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QUASE HAICAIS<br />
Pra que uma epopeia<br />
Se num haicai<br />
Cabe toda a i<strong>de</strong>ia?<br />
XICO SÁ
INTRODUÇÃO<br />
Neste livro, não busquei com acuida<strong>de</strong> construir o Haicai original, que é uma das formas poéticas mais<br />
difundidas no Japão, embora, em alguns poemas, eu encontre o caminho. O Haicai é um poema que se<br />
compõe <strong>de</strong> <strong>de</strong>zessete sílabas, distribuídas em versos <strong>de</strong> 5-7-5 sílabas. Exemplo:<br />
(O grilo)<br />
Oculto no dom<br />
Que tem <strong>de</strong> não ser ninguém<br />
O grilo é som. (Jorge Tufic)<br />
Na verda<strong>de</strong>, o haicai é um terceto. Contudo, na maioria dos poemas <strong>de</strong>ste livro, não pratico com rigi<strong>de</strong>z<br />
essa preocupação com a forma nem com as rimas. Por isso chamo os poemetos que fiz <strong>de</strong> Quase Haicais,<br />
pela semelhança que eles possuem com esse estilo poético. A manutenção dos três versos é básica, a<br />
gente não tem como fugir, porém, em muitos poemas, excedo o número <strong>de</strong> sílabas exigido pelo Haicai<br />
japonês, que é <strong>de</strong> 17 sílabas. Em nossa língua,o haicai é permitido até 21 sílabas.<br />
Também, alguns tercetos <strong>de</strong>sse livro se assemelham aos tankas <strong>de</strong> Takuboku Ishikawa*. O Tanka, que<br />
parece ser um <strong>de</strong>sdobramento do Haicai, apresenta a estrutura 5-7-5-7-7, entretanto, no livro <strong>de</strong> Tankas <strong>de</strong><br />
Takuboku, a tradução <strong>de</strong>les para o português findou em três versos, à semelhança dos <strong>haicais</strong>. Veja o<br />
exemplo a seguir:<br />
tookaino/ kojima no isso no/ shirassunani/ ware nakinurete/ kani to tawamuru (5-7-5-7-7)<br />
Na transliteração <strong>de</strong>ste tanka para a nossa língua, o texto ficou modificado para três versos, para que o<br />
sentido não fosse quebrado, acho:<br />
Pequena ilha ao leste do mar<br />
Brinco à luz da areia com um caranguejo<br />
A face molhada <strong>de</strong> lágrimas<br />
Enfim, ao longo da minha vida universitária, me interessei pelo estilo e lia muito os <strong>haicais</strong> irreverentes<br />
<strong>de</strong> Paulo Leminski e <strong>de</strong> Xico Sá, que adaptavam o haicai para um jeito bem brasileiro. Foi pela leitura<br />
<strong>de</strong>sses autores, que trabalharam o estilo haicai mais pelo conteúdo do que pela forma, que me espelhei, e<br />
repasso para os leitores esses tercetos, que costumo chamar <strong>de</strong> Quase Haicais, ou <strong>quase</strong> tankas.<br />
*Takuboku Ishikawa é um poeta japonês bastante conhecido em seu país, mas que teve vida muito curta:<br />
27 anos. Seu livro <strong>de</strong> tankas foi traduzido no Brasil por MasuoYamaki e Paulo Colina: TANKAS, da<br />
RoswithaKempf Editores.
