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REVISTA<br />
Nesta edição, a Continuum fala sobre a arte<br />
“escondida” no dia a dia.<br />
O curador britânico Guy Brett<br />
reflete sobre a produção<br />
contemporânea e o legado<br />
de Hélio Oiticica.<br />
ITAÚ CULTURAL 25<br />
<strong>Quem</strong><br />
<strong>procura</strong><br />
<strong>acha</strong><br />
E mais:<br />
Crônica de Eliane Brum mostra uma vida construída<br />
com fragmentos de histórias alheias.<br />
Em conto inédito, Daniel Galera traz diferentes significados<br />
para uma foto.<br />
Striptease também é arte?<br />
itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias
Arte é participação<br />
Nas ruas e ladeiras, nas platibandas, dentro das casas, no metrô, em um gesto. A arte está em todo lugar, basta<br />
apropriar-se dela, todos os dias. A ideia, aparentemente simples, foi centro da reflexão e de obras de artistas como<br />
Hélio Oiticica e Lygia Clark. “O museu é o mundo; é a experiência cotidiana”, escreveu Oiticica em 1966. Pensando<br />
nisso, a Continuum Itaú Cultural aborda as diversas formas da arte como elemento perene em nossa vida – ela<br />
está em todos os lugares, a todo o tempo, apenas à espera de um olhar atento que a faça despertar.<br />
Com o título <strong>Quem</strong> <strong>procura</strong> <strong>acha</strong>, a edição se inicia com uma reportagem que esclarece não existir arte sem o<br />
olhar do outro, a participação de um espectador. O debate de que toda arte é participativa também está presente<br />
na entrevista com o curador britânico Guy Brett, um dos responsáveis pela projeção da produção contemporânea<br />
brasileira na Europa.<br />
Ter os ouvidos atentos às narrativas simples, registrá-las e fazer<br />
delas pequenas peças literárias é o trabalho da jornalista gaúcha<br />
Eliane Brum, que, na Crônica, conta de que forma histórias<br />
de vida constituem, também, o motor de sua existência. A<br />
fotorreportagem traz a investigação de três fotógrafos brasileiros<br />
acerca de detalhes corriqueiros de casas que remetem a<br />
estilos da arte, a exemplo do barroco, do rococó e até mesmo<br />
do contemporâneo.<br />
A cidade imaginada como um imenso espaço expositivo, lugar em que é possível a um curador rearranjar volumes<br />
ou alterar cores da paisagem urbana. Esse foi o desafio proposto aos cenógrafos Kiko Canepa e Valdy<br />
Lopes Jn. e à artista visual Edith Derdyk. Eles reinventaram, respectivamente, trechos de São Paulo, Salvador<br />
e Belém, por meio de desenhos e da manipulação de imagens.<br />
E confirmando a tese de que a arte está em todos os lugares a Continuum comemora a grande<br />
participação dos leitores na seção Área Livre. Ao todo, foram recebidos 64 trabalhos, entre desenhos,<br />
fotografias, charges, textos e poemas visuais. Parte deles está na edição impressa,<br />
e o conjunto completo você vê no site da revista. É uma prova de que o exercício<br />
de descondicionar a forma de viver o cotidiano, enxergando a arte que<br />
existe em todos os cantos, é algo não só prazeroso como também<br />
pode trazer bons resultados. Experimente<br />
você também!<br />
2 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 3<br />
Ilustração: Vânia Medeiros<br />
Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André Seiti,<br />
Thiago Rosenberg Produção editorial Caio Camargo Revisão Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim, Casa de Marimbondo, Daniel<br />
Galera, Daniel Marenco, Diogo Sponchiato, Edith Derdyk, Eliane Brum, Henrique Manreza, Ivan Pires, Jean-Frédéric Pluvinage, Kiko Canepa, Manuela<br />
Eichner, Marcelo Rampazzo, Marcio Banfi, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Paula Desgualdo, Phamela Dadamo, Tatiana Diniz, Theo Firmo, Valdy<br />
Lopes Jn., Valéria Simões, Vânia Medeiros, Wilson Inacio Agradecimento Antônio Macena Valentim, Carla Guagliardi, Cecília do Val, Flávio Teodoro Marques,<br />
Francisco das Chagas dos Santos, Gabinete de Arte Raquel Arnauld, Luca Bueno, Olivia Brett e Orides de Moraes<br />
capa ilustração: Liane Tiemi Iwahashi | foto: André Seiti<br />
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)<br />
Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento<br />
continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554<br />
Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.
Entrevista<br />
30. Interseção infinita<br />
O curador britânico Guy Brett fala sobre como a arte brasileira é vista –<br />
e apreciada – no exterior, e afirma: “Arte é vida mediada pelo artista”.<br />
Reportagem<br />
6. A vida como obra de arte<br />
O legado de Hélio Oiticica. Saiba por que e como cada<br />
canto do mundo pode se transformar em um museu.<br />
12. Um flerte de longa data<br />
De Adão e Eva a Arthur Bispo do Rosário, passando por<br />
Coco Chanel e Leonilson: como a arte esteve e está<br />
presente na moda.<br />
22. O remédio está nas tintas...<br />
Quando a música, a literatura, a pintura, a fotografia e<br />
outros meios de expressão se aliam à medicina para<br />
proporcionar bem-estar.<br />
42. Ninguém veio para cá por<br />
outro motivo, além de nós<br />
Um repórter e uma coreógrafa visitam uma casa noturna<br />
em busca da resposta para a seguinte questão:<br />
striptease também é arte?<br />
58. Casa em obras<br />
Lar, doce lar: os artistas que fazem de suas residências<br />
espaços expositivos, trazendo para o cotidiano um<br />
quê de arte.<br />
Intervenção<br />
16. A cidade em exposição<br />
A convite da Continuum, Edith Derdyk, Kiko Canepa<br />
e Valdy Lopes Jn. elaboraram projetos para recriar o<br />
espaço urbano de três grandes cidades brasileiras.<br />
4 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 5<br />
2010|25<br />
6<br />
Crônica<br />
26. “Minha vida dá um romance”<br />
O ato de ouvir histórias alheias atentamente pode<br />
transformar nossa própria história.<br />
Fotorreportagem<br />
36. Onde vive a arte<br />
Uma sala com móveis que lembram a arquitetura moderna,<br />
um quintal com o desenho das calçadas de São<br />
Paulo, paredes de celas presidiárias que parecem pinturas.<br />
Imagens revelam os segredos guardados nos interiores.<br />
Balaio<br />
56. A arte de cada dia<br />
As dicas de livros, filmes e músicas da Continuum.<br />
36<br />
Ficção<br />
50. Cavalo amarrado a bicicleta<br />
Uma praia, um enquadramento, uma fotografia e uma<br />
história. Em conto inédito, o escritor Daniel Galera narra<br />
um acontecimento banal, com diferentes significados.<br />
Espaço do Leitor<br />
Deadline<br />
58<br />
46. A arte narrativa na vida digital<br />
O estudante de jornalismo Jean-Frédéric Pluvinage<br />
escreve sobre como os games on-line de RPG mudaram<br />
o jeito de contar e viver histórias.<br />
62. Convocação<br />
Saiba como ser um repórter da revista e fique por<br />
dentro do tema da próxima edição. Você pode ainda<br />
mandar cartas ou e-mails com sugestões, críticas e, é<br />
claro, elogios.<br />
63. Área Livre<br />
Os trabalhos artísticos de leitores que buscaram –<br />
e encontraram – a arte escondida no dia a dia.
6 Continuum Itaú Cultural<br />
A vida como obra de arte<br />
reportagem<br />
Não é preciso estar em um museu para contemplar uma obra. Ao seu redor<br />
há um mundo feito de arte, que só aparece a quem participa dele.<br />
Por Mariana Sgarioni<br />
Existe uma célebre frase, atribuída ao líder indiano Mahatma Gandhi, que diz algo como: “A arte da vida<br />
consiste em fazer da vida uma obra de arte”. Essa ideia é discutida não apenas por quem pensa o comportamento<br />
humano, mas também por artistas e por quem reflete o papel da arte no nosso cotidiano. Não se trata<br />
de questionar apenas o que é a arte e sim onde ela está e de que maneira diz respeito a nós, espectadores.<br />
O artista brasileiro Hélio Oiticica foi um dos principais responsáveis por tirar essa discussão do meio acadêmico<br />
e trazê-la para o grande público. No início da década de 1960, ele publicou o texto “O Museu É o<br />
Mundo”, no qual questionava o lugar da arte. Até então se falava apenas nas quatro paredes de um museu.<br />
Para Hélio, não era preciso entrar em um para vê-la. Ela estaria no dia a dia, nas ruas, nas casas, nas atitudes,<br />
no mundo. “Pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas. Isto<br />
seria um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de exposição – ou nós<br />
o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo; é a experiência cotidiana”, escreveu Oiticica<br />
em 1966. Curiosamente, a curadora Lisette Lagnado lembra que, ao mesmo tempo que o brasileiro falava<br />
dessa experiência aqui, nos Estados Unidos outro autor dizia exatamente o contrário: o mundo é um museu,<br />
defendendo o caráter estático da arte.<br />
Ao lado, Hélio Oiticica com Bólide B33 Caixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo, 1965/1966, de sua autoria | foto: Cláudio Oiticica
E o que isso quer dizer? Para Oiticica, tudo ao nosso redor<br />
poderia ser uma obra de arte. Parece meio estranho<br />
pensar isso em relação a um lápis ou um chaveiro jogado<br />
na mesa, mas a ideia está longe de ser tão simplista.<br />
“Para o artista, o dia a dia de alguém pode ser uma<br />
obra de arte. É só descondicionar seus hábitos, como<br />
beber um copo de água de uma maneira diferente”,<br />
observa Paula Braga, crítica de arte e autora do livro<br />
Fios Soltos: A Arte de Hélio Oiticica (Perspectiva, 2008).<br />
Oiticica mostrava que as coisas estão ali, no mundo,<br />
prontas para ser experimentadas e se tornar arte.<br />
Com a série de trabalhos chamada Bólides (a partir<br />
de 1963), ele deixou essa marca bem clara. Trata-se<br />
de recipientes simples (caixas, sacos, latas, bacias)<br />
com materiais elementares e manipuláveis que<br />
induzem à experimentação. O Bólide Lata-Fogo,<br />
por exemplo, mostra que a lata pegando fogo<br />
não precisa estar dentro de um museu<br />
para se tornar arte. Ela está no mundo,<br />
na vida. E é arte porque toca,<br />
chama atenção.<br />
Nós no papel de artistas<br />
Ao desenrolar o conceito de que o museu está por toda<br />
parte, outra noção veio à tona: a de que o público não<br />
seria apenas um espectador que vê passivamente a obra,<br />
e que a arte só se concretiza quando existe integração.<br />
Segundo o próprio Oiticica, “o participador lhe empresta<br />
os significados correspondentes – algo é previsto pelo<br />
Integrar, no caso da arte, significa usar todos os sentidos<br />
e não apenas a visão – assim, os trabalhos de Oiticica ultrapassam<br />
a mera contemplação das obras ao misturar a<br />
visão ao olfato, ao tato, à audição e ao paladar.<br />
artista, mas as significações emprestadas são possibilidades<br />
suscitadas pela obra não previstas, incluindo a não<br />
participação nas suas inúmeras possibilidades também”.<br />
Ou seja, o artista nunca sabe ao certo qual resultado a<br />
obra terá, tudo vai depender de quem participa dela.<br />
De certa forma, esse conceito se aproxima da pedagogia<br />
proposta por Paulo Freire, que criticava a passividade<br />
do aluno perante o professor, o qual seria o detentor<br />
do conhecimento. Freire acreditava que o professor<br />
deveria propor seu conhecimento aos estudantes,<br />
assim como Oiticica propunha sua obra ao público.<br />
O resultado final aparecia quando ocorria a chamada<br />
integração entre as duas partes.<br />
Integrar, no caso da arte, significa usar todos os sentidos<br />
e não apenas a visão – assim, os trabalhos de Oiticica<br />
ultrapassam a mera contemplação das obras ao misturar<br />
a visão ao olfato, ao tato, à audição e ao paladar. Nesse<br />
ponto, uma referência importante foi o filósofo francês<br />
Maurice Merleau-Ponty, que afirmava que nossa percepção<br />
do mundo se dá por meio da integração dos cinco<br />
sentidos e não de cada um separadamente. Oiticica<br />
ampliou a ideia: não existe a audição sozinha, nem o<br />
tato sozinho e assim por diante. Da mesma maneira,<br />
Penetrável PN 1,1960, de Hélio Oiticica | foto: César Oiticica Filho<br />
8 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 9
não existe<br />
a arte sozinha, nem<br />
a política, nem a sociologia. Tudo<br />
está misturado. É como se perguntava<br />
o sociólogo francês Roland Barthes: “A que<br />
distância devo me manter de meus semelhantes<br />
para construir com os outros uma sociabilidade<br />
sem alienação?”<br />
“Com os Núcleos, de 1960-1963, espaços definidos<br />
por planos ortogonais dependurados do teto por<br />
fios, Oiticica inaugurou a construção de um espaço<br />
de cor que podia ser penetrado pelo espectador. Daí<br />
o termo penetráveis, que o artista usaria até o final de<br />
sua carreira. Esses ambientes exigem mais do que um<br />
espectador: a obra só faz sentido quando experimentada,<br />
habitada”, diz Paula Braga.<br />
Aonde chegariam os conceitos “oiticiquianos” hoje? De que<br />
maneira eles conduziriam a relação da arte no mundo, da<br />
participação do indivíduo, da coautoria? Oiticica deixou<br />
essas questões em aberto. Uma obra em aberto, prestes a<br />
ser construída por algum de nós.<br />
<strong>Quem</strong> experimenta e quem habita? Ora, o corpo.<br />
Oiticica passou a ter um contato diferente com o<br />
próprio corpo ao começar a frequentar o Morro da<br />
Mangueira, no Rio de Janeiro. Teve aulas de dança<br />
e tornou-se passista da escola de samba Estação<br />
Primeira de Mangueira. Descobriu que seu corpo era<br />
muito mais do que um mero receptor de estímulos<br />
sensoriais, ele era parte do ambiente. Foi daí que<br />
nasceu sua mais famosa série de obras, os Parangolés,<br />
feitos a partir de 1964, os quais exigem um corpo que<br />
dança e se movimenta.<br />
Diversos artistas têm bebido dessas referências para<br />
compor suas obras. Marcelo Cidade, por exemplo, usou<br />
na intervenção Eu-Horizonte seu próprio corpo como<br />
matéria-prima para reivindicar um horizonte na capital<br />
paulista. Até que ponto um horizonte é importante<br />
