL, 2003, p. 29).<br />

Ainda em relação ao uso da mitologia, que é característico nesta escritora,<br />

nota-se a relação com Maya quando expressa “Velada Maya, yo”. Sabe-se, segundo a<br />

mitologia Hindu, que Maya foi mãe do Buda, sendo conhecida como deusa da ilusão,<br />

isto é, a deusa que permite ao indivíduo tecer sua própria vida, ocultando-se da<br />

realidade. Ao configurar-se em “velada Maya”, o sujeito poético opta, nesta escrita, por<br />

construir e visualizar apenas o que lhe parece bom aos olhos, fugindo então da<br />

verdadeira realidade, vivendo apenas como sua inteligência e imaginação lhe<br />

permitem.<br />

Quando Gustavo Pérez Firmat fala em poéticas diferenciadas, percebe-se<br />

também no poema “Hogar”, de Bolaños, características pertencentes à categoria do<br />

exilado:<br />

la puerta de la casa abierta<br />

sueño feliz<br />

de la viajera que regresa<br />

al hogar desnudo<br />

de la isla constante (BOLAÑOS, 2010, p. 25)<br />

O desejo do regresso para o lar é expresso no poema através de um “sueño<br />

feliz”, demonstrado numa escrita retrospectiva e nostálgica. Na perspectiva da<br />

possibilidade de volta para casa ao sonhar com “la puerta de la casa abierta”, o sujeito<br />

poético demonstra sua noção de que “a presença de barreiras que o fecha num<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!155! 155!<br />

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NATÁLIA MOREIRA VIANA<br />

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território familiar, também podem ser a prisão e são, com frequência, defendidas para<br />

além da razão ou da necessidade”. (SAID, 2003, p. 58).<br />

Na mesma perspectiva de regresso, aparece ainda o poema “Con aire y en<br />

movimiento”, que, ao utilizar uma epígrafe de Alejo Carpentier, expressa juntamente a<br />

possibilidade e a aceitação do deslocamento. Assim segue o poema:<br />

156!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

!<br />

Regreso a lo mío esta misma noche. Para mí es otro<br />

el aire que, al envolverme, me esculpe y me da forma.<br />

Alejo Carpentier<br />

me hago en el aire<br />

topo azul de los viajeros<br />

situado en el centro<br />

de la circunferencia<br />

que un poeta escéptico<br />

llamó Laberinto<br />

o Universo<br />

en su casa vital<br />

me hago habitada<br />

desde adentro<br />

así voy y vengo<br />

en una torre de tiniebla<br />

sin el menos sustento<br />

con la palabra rauda<br />

vuelvo ahora a lo mío<br />

que es una isla feliz<br />

de aguas interminables<br />

en los dominios de viento (BOLAÑOS, 2010, p. 33)<br />

Através dos dezoito versos, o sujeito lírico apresenta sua vida de emigrante<br />

repleta de vai e vens, revelando-se, através da construção de um ser multifacetado<br />

que, “con aire y en movimiento”, segue os ventos (destino) que o levam. Além disso,<br />

ao afirmar no verso “regreso a lo mío esta misma noche”, percebe-se que o eu lírico,<br />

faz uso da “noche” para expressar seu sonho, isto é, a ilusão em voltar para seu lar de<br />

origem que é “una isla feliz”.<br />

Por ter nascido em Cuba, Bolaños, frequentemente faz referência, em suas<br />

poesias, sobre a felicidade em voltar a “isla”. Assim, o desenraizamento do indivíduo<br />

diaspórico não significa apenas dor em sair da sua terra natal, da sua cultura de<br />

origem, mas principalmente, a felicidade em poder retornar a ela. Desta maneira, o<br />

enfrentamento do indivíduo emigrante com sua constante diáspora pode atribuir-lhe<br />

uma capacidade inquestionável de formar e esculpir sua cultura permanentemente.


