tese final Monica 20.. - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />
INSTITUTO DE LETRAS<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS<br />
DOUTORADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS<br />
MÔNICA FERREIRA MAGALHÃES<br />
MAQUIAGEM E PINTURA CORPORAL: uma análise semiótica<br />
NITERÓI<br />
2010
Maquiagem e pintura corporal: uma análise semiótica<br />
por<br />
Mônica Ferreira Magalhães<br />
Tese apresentada à banca examinadora do<br />
Doutorado em Estudos Linguísticos como<br />
requisito parcial para obtenção do grau <strong>de</strong><br />
Doutor. Área <strong>de</strong> concentração: Discurso e<br />
Interação.<br />
Orientadora: Profª Drª Lucia Teixeira<br />
Niterói<br />
2010
Ficha Catalográfica elaborada pela <strong>Biblioteca</strong> Central do Gragoatá<br />
M188 Magalhães, Mônica Ferreira.<br />
Maquiagem e pintura corporal: uma análise<br />
semiótica / Mônica Ferreira Magalhães. – 2010.<br />
236 f. ; il.<br />
Orientador: Lucia Teixeira.<br />
Tese (Doutorado) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
Fluminense, Instituto <strong>de</strong> Letras, 2010.<br />
Bibliografia: f. 214-222.<br />
1. Linguagem corporal. 2. Semiótica. 3. Teatro. I.<br />
Teixeira, Lúcia. II. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />
Instituto <strong>de</strong> Letras. III. Título.<br />
1. 371.010981<br />
CDD 792
Mônica Ferreira Magalhães<br />
MAQUIAGEM E PINTURA CORPORAL: uma análise semiótica<br />
Banca Examinadora<br />
Tese apresentada à banca examinadora<br />
do Doutorado em Estudos Linguísticos<br />
como requisito parcial para obtenção do<br />
grau <strong>de</strong> Doutor. Área <strong>de</strong> concentração:<br />
Discurso e Interação.<br />
______________________________________________________________<br />
Profª. Drª Lucia Teixeira (orientadora – UFF)<br />
______________________________________________________________<br />
Profª. Drª Silvia Maria <strong>de</strong> Sousa (UFF)<br />
______________________________________________________________<br />
Profª. Drª Solange Coelho Vereza (UFF)<br />
______________________________________________________________<br />
Profª. Drª Regina Souza Gomes (UFRJ)<br />
______________________________________________________________<br />
Prof. Dr. Luciano Pires Maia (UNIRIO)<br />
______________________________________________________________<br />
Profª. Drª Lucia Helena <strong>de</strong> Freitas (UNIRIO - suplente)<br />
______________________________________________________________<br />
Prof. Dr. Guilherme Néry Atem (UFF – suplente)
Para Eduardo Maya que acompanhou letra por letra, palavra por<br />
palavra... Fiel escu<strong>de</strong>iro, gran<strong>de</strong> amor!
AGRADECIMENTOS<br />
Meus sinceros agra<strong>de</strong>cimentos a Lucia Teixeira que me permitiu frequentar as<br />
minhas primeiras aulas <strong>de</strong> semiótica, ainda como ouvinte, e, generosamente, me<br />
apresentou a teoria que fundamentou a presente <strong>tese</strong>. Agra<strong>de</strong>ço todos os<br />
empréstimos, todas as sugestões e todos os comentários que eram sempre<br />
aguardados ansiosamente.<br />
Agra<strong>de</strong>ço a Maria Augusta Babo que com toda <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e generosida<strong>de</strong><br />
incluiu a semiótica do corpo em sua palestra sobre a assinatura na UFRJ (2009), além<br />
<strong>de</strong> me oferecer uma cópia da Revista <strong>de</strong> Comunicação e Linguagem.<br />
Ao grupo Amok teatro, em especial, a Ana Teixeira que, além <strong>de</strong> ter oferecido<br />
um espetáculo sensível e primoroso, cujas maquiagens fazem parte do corpus <strong>de</strong><br />
análise neste trabalho, sempre aten<strong>de</strong>u prontamente a todas as minhas solicitações,<br />
facilitando o acesso às informações. Também agra<strong>de</strong>ço ao Marcus Pina pela<br />
