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Variedades de Cognitivismo Estético - Filosofia da Linguagem

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2<br />

COGNITIVISMO<br />

No capítulo anterior foram discuti<strong>da</strong>s e avalia<strong>da</strong>s algumas <strong>da</strong>s mais <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s teorias<br />

anti-cognitivistas. Essas teorias foram classifica<strong>da</strong>s como anti-cognitivistas porque os<br />

seus proponentes assumem, explícita ou implicitamente, a falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pelo menos<br />

uma <strong>da</strong>s seguintes afirmações: 1) a arte proporciona conhecimento acerca <strong>de</strong> algo<br />

que não é arte; 2) é esse conhecimento que justifica o seu valor qua arte. A falsi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> 1) implica a falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 2), mas a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 1) não implica a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 2).<br />

Hanslick, como vimos, argumenta que a arte musical constitui um contra-<br />

exemplo ao que é afirmado em 1), enquanto Stolnitz investe simultaneamente nas<br />

duas frentes e balança entre a refutação <strong>de</strong> 1) e <strong>de</strong> 2). O caso dos hedonistas e <strong>de</strong><br />

Beardsley é diferente pois estes apenas implicitamente estabelecem a falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 2).<br />

Em ambos os casos são referidos outro tipo <strong>de</strong> valores para justificar a importância <strong>da</strong><br />

arte, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do conhecimento que ela seja capaz <strong>de</strong> proporcionar.<br />

Vimos também que, por diferentes razões, nenhuma <strong>da</strong>s teorias anteriores<br />

conseguiu mostrar o que era suposto mostrar e que o problema do valor <strong>da</strong> arte<br />

continua por resolver. O que nos leva neste capítulo directamente à discussão do<br />

cognitivismo.<br />

Uma vez que o termo «cognitivismo» não refere qualquer teoria em particular,<br />

mas uma perspectiva geral no âmbito <strong>da</strong> qual se po<strong>de</strong>m encontrar teorias muito<br />

diferentes entre si, começarei por fazer uma espécie <strong>de</strong> cartografia <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

cognitivismo em estética. Uma vez feito este trabalho passarei à discussão <strong>de</strong><br />

algumas <strong>da</strong>s teorias cognitivistas filosoficamente mais prometedoras. Na avaliação<br />

<strong>de</strong>ssas teorias será <strong>da</strong>do um particular relevo ao caso <strong>da</strong> música. Isto porque a<br />

música é habitualmente consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma arte não representacional, sendo por isso o<br />

contra-exemplo mais óbvio à tese <strong>de</strong> que a arte tem uma função cognitiva. Se for<br />

possível mostrar que a música tem uma função cognitiva, então é bastante provável<br />

que a arte em geral tenha também uma função cognitiva.<br />

1


<strong>Varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> cognitivismo<br />

A maneira mais viável <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar a cartografia cognitivista em estética<br />

consiste em procurar respon<strong>de</strong>r às três perguntas seguintes:<br />

1. A arte proporciona conhecimento acerca <strong>de</strong> quê?<br />

2. De que maneira a arte nos proporciona esse conhecimento?<br />

3. Que tipo <strong>de</strong> conhecimento é esse?<br />

A primeira pergunta coloca a questão <strong>de</strong> saber quais os objectos <strong>de</strong><br />

conhecimento <strong>da</strong> arte. A segun<strong>da</strong> é acerca do tipo <strong>de</strong> relação que se verifica entre as<br />

obras <strong>de</strong> arte e as coisas supostamente conheci<strong>da</strong>s através <strong>de</strong>las – acerca do tipo <strong>de</strong><br />

relação que torna esse conhecimento efectivo. A terceira é acerca do tipo <strong>de</strong> conteúdo<br />

cognitivo que adquirimos através <strong>da</strong> arte.<br />

Há quase tantas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> cognitivismo quantos as respostas a estas três<br />

perguntas 1 . Vejamos o que se passa em relação à primeira pergunta.<br />

A arte proporciona conhecimento acerca <strong>de</strong> quê? De um modo geral as obras<br />