no contexto urbano? Em uma performance, o artista<br />
aparece nu, suspenso, em uma movimentada esquina<br />
da zona leste de São Paulo. Apesar de admitir a referência<br />
dos anos 1960, Marcelo acredita que se Oiticica<br />
estivesse vivo a discussão seria outra. “Naquela época,<br />
tratava-se de um mundo polarizado, entre ideologias<br />
de direita e esquerda. Atualmente, discutimos como<br />
podemos viver eticamente”, afirma.<br />
Aonde então chegariam os conceitos “oiticiquianos”<br />
hoje? De que maneira eles conduziriam a relação da arte<br />
no mundo, da participação do indivíduo, da coautoria?<br />
Será que qualquer um poderia vir a ser um artista do seu<br />
próprio dia? Não se sabe ao certo. Oiticica deixou essas<br />
questões em aberto. “Hélio imaginava a arte como um<br />
elástico, que sempre pode ser esticado para um lado<br />
que ainda não foi”, explica Paula Braga. Talvez esse lado<br />
seja justamente uma obra em aberto, como ele deixou,<br />
prestes a ser construída por algum de nós.<br />
10 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 11<br />
Vestido Herói Marginal, 1965, de Hélio Oiticica | registro fotográfico: Alexandre dos Santos Silva
Um flerte de longa data<br />
Como a arte está presente na criação de alta-costura e como a moda<br />
é referência em vários projetos artísticos.<br />
Por Micheliny Verunschk | Ilustração Marcio Banfi<br />
reportagem<br />
E Deus criou o homem e a mulher, que comeram do fruto proibido e já foram inventando moda e arte. Afinal,<br />
nada mais performático do que aquela folha de parreira com que Adão e Eva se deram a desfilar nas passarelas<br />
do paraíso. Brincadeiras à parte, moda e arte vêm traçando caminhos paralelos praticamente desde que o<br />
mundo é mundo. Das túnicas da nobreza egípcia aos drapeados da corte espanhola retratada por Velásquez,<br />
passando por Coco Chanel e desaguando em nomes como Hélio Oiticica e Arthur Bispo do Rosário, para<br />
ficar apenas nos brasileiros, as relações e os diálogos entre moda e arte vêm há anos rendendo panos para<br />
mangas e resultados inimagináveis.<br />
Conforme explica a curadora e especialista em arte moderna e contemporânea Cacilda Teixeira da Costa, no seu<br />
livro Roupa de Artista – O Vestuário na Obra de Arte (Imprensa Oficial, 2008), a moda, como a entendemos hoje,<br />
surgiu em meados do século XIV, quando reis e nobres da Europa medieval, irritados por suas roupas serem<br />
copiadas pela burguesia em ascensão, passaram a usar modelos diferenciados que logo eram descartados<br />
após serem novamente imitados. Dentro desse ciclo infinito de repetições, o ato de vestir-se vem ganhando<br />
uma importância crescente, avalizada, embora não exclusivamente, pelas artes visuais.<br />
Das telas às ruas<br />
Segundo o jornalista especializado em moda Ricardo Oliveros, a moda existe para estar na vida: “É nas ruas,<br />
não nas passarelas, nem nas revistas, que a moda completa seu ciclo e é para estar lá que ela existe. Porém,<br />
ela vem ganhando outros significados desde que deixou de ser sinônimo de roupas e passou a ser um objeto,<br />
no sentido filosófico, que está sendo estudado por diferentes saberes. Eu penso a moda como um dos mais<br />
importantes e confiáveis documentos para entender o espírito de cada tempo”, afirma.<br />
Um trabalho que ilustra perfeitamente a posição de Oliveros é a tela Mulheres no Jardim, do pintor impressionista<br />
francês Claude Monet. As saias das personagens-título, avolumadas pela crinolina – armação feita<br />
de algodão e crina de cavalo trançada –, representam bem a ascensão do estilo vitoriano e do romantismo<br />
no século XIX, seja pela sobriedade dos trajes, seja pela aura de distanciamento da figura feminina. Ou como<br />
observa Alison Lurie, no seu livro A Linguagem das Roupas (Rocco, 1997), “a saia rodada parecia dizer que os<br />
homens não podiam se aproximar, nem para beijar a mão da mulher. Mas é claro que esse distanciamento<br />
era uma grande enganação. A saia rodada era um instrumento de sedução”. E é esse clima de desejo e interdição,<br />
malícia e suposta inocência que o pintor acaba por capturar para dentro do seu trabalho.<br />
De outro lado, e puxando para a contemporaneidade,<br />
Hélio Oiticica levou ao extremo da vitalidade o diálogo<br />
arte-moda-rua ao criar os Parangolés, obras de arte<br />
vestíveis que só ganham sentido ao se apoderar do<br />
movimento dos corpos que as levam. Bandeiras de<br />
vestir, pinturas de dançar, os Parangolés resumem o que<br />
diz Cacilda ao afirmar que “a moda em grande parte se<br />
alimenta da arte e, em alguns momentos, essa relação<br />
pode se reverter, acontecendo de ambas transitarem<br />
por opções semelhantes e de grande cumplicidade”.<br />
Contemporâneo de Oiticica, Arthur Bispo do Rosário,<br />
interno da Colônia Juliano Moreira, instituição para<br />
doentes mentais localizada no bairro de Jacarepaguá,<br />
Rio de Janeiro, confeccionou, entre várias obras, mantos<br />
bordados com pingentes, palavras e cordões, entre<br />
outros materiais e expressões, de grande beleza plástica<br />
e que dialogam com os mantos dos caboclos<br />
de lança do maracatu rural pernambucano. Essas<br />
vestes, concebidas pelo artista como roupas de<br />
se apresentar a Deus, são bons exemplos<br />
do trânsito e intimidade entre arte,<br />
vida e o sagrado.<br />
12 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 13
A relação<br />
entre a moda, a arte e<br />
o transcendente está presente<br />
também na pungente obra do artista<br />
visual cearense Leonilson, morto em 1993,<br />
que fez da biografia o principal motivo de sua<br />
arte. Sua última obra, uma instalação na Capela do<br />
Morumbi, em São Paulo, na qual cadeiras vestidas<br />
com camisas do próprio artista com mangas tornadas<br />
mais compridas que o usual, alude não apenas à<br />
fragilidade da vida e à ausência de materialidade do<br />
corpo, mas também à efemeridade de tudo o que faz<br />
o mundo. Inclusive a moda, podemos acrescentar.<br />
Moda e literatura<br />
Nem só de artes visuais vive o namoro entre arte e<br />
moda. A literatura busca reproduzir em palavras os<br />
brilhos, as texturas, as sedas e os cetins do vestuário<br />
de um sem-número de personagens. É o que afirma a<br />
professora e especialista em moda e literatura Genetti<br />
Tavares: “A moda como demarcador de um tempo, de<br />
uma época, como forma de leitura social e cultural de<br />
um indivíduo é amplamente explorada na literatura. A<br />
construção do personagem ficcional se apoia muitas<br />
vezes nesse traço da moda”.<br />
Genetti, que pesquisou as formas de apresentação<br />
da moda na literatura de M<strong>acha</strong>do de Assis, explica:<br />
“O leitor de suas crônicas vai se deparar com uma<br />
infinidade de referências ao vestuário e à moda sempre<br />
parecendo acaso, mas comumente associando<br />
essas referências às características da época, a acontecimentos<br />
inesperados. Ele [M<strong>acha</strong>do] também era<br />
muito dedicado às leitoras e sabia que as mulheres,<br />
mais que os homens, pelo menos no século XIX,<br />
gostavam da moda. Isso sem falar nos dândis. A obra<br />
de M<strong>acha</strong>do retrata as cores do Brasil de sua época,<br />
e a moda também é para ele estratégia narrativa”.<br />
A professora cita Dom Casmurro (1899), em que a<br />
indumentária é usada para delinear os personagens<br />
e torná-los mais reais, enigmáticos e ambíguos. “[O<br />
personagem] José Dias, por exemplo, é apresentado<br />
pelo narrador também por meio do seu vestuário,<br />
reafirmando ali seus trejeitos, defeitos e qualidades.”<br />
A moda vai ao teatro<br />
Figurinos de peças são uma prova de que<br />
a moda certamente é arte.<br />
A moda e o ato de representar andam de mãos<br />
dadas. Para muitas pessoas, vestir-se é encarnar um<br />
personagem, é transitar entre o real e o fantástico.<br />
O estilista francês Christian Lacroix, por exemplo,<br />
radicaliza essa ideia seja em suas coleções, seja<br />
na paixão que o move em direção às coxias do<br />
teatro. Foi criando figurinos para óperas, balés e<br />
peças como Otelo, Carmem e Fedra que Lacroix<br />
despontou para o mundo da moda. Responsável<br />
por reeditar elementos do barroco na alta-costura,<br />
Direito à beleza, à poesia<br />
A moda sofre influências que vão do gosto pessoal<br />
às necessidades de mercado e, talvez por isso, nem<br />
sempre seja encarada com seriedade. Citando o filósofo<br />
norueguês Lars Svendsen, Oliveros credita esse fato à<br />
ausência de uma crítica especializada. Escrever sobre<br />
moda, segundo Svendsen, ainda é fazer marketing<br />
de uma ou outra marca, de um ou outro estilista e<br />
é isso que, possivelmente, afasta a moda, mesmo a<br />
alta-costura, da aura de objeto de arte.<br />
Assim como a arte, a moda é linguagem, expressão<br />
que, muito embora seja de caráter coletivo e de larga<br />
escala, acena com promessas de individualidade. E é<br />
desse modo que a publicitária e blogueira Cris Guerra<br />
define sua relação com o tema. Deixando-se fotografar<br />
diariamente com as roupas com que vai ao trabalho,<br />
no blog Hoje Vou Assim (http://hojevouassim.blogspot.<br />
com/), Cris se tornou uma referência no assunto: “A<br />
“Nem todo mundo faz arte, mas todo mundo faz moda. Se<br />
eu sair nua, estou fazendo moda e esse talvez seja o jeito<br />
mais fácil de parecer que estou fazendo arte.” (Cris Guerra)<br />
quando criança o estilista costumava desenhar<br />
os figurinos das peças a que assistia.<br />
Essa característica dramática da roupa em cena<br />
é possível encontrar também fora do palco. No<br />
Brasil, Experiência N. 3, performance realizada<br />
por Flávio de Carvalho em 1956, na qual o artista<br />
desfilou pelas ruas de São Paulo com um<br />
saiote verde, uma blusa de mangas bufantes<br />
com aberturas nas axilas e uma meia arrastão,<br />
não apenas expôs a teatralização das calçadas<br />
onde todos os dias desfilam os mais inusitados<br />
estilos, como refletiu sobre a influência da moda<br />
na arte e, consequentemente, na vida.<br />
relação que temos com a moda é diferente da relação<br />
que temos com a arte. A moda é mais democrática.<br />
Nem todo mundo faz arte, mas todo mundo faz moda,<br />
de uma forma ou de outra. Até quem diz não estar nem<br />
aí para a moda é um fazedor dela. Quando abro meu<br />
armário e não sei o que vestir ou até mesmo quando<br />
fecho os olhos e escolho qualquer peça estou fazendo<br />
moda, porque não escolher também é uma escolha.<br />
Se eu sair nua, estou fazendo moda e esse talvez seja<br />
o jeito mais fácil de parecer que estou fazendo arte!”.<br />
Cris define esse trânsito entre arte e moda pela poética:<br />
“Moda é acima de tudo um jeito bonito de viver.<br />
É fantasia no meio do cotidiano. É transcender a utilidade<br />
da roupa e colocar poesia nela. A moda acaba<br />
tornando a arte próxima de mais pessoas. Indo além: a<br />
moda é uma extensão de cada um, ela reforça a nossa<br />
identidade. A moda, como a arte, torna a vida mais<br />
suportável”, conclui.<br />
14 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 15
Poemas urbanos<br />
intervenção<br />
Nas intervenções a seguir, a região central de três capitais brasileiras é pensada<br />
como a sala de um museu ao dispor de um curador com o poder de rearranjar<br />
a posição de edifícios, praças, lugares históricos e a própria geografia como<br />
se fossem obras de arte que integrassem uma exposição.<br />
SãO PAULO<br />
Curadoria, fotos, desenho e texto<br />
Kiko Canepa – cenógrafo<br />
O centro de São Paulo abriga construções<br />
interessantes, mas muitas delas<br />
localizadas em meio a uma confusão<br />
de volumes, de maneira que sua apreciação<br />
se torna difícil. Nesta curadoria,<br />
trabalhei a harmonização de edifícios e<br />
as estruturas com o seu entorno.<br />
O Edifício Martinelli, na Rua Líbero Badaró,<br />
é obra que viu crescer à sua volta<br />
todo tipo de construção, encontrando-se<br />
hoje espremido entre uma rua e uma<br />
curta ladeira. Falta-lhe a perspectiva que<br />
tinha outrora. Alguns prédios poderiam<br />
ser demolidos para dar lugar ao mais<br />
antigo arranha-céu de São Paulo. Dessa<br />
forma, o edifício voltaria a ser visível<br />
tanto do Viaduto do Chá quanto do<br />
Viaduto Santa Ifigênia, e ao longo de<br />
todo o Vale do Anhangabaú.<br />
A prefeitura funciona em um edifício com um visual bonito, porém<br />
com um desenvolvimento vertical truncado, como se lhe faltasse<br />
algo. A solução para tanto estava ali por perto, o belo edifício do<br />
desativado Othon Hotel, na esquina da Rua Líbero Badaró com a<br />
Praça do Patriarca. Aproveitando certa coerência com o estilo das<br />
duas obras, resolvi juntá-las. O resultado dá à prefeitura a imponência<br />
que lhe convém e devolve ao hotel uma função de destaque. O<br />
famoso jardim no topo do edifício foi mantido.<br />
Gosto muito do pórtico branco da Praça do Patriarca (foto), criado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Quando o vi<br />
pela primeira vez, no entanto, eu me perguntei o que aquela bela e imponente estrutura estava fazendo ali. Imaginei<br />
que seu desenho pedia um lugar mais elevado. Ao passar pela Biblioteca Mário de Andrade, na Rua Xavier de Toledo,<br />
percebi que o edifício poderia abrigar o pórtico em sua cobertura, de onde se desfruta a vista da copa das árvores<br />
da Praça Dom José Gaspar.<br />
16 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 17
SALVADOR<br />
Curadoria, desenhos e texto Valdy Lopes Jn. – cenógrafo<br />
Fotos Valéria Simões<br />
Escolhi a região conhecida como Cidade Baixa, onde se<br />
localizam o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo, a Igreja<br />
de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a escultura de<br />
Mário Cravo, entre outros atrativos.<br />
A ideia da curadoria é se desfazer das construções que<br />
descaracterizam os casarões históricos. Imaginei toda essa<br />