colaboração à minha pesquisa. A Jadranka Andjelick pelas indicações e consultas.<br />
Às professoras Renata Mancini e Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello pela leitura<br />
atenta e pelas sugestões no exame <strong>de</strong> qualificação.<br />
Ao SEDI, grupo <strong>de</strong> pesquisa em Semiótica e Discurso, em especial, Silvia Maria<br />
<strong>de</strong> Souza que, além da sugestão <strong>de</strong> leitura, me emprestou o Razões e Sensibilida<strong>de</strong>s.<br />
Ao Ernani Maleta que ao me convidar para assistir ao belo Circo Místico do Voz<br />
& Companhia, me refrescou a memória com os poemas <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima.<br />
Aos colegas do Departamento <strong>de</strong> Interpretação e da Escola <strong>de</strong> Teatro da<br />
UNIRIO pela compreensão e incentivo. Especialmente agra<strong>de</strong>ço ao Miguel Vellinho<br />
que generosamente ministrou as aulas <strong>de</strong> caracterização para que eu pu<strong>de</strong>sse me<br />
<strong>de</strong>dicar integralmente à <strong>tese</strong>. A Natália Fiche por todos os livros <strong>de</strong> semiótica, ao Jorge<br />
<strong>de</strong> Carvalho que iluminou algumas i<strong>de</strong>ias neste trabalho e ao Luciano Maia por todas<br />
as oportunida<strong>de</strong>s.<br />
tudo.<br />
Ao Alexandre Nascimento que transpôs para DVD a fita <strong>de</strong> O Carrasco.<br />
Ao Eduardo Maya pelas leituras, pelas traduções, pelo companheirismo, por<br />
Aos meus pais, Rita e José, ao meu irmão, Marco, simplesmente por existirem<br />
em minha vida.
RESUMO<br />
Este trabalho trata a maquiagem como uma linguagem, constituída <strong>de</strong> um plano<br />
<strong>de</strong> expressão e um plano <strong>de</strong> conteúdo e concretizada em enunciados pintados sobre o<br />
rosto e/ou o corpo <strong>de</strong> um sujeito localizado historicamente num tempo e espaço<br />
<strong>de</strong>finidos. Utiliza a base teórica da semiótica discursiva e propõe uma metodologia <strong>de</strong><br />
análise que consi<strong>de</strong>ra a função semiótica do corpo e a praxis enunciativa <strong>de</strong> diferentes<br />
formas <strong>de</strong> maquiagem e pintura corporal. São analisados os exemplos da maquiagem<br />
social, da pintura corporal e da maquiagem teatral, em seus aspectos discursivos e<br />
tensivos, a partir fundamentalmente dos conceitos propostos pelo semioticista Jacques<br />
Fontanille (2004, 2007). Observa que a maquiagem, como toda linguagem, cria<br />
códigos socialmente interpretáveis pelo hábito ou produz sentidos inesperados a partir<br />
da articulação que promove entre o sensível e o inteligível.<br />
Palavras chave: Maquiagem, pintura corporal, semiótica, teatro.
ABSTRACT<br />
This work treats the technique of make-up as a language, on the level of<br />
expression and the level of content and realised in texts painted on the face and/or the<br />
body of a person, historically situated in a specific time and space. It uses the<br />
theoretical base of discourse semiotics and proposes a methodology of analysis which<br />
takes in account the semiotic function of the body and the enunciation praxis of the<br />
various forms of make-up and body painting. The examples of social make-up, body<br />
painting and stage make-up are analyzed in their aspects discursive and tensive,<br />
starting from the concepts suggested by the professor of semiotics Jacques Fontanille<br />
(2004, 2007). It is observed that the make-up, like any language, creates co<strong>de</strong>s socially<br />
interpretable by the customs or produces meanings unexpected from the expression<br />
that is created between the sensible and the intelligible.<br />
Key words: make-up, body painting, semiotics, theatre.