<strong>de</strong> arte exigem ser compreendi<strong>da</strong>s, requerendo algum tipo <strong>de</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong> cognitiva,<br />

pois tal compreensão envolve i<strong>de</strong>ias, sentimentos e atitu<strong>de</strong>s. Isto indica que as obras<br />

<strong>de</strong> arte são acerca <strong>de</strong> algo ou que veiculam algo. Resta saber se se trata <strong>de</strong> algo<br />

exterior às próprias obras ou não e o quê. Como resposta à pergunta coloca<strong>da</strong>, David<br />

Novitz (1998) sugere três possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s acerca do tipo <strong>de</strong> coisas que a arte nos<br />

permite conhecer:<br />

• O conteúdo <strong>da</strong>s próprias obras <strong>de</strong> arte ou o universo imaginário e ficcional<br />

por elas criado;<br />

• As emoções e a maneira como elas funcionam;<br />

• O mundo real (não ficcional), disponibilizando informação relevante ou<br />

contribuindo com um importante insight sobre a melhor forma <strong>de</strong> o or<strong>de</strong>nar<br />

e compreen<strong>de</strong>r.<br />

Em relação ao conteúdo <strong>da</strong>s próprias obras, po<strong>de</strong>mos ficar a conhecer as<br />

i<strong>de</strong>ias musicais, nomea<strong>da</strong>mente acerca do contraponto, conti<strong>da</strong>s em A Arte <strong>da</strong> Fuga<br />

<strong>de</strong> Bach; as relações adúlteras <strong>de</strong> Ana Karenina com o seu amante Vronsky, no<br />

1 Digo «quase tantas» porque há respostas anti-cognitivistas à primeira pergunta, como se verá adiante.<br />

2


omance <strong>de</strong> Tolstoi; o jogo <strong>de</strong> cores e <strong>de</strong> formas em Vega 201 <strong>de</strong> Vasarely. Po<strong>de</strong>mos<br />

até formar crenças ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras justifica<strong>da</strong>s acerca do número <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong><br />

Contrapunctus I em A Arte <strong>da</strong> Fuga; acerca <strong>da</strong>s razões que levaram Ana Karenina a<br />

abandonar o seu marido e a correr para os braços <strong>de</strong> Vronsky; ou ain<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong><br />

técnica <strong>de</strong> composição geométrica presente no quadro <strong>de</strong> Vasarely. Mas há filósofos<br />

que não consi<strong>de</strong>ram isso conhecimento em sentido robusto, uma vez que não se trata<br />

<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s acerca do mundo extra-artístico, como sublinhou Stolnitz. No mesmo<br />

sentido, formalistas como Hanslick, Clive Bell e Beardsley alegam que só<br />

aci<strong>de</strong>ntalmente a arte nos ensina algo acerca do mundo, pelo que ten<strong>de</strong>m também a<br />

restringir a compreensão artística aos aspectos formais <strong>da</strong>s próprias obras <strong>de</strong> arte,<br />

assumindo uma perspectiva anti-cognitivista.<br />

Goodman é, a este resspeito, a excepção cognitivista, pois alega que apren<strong>de</strong>r<br />

algo acerca <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s 2 que uma <strong>da</strong><strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte possui é ain<strong>da</strong> apren<strong>de</strong>r<br />

algo acerca do mundo em sentido robusto, na medi<strong>da</strong> em que para ele as obras <strong>de</strong><br />

arte são versões <strong>de</strong> mundos como, por exemplo, as teorias científicas. O seu anti-<br />

realismo e o seu construtivismo caucionam a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que não precisarmos <strong>de</strong> recorrer<br />

a uma qualquer reali<strong>da</strong><strong>de</strong> exterior para reconhecer valor cognitivo à arte, mesmo<br />

quando esta se limita a exemplificar proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que só as obras <strong>de</strong> arte possuem.<br />