!<br />

A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS<br />

! !<br />

Em Las palabras viajeras, Aimée G. Bolaños, aponta a lembrança das<br />

vivências em solidão, como por exemplo, expressa no poema supracitado, “así voy y<br />

vengo en una torre de tiniebla”, demonstrando também as perdas, as viagens para o<br />

desconhecido, para o novo, utilizando-se de heterotopias que descrevem a dor e o<br />

prazer de sua diáspora. Para Bolaños:<br />

No imaginário da diáspora, as heterotopias são espaços alternativos,<br />

oníricos, projetivos, que sinalizam conflitos, omissões, ausências e<br />

não poucas vezes configuram refúgios míticos onde os sujeitos se<br />

encontram em uma memória habitada desde dentro pelas ficções da<br />

identidade mais complexas. (BOLAÑOS, 2010b, p. 179)<br />

Por meio de alguns poemas que foram examinados neste artigo, pertencentes<br />

ao livro Las palabras viajeras, é possível notar que, por configurar-se como uma poeta<br />

em trânsito, Aimée G. Bolaños, deixa em seu conjunto de poesias marcas que revelam<br />

a escrita de um indivíduo que partiu e ainda não chegou, além de expressar, através<br />

de simbologias, o lugar que esta habita sempre em movimento: podendo ser uma<br />

ponte, um rio, um labirinto, a soleira, demarcando assim, o seu limiar. Ao tecer sua<br />

diáspora, conforme afirma a própria autora: “A Ilha é mapa imaginário, blue-print,<br />

palimpsesto, sobre a qual cada poeta recria-se e cria os espaços que tenta habitar.<br />

(BOLAÑOS: 2010b, p. 179)<br />

Por meio da produção literária de Bolaños, em especial no livro, Las palabras<br />

viajeras, ficou demonstrada e constatada uma poética da diáspora, em que as<br />

identidades são multifacetadas, expressando, com isso, uma poética de reflexão deste<br />

indivíduo, isto é, uma poética transnacional que vem sendo muito comum na produção<br />

literária contemporânea. Com isso, esta escritora acrescenta ao campo da literatura<br />

contemporânea, uma possibilidade de construir novos discursos, embasados na<br />

pluralidade dos indivíduos que se caracterizam pela diáspora.<br />

É desta forma que se percebe, em Las palabras viajeras, juntamente ao estudo<br />

dos teóricos Edward Said e Stuart Hall, entre outros, que a poesia do indivíduo que<br />

vive o processo de migração, independente de ser forçado ou não, acaba deixando<br />

por refletir em sua escrita os deslocamentos vividos, expressando suas dores, alegrias<br />

e descobertas, o que vem de certa forma, nos últimos anos, enriquecendo o debate<br />

sobre diáspora não apenas como temática dentro da escrita, mas principalmente,<br />

como prática social complexa e, muitas vezes, contraditória.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!157! 157!<br />

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NATÁLIA MOREIRA VIANA<br />

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

BAUMGARTEN, Carlos A. A escrita poética de Aimée Bolaños e a questão da<br />

identidade. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 72-82, 2006.<br />

BOLAÑOS, Aimée. G. Autoficción: una experiencia creativa. Trabalho apresentado<br />

no V Seminário Nacional de História da Literatura. Rio Grande: FURG, 2012. No prelo.<br />

______. Las palabras viajeras. Madrid: Betania, 2010a.<br />

______. Diáspora. In: BERND, Zilá. Dicionário das mobilidades culturais: percursos<br />

americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010b.<br />

HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In: ______. Da<br />

diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaide la Guardia Resende et al.<br />

Belo Horizonte: Ed. da UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.<br />

p. 25-50.<br />

MARASHINSKY, Amy Sophia. Maya – Mitologia Hindu. Wikipedia. Disponível em:<br />

http://www.olhosdebastet.com.br/textos/MAYA.htm. Acesso em 10 de agosto de 2012.<br />