RÉSUMÉ<br />
Ce travail traite le maquillage comme une langage, constituée d'un plan<br />
d'expression et d‟un plan <strong>de</strong> contenu et concrétisée dans <strong>de</strong>s énoncées peinté sur le<br />
visage et/ou le corps d'un sujets localisés historiquement dans un temps et un espace<br />
définis. On utilise la base théorique <strong>de</strong> la sémiotique discursive et propose une<br />
méthodologie d'analyse qui considère la fonction sémiotique du corps et la praxis<br />
énonciatifs <strong>de</strong> différentes formes <strong>de</strong> maquillage et peinture corporelle. Sont analysés<br />
les exemples <strong>de</strong> maquillage social, la peinture corporelle et maquillage théâtral, dans<br />
leurs aspects discursives et tensives, à partir fondamentalement <strong>de</strong>s concepts<br />
proposés par le sémioticien Jacques Fontanille (2004, 2007). On observe que le<br />
maquillage, comme toute langage, crée <strong>de</strong>s co<strong>de</strong>s socialement interprétables par<br />
l'habitu<strong>de</strong> ou produit <strong>de</strong>s sens inattendus à partir <strong>de</strong> l'articulation qui promouvoir entre<br />
le sensible et <strong>de</strong> l'intelligible.<br />
Mots-clé : maquillage, peinture corporelle, sémiotique, théâtre.
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 16<br />
1 - ENUNCIADOS PINTADOS SOBRE O ROSTO OU O CORPO ................................ 32<br />
1.1- O CORPO SEMIÓTICO: DA HEXIS CORPORAL AO CORPO DO ACTANTE .. 34<br />
1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do<br />
corpo próprio ........................................................................................................... 40<br />
1.1.2- Corpo: movimento e envelope ...................................................................... 49<br />
1.1.3 - Eu-pele: um envelope corporal semiótico .................................................... 52<br />
1.2 - DE ENVELOPE CORPORAL A OBJETO SEMIÓTICO...................................... 54<br />
1.3 - ENVELOPE SEU OUTRO-PELE: SUPORTE SENSÍVEL PARA INSCRIÇÕES<br />
DE UM SUJEITO NO MUNDO ................................................................................... 56<br />
1.4 - ENTRE SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO E SUPORTE DE ENUNCIAÇÕES ....... 60<br />
1.4.1- Proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base, funções e oscilação dos modos <strong>de</strong> presença dos<br />
envelopes corporais ................................................................................................ 62<br />
1.4.1.1 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão: <strong>de</strong>formação do envelope ou pluralização do<br />
enunciado. ............................................................................................................... 66<br />
1.4.1.2 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação: o avesso do envelope corporal. .............. 73<br />
1.4.1.3 - Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filtro <strong>de</strong> seleção: projeção do próprio sobre o não<br />
próprio. .................................................................................................................... 77<br />
1.4.1.4 - Proprieda<strong>de</strong> da marca: instrumentalização das inscrições. .................... 84<br />
2 - INSCRIÇÕES EFÊMERAS ...................................................................................... 88<br />
2.1 - FASCÍNIO PERSUASIVO ................................................................................. 91<br />
2.2 - CONVOCATÓRIA MODAL E ASSOCIAÇÃO DE VALORES NA<br />
NARRATIVIDADE DA MAQUIAGEM ....................................................................... 100<br />
2.2.1 - Os valores semióticos ................................................................................ 106<br />
2.3 - PRÁXIS ENUNCIATIVA .................................................................................. 108<br />
2.3.1 - As gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência .................................................... 114<br />
2.3.2 - Maquiagem na tipologia das operações da práxis enunciativa .................. 115
2.3.3 - Objeto estético e semiótico em <strong>de</strong>vir ......................................................... 119<br />
2.3.2.1 - Revolução semiótica ............................................................................... 121<br />
2.3.2.2 - Distorção semiótica ................................................................................. 124<br />
2.3.2.3 - Remanejamento semiótico ...................................................................... 128<br />
2.3.2.4 - Flutuação semiótica ................................................................................ 131<br />
3 - NOVOS SENTIDOS PARA O CORPO: AS INSCRIÇÕES EFÊMERAS PARA OS<br />
PRIMITIVOS E PARA OS CONTEMPORÂNEOS ........................................................ 137<br />
3.1 - O CORPO ESTÉTICO, A CONSTRUÇÃO FIGURATIVA E O<br />
SEMISSIMBOLISMO DA PINTURA CORPORAL DOS NUBAS ............................. 141<br />
3.2 - PLANO DA EXPRESSÃO. ............................................................................... 148<br />
3.3 - O PONTO DE VISTA TENSIVO ....................................................................... 167<br />
4 – A MAQUIAGEM NA CENA TEATRAL .................................................................... 171<br />