arquitetura, inclusive os pontos turísticos, pintada de branco:<br />
busca pela neutralidade do olhar, para destacar sobretudo<br />
minha segunda intervenção sobre a topografia da colina<br />
que articula a Cidade Baixa e a Alta.<br />
Ao longo de sua história, várias das ladeiras de Salvador<br />
foram territórios de liberdade e tolerância. As ladeiras,<br />
becos e baixas constituem espaços de sociabilidade. Para<br />
reforçar a vontade de olhar para essa geografia urbana,<br />
tudo é tingido de vermelho intenso, que chama atenção<br />
para esses percursos.<br />
Por fim, uma cidade toda branca cortada pelo vermelho<br />
pulsante da colina, de onde se enxerga o azul das águas<br />
da Baía de Todos os Santos, espelhada pelo céu de um<br />
azul constante.<br />
18 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 19
BELÉM<br />
Curadoria, fotos, desenhos e<br />
texto Edith Derdyk – artista visual<br />
Cidade que começa pelas<br />
bordas. Encontro de rios que<br />
indicam as rotas de entradas<br />
e saídas. Os fundos das primeiras<br />
edificações da Rua Siqueira<br />
Mendes se dirigem para o rio.<br />
E do monte mais alto de Belém<br />
se avistam as vindas de fora.<br />
Trata-se de um monte de pouca<br />
altura e, diante daquela linha<br />
horizontal que se alonga, surge<br />
uma ponte de terra que vira<br />
ponte para o mundo. E desse<br />
lugar nasce o mercado: fluxo<br />
aberto, trânsito livre, idas e vindas<br />
de barcos. A feira do açaí<br />
inaugura a manhã. Casas, barcos,<br />
mercadorias, homens, caixas:<br />
ingredientes para uma instalação<br />
humana, efêmera e constante.<br />
Ao lado do Mercado Ver o Peso, a<br />
cada hora que passa a paisagem<br />
humana pede passagem.<br />
Participe com suas ideias 21
O remédio está nas tintas...<br />
reportagem<br />
...nos livros, nas canções, nos filmes. A arte se alia às ciências da saúde para<br />
resgatar o bem-estar de quem encara uma doença.<br />
Por Diogo Sponchiato e Paula Desgualdo<br />
Desde que o homem peregrina em busca de um sentido à vida, a arte e a ciência são usadas para minorar os<br />
males do corpo e da alma. Apesar das diferenças, esses dois campos do conhecimento caminham lado a lado<br />
desde o seu berço, a Antiguidade. E o Renascimento que revolucionou a visão artística também demarcou<br />
o surgimento da medicina moderna. Mas se mais tarde o Iluminismo ensinou que a base científica continha<br />
a solução para os tormentos do homem, a história mostrou que nem sempre esse preceito tinha validade.<br />
“Depois da Segunda Guerra Mundial, a humanidade percebeu que a ciência e a tecnologia também podiam<br />
dar margem ao horror”, contextualiza a psicoterapeuta Selma Ciornai, coordenadora do departamento de<br />
arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Por que, então, a arte não poderia ser empregada como<br />
um recurso para ajudar o ser humano a restabelecer-se física e mentalmente? Embora seu valor terapêutico<br />
atravesse séculos, foi só depois das tragédias do século 20 que o recurso artístico ganhou aval do meio médico.<br />
Hoje, não faltam pesquisas que o apontem como um aliado no tratamento de diversos problemas de saúde.<br />
“Trata-se de uma poderosa ferramenta de humanização da medicina, que ganha cada vez mais credibilidade”,<br />
opina o médico e músico Paulo Campelo, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de<br />
Pernambuco. Desde 1996, Campelo lidera o projeto A Arte na Medicina Às Vezes Cura, de Vez em Quando<br />
Alivia, Mas Sempre Consola, que promove, por meio de atividades como oficinas de conto de fadas para<br />
crianças com câncer e encontros para divulgação dos dons artísticos de médicos e pacientes, a integração<br />
das duas disciplinas. A música, claro, não fica de fora. No hospital da universidade, as gestantes dão à luz ao<br />
som do seu compositor preferido e o bebê é recebido no berçário pelos acordes de Vivaldi e Mozart.<br />
22 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 23<br />
Biopintura, obra de Patrícia Noronha [detalhe]<br />
As melodias também aceleram a recuperação de quem<br />
está internado. “Elas atuam diretamente no cérebro,<br />
estimulando a liberação de analgésicos naturais”, explica<br />
Eliseth Leão, coordenadora de musicoterapia do Hospital<br />
Samaritano, na capital paulista. Além disso, combatem o<br />
estresse, fator que desencadeia e amplifica uma série de<br />
enfermidades. Tamanho potencial tem sido explorado<br />
como coadjuvante no tratamento de males do sistema<br />
nervoso. Pesquisadores da Pontifícia Universidade<br />
Católica de São Paulo demonstraram, em um estudo<br />
recente, que a musicoterapia aprimora a qualidade de<br />
vida de portadores da doença de Parkinson, problema<br />
neurodegenerativo marcado por tremores. “A prática<br />
musical minimiza os sintomas do problema, que, de<br />
início, amedrontam seus portadores, familiares e<br />
amigos”, diz o musicista Pedro Lodovici Neto, um<br />
dos autores do trabalho. Para o especialista, que<br />
faz parte há 52 anos de um grupo de jazz, a São<br />
Paulo Dixieland Band, tocar ou ouvir uma<br />
canção são maneiras de desmistificar<br />
e encarar a doença.<br />
A cura vem do verbo<br />
“Além do território da emoção humana, médicos e<br />
escritores compartilham um instrumento comum: a<br />
palavra”, afirma o médico e escritor gaúcho Moacyr<br />
Scliar, no livro A Face Oculta – Inusitadas e Reveladoras<br />
Histórias da Medicina (Editora Artes e Ofícios, 2001).<br />
Narrar e ouvir histórias constituem preciosos recursos<br />
terapêuticos. Não por acaso, há uma lista de profissionais<br />
da saúde que, em algum momento da carreira,<br />
se dividiram entre o ofício e a literatura. Entre os mais<br />
famosos, figuram Guimarães Rosa e Anton Tcheckov,<br />
que também enxergavam na arte uma forma de resolver<br />
conflitos psicossociais.<br />
Narrar e ouvir histórias constituem preciosos recursos terapêuticos.<br />
Não por acaso, há uma lista de profissionais da saúde<br />
que, em algum momento da carreira, se dividiram entre o<br />
ofício e a literatura.<br />
Não só ler, mas produzir textos auxilia pacientes a reaver<br />
a autoestima e a esperança necessárias para se recuperar.<br />
Experiências realizadas nos Estados Unidos atestam<br />
que pessoas com câncer que registravam seus medos<br />
e sonhos em um diário lidavam melhor com o problema<br />
e deixavam o hospital mais rápido. Essa espécie de<br />
diário-terapia, já adaptada à internet, é vista como um<br />
recurso de grande impacto. “Na tela ou no papel, os<br />
doentes se libertam de uma avalanche de sentimentos,<br />
trabalhando a angústia e a ansiedade durante o<br />
tratamento e ganhando qualidade de vida”, observa a<br />
psico-oncologista Luciana Holtz de Barros, presidente<br />
do Instituto Oncoguia (www.oncoguia.com.br).
Tratamento por imagem<br />
Nem todo mundo encontra nas palavras conforto para<br />
as aflições. Nesse caso, entram em cena as artes visuais.<br />
Arteterapeutas se valem de oficinas de pintura, desenho<br />
e fotografia para minimizar o estresse e a depressão<br />
que acometem os pacientes. “Eles conseguem expressar<br />
por meio de imagens o que não estavam aptos a<br />
verbalizar”, afirma Selma Ciornai. Até mesmo o fato de<br />
contemplar a obra recém-criada apazigua os ânimos<br />
e reinsere o indivíduo na rota do autoconhecimento.<br />
Quando as figuras ganham movimento, a imersão em<br />
um enredo mais complexo possibilita reflexões bastante<br />
apuradas sobre os desafios impostos pela realidade. É o<br />
que acontece nos encontros mensais do Cine Debate,<br />
outro projeto do Hospital Samaritano, voltado não<br />
apenas a pacientes, mas a qualquer interessado. “Não<br />
existe manifestação que provoque mais insights do<br />
que a arte”, diz a psiquiatra June Megre, que coordena<br />
a iniciativa. “Por meio do cinema, abordamos questões<br />
da mente humana”, conta. O filme A Bela da Tarde, de<br />
Luis Buñuel, inspira discussões acerca da sexualidade.<br />
Já Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, baseia<br />
diálogos sobre esquizofrenia – transtorno caracterizado<br />
por alucinações frequentes.<br />
A resolução dos conflitos da mente também se dá em<br />
cima de um palco. Ou em uma terapia que se apoia<br />
nas artes cênicas: o psicodrama, técnica que nasceu na<br />
década de 1920. Nesse caso, a experiência pode exigir<br />
que o indivíduo vista uma persona. “O objetivo é fazer<br />
o paciente se colocar no lugar do outro”, diz a psicóloga<br />
Jane Maciel Settembre, da Associação Brasileira de Psicodrama<br />
e Sociodrama. Assim, é possível sobrepujar<br />
conflitos internos que não raro atrapalham o convívio<br />
social, e até se livrar de um quadro depressivo. Seja<br />
como protagonista, seja como espectador, a<br />
catarse proporcionada pela arte é capaz de<br />
afastar as angústias e contribuir para manter<br />
mente e corpo sãos. E não há ciência<br />
que prove o contrário.<br />
O caminho inverso<br />
Se por um lado a arte trabalha pela ciência, os<br />
artifícios do meio médico e da biologia molecular<br />
podem inspirar criações. Imagine tubos de ensaio se<br />
transformando em esculturas, ou receptáculos onde<br />
se cultivam micróbios se tornando telas. É com base<br />
nessa filosofia de interface entre arte e ciência que a<br />
bióloga e artista plástica portuguesa Patrícia Noronha<br />
compõe suas obras. “Desconstruindo e deslocando<br />
Não só ler, mas produzir textos auxilia pacientes a<br />
reaver a autoestima e a esperança necessárias para se<br />
recuperar. Experiências realizadas nos Estados Unidos<br />
atestam que pessoas com câncer que registravam<br />
seus medos e sonhos em um diário lidavam melhor<br />
com o problema e deixavam o hospital mais rápido.<br />
esses objetos do seu espaço próprio, o laboratório, eles<br />
podem ser olhados de um modo diferente”, acredita.<br />
Patrícia desenvolve hoje um trabalho batizado de<br />
biopintura. “É uma técnica que permite a utilização<br />
de células vivas como pigmentos”, conta. A imagem<br />
ao lado é resultado dessa experiência, em que células<br />
fornecem as cores para a obra. E é a mais pura expressão<br />
do conceito de art-science. Essa interação entre<br />
os dois campos do conhecimento, aliás, não é uma<br />
novidade. Leonardo da Vinci, para ficar no exemplo<br />
mais conhecido, lançou mão de estudos de anatomia<br />
para alcançar a perfeição de seus retratados. De lá<br />
para cá, essa parceria cresceu, a ponto de se usar<br />
algo trivial em um centro de pesquisas, uma<br />
porção de células, como matéria-prima<br />
artística. “A vida pinta-se a ela própria,<br />
recriando-se e surpreendendo”,<br />
sentencia Patrícia.<br />
24 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 25
“Minha vida dá um romance”<br />
Conte-me que eu escuto<br />
Por Eliane Brum | Fotos Ivan Pires<br />
26 Continuum Itaú Cultural<br />
crônica<br />
Ele olha para a plateia – nós –, estufa o peito, faz uma pausa teatral e diz: “Minha vida dá um romance”.<br />
Concentra-se em um ponto invisível na mesa. Ou numa imperfeição nas unhas. E espera os aplausos na<br />
forma de oh! e ah!<br />
Para muitos, essa é a hora de pedir a conta e escapar correndo da mesa do bar. Ou mudar de lugar no ônibus.<br />
Ou lembrar um compromisso inadiável. Ou pedir o divórcio. Ou se inscrever como cobaia no programa<br />
espacial paquistanês.<br />
Prefiro ficar. Digo: “Então me conta”. E escuto. Não porque quero ser canonizada ou porque sou uma masoquista<br />
que só alcança os orgasmos múltiplos propagandeados pelas revistas femininas ao ter os ouvidos<br />
torturados. Escuto porque não considero o cara chato. Acho que é um ótimo vivente. E acho fascinante saber<br />
como conta seu romance existencial.<br />
Não existe vida. Existe vida contada. O que nos torna humanos não é o polegar opositor. Ou menos de 1%<br />
de material genético diferente dos chimpanzés. O que nos torna humanos é a capacidade de contar a vida.<br />
E é só como história contada que a vida pode fazer algum sentido.<br />
Vivemos porque somos capazes de reeditar o “Era uma vez...” muitas e muitas vezes. O suicida é aquele que<br />
não tem mais forças para reiniciar sua história. Então, para que ainda assim a vida faça sentido, bota um<br />
ponto-final. É seu último ato criativo. Humano. A vida contada acaba aqui. E, assim, não apenas fui. Mas sou.<br />
Com alguma honestidade, você pode admitir que bem lá no fundo – ou nem tão no fundo assim – sua vida dá<br />
um romance. Só que você disfarça. É wit rir de si mesmo. Exercer um cinismo intelectual contra o próprio autor,<br />
você. Faz bem à construção do seu personagem neste romance tão contemporâneo. Mas, secretamente, você<br />
se conta todos os dias. Do contrário, não teria forças para<br />
sair da cama e encarar um mundo que, não fossem os<br />
enredos inventados, seria apenas o que é: caos.<br />
Sou uma vampira de romances alheios. Desde criança<br />
intuo que só as narrativas podem me salvar da falta de<br />
sentido que é estar condenada à morte – e saber disso.<br />
É a consciência do fim que nos leva a contar histórias,<br />
desde os bisões flechados na parede das cavernas, como<br />
uma forma desesperada de fazer o inescapavelmente<br />
efêmero, de algum modo, permanecer. Ainda que seja<br />
na lembrança de outro quando você já não está.<br />
Faço isso. Registro as histórias de outros – e com os fragmentos<br />
de todas essas vidas contadas construo o enredo de<br />
minha própria existência. Coleciono retalhos de memória<br />
e com eles teço a corda onde me agarro para não desaparecer<br />
no abismo.<br />
Faço isso. Registro as histórias de outros – e com os<br />
fragmentos de todas essas vidas contadas construo o<br />
enredo de minha própria existência. Coleciono retalhos<br />
de memória e com eles teço a corda onde me agarro<br />
para não desaparecer no abismo.<br />
Ao anunciar que sua vida vale um romance, o cara<br />
não é mais um chato. É apenas um desesperado,<br />