Outra i<strong>de</strong>ia muito comum acerca <strong>da</strong> arte é que ela nos permite mergulhar no<br />

universo complexo <strong>da</strong>s emoções e compreen<strong>de</strong>r melhor o que aí se passa. Muitos<br />

filósofos consi<strong>de</strong>ram que as emoções são a matéria artística por excelência e aquilo<br />

<strong>de</strong> que a arte ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente se ocupa. Essa foi, <strong>de</strong> resto, uma <strong>da</strong>s razões que<br />

levaram Platão a censurar a arte, pois encarava-a como uma forma <strong>de</strong> manipulação<br />

emocional e como uma manifestação <strong>de</strong> irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong> prejudiciais à educação dos<br />

jovens. Ao contrário, Aristóteles valorizava a arte precisamente por nos ensinar a<br />

controlar as emoções e assim apren<strong>de</strong>rmos a li<strong>da</strong>r com elas 3 .<br />

Muitas pessoas referem em particular a música como uma espécie <strong>de</strong><br />

linguagem universal <strong>da</strong>s emoções. A i<strong>de</strong>ia é <strong>de</strong> que o artista trabalha, clarifica e<br />

exprime emoções. Nesse sentido as emoções não po<strong>de</strong>m estar associa<strong>da</strong>s à música<br />

apenas em função <strong>de</strong> qualquer mecanismo <strong>de</strong> condicionamento psicológico do género<br />

«Olha, queri<strong>da</strong>, estão a tocar a nossa música!». A teoria do condicionamento supõe<br />

que uma peça musical adquire o seu significado emocional a partir <strong>da</strong>s circunstâncias<br />

em que foi anteriormente ouvi<strong>da</strong>. De acordo com esta teoria a forma e o conteúdo<br />

musical são irrelevantes para a aquisição do seu carácter emocional, pois só o<br />

2 Para ser rigoroso, é preciso dizer que, para um nominalista como Goodman, não há proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mas<br />

simplesmente etiquetas que são exemplifica<strong>da</strong>s pelos objectos. Este aspecto tornar-se-á claro numa <strong>da</strong>s<br />

próximas secções. Por agora tal distinção é dispensável.<br />

3 Trata-se do processo psicológico que Aristóteles na Poética <strong>de</strong>signa por catarse.<br />

3


contexto é importante. Apesar <strong>de</strong> por vezes se verificarem fenómenos <strong>de</strong><br />

condicionamento <strong>de</strong>ste género, isso apenas permite explicar certas idiossincrasias dos<br />

gostos musicais. Até porque é um facto empírico que ouvintes no interior <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

cultura musical geralmente concor<strong>da</strong>m acerca do carácter emocional <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

peça musical, ain<strong>da</strong> que a não tenham escutado antes. E também é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que a<br />

nossa resposta emocional varia muitas vezes <strong>de</strong> audição para audição (Slobo<strong>da</strong>:<br />

1985, p.2). Isto levanta, entre outros, os problemas centrais <strong>de</strong> saber o que são e<br />

como surgem as emoções.<br />

A palavra «emoção» costuma abranger uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> fenómenos,<br />

pelo que não é fácil dizer <strong>de</strong> forma precisa e, ao mesmo tempo, consensual o que as<br />

emoções são. Por exemplo, Descartes nas Paixões <strong>da</strong> Alma refere a benevolência e o<br />

reconhecimento como fenómenos do mesmo tipo <strong>da</strong> tristeza e do amor. Encara to<strong>da</strong>s<br />

estas coisas como emoções, limitando-se a classificar as duas últimas como simples e<br />

as duas primeiras como compostas, na medi<strong>da</strong> em que estas são, segundo ele,<br />

forma<strong>da</strong>s por outras emoções simples. É certo que hoje se sabe muito mais acerca<br />