QUASE JOCÃO<br />
Vou tomar as palavras do próprio <strong>Joca</strong> para falar como ele me pediu. Então vamos. Para começo,<br />
<strong>Joca</strong> é meu amigo e não vou falar mal <strong>de</strong>le nem a pau. Continuando a conversa, não há malda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />
falar. Sabemos, eu e <strong>Joca</strong>, a estufa que é este mundo, o cal<strong>de</strong>irão on<strong>de</strong> nos impõem viver, eles, sempre<br />
eles, os outros. Como já filosofaram, são dos outros a culpa das nossas <strong>de</strong>sgraças, obviamente.<br />
Mas, eis os <strong>haicais</strong> <strong>de</strong> <strong>Joca</strong>. Miúdos, sim, mas há tanto que me interessa! <strong>Joca</strong> colocou o Japão na cabeça<br />
e na caneta, foi fazendo os poemas, a "tessitura" como dizia Copão. Inventou uma tuia <strong>de</strong> coisas gran<strong>de</strong>s<br />
porque, sabe-se, Recife não é mo<strong>de</strong>sta; coisas gran<strong>de</strong>s com dor e menino triste por entre. E a nossa terra<br />
já nos mostrou muitas vezes o quanto a honra é conta salgada, o bico da faca, a ponta da bala, o escárnio e<br />
mesmo o silêncio – isso faz um estrago!... <strong>Joca</strong> vai vivendo, trabalhando e escreveu os <strong>haicais</strong>. A<br />
insustentável leveza dos 50 anos, quem po<strong>de</strong>? O beija-flor e Dadá Jacaré somente. O resto, as tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
dor, as noites <strong>de</strong> gastura, o sofrimento dos meninos, os cozimentos reveis:<br />
A vida ensina.<br />
Depois dos cinquenta,<br />
Começam as aulas.<br />
Isto não é esperança? É. Azulzinha. O cal<strong>de</strong>irão do mundo ainda seduz, o charme que é viver <strong>Joca</strong> sabe. E<br />
vai dizendo, feito um grilo na ribalta com o vago lume do seu som, certamente lamentando tempos <strong>de</strong><br />
holofotes: da <strong>de</strong>nsa poeira do tempo que escon<strong>de</strong> coisas da gente, da bala<strong>de</strong>ira que não pipocou nos peitos<br />
do passarinho, quebrou catolé; das buscas das mães, das coisas que nos aperreiam e não são azuis, feliz <strong>de</strong><br />
quem ainda encontra algum caminho e proclama alguma liberda<strong>de</strong>. Mas, mesmo que a liberda<strong>de</strong> fosse<br />
azul, on<strong>de</strong> estão aqueles nossos olhos? Daltônicos, <strong>de</strong>certo. Encurralados em algum escuro beco <strong>de</strong> fome.<br />
O tempo passou, não há mais dúvida. Estes poemas <strong>de</strong> <strong>Joca</strong> provam. Morreram muitos poetas. O homem<br />
foi embora <strong>de</strong> si. Talvez sim: uma estrela ca<strong>de</strong>nte...<br />
Expulso do bar,<br />
Abandonou a noite<br />
Pra jamais voltar.<br />
Talvez não; talvez possamos seguir apenas escapando... e isto também ser vida, ser atitu<strong>de</strong>. Só que eu<br />
preciso beber. Só isso. Só. Já não chamo o mundo. Como não beber água da lua? Como não cavar <strong>de</strong>ntro<br />
da semente que você plantou? Somos os poetas bissextos, os <strong>de</strong> poucas folhas. E o que não é folha para os<br />
gran<strong>de</strong>s ventos, as gran<strong>de</strong>s forças que empurram, massacram, <strong>de</strong>nigrem... e o poeta no umbral <strong>de</strong> tais<br />
fúrias, com o pé <strong>de</strong> cabra com o qual as portas sonham,<br />
Observa, imita, até copia,<br />
Para <strong>de</strong>pois<br />
Montar a própria fantasia.<br />
Tu o disseste. E disseste muito mais neste trabalho que não é um clássico <strong>de</strong> capa dourada porque este,<br />
ah!,não temos. Temos é vida, o que fomos e o que estamos; isto tem força. Enfim, eis a mesa e tudo<br />
posto, certo Jocão? Os poemas estão certos.<br />
Recife, 11/02/2012<br />
Wilson Vieira
QUASE HAICAIS<br />
1.<br />
Um olhar no interior da velha casa:<br />
Filho pródigo tardio. A <strong>de</strong>nsa poeira do tempo<br />
Cobrira até o retrato <strong>de</strong> meus pais.
2.<br />
Era linda, e tinha um sublime<br />
Po<strong>de</strong>r sobre meus olhos juvenis:<br />
Sua face <strong>de</strong> cristal partiu-se no tempo.
3.<br />
Era apenas uma lagartixa na pare<strong>de</strong>,<br />
Mas não consegui soltar a minha bala<strong>de</strong>ira<br />
Nem a agressivida<strong>de</strong> natural dos meninos <strong>de</strong> rua.