4.1 - RELAÇÕES ENUNCIATIVAS ........................................................................... 176<br />
4.2 - UM EXEMPLO: O CARRASCO, ENCENAÇÃO DO GRUPO AMOK TEATRO.181<br />
4.2.1 - O espaço cênico e a percepção das presenças das personagens <strong>de</strong> O<br />
Carrasco ................................................................................................................ 182<br />
4.2.2 - Da construção figurativa do Carrasco, no romance, à maquiagem, na<br />
encenação ............................................................................................................. 189<br />
4.2.3 - As Maquiagens dos efêmeros: Jericó, Comandante, Juiz, Mulher, General e<br />
Morte ..................................................................................................................... 196<br />
4.3 - AS PROPRIEDADES VISUAIS E O PLANO DA EXPRESSÃO ....................... 203<br />
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 208<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................................. 214<br />
ANEXO ......................................................................................................................... 223
LISTA DE FIGURAS<br />
Figura 1: Maquiagem Glamourosa. ................................................................................ 34<br />
Figura 2: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba. ................................................ 59<br />
Figura 3: De Julio Larraz (Cuba). ................................................................................... 66<br />
Figura 4: De Jaime Iregui (Colombia). ........................................................................... 68<br />
Figura 5: De JOS BRANDS. ........................................................................................... 70<br />
Figura 6: Estudo <strong>de</strong> Desnudo. ........................................................................................ 70<br />
Figura 7: Ofelia Dammert (Peru) .................................................................................... 73<br />
Figura 8: Special Make-up.............................................................................................. 75<br />
Figura 9: Keiko González (Bolívia). ................................................................................ 75<br />
Figura 10: Punks. ........................................................................................................... 77<br />
Figura 11: Tom Woolley. ................................................................................................ 81<br />
Figura 12: The Player. ................................................................................................... 81<br />
Figura 13: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba. .............................................. 84<br />
Figura 14: Piercings. ...................................................................................................... 84<br />
Figura 15: Tatuagem. ..................................................................................................... 86<br />
Figura 16: Thelma Aucoin. ............................................................................................. 92<br />
Figura 17: Thelma Aucoin com maquiagem sensual.. .................................................... 92<br />
Figura 18: Thelma Aucoin com maquiagem natural.. ..................................................... 92<br />
Figura 19: Thelma Aucoin com maquiagem mo<strong>de</strong>rna.. .................................................. 92<br />
Figura 20: Thelma Aucoin como „Coco‟ Chanel.. ........................................................... 92<br />
Figura 21: Thelma Aucoin como Marlene Dietrich.. ........................................................ 92<br />
Figura 22: Thelma Aucoin coquete ................................................................................. 93<br />
Figura 23: Coco Chanel. ................................................................................................ 96<br />
Figura 24: Marlene Dietrich. ........................................................................................... 96<br />
Figura 25: Marlene Dietrich. ........................................................................................... 96<br />
Figura 26: Rita Hayworth. ............................................................................................. 109<br />
Figura 27: Camila Espinosa como Rita Hayworth.. ...................................................... 109<br />
Figura 28: Julia Roberts. .............................................................................................. 111<br />
Figura 29: Delineador branco. ...................................................................................... 117<br />
Figura 30: Desfile DKNY – Rímel ver<strong>de</strong> água.. ............................................................ 117
Figura 31: Sasha. ......................................................................................................... 121<br />
Figura 32: Christina Ricci como Edith Piaf.. ................................................................. 124<br />
Figura 33: Christina Ricci. ............................................................................................ 124<br />
Figura 34: Edith Piaf.. ................................................................................................... 124<br />