<strong>da</strong>s emoções do que Descartes po<strong>de</strong>ria saber, mas questões tão importantes como a<br />

<strong>da</strong> taxonomia <strong>da</strong>s emoções continuam em aberto 4 . Assim como continua em aberto a<br />

questão <strong>de</strong> saber se as emoções são disposições <strong>de</strong> longa duração ou episódios <strong>de</strong><br />

curta duração.<br />

Parece, contudo, haver um relativo consenso quanto ao que faz surgir as<br />

emoções. Elas emergem quando percebemos que estão em jogo os nossos<br />

interesses, objectivos e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pessoais ou os do grupo social com que nos<br />

i<strong>de</strong>ntificamos. Budd (1985, p. 4) dá o exemplo <strong>de</strong> algumas emoções particulares e<br />

<strong>de</strong>fine-as <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

«A inveja é o sofrimento perante a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém em<br />

relação a si.»<br />

«O medo é o estado <strong>de</strong> tensão perante a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> perigo para si próprio ou para<br />

alguém ou algo que se estima.»<br />

«O orgulho é a satisfação com o pensamento <strong>de</strong> posse ou obtenção <strong>de</strong> uma<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sejável por parte <strong>de</strong> uma pessoa ou <strong>de</strong> alguém com quem<br />

essa pessoa se i<strong>de</strong>ntifica.»<br />

«O remorso é o sofrimento com o pensamento <strong>de</strong> que se agiu mal.»<br />

4 Apesar <strong>de</strong> hoje em dia haver alguns <strong>da</strong>dos empíricos que permitem ter i<strong>de</strong>ias mais precisas a esse<br />

respeito. Sabe-se, por exemplo, que, apesar <strong>de</strong> envolverem importantes elementos culturais, há emoções<br />

que são invariavelmente reconhecíveis em diferentes culturas: felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, tristeza, medo, ira, surpresa e<br />

repulsa (De Sousa: 1994, p. 270).<br />

4


A forma como emergem, por um lado, e a maneira como as emoções<br />

particulares são habitualmente <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s, por outro lado, indicam claramente que elas<br />

envolvem algum tipo <strong>de</strong> juízo <strong>de</strong> avaliação sobre o que se passa no meio ambiente,<br />

em função dos nossos interesses, valores e objectivos. Elas são reacções a estímulos<br />

ambientais específicos que suscitam uma resposta urgente. «A minha ira é o meu<br />

juízo <strong>de</strong> que o João me enganou», diz Solomon (1984, p. 230). Isto significa que as<br />

emoções têm uma intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e envolvem elementos cognitivos, tais como<br />

crenças, <strong>de</strong>sejos, pensamentos e representações. É, aliás, o facto <strong>de</strong> serem acerca <strong>de</strong><br />

algo e <strong>de</strong> envolverem atitu<strong>de</strong>s proposicionais que explica por que razão por vezes<br />

reconhecemos que as nossas reacções emocionais são <strong>de</strong>sproposita<strong>da</strong>s. Por<br />

exemplo, concluo que o medo que senti ao ouvir passos atrás <strong>da</strong> porta do quarto era<br />

injustificado ao <strong>de</strong>scobrir que esses passos eram <strong>da</strong> minha mulher e não <strong>de</strong> um<br />

ladrão. A minha reacção emocional foi <strong>de</strong>sproposita<strong>da</strong> porque formei uma crença<br />

erra<strong>da</strong>.<br />

Contudo, isto não significa que os juízos <strong>de</strong> avaliação impliquem sempre a<br />

existência <strong>de</strong> crenças e <strong>de</strong> outras atitu<strong>de</strong>s proposicionais, sendo sobretudo uma forma<br />