como todos. Talvez mais sincero que a maioria de<br />
nós. Escutá-lo o salva. E nos salva.<br />
O que fazemos todos os dias, seja da forma tosca<br />
como o cara que anuncia de peito aberto que<br />
sua vida dá um livro, seja de mil maneiras<br />
mais sofisticadas, algumas delas reconhecidas<br />
como arte, é apenas<br />
isto: nos contar.<br />
Ida e vinda<br />
Na arte do viver, o real e a ficção são inseparáveis. Não<br />
se sabe onde termina um e começa a outra. A verdade<br />
está nessa síntese. Seria menos real a fantasia que fez<br />
nosso coração acelerar? Ou menos fantasiosa nossa<br />
aniquilação por um fato? O que é mais verdadeiro,<br />
o acontecimento ou nossa interpretação? Não há o<br />
que aconteceu, só interpretação e múltipla escolha. É<br />
mais verdade o que desejo ou o que alcanço? Como<br />
separar? A narrativa é essa busca onde ficção e real se<br />
confundem – e se alimentam. A história é movimento.<br />
Anos atrás, entrevistei um suposto louco que cavalgava<br />
um cabo de vassoura numa exposição de cavalos e gado<br />
de raça. Perguntei a ele: “Você é louco?”. Ele me olhou<br />
como se fosse eu a louca: “Você <strong>acha</strong> que não sei que<br />
meu cavalo é um cabo de vassoura? É claro que sei”.<br />
E seguiu cavalgando seu bucéfalo pelos campos da<br />
exposição. Fiquei parada ali, estarrecida. E um pouco<br />
apavorada porque agora era eu quem enxergava crinas<br />
e um focinho onde antes havia um cabo de vassoura.<br />
Participe com suas ideias 27
Só existimos como indivíduos quando nossa mãe nos<br />
constitui como história contada que não é ela. Mas um<br />
outro, nós. Esse reconhecimento tem de seguir acontecendo<br />
em olhos outros ao longo de nossa trajetória.<br />
Não mais ou apenas a mãe que nos reconhece, mas<br />
um amor, um amigo, um parceiro de sonhos ou projetos.<br />
Se dependesse de nossa carência, a humanidade<br />
inteira. Quando esse olhar que reconhece nossa vida<br />
como história falha, nosso coração invisível esquece<br />
uma batida. Só a vida contada pode tornar a morte<br />
suportável. Se não é contada, a morte já é, ainda que<br />
o coração de carne bata em perfeita sincronia.<br />
Quando cruzamos com escombros humanos pelas<br />
esquinas do mundo, a eles não falta apenas comida<br />
ou água ou teto. Até falta, mas não é essa a ausência<br />
que os reduz a farrapos. O que lhes aniquila o espírito é<br />
não se reconhecer nos nossos olhos. Não há ninguém<br />
para ouvir sua vida que dá um romance. E, assim, sem<br />
espelho em nenhuma íris, duvidam da própria existência.<br />
Transformam-se em espectros de uma vida sem vida.<br />
Em Porto Alegre existe o Boca de Rua, jornal escrito<br />
por garotos sem-teto. Alice, a ONG que o inventou,<br />
percebeu que daqueles meninos haviam tirado mais<br />
do que qualquer materialidade. O que lhes haviam<br />
arrancado era a possibilidade de uma história. Para<br />
eles, só havia chance se pudessem reescrever sua vida,<br />
tão literalmente como era literal sua falta de tudo. Ao<br />
reinventar a existência pelo concreto das letras, com<br />
papel e caneta, era possível finalmente se inscrever no<br />
mundo. Salvar-se.<br />
28 Continuum Itaú Cultural<br />
Lembro de um deles, Mercedes. O nome de rua do menino<br />
era a marca do caminhão que o havia atropelado.<br />
No início, Mercedes cuspia no chão do lugar onde se<br />
realizavam as reuniões do jornal. Então, começou a<br />
escrever o romance da sua vida. Resgatou seu nome<br />
para além do Mercedes ao qual sobreviveu: Luciano<br />
Felipe da Luz. Inventou então que era um filho da luz.<br />
Deu-se uma maternidade que não era abandono. E<br />
assim passou a se apresentar. Dono da própria história,<br />
esse filho da luz – e também de um caminhão<br />
Mercedes – sobreviveu a mais 11 atropelamentos, um<br />
tiro na cabeça, algumas facadas e, por muito tempo, à<br />
aids. Quando morreu, guardava sua história em jornais<br />
numa caixa. Ele era. É.<br />
Pegar a vida à unha é assumir o protagonismo de<br />
nosso romance singular, único. Quando acompanho<br />
a trajetória de tantas celebridades que naufragam<br />
em drogas e infelicidade, tenho a impressão de que<br />
sucumbem à mesma impossibilidade de reconhecimento<br />
dos meninos e loucos de rua que acompanhei.<br />
Pelo avesso. Possuem tudo o que nos convencem<br />
que é preciso ter para escrever um romance que<br />
valha a pena, mas não têm o principal. A elas<br />
falta a autoria da vida, algo que sempre<br />
<strong>procura</strong>mos e nos escapa, mas só existe<br />
nessa busca. Tanto é dito e escrito<br />
sobre as celebridades<br />
que não sabem mais quem são. E, quando se veem<br />
nos olhos de tantos fãs e curiosos e paparazzi no<br />
mundo inteiro, não se reconhecem. Tão assustador<br />
quanto não encontrar um olhar que o reconheça é<br />
não se reconhecer nos olhos da multidão que olha<br />
para você, mas só reflete a si mesma.<br />
Nossa época é a soma dos romances contados por<br />
nós. E a capacidade de nos sentir vivos depende da<br />
coragem de nos reinventar depois de cada ponto e<br />
vírgula. Começar de novo, enxergar-se de outro ângulo,<br />
criar outros sentidos para nosso estar no mundo. É pela<br />
arte na construção dessa narrativa que nos tornamos<br />
mais ou menos vivos. E não pela qualidade de nossos<br />
exames de colesterol e triglicérides e eletrocardiogramas.<br />
Quando<br />
alguém anunciar com<br />
olhos temerosos, carentes de<br />
reconhecimento, que sua vida dá um<br />
romance, não hesite. Não tema. Diga-lhe: “É<br />
verdade, sua vida é um romance”.<br />
Assim, quem sabe, num novo dia, depois de um<br />
ponto quase final, seu romance ficará tão bom que<br />
valerá uma vida.<br />
Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista.<br />
Autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes<br />
e Ofícios, 1994), A Vida que Ninguém Vê (Arquipélago<br />
Editorial, 2006) e O Olho da Rua (Globo, 2008).<br />
Na arte do viver, o real e a ficção são inseparáveis. Não se sabe<br />
onde termina um e começa a outra. A verdade está nessa<br />
síntese. Seria menos real a fantasia que fez nosso coração<br />
acelerar? Ou menos fantasiosa nossa aniquilação por um fato?<br />
É mais verdade o que aconteceu ou nossa interpretação?<br />
Participe com suas ideias 29
Interseção infinita<br />
Por Tatiana Diniz<br />
entrevista<br />
O curador britânico Guy Brett é um nome de peso na crítica internacional de arte. Um dos responsáveis pela<br />
projeção da produção contemporânea brasileira na Europa, introduziu por lá trabalhos como os de Hélio<br />
Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape. Foi também um dos organizadores da exposição de Cildo Meireles, em<br />
2008, na Tate Modern, Londres. Brett coleciona memórias de suas visitas ao Brasil, a mais antiga de meados<br />
da década de 1960, quando, aos 22 anos, veio ao país pela primeira vez entusiasmado com a audaciosa arquitetura<br />
de Brasília. Ao chegar, deparou-se com uma produção artística original e enérgica, que explorava e<br />
diluía as fronteiras entre arte e vida. Conta que seu olhar sobre a arte brasileira sempre foi o de um outsider,<br />
pois sua percepção se estruturou a partir de estadas curtas no Rio de Janeiro e em São Paulo; e que conhece<br />
o Brasil mais por meio de trabalhos artísticos do que viajando por aqui. Ao falar de nossa arte, prefere não se<br />
estender sobre Hélio Oiticica, alegando já ter escrito “várias vezes” sobre ele – a exemplo dos livros Oiticica<br />
in London (coautoria de Luciano Figueiredo, Tate Publishing, 2007) e Brasil Experimental (Contracapa, 2005).<br />
Nesta entrevista, contudo, Brett explica como o espírito de uma “poética da vida” despertado pelo artista abriu<br />
possibilidades de manifestações infinitas.<br />
O senhor pode nos dar uma visão geral da sua carreira?<br />
Escrevo sobre arte e organizo exposições desde os anos 1960. Não obtive qualificações acadêmicas além do<br />
ensino médio, e não fui educado formalmente em história da arte. Comecei a escrever a partir do jornalismo,<br />
mas a arte me cercou desde a infância. Meu pai era arquiteto, urbanista, pintor e poeta ocasional. Minha avó<br />
materna era pintora profissional de retratos. Para minha mãe a pintura se tornou uma paixão como resultado<br />
de um processo terapêutico junguiano durante um período de crise pessoal. Meus verdadeiros professores<br />
foram artistas, aprendi vendo seus trabalhos e conversando com eles sobre. Trabalhei por dez anos como<br />
crítico de arte para o Times, em Londres, durante os anos 1960 e 1970, muitas vezes surpreendendo uma<br />
instituição meio conservadora com reportagens sobre avant-garde.<br />
Sempre amei experimentalismo em arte, novos materiais, novos conceitos, novos entendimentos sobre a vida.<br />
Mais tarde, entrei para uma revista semanal de esquerda, também em Londres, chamada City Limits, na qual<br />
editava a seção de artes até que a falta de financiamento obrigou-a a parar. Desde então tenho trabalhado<br />
basicamente como freelancer. E reuni alguns dos meus textos em livros. A maior parte do que escrevi nos<br />
últimos anos foi para catálogos e faço isso em paralelo com meu trabalho frequente como curador. Gosto<br />
de me envolver no design dos catálogos e dos livros que escrevo. Sou fascinado pela relação entre palavras<br />
e imagens, e dou a ambas igual importância.<br />
Brett: “Minha imagem inicial do Brasil foi a de modernidade” | foto: Olivia Brett<br />
Participe com suas ideias 31
A arte brasileira está muito presente em seu percurso<br />
profissional, assim como seus pensamentos<br />
dispararam várias reflexões sobre ela. Como essa<br />
ligação começou?<br />
Fui apresentado ao Brasil pelo [artista plástico] Sergio<br />
Camargo, que conheci em seu estúdio em Paris em<br />
1964, quando eu tinha 22 anos. Eu sabia muito pouco<br />
sobre o Brasil, embora estivesse muito empolgado<br />
com sua arquitetura moderna, que me parecia mais<br />
audaciosa do que qualquer coisa na Inglaterra. Então<br />
ouvi atento quando ele falou que Oiticica, Lygia Clark,<br />
Mira Schendel, Lygia Pape e outros artistas do Rio e de<br />
São Paulo estavam fazendo trabalhos interessantes. No<br />
ano seguinte, cobri a Bienal de Artes de São Paulo para<br />
o Times e conheci os artistas sobre os quais Camargo<br />
falara. O trabalho deles me impressionou profundamente.<br />
Na verdade, passei mais de 40 anos pensando sobre. Eu<br />
não via aquilo como um eco nem como uma versão<br />
provinciana do que estava acontecendo na Europa, mas<br />
como um lampejo autônomo de energia e inteligência<br />
crítica (feito a partir de uma conexão transformativa e<br />
não imitativa com a arte europeia). Pareceu-me que<br />
Oiticica e Clark aliavam o sensorial ao cerebral, o corpo à<br />
mente, num trabalho de responder a uma necessidade<br />
profunda na cultura contemporânea.<br />
O que mudou no universo das artes brasileiras<br />
desde que o senhor começou a vir ao país na<br />
década de 1960?<br />
Na verdade, só conheço São Paulo e o Rio. Também fui a<br />
Brasília, quando a cidade estava sendo construída, o que<br />
foi muito empolgante para mim. Mas pouco viajei para<br />
o interior ou para outras cidades brasileiras. Mantive<br />
conexões bem próximas com brasileiros, com artistas,<br />
mas nunca pude ficar no país durante muito<br />
tempo. A última vez que estive em São Paulo foi<br />
há cerca de três anos, para uma conferência.<br />
E fui ao Rio há dois anos trabalhar para a<br />
exposição de Cildo [Meireles]. Nos<br />
anos 1960, o mundo da<br />
arte no Brasil era bem pequeno, quase não havia galerias,<br />
e as que existiam não pretendiam durar para sempre<br />
– eram galerias de vida curta. Tudo isso era muito interessante<br />
porque havia uma atividade artística tremenda,<br />
mas pouca infraestrutura. Todo mundo conhecia todo<br />
mundo e ocorria essa rivalidade entre o Rio e São Paulo.<br />
Era também um período de muito otimismo, o Brasil<br />
estava crescendo com muita energia, e com muita<br />
desigualdade social. Quando vim para o Brasil, o que<br />
queria ver era a modernidade de uma arquitetura que<br />
me parecia incrível. Mas ao chegar logo percebi quão<br />
complexo o país era. E acho que conheci muito do<br />
Brasil por meio de trabalhos de arte. Desenvolvi uma<br />
amizade muito grande com Lygia Clark e Oiticica, que<br />
conheci em 1965. Os dois eram mais velhos que eu,<br />
que era muito jovem na época.<br />
Sempre amei experimentalismo em arte, novos materiais,<br />
novos conceitos, novos entendimentos sobre a vida.<br />
Há uma interseção entre arte e vida? O senhor<br />
consegue distinguir as fronteiras?<br />
Esse é um assunto cheio de dilemas. Não há nada<br />
neste mundo que não seja parte da vida para nós que<br />
a vivemos. Toda arte é participativa. Quando olhamos<br />
uma pintura, trazemos para ela nossa carga subjetiva.<br />
Arte é vida mediada pelo artista, e é impossível escapar<br />
de alguma forma da mediação. Porém tem havido periodicamente,<br />
e especialmente nos tempos recentes,<br />
um desejo forte de “quebrar a barreira entre a arte e a<br />
vida”. Lygia Clark disse isso muito cedo em sua carreira.<br />
E disse também: “Acredito firmemente na busca de<br />
uma fusão entre arte e vida” (1956). Tanto ela quanto<br />
Oiticica se inspiraram em Mondrian no começo de<br />
suas carreiras e entenderam suas pinturas não tanto<br />
nos termos formais, mas como uma busca pela fusão<br />
entre arte e vida. Numa anotação antiga, Oiticica o<br />
colocou desta forma: “A solução não seria arte mural<br />
nem aplicada, mas algo expressivo, algo como a ‘beleza<br />
da vida’ ”; algo que ele não conseguia definir porque<br />
ainda não existia.<br />
Um desejo assim só pode nascer da percepção, ou do<br />
sonho, de que há algum destino mais eficaz para o trabalho<br />
do artista do que o oferecido pelas instituições de<br />
Metaesquema, 1956, (à esq.) e Bólide Vidro 14 Estar, 1965/1966, de Hélio Oiticica | fotos: Vicente de Mello e César Oiticica Filho<br />