4.<br />
Me ameaçava somente com um olhar<br />
E era mais alto e mais forte.<br />
Eu cresci. Anos <strong>de</strong>pois, ele me viu e correu.
5.<br />
O fantasma se escon<strong>de</strong>u atrás da cortina.<br />
Pensei tê-lo visto, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
E voltei a sonhar com a eternida<strong>de</strong>.
6.<br />
Ro<strong>de</strong>ava os interiores da casa<br />
À procura <strong>de</strong> um malfeito, até encontrar.<br />
Minha mãe <strong>de</strong>veria caçar tesouros!
7.<br />
A noite caiu na minha sopa<br />
Um olhar no abrigo para velhos<br />
Da solidão me poupa.
8.<br />
A lua cheia sempre encanta<br />
O meu olhar mudo<br />
E me convida para <strong>quase</strong> tudo
9.<br />
(Cena <strong>de</strong> Faroeste)<br />
A violência da periferia<br />
Tornou o bar ambiente sombrio:<br />
Poucos bebendo, ninguém dá um pio.
10.<br />
(Estatística)<br />
A vida é muito sutil:<br />
Na favela Mata-Sete,<br />
Sobrevivem mil!
11.<br />
A próxima cerveja lembra...<br />
E ao bebedor solitário<br />
Alegria recomenda.
12.<br />
Sua infâmia não acen<strong>de</strong>u a minha ira:<br />
Repercutida, pareceu verda<strong>de</strong>,<br />
Mas continuou sendo uma mentira.
13.<br />
Quando chega a noite<br />
Por não ter lume<br />
O grilo retine.
14.<br />
(Viagem II: Ícaro)<br />
Sonhou o mais alto que pô<strong>de</strong>.<br />
Sublime, voou além do arrebol:<br />
Foi barrado na porta do Sol!
15.<br />
(Débito)<br />
Vida longa e amargurada<br />
Mitiga pecados?<br />
A honra é conta interminável...
16.<br />
(Graça)<br />
A Vida é dom.<br />
Viver é equilíbrio ante a morte,<br />
Com coragem, e sorte!
17.<br />
(Cinzas)<br />
Minhas lágrimas:<br />
Confetes no salão<br />
Varridos ao amanhecer
18.<br />
(Sem Magia)<br />
O ladrão, Ben Ali,<br />
Abriu a porta com pé <strong>de</strong> cabra<br />
E sem abracadabra.
19.<br />
Quando é festa,<br />
Brilham pontes, igrejas e poetas:<br />
Recife não é mo<strong>de</strong>sta!
20.<br />
(Tsunami)<br />
Parece leve, uma bolha.<br />
Arrastado pela gran<strong>de</strong> onda,<br />
O caminhão é uma folha.
21.<br />
(O Poeta)<br />
Observa, imita, até copia,<br />
Para <strong>de</strong>pois<br />
Montar a própria fantasia.
22.<br />
(Hai Carga)<br />
Num programa <strong>de</strong> televisão,<br />
Trinta pessoas em um fusca.<br />
No meu coração cabe um milhão.
23.<br />
Qualquer homem, como estigma,<br />
Mesmo o que avançou em conhecimento,<br />
Po<strong>de</strong> levantar-se violento.
24.<br />
Clássico <strong>de</strong> capa dourada,<br />
Retido na formosa estante:<br />
A palavra aprisionada.
25.<br />
A noite é quente.<br />
Numa poça da rua,<br />
O cão bebe água da Lua.
26.<br />
Morte aos bárbaros!<br />
Eu gritei,<br />
E me tornei igual, <strong>de</strong> vez.
27.<br />
Olho viciados na rua:<br />
Dispersa, somente a fumaça<br />
Desenha um caminho às estrelas.
28.<br />
(Feira)<br />
Maria entrou no mercado:<br />
José <strong>de</strong>rramou farinha,<br />
Mané tropeçou num saco.
29.<br />
(Boemia Literária)<br />
Meu espírito – nunca mais –<br />
Acampou no Beco ou no Hospício<br />
Com poetas da rua e seus recitais.