Figura 35: Skinscapes – Colinas.. ................................................................................ 126<br />
Figura 36: Flora/A Primavera. ..................................................................................... 128<br />
Figura 37: A Primavera- Sandro Botticelli – 1478/82 ................................................... 129<br />
Figura 38: Jovem <strong>de</strong> cabelo comprido. ........................................................................ 131<br />
Figura 39: Deborah Lin.. ............................................................................................... 131<br />
Figura 40: Yana. ........................................................................................................... 131<br />
Figura 41: Emma Belcher - Rosas. .............................................................................. 134<br />
Figura 42: Representação linear. ................................................................................. 145<br />
Figura 43: Desenhos representacionais do rosto ......................................................... 146<br />
Figura 44: Desenhos representacionais para os corpos. ............................................. 147<br />
Figura 45: Pintura simétrica e representativa – variação da cipalin – pássaro.. ........... 152<br />
Figura 46: Pintura simétrica e representativa – variação da cipalin – pássaro.. ........... 152<br />
Figura 47: Rosto com pintura facial semissimétrica e não-representativa – Leopardo. 154<br />
Figura 48: Rosto com pintura assimétrica e representacional – Leopardo.. ................. 154<br />
Figura 49: Rosto simétrico não representacional - Montanha. ..................................... 156<br />
Figura 50: LifeStyles. Leopardo. ................................................................................... 158<br />
Figura 51: Speed. ......................................................................................................... 160<br />
Figura 52: Sister and brother. ....................................................................................... 162<br />
Figura 53: Fallon. Fonte: .............................................................................................. 165<br />
Figura 54: Cena I: Comandante, Jericó e Carrasco. .................................................... 185<br />
Figura 55: Cena II: Juiz, Mulher e Carrasco. ................................................................ 185<br />
Figura 56: Cena III: Morte, General e Carrasco. .......................................................... 186<br />
Figura 57: Cena IV: Carrasco. ...................................................................................... 186<br />
Figura 58: Entreato ....................................................................................................... 188<br />
Figura 59: Marcus Pina se maquiando. ........................................................................ 191<br />
Figura 60: Marcus Pina se maquiando. ........................................................................ 191<br />
Figura 61: Marcus Pina. ............................................................................................... 194
Figura 62: O Carrasco. ................................................................................................. 194<br />
Figura 63: O Carrasco. ................................................................................................. 195<br />
Figura 64: Jericó e a Comandante. .............................................................................. 197<br />
Figura 65: Jericó. .......................................................................................................... 198<br />
Figura 66: A Comandante. ........................................................................................... 198<br />
Figura 67: Sequência do primeiro entreato ................................................................. 199<br />
Figura 68: A Mulher. ..................................................................................................... 200<br />
Figura 69: O Juiz. ......................................................................................................... 200<br />
Figura 70: Sequência do segundo entreato................................................................. 201<br />
Figura 71: A morte e o General. ................................................................................... 202<br />
Figura 72: A morte. ....................................................................................................... 202
A pintura <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>safiar o espectador [...] e o espectador surpreendido,<br />
<strong>de</strong>ve ir ao encontro <strong>de</strong>la como se entrasse em uma conversa. (PILES,<br />
1708)
INTRODUÇÃO<br />
Passos apressados, passos longos ou curtos, passos agitados, passos pesados<br />
ou leves pelas ruas das cida<strong>de</strong>s. Talvez os donos <strong>de</strong>sses pés nem os percebam mais,<br />
nem os seus próprios, muito menos os dos outros. São multidões <strong>de</strong> corpos <strong>de</strong> várias<br />
formas, <strong>de</strong> diversos volumes, <strong>de</strong> variadas cores e texturas, <strong>de</strong> pesos distintos, que se<br />
cruzam todo o tempo e em todo lugar. Movimentos e envelopes 1 corporais: corpos<br />
actantes.<br />
O que faz parar esses corpos voyeurs? Um corpo estático colocado em um<br />