arte hoje – o<br />
museu, o mercado de<br />
arte, a mídia sobre arte. O “não toque”<br />
do museu, a especulação do mercado e a<br />
reprodução das imagens, entre outros fatores,<br />
dispararam contraestratégias, sendo uma das<br />
mais notáveis o conceito Vivo Dito, do argentino<br />
Alberto Greco. Numa empreitada quase quixotesca,<br />
ele desenhava bem rápido com giz um círculo ao redor<br />
de um transeunte na rua e assinava esse círculo. Era um<br />
procedimento arriscado, absurdo e até engraçado. O<br />
mesmo Greco disse: “O artista não mostrará mais com<br />
o quadro, mas com o dedo”.<br />
E aqui o dilema começa. Como em nossa cultura até mesmo<br />
gestos anti-institucionais terminam como objetos em<br />
museus (poderiam ser fotografias de ações efêmeras, por<br />
exemplo), quando removidos de seu contexto tendem<br />
a parecer isolados, “fora de ação”, ainda que funcionem<br />
de modo compreensível à condição dos museus (e às<br />
vezes até mesmo cometem essa condição com ironia).<br />
Pode ser que o espectador veja apenas através de um<br />
relato da vitalidade rebelde original.<br />
Se arte e vida se fundissem na “beleza da vida”, nós nem<br />
saberíamos que são categorias contraditórias, então<br />
esse questionamento não seria feito. Mas, da maneira<br />
que é, invocar “vida real” é apontar para aquilo que não<br />
é predefinido, pois como disse Paul Klee: “Curiosidades<br />
se tornam realidades, realidades artísticas que ajudam<br />
a elevar a vida de sua mediocridade”.<br />
Quais foram as características predominantes na arte<br />
produzida durante as décadas de 1960 e 1970? Que<br />
diferenças ou semelhanças há na produção de hoje?<br />
Escrevi quase inteiramente sobre artistas individuais,<br />
entre eles Cildo Meireles, Tunga, Antonio Manuel, Waltercio<br />
Caldas, Regina Vater, Anna Bella Geiger, Roberto<br />
Evangelista, Jac Leirner, Ricardo Basbaum, Mauricio Dias,<br />
que trabalha com Walter Riedweg, Brígida Baltar. Produzi<br />
muito pouco no sentido de uma visão geral sobre um<br />
assunto tão vasto e variado como a produção artística<br />
brasileira. Há artistas que respeito e admiro muito, mas<br />
ainda não fui capaz de escrever sobre, como Antonio<br />
Dias e José Resende.<br />
Inevitavelmente, esses textos seguem as percepções<br />
de um outsider, um integrante do público internacional<br />
de arte que não viveu nem vive o Brasil do dia<br />
a dia. Apesar disso, porém, entendi intimamente o<br />
fenômeno que caracterizava uma grande produção<br />
de trabalhos: constantes ecos e diálogos entre artistas,<br />
numa reprodução de sensibilidade. Um exemplo seria<br />
a correspondência estranha e rarefeita entre o trabalho<br />
de Oiticica intitulado Nas Quebradas (1979, reconstruído<br />
32 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 33
em 2002) e o de Waltercio Caldas chamado Sono (2001).<br />
E vejo que isso continua a acontecer com os artistas das<br />
gerações mais novas: penso no traço da elasticidade e<br />
do corpo-realidade de Lygia Clark no trabalho de Carla<br />
Guagliardi intitulado O Lugar do Ar (2004), por exemplo.<br />
É maravilhoso descobrir essas ressonâncias de diálogo.<br />
Talvez haja aqui um paralelo com a música brasileira:<br />
referências se cruzam de modo sutil e intricado, num<br />
clima geral de inovação e invenção que produz um<br />
caráter inconfundível de totalidade.<br />
Artistas como Oiticica e Clark exploraram amplamente<br />
as fronteiras entre arte e vida. Também questionaram<br />
a natureza dos espaços “propícios” para<br />
exposições, sugerindo a influência do e no mundo<br />
“lá fora”. Embora esses aspectos sigam inspirando<br />
a produção contemporânea hoje, uma distância<br />
entre arte e público também segue existindo. O<br />
que afasta a arte do público?<br />
Lygia disse uma vez que o trabalho dela devia ser mostrado<br />
em grandes quantidades às pessoas nas ruas. E<br />
Oiticica falou de sua “imensa relação” com as ruas do<br />
Rio: “Praticamente vivi minha vida na rua, tenho uma<br />
O Lugar do Ar, 2004, de Carla Guagliardi | foto: Uwe Walter<br />
facilidade imensa em fazer amizade com pessoas que<br />
não conheço”. Frases sincréticas misturando arte e vida<br />
e conceitos em formação desabrochavam com muita<br />
facilidade do cérebro de Oiticica: “Delirium ambulatorium”,<br />
“situações para ser vividas”, “o dia a dia experimentalizado”.<br />
Esses aspectos continuam sendo uma fonte de<br />
inspiração muito forte. A noção de espaços “propícios”<br />
para exposições foi claramente subvertida por Lygia<br />
Pape quando ela pediu ao [artista visual] Maurício Cirne<br />
que fotografasse as páginas abstratas e geométricas<br />
do seu famoso Livro da Criação, em cenas cotidianas<br />
no Rio. Por exemplo, A Descoberta do Fogo num boteco<br />
entre duas garrafas da [c<strong>acha</strong>ça] Fogo Paulista. Esse é o<br />
espírito de uma “poética da vida”, e as possibilidades de<br />
manifestá-la são infinitas. Incidentalmente, tendo feito<br />
esse comentário sobre mostrar seu trabalho nas ruas,<br />
Lygia Clark mais tarde gravitou em uma concepção de<br />
público aparentemente oposta, privada, numa relação<br />
um a um com o outro em seu extraordinário<br />
processo de terapia, mediado por seus objetos<br />
relacionais. Assim ela escapou de qualquer<br />
prescrição dogmática ou noção<br />
pré-formulada de fusão entre<br />
arte e vida.<br />
Carnaval e futebol são representações muito associadas<br />
à identidade do Brasil no exterior. A arte<br />
contemporânea brasileira soma outras representações?<br />
Que imagens do Brasil o senhor nutre?<br />
Como eu disse, minha imagem inicial do Brasil foi a de<br />
modernidade. Mas, de fato, recordo que, em uma das<br />
minhas primeiras visitas ao país, fiquei muito impressionado<br />
com a qualidade das fotografias de futebol<br />
publicadas nos jornais. Os fotógrafos de esporte tinham<br />
a habilidade de capturar belos momentos de balé, com<br />
corpos voando ou caindo e a bola em algum lugar<br />
no meio daquilo tudo... Quando questões em torno<br />
da identidade cultural começaram a ser amplamente<br />
debatidas nas décadas de 1970 e 1980, em resistência<br />
à dominação cultural norte-americana, muitas pessoas<br />
foram levadas a ver o Brasil com cara de samba, futebol,<br />
Carmen Miranda, cariocas na praia.<br />
O trabalho de Oiticica tocou nisso. Quando fez Tropicália,<br />
em 1967, ele incluiu materiais do cotidiano brasileiro<br />
(areia, papagaios, vegetação tropical, o quintal popular)<br />
em resistência à pop art dos Estados Unidos. Mas ele<br />
viu essas imagens típicas ser usadas fora daquele contexto<br />
como símbolos de fácil consumo, ignorando-se<br />
o que ele considerava a parte mais importante do seu<br />
trabalho: penetrar no labirinto para seguir os sons que<br />
vinham do centro dele (uma cadeira e uma TV ligada).<br />
Em uma crítica explícita ao consumo de imagens,<br />
em seu próximo grande projeto Éden (1969), ele<br />
esvaziou cada uma das cabines penetráveis, deixando<br />
apenas elementos sensoriais muito diretos<br />
(andar descalço numa área coberta por água,<br />
por exemplo), oferecendo lacunas a ser<br />
preenchidas pela imaginação. Oiticica<br />
penou um pouco tentando<br />
manifestar o que<br />
chamava de Brasil Raiz, ao mesmo tempo que rejeitava<br />
qualquer interpretação folclórica. Ele chamava o Brasil<br />
de uma cultura em formação, “a possibilidade aberta<br />
de uma cultura”.<br />
Contudo, nutro, sim, uma imagem das minhas primeiras<br />
visitas às praias do Rio. Fiquei maravilhado<br />
por me tornar parte daquele aglomerado gigante de<br />
humanidade sem roupa! Gente linda (homens e mulheres),<br />
velhinhos enrugados, dos corpos esculpidos<br />
aos mais fora de forma, gente pobre se misturava à<br />
gente rica nos espaços públicos curvilíneos que eram<br />
Copacabana e Ipanema.<br />
Não há nada neste mundo que não seja parte da vida para<br />
nós que a vivemos. Toda arte é participativa. Quando olhamos<br />
uma pintura, trazemos para ela nossa carga subjetiva.<br />
O que o senhor tem a dizer sobre a destruição<br />
recente de parte do acervo de Hélio Oiticica?<br />
Fiquei realmente chocado ao saber dessa notícia trágica<br />
e ainda acho difícil de acreditar. As peças de Oiticica se<br />
tornaram parte do nosso mundo e não parece possível<br />
que pudessem deixar de existir. Lamento por ter estado<br />
longe demais e não ter tido como acompanhar de<br />
perto esse desastre. Mas aconteça o que acontecer<br />
o pensamento de Oiticica está vivo como nunca e<br />
continuará a influenciar pessoas.<br />
Em que projetos o senhor está envolvido atualmente?<br />
Trabalhei recentemente com o Museu Reina Sofía,<br />
em Madri, numa exposição do visionário artista do<br />
século 20 Georges Vantongerloo, encerrada no dia 22<br />
de fevereiro. Focamos a produção de trabalhos menos<br />
conhecidos dele. Antes, colaborei com o [diretor da<br />
Tate Modern] Vicente Todolí numa grande exposição<br />
de Cildo Meireles em Londres, que despertou muito<br />
interesse geral. Também estou trabalhando em um<br />
livro sobre uma artista britânica incrível, a performática<br />
Rose English.<br />
34 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 35
Onde vive a arte<br />
fotorreportagem<br />
Os fotógrafos Daniel Marenco, do Rio Grande do Sul, e Henrique Manreza,<br />
de São Paulo, registraram ambientes internos em que elementos artísticos<br />
afloram involuntariamente.<br />
Inspirado no livro A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio, Marenco registra celas do Presídio Central de<br />
Porto Alegre, onde os detentos deixaram fragmentos de arte. Estão lá os princípios da pintura e da colagem<br />
com imagens singulares nas paredes.<br />
36 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 37
38 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 39
Nas residências fotografadas por Manreza, é possível encontrar uma referência ao estado de São Paulo no<br />
chão do quintal da casa paulistana, cuja organização dos ladrilhos hidráulicos é a mesma das calçadas da<br />
cidade; e o móvel na cozinha lembra a arquitetura moderna de Brasília.<br />
40 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 41
Ninguém veio para cá<br />
por outro motivo, além de nós<br />
Há arte no striptease – e nas demais modalidades de shows eróticos?<br />
Por Thiago Rosenberg | Ilustrações Theo Firmo<br />
42 Continuum Itaú Cultural<br />
reportagem<br />
Quando chegaram ao local, por volta das 23 horas de uma quinta-feira, uma garota já se apresentava no<br />
palco. Loira, esbelta, bela. E nua – com exceção da bota de cano alto. A música country e o chapéu de caubói<br />
repousado num canto do tablado indicavam que a moça iniciara seu espetáculo vestindo trajes, ainda que<br />
mínimos, de vaqueira, ou boiadeira, ou cowgirl, que seja. Atravessando o olhar atento dos espectadores –<br />
homens jovens e velhos, solteiros e, pelo que indicava a aliança no anular da mão esquerda, casados –, o<br />
repórter e a coreógrafa se dirigiram a uma mesa. Sentaram-se e assistiram, com uma atenção de uma natureza<br />
diferente da dos demais membros da plateia, à performance da rapariga.<br />
O repórter era quase um leigo absoluto em questões ligadas à dança, seja a clássica, seja a moderna ou<br />
a contemporânea. Sua única ligação com tal universo foram os seis meses – pouco frutíferos, por sinal –<br />
durante os quais frequentou um curso de dança de salão. Resolveu então convidar a coreógrafa, Thelma<br />
Bonavita, para uma visita a uma casa noturna, dessas que pululam na região central da capital paulista e<br />
que, além de servirem como ponto de encontro para uma noite de sexo casual, e pago, costumam apresentar<br />
uma variada programação de shows eróticos – desde o básico striptease até coreografadas cenas<br />
de coito. Com tal convite, o repórter tinha a intenção de encontrar uma resposta à seguinte pergunta: há<br />
arte nesse tipo de espetáculo?<br />
Performances e performances<br />
“Quando uma performance, como essa da stripper”, questionou o repórter à coreógrafa, “pode ser considerada<br />
artística?”. “Quase tudo no nosso dia a dia pode ser visto como uma performance”, respondeu ela. “Diz-se, por<br />
exemplo, que um orador desempenhou ‘uma ótima performance’ diante de seu público, que a performance<br />
de um médico superou as expectativas, ou que um automóvel tem uma performance acima da média. E<br />
por aí vai... Mas ela só é artística quando causa um deslocamento, quando mostra ao espectador uma nova<br />
maneira de enxergar a realidade, transformando o banal, o cotidiano. E isso não ocorre aqui.”<br />
Passando as<br />
opiniões da coreógrafa<br />
para seu bloco de notas, o repórter<br />
sentiu uma pontada de frustração. Queria<br />
ouvir que sim, que há arte no striptease; era<br />
isso o que ele esperava afirmar, com base na fala<br />
de um especialista, em sua matéria – que talvez<br />
recebesse o título “A arte nua”, ou coisa do gênero.<br />
Como ocorre com certa regularidade, os dados apurados<br />
nem sempre correspondem à premissa inicial<br />
da pauta, da reportagem. “Mas há uma coreografia!<br />
A moça ensaiou seus movimentos para mostrá-los ao<br />
público!”, diz o repórter, tentando salvar sua tese inicial.<br />
“Sim, ela os ensaiou”, respondeu a coreógrafa, “mas, até<br />
aí, há crianças que ensaiam suas falas para as pecinhas<br />
promovidas pela escola, por exemplo, ou profissionais<br />
que realizam ensaios para uma entrevista de emprego...<br />
E não é por isso que podemos chamar essas crianças e<br />
esses profissionais de artistas, não?”.<br />
O repórter queria ouvir que sim, que há arte no striptease;<br />
era isso o que ele esperava afirmar, com base na fala de um<br />
especialista, em sua matéria.<br />
O repórter engoliu sua frustração e seguiu ouvindo<br />
as palavras de Thelma. Ela dizia que, no século XIX,<br />