<strong>de</strong> orientar a nossa atenção para os aspectos relevantes do meio e <strong>de</strong> encarar as<br />

coisas <strong>de</strong> uma certa maneira (seeing-as) (Robinson: 2004, p. 176). Aliás, não é claro<br />

que a componente intencional esteja presente em to<strong>da</strong>s as emoções. É certo que o<br />

medo é sempre medo <strong>de</strong> algo ou <strong>de</strong> alguém, e o mesmo se passa com o orgulho, o<br />

remorso, o ódio, etc. Mas já não dizemos o mesmo acerca <strong>da</strong> melancolia, <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>pressão e até <strong>da</strong> tristeza. Não estamos melancólicos acerca <strong>de</strong> algo, não estamos<br />

<strong>de</strong>primidos acerca <strong>de</strong> algo, etc. Talvez se possa fazer a distinção entre emoções e<br />

simples estados <strong>de</strong> espírito (moods), mas mesmo essa distinção é problemática, pois<br />

teríamos sempre alguma relutância em dizer que a tristeza não é uma emoção mas<br />

apenas um estado <strong>de</strong> espírito.<br />

Mas, além <strong>da</strong> componente avaliativa, algo mais é requerido para que haja<br />

emoção: um certo tipo <strong>de</strong> respostas fisiológicas acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong><br />

prazer ou <strong>de</strong>sconforto, e ain<strong>da</strong> uma propensão para agir <strong>de</strong> um certo modo. É a<br />

componente avaliativa que causa essas respostas fisiológicas (mu<strong>da</strong>nças do<br />

batimento cardíaco, alterações no sistema nervoso e nos níveis <strong>de</strong> adrenalina, etc.),<br />

assim como mu<strong>da</strong>nças corporais que nos dispõem para agir <strong>de</strong> uma certa maneira. O<br />

medo é causado pela avaliação que faço do que me ro<strong>de</strong>ia, por exemplo pela crença<br />

<strong>de</strong> que um cão se dirige na minha direcção para me atacar. Crença esta que provoca<br />

uma aceleração do ritmo cardíaco e um forte sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto que, por sua<br />

vez, me leva fugir rapi<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>li. A vergonha é causa<strong>da</strong> pela crença <strong>de</strong> que alguém<br />

me apanhou a roubar (e também pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> não ser tomado como ladrão) que,<br />

5


por sua vez, causa um estado <strong>de</strong> ruborescência na face e um sentimento<br />

<strong>de</strong>sagradável, levando-me a virar imediatamente as costas para não ser reconhecido.<br />

Este tipo <strong>de</strong> respostas têm, como se percebe, uma base biológica, mas também<br />

afectiva e cultural.<br />

Po<strong>de</strong>mos, assim, dizer que as emoções têm um conteúdo e uma fisiologia, mas<br />

também uma fenomenologia. Esta é a perspectiva dominante na psicologia e na<br />

filosofia <strong>da</strong>s emoções 5 . Derek Matravers (1998, p. 17) resume assim as coisas: «uma<br />

emoção é um composto formado por alguma proposição que o sujeito aceita (pondo<br />

<strong>de</strong> lado, por agora, a questão <strong>de</strong> saber se essa aceitação precisa <strong>de</strong> ser uma crença)<br />

e vários outros estados: possivelmente outros estados cognitivos (tais como <strong>de</strong>sejos) e<br />

estados fisiológicos e fenomenológicos. O padrão habitual <strong>de</strong> causação é o seguinte.<br />

O sujeito é causalmente levado a adoptar uma certa atitu<strong>de</strong> proposicional,<br />

normalmente como resultado <strong>de</strong> alguma informação sensorial. Essa atitu<strong>de</strong><br />

proposicional causa vários outros estados que em conjunto constituem a emoção.»<br />

Em situações paradigmáticas, uma compreensão integral do que é a emoção implica<br />

estabelecer a conexão entre aquilo que causa a emoção, o sentir a emoção e o<br />

comportamento causado pela emoção.<br />

Voltando ao caso <strong>da</strong> arte, ain<strong>da</strong> que esteja ao seu alcance investigar apenas<br />

algum dos aspectos envolvidos nas emoções, isso não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um contributo<br />

para a sua compreensão. Muitas pessoas consi<strong>de</strong>ram que a arte está especialmente<br />

equipa<strong>da</strong> para esse tipo <strong>de</strong> investigação. A ficção, por exemplo, parece dispor dos<br />

mecanismos necessários para a formação <strong>da</strong>s crenças que causam as emoções.<br />