30.<br />
O pássaro voa entre prédios<br />
E escapa para o mar: poluído.<br />
A liberda<strong>de</strong> não é mais azul.
31.<br />
A sustentável leveza<br />
Do beija-flor<br />
Perpetua a Natureza.
32.<br />
Céu ou Inferno? Estou<br />
Dentro da semente<br />
Que você plantou.
33.<br />
(Civilização)<br />
A tecnologia assombra,<br />
Mas a barbárie a persegue:<br />
É sua sombra!
34.<br />
(O Desertor)<br />
Escapa da linha <strong>de</strong> fogo:<br />
Sem glória, sem flores,<br />
Sem flâmulas, a vida em chamas.
35.<br />
O pintor admira<br />
A mo<strong>de</strong>lo <strong>quase</strong> nua.<br />
O pincel é sua mira.
36.<br />
A estufa e seu efeito:<br />
O rio, <strong>quase</strong> somente pedras,<br />
Em triste leito.
37.<br />
A vida ensina.<br />
Depois dos cinquenta,<br />
Começam as aulas.
38.<br />
Não mais <strong>de</strong> tristeza<br />
O olhar da menina <strong>de</strong> rua fulminava<br />
Nossa roupa <strong>de</strong> domingo
39.<br />
Perto da tela<br />
Zefa xingou a vilã<br />
Da telenovela.
40.<br />
Noite: é sereno e orvalho.<br />
Feito um pássaro, o silêncio voa<br />
De galho em galho.
41.<br />
(Farmacinha)<br />
Brincava com os remédios <strong>de</strong> meus pais.<br />
Hoje, com minha caixa,<br />
Não sorrio mais.
42.<br />
Terminou a visita.<br />
O olhar do enfermo me perguntou<br />
Quando volto.
43.<br />
A menor, em <strong>de</strong>sespero,<br />
Assumiu o aborto. O cara<br />
Continua anônimo, em outro porto.
44.<br />
(Recife)<br />
Fui ao São Luiz, na primeira noite.<br />
Voltei pela Imperatriz <strong>de</strong>serta:<br />
Tudo era novo, e assustava.
45.<br />
Em tempos <strong>de</strong> guerra,<br />
Nem a primavera<br />
Consegue sorrir.
46.<br />
(Lição)<br />
Expulso do bar,<br />
Abandonou a noite<br />
Pra jamais voltar
47.<br />
A parteira era trancada no quarto.<br />
A cegonha, esperávamos pelo ar:<br />
Mas nunca a vi pousar.
48.<br />
Ave pernalta<br />
Na folhagem do mangue:<br />
Divina fome.
49.<br />
Cada célula, cada nervo,<br />
Cada músculo, enfim, cada vida<br />
Dá sinais <strong>de</strong> que foi construída!
50.<br />
(Planeta Terra)<br />
Se o Criador, ao final da criação,<br />
Achou bom o que foi criado,<br />
Não <strong>de</strong>struiria o bem amado.
51.<br />
(A Palavra)<br />
Qualquer homem é<br />
Ser capaz <strong>de</strong> milagres.<br />
Um: estar vivo!
52.<br />
O que se falou<br />
Do meu passado disse<br />
De outro homem.
53.<br />
Na palafita,<br />
Uma criança chora,<br />
A fome grita.
54.<br />
(Mímica)<br />
Feito um robô<br />
Fazia gestos bruscos<br />
Na saída do metrô.
55.<br />
(Big Bang)<br />
Vir da explosão<br />
A origem <strong>de</strong> tudo<br />
Me <strong>de</strong>ixou mudo.
56.<br />
(Barroco)<br />
Sem idolatria...<br />
Mas, Igreja sem santos<br />
Per<strong>de</strong> a magia.
57.<br />
(Riqueza)<br />
Muito pobre,<br />
A vida era sua viagem.<br />
A poesia: sua bagagem.
58.<br />
(Método)<br />
Sempre meu verso<br />
Bem fora da escola:<br />
Livre, disperso.
59.<br />
(Eco)<br />
Espalhados na relva<br />
Sem zoo<br />
Bichos na selva selva
60.<br />
Última viagem:<br />
Deu um treco<br />
No teco-teco.