com o teatro burlesco, a semente do que viria a ser<br />
o striptease ao qual hoje nos acostumamos poderia<br />
ser considerada como arte, já que causava aquele tal<br />
deslocamento, opunha-se à moral da época; mas, na<br />
sociedade atual, essas apresentações já se tornaram<br />
corriqueiras, não causam mais surpresa.<br />
Participe com suas ideias 43
Potências de arte<br />
Nisso, as luzes voltaram a se concentrar no palco; e<br />
deram início ao segundo espetáculo da noite. Dessa<br />
vez, é uma dupla que se apresenta ao público. Um<br />
casal, um casal feminino: uma mulher – esbelta e bela<br />
como a anterior, mas ruiva – e outra se fazendo de<br />
homem, com terno, gravata, chapéu e calça social.<br />
Essa, a que se faz de homem, se senta num banquinho<br />
e, como um senhor confortavelmente acomodado<br />
em sua poltrona, põe-se a ler uma revista – uma<br />
revista Caras. A ruiva se mostra desapontada com<br />
a falta de apetite sexual de seu parceiro e, com o<br />
44 Continuum Itaú Cultural<br />
intuito de ganhar sua atenção, começa a provocá-lo,<br />
despindo-se lenta e sensualmente – não custa lembrar<br />
que, em português, o termo striptease significa algo<br />
como “despir-se de maneira provocante”. O senhor,<br />
inicialmente, não dá a mínima bola, mas, pouco<br />
tempo depois, cede. Levanta-se, caminha em direção<br />
à ruiva e tira rapidamente a roupa social, revelando<br />
seu corpo feminino. E então, ao som de uma espécie<br />
de tecnogregoriano, as duas começam a – nas mais<br />
diversas e inusitadas posições – se beijar, se lamber,<br />
se acariciar, se esfregar...<br />
Todos os presentes já sabiam, ao entrar na casa, o que encontrariam<br />
por lá: não questionamentos ou novas visões<br />
do mundo, mas, sim, shows concebidos para alimentar seu<br />
apetite sexual.<br />
“Isso tem um quê daquele teatro burlesco, não?”, perguntou<br />
o repórter, com a esperança de, por fim, fazer a<br />
coreógrafa admitir que havia um elemento, ainda que<br />
sutil, de arte sobre o palco. Ela concordou, “com certeza,<br />
há muito do teatro burlesco nessa apresentação”, disse,<br />
“mas, aqui, neste espaço, a função é outra: elas não querem<br />
questionar nada, não há espaço para a dúvida, para<br />
proposições, para a arte. A intenção é simplesmente<br />
excitar a plateia, excitar para lucrar”. De fato, por mais<br />
curioso que fosse o espetáculo, ele não fugia do óbvio.<br />
Todos os presentes já sabiam, ao entrar na casa, o<br />
que encontrariam por lá: não questionamentos<br />
ou novas visões do mundo, mas, sim, shows<br />
concebidos para alimentar seu apetite sexual.<br />
“Veja só”, continuou a coreógrafa,<br />
“ninguém veio para cá por outro<br />
motivo, além de nós”.<br />
Antes de<br />
se dar por vencido, o<br />
repórter deu sua última cartada: “E<br />
quanto ao conceito do belo? A beleza em<br />
si já não é arte?”. “Era”, foi a resposta da coreógrafa.<br />
“Mas o belo pelo belo já não se enquadra<br />
na arte contemporânea. Desde o impressionismo<br />
[movimento artístico surgido, inicialmente no campo<br />
da pintura, na Europa do século XIX], a arte deixou<br />
de reproduzir, ou representar, o belo – e passou a<br />
discuti-lo, questioná-lo.”<br />
“Ainda assim”, comentou a coreógrafa – e, neste momento,<br />
o repórter vislumbrou alguma esperança de<br />
ver confirmada a sua tese –, “este lugar está repleto<br />
de ‘potências de arte’ ”. “Potências de arte?”, perguntou<br />
ele. “Sim. Objetos, pessoas, situações que podem vir<br />
a inspirar trabalhos artísticos”, disse ela. E deu alguns<br />
exemplos: a decoração do local; a moça seminua que<br />
dançava, talvez mais para ela mesma do que para seus<br />
possíveis clientes, em frente a um dos vários espelhos<br />
da casa; os restos de pipoca caídos no chão (“Imagina!<br />
Pipoca num lugar deste!”, notou ela); e, é claro, os shows<br />
propriamente ditos.<br />
“Bem notado”, refletiu o repórter. “Potências de arte!”,<br />
pensou, mais alegre dessa vez. Mas, cansado, apenas<br />
disse: “Acho que já tivemos uma boa discussão. Se você<br />
não quiser dizer mais nada em especial, podemos ir”. E<br />
se foram. Ela, levando consigo algumas “potências de<br />
arte” que, quem sabe, possam inspirá-la em trabalhos<br />
futuros. E ele, por sua vez, pronto para se sentar em<br />
frente ao computador e, bloco de notas em mãos,<br />
começar a redigir sua matéria – cujo título não será<br />
mais “A arte nua”, mas, talvez, algo como “Ninguém veio<br />
para cá por outro motivo, além de nós”.<br />
***<br />
Thelma Bonavita, a coreógrafa e bailarina convidada<br />
a participar desta reportagem, foi premiada pela Associação<br />
Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em 1995,<br />
1997 e 2009. Frequentou, como estudante convidada,<br />
a School for New Dance Development (SNDO), em<br />
Amsterdã, e foi uma das fundadoras do estúdio Nova<br />
Dança, de São Paulo. Atualmente, desenvolve suas<br />
atividades artísticas por meio da Associação Desaba,<br />
criada em parceria com Cristian Duarte.<br />
Participe com suas ideias 45
Cenas do jogo Myst | imagem: Cyan Worlds Inc.<br />
A arte narrativa na vida digital<br />
deadline<br />
Os jogos digitais alteram a arte de contar e viver histórias ao criar uma relação<br />
entre autor, personagem e leitor.<br />
Por Jean-Frédéric Pluvinage<br />
Na Ilíada, uma das mais belas e antigas narrativas da história, heróis travam guerras épicas sem conseguir<br />
escapar de seus fins trágicos, traçados pela lei do destino. Destino que sempre foi controlado pelo maior dos<br />
deuses: o autor. Dos poemas gregos às telenovelas, ele sempre esteve presente, desenhando o fio da história.<br />
Mas agora a narrativa de simples contos ou fatos passa por uma revolução: no videogame o personagem<br />
escolhe seu destino. O Aquiles moderno escapou da linearidade. E, independente do seu criador, pode morrer<br />
lutando ou então se casar e ter filhos.<br />
O videogame, ou jogo digital, é a nova face da arte de contar uma história. Suas qualidades lúdicas se apropriam<br />
da linguagem hipertextual: imersão, interatividade e conteúdo multimídia. Sua narrativa pode se adaptar às<br />
decisões do jogador/leitor de tal forma que é preciso perguntar: Se o personagem tem liberdade em sua<br />
própria história, então qual a função do autor? A narração digital irá matar o roteiro?<br />
Qualquer julgamento é precipitado. Mas é bom lembrar que a modernidade da narração digital resgata<br />
a flexibilidade dos contos orais, que têm como característica o contato direto entre o autor e seu público.<br />
Enquanto a história progride, o autor ou contador de história se certifica da reação de seus ouvintes, percebendo<br />
quais passagens geram mais interesse e adaptando seu enredo de acordo. Porém, essa flexibilidade<br />
se perdeu nos impressos, nos filmes e em outros produtos audiovisuais.<br />
Participe com suas ideias 47
Os primeiros videogames, surgidos na década de 1970,<br />
não resgatam de imediato a fluidez das histórias orais,<br />
embora introduzam um enredo próprio cujo resultado<br />
depende da ação do jogador. A partir do Colossal Cave<br />
Adventure, de 1975, surgiram as ficções interativas,<br />
que são versões digitais dos livros-jogos – em que é<br />
possível chegar ao final escolhendo os caminhos distintos<br />
ou mesmo morrer tentando chegar ao fim. Os<br />
primeiros jogos digitais de RPG (jogos de interpretação<br />
de personagens) permitiram ao jogador a imersão<br />
em histórias complexas, apesar de ainda limitadas<br />
pela programação. “O que chamamos de interativo<br />
é visto por Raymond Williams, acadêmico galês que<br />
pesquisou a interação na mídia televisiva, apenas como<br />
reativo, ou seja, uma escolha entre opções preestabelecidas”,<br />
alerta Julia Stateri, designer e mestra com<br />
especialização em narrativa dos videogames. “Interatividade<br />
implica escolhas não programadas”, diz ela.<br />
“O segredo está em dar ferramentas para a atuação do<br />
jogador, mas sabendo limitar suas ações.” (Roger Tavares)<br />
Uma narrativa livre, interativa e colaborativa surge com<br />
os MMORPGS (jogos on-line de RPG para múltiplos<br />
jogadores). São games sem roteiros lineares, em que<br />
é oferecido basicamente um cenário. Cabe ao jogador<br />
escolher o que irá fazer e criar a própria história. “O autor,<br />
contudo, não morreu”, explica Roger Tavares, pesquisador<br />
do Centro<br />
Universitário Senac,<br />
doutor com especialização em<br />
videogames e fundador da comunidade<br />
virtual Gamecultura (gamecultura.com.br). “O<br />
segredo está em dar ferramentas para a atuação<br />
do jogador, mas sabendo limitar suas ações. Senão<br />
todos seriam invencíveis. O jogo precisa dessa<br />
diferença de potencial, de você receber ora prêmios,<br />
ora punições”, diz Tavares.<br />
Câmbio<br />
Essa criação coautoral dos jogos digitais provém da<br />
cibercultura. As primeiras teorias da comunicação<br />
definiam que um emissor envia uma mensagem a<br />
um receptor. Com o surgimento da cibercultura, todos<br />
são emissores e receptores de informação ao mesmo<br />
tempo, como nos softwares peer to peer nos quais<br />
filmes e músicas são distribuídos por uma rede de<br />
colaboradores. No caso do MMORPGS não há um só<br />
Os jogadores são criadores e leitores simultâneos de suas histórias no jogo Myst Online: Uru Live | imagem: Cyan Worlds Inc.<br />
autor: o gamedesigner (criador de um jogo) elabora o<br />
cenário, os limites e as missões, mas todos interagem<br />
entre si e cada um faz parte do jogo, da história e da<br />
experiência do outro.<br />
O jogador de um MMORPGS, por meio do avatar<br />
(sua representação virtual), está livre para lutar contra<br />
monstros, formar clãs, vender produtos e serviços, fazer<br />
festas e se casar. São jogos tão complexos que simulam<br />
a vida real, com sociedades e economias autônomas.<br />
O próprio programa Second Life se define como um<br />
mundo digital, com a presença de empresas, embaixadas<br />
e lojas reais, e onde casais podem se encontrar,<br />
namorar e até fazer sexo.<br />
O futuro do autor na mídia digital ainda reserva muitas<br />
inovações, principalmente no meio empresarial. “O jogo<br />
interativo é uma ferramenta estratégica para formular<br />
equipes no mundo corporativo, com roteiros que<br />
priorizam cenários de aproximação e relacionamento<br />
humano”, explica Julio Freitas, designer e pesquisador<br />
do Centro<br />
Universitário Senac, no<br />
Laboratório de Pesquisa em Ambientes<br />
Interativos. Outra tendência é a<br />
coautoria na criação dos roteiros. Caso dos<br />
jogos Spore Galactic Adventures e Little Big<br />
Planet, cujas missões e aventuras são elaboradas<br />
pelos próprios jogadores. Já o MMORPG Myst Online:<br />
Uru Live se tornou um jogo de código aberto, ou seja,<br />
sua programação permite que todo usuário possa<br />
adicionar cenários e objetivos em seu mundo virtual.<br />
Assim, o jogador se torna criador e leitor simultâneo de<br />
suas histórias. Já não há mais diferença entre Homero,<br />
seu ouvinte e Aquiles: autor, leitor e personagem se<br />
fundiram na vida digital.<br />
Jean-Frédéric Pluvinage é estudante de jornalismo da<br />
Faculdade de Comunicação e Artes do Centro Universitário<br />
Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP), Campus V<br />
de Salto (SP). É editor do jornal da faculdade, O Arauto.<br />
Adora games, em especial o jogo Thief: The Dark Project.<br />
48 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 49
50 Continuum Itaú Cultural<br />
Cavalo amarrado a bicicleta<br />
A história de uma fotografia e seu significado.<br />
Por Daniel Galera | Ilustração Manuela Eichner<br />
ficção<br />
Viu quando o garoto chegou pela esquerda, pedalando a pequena bicicleta cross e puxando atrás de si o<br />
cavalo. O conjunto em movimento projetava uma curiosa sombra na areia da praia, como se um dragão<br />
planasse na grande altura contra o sol das 5 da tarde. A bicicleta descrevia uma trajetória sinuosa e os joelhos<br />
do garoto giravam em alta frequência, abertos para fora, distantes do quadro pequeno demais para as suas<br />
pernas. Vestia apenas um calção azul com listras brancas nos lados, estava também descalço. Tinha uns 14<br />
anos. Uma das mãos controlava o guidom enquanto a outra puxava o animal pelas rédeas, e o cavalo trotava<br />
com patadas curtas e nervosas, o pescoço muito rijo e apontado para a frente, parecendo tenso e quem sabe<br />
prestes a sucumbir a alguma espécie de desespero. Não chegaram a passar diante da sua cadeira de praia; o<br />
garoto parou um pouco antes disso, dando um cavalinho de pau abrupto que levantou uma fronha de areia<br />
parda e forçou o cavalo a travar as patas dianteiras para não atropelar o dono.<br />
O garoto desceu da bicicletinha, apoiou um dos pedais numa pedra perdida na praia, pegou o travesseiro<br />
branco e fino que cobria o selim e o dispôs no lombo do cavalo como uma sela. Passou a mão na cabeça do<br />
cavalo e disse alguma coisa para ele enquanto parecia segurar seu focinho. Depois agarrou a crina com uma<br />
das mãos e montou com um salto desenvolto, aterrissando sobre o travesseiro como se não pesasse nada.<br />
Firmou as pernas nas costelas da montaria e nem precisou, pelo que pôde perceber, cravar os tornozelos nas<br />
ancas do cavalo para que ele saísse a galope pela areia em alta velocidade. O brilho de sua pelagem marrom<br />
era quase tão intenso quanto o de um espelho.<br />
“Tá vendo isso?”, perguntou à esposa deitada na espreguiçadeira a seu lado. Ela desviou o olhar do romance<br />
que lia e ajeitou um pouco a perna engessada para escondê-la mais uma vez da invasão sorrateira do sol da<br />
tarde. Entre os dois havia uma mesinha de madeira com restos de lagosta.<br />
“Pode cavalo na beira da praia?”, ela disse, acompanhando com a cabeça o animal a galope.<br />
“Acho que o moleque não tá muito preocupado. Tá galopando sem sela, olha só. Ele é bom.”<br />
“É. O cavalo é bonito. Parece que tá possuído.”