Tolstoi faz-nos acreditar que Ana Karenina se suicidou atirando-se para a linha do<br />

combóio. E é essa crença que nos faz sentir pena pelo <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Ana Karenina. Mas<br />

quando percebemos que Ana Karenina se aproxima <strong>da</strong> linha <strong>de</strong> combóio para se<br />

atirar, nós não gritamos «não!» para a impedir <strong>de</strong> o fazer. Tal como não fugimos <strong>da</strong><br />

sala <strong>de</strong> cinema quando estamos a ver um filme <strong>de</strong> terror e uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> cena nos<br />

causa medo. Parece faltar aqui uma <strong>da</strong>s componentes <strong>da</strong> emoção, ou seja, a reacção<br />

comportamental a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ao que é sentido. Mas este nem sequer é o principal<br />

problema que se coloca ao conhecimento <strong>da</strong>s emoções através <strong>da</strong> ficção, pois<br />

compreen<strong>de</strong>r apenas alguns aspectos <strong>da</strong>s emoções é já compreen<strong>de</strong>r melhor a sua<br />

natureza.<br />

O problema mais intrigante é o <strong>de</strong> explicar o chamado «paradoxo <strong>da</strong> ficção». O<br />

paradoxo <strong>da</strong> ficção é formado pelas seguintes três intuições aparentemente<br />

indisputáveis:<br />

5 É a chama<strong>da</strong> perspectiva cognitivista <strong>da</strong> emoção, a qual se opõe à perspectiva fisiológica inicialmente<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por William James.<br />

6


i) Os leitores (ou as audiências) por vezes sentem emoções tais como medo,<br />

pena, <strong>de</strong>sejo e admiração acerca <strong>de</strong> acontecimentos e personagens<br />

ficcionais.<br />

ii) Uma condição necessária para sentir tais emoções é que as pessoas que<br />

as sentem acreditem que os objectos <strong>da</strong>s suas emoções existem.<br />

iii) Os leitores (ou as audiências) que sabem que esses objectos são ficcionais<br />

não acreditam que tais objectos existem.<br />

Estas proposições não po<strong>de</strong>m ser to<strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras. Como po<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong> facto,<br />

sentir pena pelo <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Ana Karenina, quando estamos conscientes <strong>de</strong> que Ana<br />

Karenina não passa <strong>de</strong> uma personagem ficcional? Uma resposta possível é dizer que<br />

não sentimos realmente pena, uma vez que não chega realmente a haver crença.<br />

Essa é a resposta <strong>de</strong> Walton (1990), que procura <strong>de</strong>sfazer o paradoxo mostrando que<br />

i) é uma proposição falsa. Walton alega que os leitores não sentem realmente pena <strong>de</strong><br />

Ana Karenina, mas fazem <strong>de</strong> conta que sentem pena, pois as personagens dos<br />

romances são apenas a<strong>de</strong>reços num jogo <strong>de</strong> faz <strong>de</strong> conta que o leitor aceita jogar.<br />

Assim, o que os leitores sentem não é pena, mas quasi-pena. Do mesmo modo,<br />

também não há genuína emoção, mas quasi-emoção. Neste caso teríamos <strong>de</strong> pôr <strong>de</strong><br />

parte as emoções como objecto <strong>de</strong> conhecimento artístico; teríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a arte, e a ficção em particular, nos permite compreen<strong>de</strong>r melhor as<br />

emoções, mas passaríamos a dizer que nos permite conhecer as quasi-emoções. Já<br />