SAID, Edward. Reflexões sobre o exilo. In: ______. Reflexões sobre o exílio e<br />

outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />

p. 46-60.<br />

158!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

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L i t e r a t u r a<br />

RESENHA: SOBRE OS ÍNTIMOS OU DA<br />

NECESSIDADE DE NÃO ESTAR SOZINHO<br />

TAINARA QUINTANA DA CUNHA<br />

Mestranda em História da Literatura pela<br />

Universidade Federal do Rio Grande (FURG),<br />

Licenciada em Letras – Português (FURG).<br />

Contato: tainar<strong>aqui</strong>ntana27@hotmail.com


!<br />

RESENHA: SOBRE OS ÍNTIMOS OU DA NECESSIDADE<br />

DE NÃO ESTAR SOZINHO<br />

Tainara Quintana da Cunha<br />

Cinco homens, cinco personalidades distintas, cinco vidas diferentes e uma<br />

única intenção na chuvosa noite de Lisboa: reunir-se em um restaurante para falar<br />

sobre mulheres e amores. Assim o fazem há anos, uma vez por mês, os amigos<br />

Afonso, Pedro, Guilherme, Augusto e Filipe, que nada têm em comum, mas que<br />

deliberam sobre a vida, partindo de suas experiências individuais ou coletivas. O que<br />

permite traçar o perfil de cada um e concluir, ao cabo, que essas cinco mentalidades<br />

convergem para a incompreensão do amor transmutado nas vozes femininas<br />

presentes na obra, e multifacetado em amor carnal, paternal ou fraterno.<br />

Sobretudo, essas reuniões mensais fazem parte de uma ordem inerente ao ser<br />

humano, refletindo sua vontade de não sentir-se só no mundo, mas sim, parte da<br />

coletividade e, por conseguinte, próximo daqueles indivíduos cujas semelhanças<br />

sobrepõem-se às diferenças, fazendo com que estes, por algum motivo, assemelhemse<br />

entre si.<br />

Ao explorar as peculiaridades de cada um desses sujeitos, Inês Pedrosa nos<br />

apresenta a história de homens cuja vida está atrelada a existência feminina,<br />

considerando que a personagem Afonso, médico oncologista, frequentemente, reflete<br />

sobre a morte da pequena Mariana, sua filha de apenas oito anos, que morrera ao cair<br />

de uma ribanceira, fato que o faz sentir-se culpado em certos momentos, chegando a<br />

despertar sua sensibilidade, posto que ele põe-se a ler sobre o túmulo da menina,<br />

numa atitude de arrependimento tardio e na esperança de que ela o escute e o<br />

perdoe. Porém, o mesmo não acontece com a mãe da menina, Leonor, de quem lhe é<br />

conferida a responsabilidade da retirada de um cancro da mama, “sem prejudicar a<br />

autoestima”, conforme pedido da própria mulher. Ao contrário, nessa passagem<br />

Afonso ri-se, pois jamais poderá compreender como pode uma mulher pode ter a<br />

autoestima concentrada nas mamas.<br />

Dessa forma irônica e bem humorada, a autora fala também às mulheres,<br />

através das vozes masculinas tão surpresas quanto confusas e convida à reflexão<br />

acerca dos avanços femininos nas mais diversas áreas, conforme o desabafo de<br />

Afonso, principal voz na narrativa, por representar uma das interfaces do homem<br />

contemporâneo e talvez, a personalidade mais complexa, intensa e pulsante de vida,<br />

com relação aos outros colegas:<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!161!


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TAINARA QUINTANA DA CUNHA<br />

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162!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!<br />

A emancipação das mulheres parece ter-lhes aguçado um espírito<br />

científico perturbadoramente materialista. (...) Acabaram-se os bons<br />

sentimentos das mulheres: a timidez, o pudor, a culpa, a entrega<br />

desinteressada, enfim, a compaixão. È melhor nem pensar nisso.<br />

(PEDROSA, 2010, p.29).<br />

Por afinidade, o protagonista responsável por apresentar seus amigos ao leitor,<br />

assemelha-se a Augusto, administrador de uma empresa discográfica que “vê melodia<br />

na música mais manhosa”, conforme relato jocoso de Afonso. Esses dois amigos<br />

partilham de gostos e costumes semelhantes. Afonso goza da fama de sedutor,<br />