E era verdade, o cavalo era lindo, tinha o porte de um<br />
cavalo de corrida só que menor, seu pelo marrom era<br />
impecável e reluzia de maneira que parecia artificial. A<br />
certa distância o garoto freou o cavalo bruscamente e<br />
o fez mudar de direção. Deu algumas guinadas e o fez<br />
girar como um cavalo de desfile, e depois disparou na<br />
direção contrária, novamente em direção ao quiosque<br />
do qual podiam contemplar o mar azul-cinzento.<br />
“Merda, deixei a câmera na pousada.”<br />
Ela não disse nada, voltou ao romance. O cavalo passou<br />
em disparada diante deles e seguiu para o outro lado<br />
da praia, como se não pretendesse parar nunca mais.<br />
“Você trouxe a filmadora?”<br />
A mulher suspirou e pegou a bolsa de palha. Remexeu<br />
um pouco ali e tirou a pequena câmera digital<br />
embrulhada em uma canga azul. Ela fez menção de<br />
entregar-lhe a câmera, mas grunhiu alguma coisa e<br />
abriu o compartimento da fita.<br />
“Tá sem fita, Renato.”<br />
“Como assim?”<br />
“Tirei a fita ontem à noite, tinha acabado. Esqueci<br />
de pôr outra.”<br />
“Porra.”<br />
Ela o encarou por alguns instantes mas ele não viu,<br />
estava com a cabeça voltada para o outro lado, para o<br />
cavalo que ainda se afastava a galope pela faixa larga<br />
de areia. Não havia mais ninguém na praia, com<br />
a exceção de um buggy que tinha estacionado<br />
não muito longe deles e abrigava dois homens<br />
que bebiam cerveja em lata olhando o mar<br />
e escutando forró baixinho no rádio. A<br />
mulher voltou ao romance. Ele viu o<br />
garoto dar meia-volta de novo,<br />
a distância.<br />
“Queria outro coco”, disse a mulher.<br />
Ele olhou para trás e não viu o dono do barzinho.<br />
“O cara deu uma saída, parece. Quando ele voltar eu busco.”<br />
O garoto passou meia dúzia de vezes diante do quiosque,<br />
sempre a galope. O cavalo bufava e já não parecia<br />
desesperado. O garoto dava a impressão de estar sorrindo<br />
o tempo todo, e lá pelas tantas concluiu que ele estava<br />
mesmo sorrindo quase o tempo todo, olhando à frente,<br />
perfeitamente integrado com a montaria, segurando<br />
as rédeas com apenas uma mão, o corpo um pouco<br />
projetado para a frente, as pernas agarradas ao bicho<br />
e os pés livres. A coisa toda tinha algo de primitivo<br />
e transmitia uma imagem de felicidade que ele não<br />
conseguia explicar a si mesmo, mas parecia um enigma<br />
passível de ser desvendado se ele observasse a cena<br />
com atenção por tempo o bastante.<br />
A coisa toda tinha algo de primitivo e transmitia uma imagem<br />
de felicidade que ele não conseguia explicar a si mesmo,<br />
mas parecia um enigma passível de ser desvendado se ele<br />
observasse a cena com atenção por tempo o bastante.<br />
“Renato, acho que quero ir embora.”<br />
Ele demorou um pouco a responder, compenetrado<br />
no garoto.<br />
“Já vamos. Tô meio cansado também. O sol tava muito<br />
forte hoje.”<br />
Agora, ao se aproximar da bicicleta estacionada na areia,<br />
o garoto puxou a rédea e pôs o cavalo a passo. O animal<br />
soprou ruidosamente pelas narinas, andando em círculo.<br />
“Não, eu quero ir embora pra casa. Pra São Paulo.”<br />
O garoto deslizou pela areia, desmontando com a<br />
mesma ausência de esforço com que havia montado.<br />
52 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 53
“Ué. Ainda temos cinco dias.”<br />
O garoto tirou o travesseiro do lombo do cavalo e o<br />
acomodou no vão do quadro da bicicleta. Depois tomou<br />
a rédea e a amarrou no guidom. O cavalo parou<br />
ali, arquejando, dócil, apaziguado pelo esforço.<br />
“É por causa da perna?”, ele perguntou à mulher. “Deve<br />
estar sendo muito chato esse gesso na praia, mas a<br />
gente já tá aqui. Não faz muito sentido voltar, né? Sei<br />
lá quando viremos ao Nordeste de novo. Podemos<br />
passar os últimos dias em Fortaleza, talvez seja melhor.”<br />
Ele pôs a mão no braço da mulher, alisou-o um pouco,<br />
tentando confortá-la. “Um dia a gente vai se lembrar<br />
dessa viagem e pensar pô, apesar do acidente, a gente<br />
aproveitou muito.”<br />
O garoto deixou o cavalo ali amarrado à bicicleta e<br />
começou a andar em direção ao mar. Ao se aproximar<br />
das ondas, deu uma corridinha e um salto mortal meio<br />
incompleto, mergulhando na água quente.<br />
Ampliada numa cópia de 20 x 25 centímetros, é possível ver<br />
claramente pontos rosa e verdes na cor distorcida, pixels que<br />
sujam a reprodução mas ao mesmo tempo lhe emprestam<br />
um véu nostálgico, ou até místico, ele ousaria dizer.<br />
“Não é a perna”, disse a mulher.<br />
Mas ele não ouviu, ou não registrou. O garoto tinha<br />
começado a nadar e ele o observava fascinado. Nadou<br />
bem para o fundo e depois começou a costear a praia.<br />
Não era um nado elegante, nada comparável a seus<br />
dotes de cavaleiro, mas ele girava rápido seus braços<br />
finos e avançava numa velocidade considerável, batendo<br />
pernas com força, sumindo e ressurgindo por<br />
trás das marolas.<br />
“Marília, a tua câmera tira foto também, né?”<br />
“Hein?”<br />
“A filmadora. Ela tira foto, né?”<br />
“Tira, mas tá sem fita, eu disse.”<br />
“Não, mas as fotos ficam na memória. Me alcança<br />
a câmera?”<br />
Pegou a pequena câmera da mão dela, abriu o visor,<br />
acionou o botão de ligar, depois apertou o botão da<br />
função de tirar fotos. Apontou a lente para a curiosa<br />
instalação que tinha diante de si e foi aproximando o<br />
zoom até chegar ao máximo, enquadrando cavalo e<br />
bicicleta com alguma dificuldade, já que a aproximação<br />
complicava a estabilização do quadro. Tirou uma<br />
única foto. A câmera registrou a cena com um ruído<br />
simulado de obturador. Ele fechou o visor, desligou a<br />
câmera e a devolveu à mulher.<br />
Um pouco mais tarde, depois que o garoto tinha<br />
saído do mar, reposicionado o travesseiro no selim<br />
da bicicleta e pedalado com o cavalo a reboque até<br />
desaparecer na distância da praia quase deserta,<br />
ele levantou e comprou dois cocos gelados do<br />
vendedor que estivera ali atrás do bar o tempo<br />
todo, cochilando numa cadeira. Chegando a São<br />
Paulo, ela o deixou.<br />
A imagem digital é extremamente granulada<br />
e cheia de ruído visual. Ampliada<br />
numa cópia de 20 x 25 centímetros,<br />
é possível<br />
ver claramente pontos rosa e verdes na cor distorcida,<br />
pixels que sujam a reprodução mas ao mesmo tempo<br />
lhe emprestam um véu nostálgico, ou até místico, ele<br />
ousaria dizer. A aparência geral é de algo desbotado, e<br />
os contornos se borram.<br />
Mas ele gosta mesmo é de ver a imagem na área de<br />
trabalho de seu notebook, refinada pelos pontos precisos<br />
do monitor LCD. O cavalo está à esquerda, de perfil,<br />
brilhoso de suor, as patas dianteiras paralelas e retas<br />
como estacas, o rabo um pouco afastado, congelado<br />
no meio de um abano tranquilo, o pescoço ereto mas<br />
descansado. Está amarrado pelas rédeas ao guidom da<br />
bicicleta, que está de frente para ele, a roda dianteira<br />
bem abaixo da sua cabeça, ocupando o terço direito<br />
da composição. A areia molhada reflete o céu azul,<br />
e o mar, no alto, é atravessado de um canto a outro<br />
pelo tubo de espuma de uma onda que quebra. O<br />
garoto não está à vista, mas o cavalo, pensativo, fiel,<br />
está à sua espera, sem ansiedade nenhuma, e é como<br />
se ele estivesse lá.<br />
Daniel Galera é escritor gaúcho. Autor, entre outros,<br />
dos livros Cordilheira (Cia. das Letras, 2008), Mãos de<br />
Cavalo (Cia. das Letras, 2006) e Até o Dia em que o Cão<br />
Morreu (Cia. das Letras, 2007). Mantém um site pessoal<br />
em www.ranchocarne.org.<br />
54 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 55
a cinematográfica caseira para<br />
e sua filha recém-nascida, o jovem<br />
osz é convidado pelo chefe<br />
e na fábrica local. Com o sucesso<br />
um fascínio quase obsessivo<br />
gráfica, com consequências<br />
mo e para sua família. Vencedor<br />
tival Internacional de Moscou<br />
ma reflexão tragicômica do<br />
f Kieslowski sobre as complexas<br />
individual e censura, e entre<br />
eio cinematográfico do Leste<br />
unismo. Realizado no período<br />
umentários de início de carreira<br />
ela qual o diretor se tornou<br />
uncia de forma bem-humorada<br />
cinema documental e coloca<br />
stões éticas que o ato de ver<br />
espectador.<br />
wy/Talking Heads) [1980, 16 min]<br />
VideoFilmes<br />
EM-SE ExCLUSIVAMENTE AO FILME E NãO AOS ExTRAS<br />
ANAUS E DISTRIBUÍDO POR VIDEOLAR S.A. Av. Solimões,<br />
PJ 04.229.761/0004-13. Indústria Brasileira. Sob licença<br />
AS LTDA. Rio de Janeiro RJ, CNPJ 31.179.864/0001-46.<br />
8. Denuncie a pirataria: denuncia@apdif.org.br ou Caixa<br />
. O prazo de validade deste disco DVD é indeterminado,<br />
idados: armazenar em local seco e livre de poeira;<br />
r; não engordurar; não expor a temperaturas superiores<br />
urar o disco sempre pela lateral e pelo furo central.<br />
obra original, incluindo sua trilha sonora, é destinada<br />
s, não sendo permitida nenhuma outra forma de<br />
arciais. A violação dos direitos exclusivos do produtor<br />
e [art. 148 do Código Penal], punível na forma da lei.<br />
vfd 216<br />
Cinemaníaco<br />
coleçãovideofilmes 21<br />
A arte de cada dia<br />
As recomendações culturais da Continuum para um cotidiano mais artístico.<br />
Por André Seiti<br />
Grande Prêmio –<br />
Festival de Moscou<br />
1979<br />
“Uma excelente<br />
introdução à obra<br />
de Kieslowski.”<br />
Jonathan Rosenbaum,<br />
Chicago Reader<br />
coleçãovideofilmes 21<br />
O Tempo que Resta, de François Ozon<br />
(Le Temps Qui Reste, França, 2005,<br />
Califórnia Filmes)<br />
Um passeio no parque, uma caminhada noturna,<br />
um descanso na praia. Atividades tão<br />
banais que ganham novos significados perante<br />
a iminência da morte. Romain é um fotógrafo<br />
bem-sucedido diagnosticado com câncer.<br />
Restam-lhe poucos meses de vida. Diante<br />
dessa situação, o mundo e as pessoas ao seu<br />
redor passam a ser vistos – e fotografados – de<br />
uma maneira diferente.<br />
56 Continuum Itaú Cultural<br />
Cinemaníaco<br />
Krzysztof Kieslowski<br />
6/17/09 6:20:22 PM<br />
CINEMA<br />
balaio<br />
Cinemaníaco, de Krzysztof Kieslowski<br />
(Amator, Polônia, 1979, Videofilmes)<br />
Filip Mosz é um operário que resolve comprar uma<br />
filmadora 8 mm para registrar os primeiros dias da filha<br />
recém-nascida. No entanto, o que era para ser apenas<br />
um hobby se torna uma obsessão. Mosz começa a filmar<br />
tudo e todos. Pessoas do cotidiano transformam-se em<br />
“astros” de suas produções. Mas não tarda para que o<br />
“operário-documentarista” se depare com dilemas éticos,<br />
que trarão sérias consequências para ele e sua família.<br />
MÚSICA<br />
Concerto para Conserto, de Ricardo Siri (2008)<br />
Para que serve um carro? A resposta mais óbvia talvez<br />
seja: para a locomoção. Não para o percussionista carioca<br />
Ricardo Siri. Nesta gravação de um show ao vivo, Siri faz<br />
do tradicional Fusca um de seus principais instrumentos,<br />
extraindo do automóvel uma inesperada musicalidade.<br />
FOTOGRAFIA<br />
Brasil sem Fronteiras, de Cláudio Bojunga<br />
(Tempo d’Imagem, 180 páginas, 2001)<br />
Cinco fotógrafos percorrem o limite perimetral do Brasil<br />
com seus vizinhos sul-americanos. Antonio Augusto<br />
Fontes, Celso Oliveira, Ed Viggiani, Elza Lima e Tiago<br />
Santana deixam evidentes as diferenças e afinidades<br />
culturais, captando no cotidiano dos locais visitados<br />
– 42 ao todo – momentos pueris repletos de poesia.<br />
LITERATURA<br />
Crônica Inéditas I, de Manuel Bandeira<br />
(CosacNaify, 464 páginas, 2008)<br />
Conhecido por seus poemas, o escritor pernambucano<br />
Manuel Bandeira também é autor de uma vasta obra<br />
em prosa. Neste livro, estão reunidas 113 crônicas,<br />
escritas entre 1920 e 1931, publicadas em jornais da<br />
época. Bandeira fala – sempre em tom culto – de<br />
pintura, cinema, música e da vida no Rio de Janeiro.<br />
Destaque para o texto em que o poeta discorre – com<br />
humor ácido – sobre o desfile da miss Brasil, no centro<br />
da capital carioca, em 1929.<br />
foto: Cia de Foto<br />
Participe com suas ideias 57
Casa em obras<br />
Ao transformar suas residências em espaços de produção e exposição, artistas<br />
dão exemplo de como diminuir a distância entre vida e arte.<br />
Por Augusto Paim<br />
reportagem<br />
Na última edição da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, em 2009, uma obra se destacava no número 400<br />