Peter Lamarque (1981) consi<strong>de</strong>ra que i) é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e que é ii) a proposição falsa,<br />

permitindo-nos continuar a falar <strong>de</strong> emoções genuínas. Lamarque alega que nos<br />

contextos ficcionais a crença é relega<strong>da</strong> para segundo plano pela vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

pensamentos, o que é suficiente para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar as emoções.<br />

Regressando ao caso <strong>da</strong> música, à primeira vista as coisas parecem um pouco<br />

mais complica<strong>da</strong>s do que na ficção, pois não se vê como po<strong>de</strong>rá ela ser capaz <strong>de</strong><br />

causar crenças nos ouvintes. Mas se alguma arte é geralmente associa<strong>da</strong> às<br />

emoções, essa arte é justamente a música. Tanto Peter Kivy (2002) como Roger<br />

Scruton (1997), para referir apenas dois filósofos que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m perspectivas anti-<br />

cognitivistas em relação ao valor <strong>da</strong> arte em geral, argumentam, mesmo assim, que<br />

compreen<strong>de</strong>r o significado musical é, entre outras coisas menos importantes,<br />

apreen<strong>de</strong>r o seu conteúdo emocional. Não perceber isso é não compreen<strong>de</strong>r uma<br />

aspecto essencial <strong>da</strong> compreensão musical: o carácter expressivo <strong>da</strong> música. E tanto<br />

um como outro alegam que não é nos ouvintes que a emoção está situa<strong>da</strong>, mas na<br />

7


própria música. A i<strong>de</strong>ia não é a <strong>de</strong> que a música <strong>de</strong>sperta ou evoca emoções nos<br />

ouvintes, mas a <strong>de</strong> que existe qualquer coisa como quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s emotivas na música.<br />

«A emoção [na música] é mais como a vermelhidão para a maçã do que como o arroto<br />

para cidra», brinca Kivy (p.30). O problema é, então, o <strong>de</strong> perceber como po<strong>de</strong> a<br />

música ter emoções, uma vez que as emoções são estados próprios <strong>de</strong> seres<br />

conscientes e não é esse o caso <strong>da</strong> música. Para respon<strong>de</strong>r a esse problema<br />

Levinson (1990) argumenta que as emoções expressas pela música são as emoções<br />

<strong>de</strong> uma «persona musical», uma pessoa imaginária que se encontra e exprime na<br />

própria música. As questões relativas à expressão <strong>de</strong> emoções serão, contudo,<br />

trata<strong>da</strong>s mais adiante, pois são uma resposta à segun<strong>da</strong> pergunta formula<strong>da</strong> acima e<br />

não à primeira.<br />

Quanto ao último tipo <strong>de</strong> objectos que po<strong>de</strong>mos conhecer através <strong>da</strong> arte, é<br />

também uma i<strong>de</strong>ia muito comum a <strong>de</strong> que a arte nos proporciona conhecimento sobre<br />

a natureza humana e, acima <strong>de</strong> tudo, sobre as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais. É supostamente isso<br />

que procuramos e valorizamos nas boas obras <strong>de</strong> ficção e, em especial, nas gran<strong>de</strong>s<br />

obras literárias. Contudo, é altamente implausível afirmar o mesmo acerca <strong>de</strong> artes<br />

não ficcionais como a música. Em nenhum sentido aceitável se po<strong>de</strong> afirmar que a<br />

música exprime ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais ou que veicula qualquer tipo <strong>de</strong> informação acerca<br />

<strong>da</strong> natureza humana, a não ser que estejamos a pensar na natureza e funcionamento<br />

<strong>da</strong>s emoções. O que não significa que muita arte não contenha ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais e<br />

informação importante sobre o mundo e a natureza humana. Apenas significa que<br />

esse não po<strong>de</strong> ser o argumento do cognitivista para justificar o valor <strong>da</strong> arte em geral,<br />

pois não se aplica a to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> arte, constituindo a música um dos contra-<br />

exemplos mais óbvios.<br />

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