Augusto também. O primeiro teve um caso com Margarida, que mais tarde o segundo<br />

haveria de namorar. Ambos, cada um a sua maneira, sempre encontram uma forma<br />

de gabar-se de suas conquistas amorosas, um dos aspectos que faz deles o centro<br />

das atenções na mesa do restaurante, sempre muito bem servida por Celinha,<br />

habituada aos gracejos dos rapazes.<br />

Ao contrário da espontaneidade de Afonso e Augusto à mesa da tasca, Pedro<br />

prefere manter-se fechado no invólucro que o torna distante do mundo e eternamente<br />

ligado à mãe. Sem namorada, esposa ou coisa que o valha, o técnico de informática<br />

demonstra profundo conhecimento da alma feminina: “O que eu sei das mulheres,<br />

meus amigos, é isto: elas são muita gente ao mesmo tempo. Como se trouxessem<br />

todas as variedades da vida dentro de seus corpos. Elas são feiticeiras e anjos e<br />

putas. E homens também.” (PEDROSA, 2010, p. 37).<br />

É através dessa forma perspicaz e observadora de perceber o feminino que<br />

Pedro descobre o instinto masculino, o que proporciona a ele descobrir-se enquanto<br />

homem viril, másculo e apaixonado por Bárbara, personagem ficcional (e por isso<br />

ideal) que adentra em sua vida através de um manuscrito oferecido por uma jornalista<br />

brasileira, perdida de amores por ele e que mais tarde tiraria a própria vida por sua<br />

causa.<br />

Por sua vez, outra personalidade alterada pelos descompassos da vida e pela<br />

ausência do afago da família é Guilherme que preferiu não ser nada, depois que seu<br />

pai, sargento, sonhou ver-lhe doutor ou general. Criado em escola militar e,<br />

submetido aos rígidos regimes desta instituição, o jovem Guilherme empregou-se,<br />

afinal, numa farmacêutica, local onde conheceu sua grande paixão: Clarisse, moça<br />

que mais tarde tentaria esquecer com todas as suas forças: “Saí do colégio e<br />

empreguei-me na farmacêutica. Nisso tive sorte. Assim encontrei e perdi Clarisse.”<br />

(PEDROSA, 2010, p. 59).


!<br />

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RESENHA: SOBRE OS ÍNTIMOS OU DA NECESSIDADE DE NÃO ESTAR SOZINHO<br />

! !<br />

Todavia, um dos cinco amigos se distingue totalmente dos demais porque,<br />

segundo sua autoavaliação, nenhum deles é suficientemente bom para ser equiparado<br />

consigo. Seu nome é Filipe, um aspirante a artista que julga seu talento demasiado<br />

grande para ficar esquecido num país tão pequeno. Ao lado da mulher, Benedita, outro<br />

“talento injustiçado”, o último dos cinco amigos perde-se no seu desmedido<br />

egocentrismo e dirige-se aos demais de maneira superior.<br />

Assim como ocorre com os outros rapazes, quase tudo o que se sabe de Filipe<br />

é dito por Afonso. Segundo ele, “Filipe é um interesseiro incapaz de identificar seus<br />

próprios interesses. Um falhado que persiste na falha. Um miúdo imune à<br />

introspecção. (...) O louco da aldeia que confirma a sanidade mental dos outros.”<br />

(PEDROSA, 2010, p. 160).<br />

Mesmo frente às inúmeras diferenças que os cercam, por uma estranha<br />

necessidade de estar reunido, o grupo precisa de Filipe e vice-versa. O que justifica a<br />

necessidade do ser humano de não estar só, mesmo que isso acarrete a convivência<br />

com sujeitos de presenças tão diversas e complexas. Eis nesta afirmação uma das<br />

grandes reflexões para a qual nos convida Inês Pedrosa em sua obra Os íntimos.<br />

A autora promove o enlace de diversas vozes e estilos narrativos num texto<br />

fragmentado, convergindo para a busca das respostas que diferenciam homens e<br />

mulheres, mas, sobretudo, a obra lança mais questionamentos para que se possa<br />

entender o ser humano e os diferentes comportamentos que pautam sua existência<br />

como a necessidade de não estar sozinho, por exemplo.<br />

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA<br />

PEDROSA, Inês. Os íntimos. Objetiva, Rio de Janeiro: 2010.<br />

Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!163! 163!

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