da Rua da Praia. Localizada fora dos pavilhões onde ocorre a maior parte do evento, a intervenção do artista<br />
plástico paulista Henrique Oliveira transformou um prédio público abandonado numa “casa-monstro”: uma<br />
massa disforme, saindo por portas e janelas, impedia a entrada de qualquer pessoa e dava ainda a sensação<br />
de que a construção explodiria a qualquer momento.<br />
Esse é um exemplo de quando a casa é tema do trabalho do artista. Mas Henrique não morou na sua obra<br />
de arte, como de fato fez o dadaísta alemão Kurt Schwitters (1887–1948) em sua Merzbau. De 1923 a 1937,<br />
Schwitters fez intervenções no próprio lar, em Hannover, Alemanha. Sua produção começou num quarto e<br />
foi aos poucos aumentando de tamanho, invadindo outros cômodos, criando grutas e cavernas. A casa-obra<br />
foi posteriormente destruída por bombardeios da Segunda Guerra Mundial.<br />
Outros artistas modificam a própria casa sem necessariamente alterar todo o espaço. Em 1996, a carioca<br />
Brígida Baltar encostou-se numa parede, desenhou o contorno do seu corpo e depois o “recortou”. “Na época<br />
eu pensava nas questões sobre o corpo e a identidade, e naquele lugar o corpo preenchia o espaço dos<br />
tijolos e se tornava estrutura pura. Trabalhei algum tempo com a ideia da casa como extensão do corpo”,<br />
explica Brígida, que completa: “Ali eu estava experimentando uma nova visão, um lugar único no mundo”. O<br />
processo de criação foi documentado e exposto por meio de vídeo, fotografias e slides. Os tijolos retirados<br />
da parede foram reutilizados por Brígida. “Quando me mudei, precisei restaurar a casa e todos os vãos que<br />
eu havia aberto foram fechados”, conta.<br />
A artista gaúcha Glaucis de Morais também fez a obra de arte em casa. Com a ajuda de amigos, ela escreveu<br />
repetidamente os versos “amortecendo cavo aconchego” nas quatro paredes de um dos três cômodos de seu<br />
apartamento. Intitulada Côncavo, a obra foi feita entre 1999 e 2002 e é fruto da dissertação de mestrado da<br />
artista. Permanece lá, na Rua César Lombroso, 146/6, em Porto Alegre, onde Glaucis ainda mora. O cômodo<br />
não tem luz elétrica (uma necessidade da obra) nem móvel algum, mas pode ser usado para pequenas tarefas<br />
quando não tem ninguém visitando.<br />
Detalhe da obra Côncavo, de Glaucis de Morais<br />
Intervenção Abrigo, da artista Brígida Baltar, em sua própria casa | foto: arquivo da artista<br />
Abre parênteses<br />
Fazer da própria casa um espaço de arte é uma boa<br />
ideia? Jailton Moreira, curador, professor de artes visuais<br />
e artista plástico, enxerga na pauta mais um exemplo<br />
do “movimento para não sair de casa”, estimulado<br />
pelo uso da internet. Para ele, é necessário sair do<br />
seu território de conforto para ter contato com a arte.<br />
“Pois arte é deslocar o local de aconchego e colocá-lo<br />
em outro lugar.”<br />
Para Brígida, “a casa é ou deveria ser sempre um<br />
espaço prazeroso e propício à convivência consigo<br />
mesmo, com familiares, amigos etc.”. Ela acredita que<br />
transformar a casa num espaço artístico, se é o que<br />
o morador deseja, pode ser também uma tarefa<br />
sob encomenda. “Tudo bem se quiser fazer por<br />
você mesmo, mas isso não necessariamente<br />
é arte ou o torna um artista”, diz. Tanto ela<br />
quanto Glaucis ressaltam a importância<br />
do estudo e do convívio com o circuito<br />
da arte para a formação<br />
do profissional.<br />
Os artistas e suas casas<br />
Adriana Matos Alves Duarte, mais conhecida como Xiclet,<br />
já expôs em albergue, garagem e numa república em<br />
que morou. Hoje ela vive na Rua Fradique Coutinho,<br />
1855, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. “Uma<br />
casa dentro de uma galeria e uma galeria dentro de<br />
uma casa” é o conceito da Casa da Xiclet, que, além de<br />
domicílio, é um espaço de exposição e interação com a<br />
arte, inaugurado oficialmente em setembro de 2001. A<br />
artista expõe trabalhos de qualquer pessoa, sem seleção<br />
nem curadoria. Tudo é pensado para ser uma brincadeira.<br />
“Não é underground, é playground” tornou-se um dos<br />
slogans. Nesse espaço, há jogos, oficinas, festas e cursos<br />
de arte culinária, além do estímulo ao ócio criativo, e<br />
por isso é frequentado por artistas que lá podem deixar<br />
o pensamento correr solto.<br />
O artista Fernando Peres tem um exemplo parecido, só<br />
que em menores proporções arquitetônicas. De janeiro<br />
de 2002 a abril de 2008, ele alugou um imóvel que ficou<br />
conhecido como A Menor Casa de Olinda. “Inventei<br />
do nada esse nome por ela ser muito pequena: uma<br />
Participe com suas ideias 59
Antiga casa de Fernando Peres, em Olinda | foto: Cia de Foto<br />
porta (sem janelas) e dentro um triângulo isósceles (a<br />
f<strong>acha</strong>da com 3 metros de largura e os dois lados com<br />
11 metros).” Apesar do tamanho, lá dentro cabia uma<br />
cama suspensa, um minimezanino e um banheiro a<br />
céu aberto, localizado na ponta do triângulo. Como se<br />
o tamanho da construção já não dificultasse bastante<br />
a possibilidade de uma pessoa morar lá, Peres ainda<br />
transformou o lugar num centro cultural, sediando<br />
festas, exposições e performances, e servindo de<br />
ateliê. Em 2008, porém, teve de devolver a propriedade<br />
à dona. Segundo Peres, muito de seu trabalho<br />
se relaciona com o conceito “casa” e isso vem antes da<br />
mudança para A Menor Casa de Olinda. “Nas minhas<br />
duas últimas exposições individuais, levei todos os meus<br />
objetos, roupas, plantas, animais, desenhos, pinturas<br />
etc. para os museus por um mês”, conta referindo-se<br />
às exposições no Instituto de Arte Contemporânea de<br />
Recife e no Museu de Arte Contemporânea de Olinda.<br />
Na Serra Gaúcha, no município de Morro Reuter, uma<br />
placa dá as boas-vindas ao contrário – “vindo bem”<br />
– na entrada da residência Caminho das Serpentes.<br />
Passando pelo portão, há uma trilha de mosaico onde<br />
se vê um unicórnio à esquerda e diversos painéis à<br />
direita, muitos deles feitos com objetos de família<br />
que virariam lixo em uma faxina qualquer: relógios<br />
quebrados, rendas, lenços, panos, bijuterias e louças<br />
velhas. O terreno de 6.195 metros quadrados tem<br />
ainda uma pequena biblioteca e um palco feito de<br />
mosaicos, para apresentações e performances ao ar<br />
livre. O pátio é cheio de esculturas, cada uma assinada<br />
por um autor diferente. Para as crianças, há uma<br />
serpente gigante e um miniateliê. Numa construção<br />
à esquerda da entrada, o poema “A invenção do olho”,<br />
de Vítor Ramil, jaz para ser lido também em mosaico.<br />
Tudo, praticamente tudo, é mosaico na Caminho das<br />
Serpentes. Até mesmo os banheiros. E, claro, a casa<br />
da proprietária.<br />
A artista plástica gaúcha Claudia Sperb mudou-se para<br />
o meio da floresta em 1997. De lá para cá, ao mesmo<br />
tempo que encheu as construções e o jardim de mosaicos,<br />
ministrou cursos de arte para leigos. Em sua casa<br />
há, por exemplo, xilogravuras feitas por operários da<br />
A arte pertence à humanidade desde todos os tempos, é<br />
inerente, e por isso acho que as experiências são ou deveriam<br />
ser profundamente livres e para todos.” (Brígida Baltar)<br />
construção civil de Novo Hamburgo. Arte-educadora,<br />
Claudia agora deseja levar seu conhecimento de arte<br />
contemporânea a quem não costuma ter acesso. Por<br />
isso decidiu fazer de sua casa uma paragem para<br />
amigos, conhecidos, estranhos, enfim, pessoas que<br />
estejam <strong>procura</strong>ndo aliar repouso ao aprendizado<br />
do mosaico e da xilogravura, ao se<br />
inspirar, de alguma forma, com o que<br />
fez em sua própria casa.<br />
Fecha parênteses<br />
Quando o período de apuração para esta reportagem<br />
se encaminhava para o final, Brígida Baltar escreveu<br />
ao repórter:<br />
“Você já deve ter escrito sua matéria, mas fiquei refletindo<br />
ainda sobre o que você investiga. Na verdade<br />
fiquei lembrando que quando somos crianças todos<br />
desenhamos muito, e por que mais tarde paramos de<br />
fazer isso? Seria tão bacana que as pessoas continuassem<br />
a se expressar através do desenho, por exemplo.<br />
Fiquei lembrando também que tenho um amigo que<br />
é designer, e sempre que chega em casa toca um<br />
cavaquinho, para relaxar, sei lá, por prazer puro, por<br />
necessidade espiritual. A arte pertence à humanidade<br />
desde todos os tempos, é inerente, e por isso<br />
acho que as experiências são ou deveriam ser<br />
profundamente livres e para todos. Essa<br />
é minha resposta mais generosa<br />
e menos defendida.”<br />
Glaucis de Morais observa Côncavo | foto: arquivo da artista (acima) e Playground no quintal da Casa da Xiclet | foto: arquivo da artista (abaixo)<br />
60 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 61
Seja um repórter da Continuum<br />
convocação<br />
A seção Deadline é um espaço voltado exclusivamente para reportagens feitas por estudantes universitários<br />
– de qualquer curso e de todos os cantos do Brasil.<br />
As reportagens devem estar pautadas de acordo com o tema de cada edição. E vá se preparando, o assunto<br />
do próximo bimestre (junho-julho) é Periferia.<br />
O Regulamento e a Convocatória, que estabelecem os prazos e as condições para a participação do leitor<br />
estudante, estarão disponíveis em breve no site itaucultural.org.br/continuum. Após lê-los, o interessado<br />
deve enviar um projeto de reportagem à redação da revista. Apenas um projeto será selecionado.<br />
***<br />
Agora, se você não é estudante ou não quer saber de escrever matérias, mas deseja participar da revista,<br />
não se preocupe. A seção Área Livre é o lugar certo para você mostrar seu talento. Contos, artigos, poemas,<br />
fotos, ilustrações... Envie seu trabalho – que deve seguir o tema da edição – para participecontinuum@<br />
itaucultural.org.br e, após análise, poderemos publicá-lo.<br />
Reiterando, o tema de junho-julho é Periferia (prazos de envio: revista impressa, até 10 de maio; revista online,<br />
até 10 de julho).<br />
***<br />
Em tempo: em nosso último número, foi anunciado o lançamento do blog da revista, o Continuando... Devido<br />
a forças ocultas, ele não pôde ir ao ar, mas, em breve, estará aí, sendo atualizado a cada semana. Aguardem!<br />
***<br />
Durante um ano, o Itaú Cultural possibilitou aos interessados receber a revista pelo correio. No entanto, esta<br />
ação se encerra a partir deste número devido ao esgotamento da capacidade de envio. Mas os exemplares<br />
da atual edição (bem como das futuras) podem ser retirados gratuitamente na recepção do instituto (Avenida<br />
Paulista, 149 – São Paulo, SP).<br />
Devido às baixas de estoque, não são distribuídos ou enviados pelo correio exemplares de edições anteriores.<br />
Dúvidas, sugestões ou críticas? Escreva para continuum@itaucultural.org.br e contate a equipe da revista.<br />
Ilustração [detalhe]: Virgílio Neto<br />
62 Continuum Itaú Cultural Vernissage (acima) e Picasso, cartuns de Marcelo Rampazzo<br />
Participe com suas ideias 63<br />
área livre
64 Fotos Continuum da série Itaú Cultural Ausência, de Phamela Dadamo<br />
Participe com suas ideias 65
66 Fotos Continuum da série Itaú Cultural Ballet em Foco – Bailarinas Fora do Palco, de Wilson Inacio A Máquina de Escrever Azul, registro fotográfico de intervenção do coletivo Casa de Marimbondo<br />
Participe com suas ideias 67
entrada franca<br />
O programa Rumos Itaú Cultural promove o intercâmbio<br />
entre artistas, intelectuais e agentes culturais,<br />
incentivando a pesquisa e propondo novas maneiras<br />
de produzir arte no país.<br />
Um programa perene, mas que a cada edição é repensado<br />
e reformulado, adaptando-se às rápidas transformações<br />
do cenário cultural.<br />
Com mais de 20 mil projetos inscritos, 900 apoiados<br />
e um público de mais de 2 milhões de pessoas,<br />
o Rumos Itaú Cultural deposita sua confiança na<br />
cultura como força promotora de transformações.<br />
Inscrições abertas<br />
Rumos Teatro<br />
Inscrições até 30 de junho de 2010<br />
Rumos Música<br />
Inscrições até 30 de junho de 2010<br />
Rumos Literatura<br />
Inscrições até 31 de julho de 2010<br />
Rumos Pesquisa<br />
Inscrições até 30 de junho de 2010<br />
Saiba mais em<br />
itaucultural.org.br/rumos<br />
itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural youtube.com/itaucultural<br />
avenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] terça a sexta das 9h às 20h sábados domingos e feriados das 11h às 20h