pe<strong>de</strong>stal com sua pele, superfície <strong>de</strong> inscrição, coberta por maquiagem branca,<br />
prateada, ou por argila? Esse corpo que fascina por instantes <strong>de</strong>sacelera o ritmo<br />
urbano e faz com que o observem. É uma troca <strong>de</strong> observações: ele vê e é visto. O<br />
que dizer <strong>de</strong> um ser repleto <strong>de</strong> tatuagens e/ou piercings? Ou um corpo completamente<br />
coberto por pinturas mais elaboradas e efêmeras, quais sensações serão provocadas<br />
nos outros corpos transeuntes?<br />
Foi exatamente um <strong>de</strong>sses grupos <strong>de</strong> corpos cobertos pela efemerida<strong>de</strong> das<br />
cores e das formas que, há mais ou menos vinte e cinco anos, em Belo Horizonte,<br />
tropeçou em meu envelope corporal e me fez parar e <strong>de</strong>cidir pelos caminhos teatrais.<br />
Eu que, até então, era o alvo daquela intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas e cores que me focavam,<br />
passei a apreendê-las e, <strong>de</strong>sse modo, as cores vibrantes e as formas móveis, ambas<br />
fugazes, tornaram-se o meu alvo. Des<strong>de</strong> então, quando estou em cena, emprestando<br />
meu corpo e meu rosto a diversas personagens, virtualizando meus traços fisionômicos<br />
e minhas formas corporais para dar plenitu<strong>de</strong> à personagem em cena; ou, quando fico<br />
por trás dos bastidores, colorindo rostos ou pintando corpos que se materializam sobre<br />
os atuantes 2 , procuro compreen<strong>de</strong>r a formação do sentido <strong>de</strong>ssas transformações por<br />
1 O envelope é uma espécie <strong>de</strong> fronteira da imagem do corpo, criado a partir da energia do mundo sobre<br />
a matéria corporal (reativa e resistente). A noção <strong>de</strong> envelope corporal está <strong>de</strong>senvolvida no primeiro<br />
capítulo.<br />
2 O termo atuante é aqui utilizado para substituir a palavra ator, que, <strong>de</strong> acordo com Charau<strong>de</strong>au e<br />
Maingueneau (2006, p. 76), acabou por tomar um sentido muito mais amplo que o <strong>de</strong> um artista que<br />
representa um papel e “passou a <strong>de</strong>signar toda pessoa que toma parte ativa em uma ativida<strong>de</strong><br />
qualquer”. Para a semiótica, ator “é uma entida<strong>de</strong> do discurso que resulta da conversão dos actantes<br />
16
meio da maquiagem. Um recurso que é sempre um aliado do trabalho do atuante, que<br />
permite afastar a imagem do rosto <strong>de</strong> referência para que novos rostos se realizem,<br />
construindo, assim, novos sentidos.<br />
Maquiagens que são expressões <strong>de</strong> um conteúdo; que seguirão como “finas<br />
membranas” 3 sobre o rosto <strong>de</strong> vários atuantes. Detalhes cromáticos, topológicos e<br />
eidéticos essenciais que, sem que eu precise estar presente na cena, apenas por meio<br />
<strong>de</strong>ssas categorias expressivas, têm me levado a lugares em que eu nunca estive ou<br />
imaginaria estar. Maquiagens que, no mesmo momento em que escrevo estas linhas,<br />
po<strong>de</strong>m estar em cena sobre o rosto <strong>de</strong> algum atuante, cuja fisionomia foi<br />
minuciosamente estudada por mim, para que eu pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>scobrir em algum dos seus<br />
traços um princípio <strong>de</strong> inspiração para encontrar as cores, o semblante, as feições, o<br />
ritmo, as formas dos rostos das personagens 4 , elas que a<strong>de</strong>ntram pelo palco sob luzes<br />
intensas e olhares atentos à espera <strong>de</strong> compartilhar segredos e sensações. Tais quais<br />
as sensações que vivi ao ver o grupo <strong>de</strong> rostos e corpos coloridos, em Belo Horizonte,<br />
ou as pró<strong>tese</strong>s confeccionadas para o cinema e aplicadas sobre os rostos, aprendidas<br />
na escola americana. Essas maquiagens vibram cada vez mais <strong>de</strong>ntro mim e, a cada<br />
vez que as observo, me fazem refletir sobre elas.<br />
São essas reflexões que me obrigam a tentar compreen<strong>de</strong>r o suporte que<br />
recebe tanto a película <strong>de</strong> cores e <strong>de</strong> formas efêmeras, como também as marcas e<br />
inscrições <strong>de</strong>finitivas. Detenho-me sobre o corpo como um suporte sensível, que, além<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar um papel fundamental na emergência e na estabilização <strong>de</strong> um<br />
gênero, conforme o conceito estabelecido por Maingueneau (1998), participa<br />
diretamente da construção do sentido das mensagens pintadas sobre ele, ao ponto <strong>de</strong><br />
ser simultaneamente suporte e plano <strong>de</strong> expressão semiótico. Charau<strong>de</strong>au e<br />
Maingueneau explicam que, sob o ponto <strong>de</strong> vista cognitivo, “a diversida<strong>de</strong> dos suportes<br />
correspon<strong>de</strong> aos usos complementares e simultâneos” (2006, p. 462).<br />
narrativos, graças ao investimento semântico que recebem no discurso. O ator cumpre papéis<br />
actanciais, na narrativa, e papéis temáticos, no discurso” (BARROS, 2003, p.85). Neste trabalho, usarei<br />
ator para indicar a entida<strong>de</strong> discursiva e atuante para referência àquele que atua no palco, <strong>de</strong> acordo<br />
com o que vem sendo proposto pelos artistas e estudiosos cênicos da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
3 Denominação dada por Patrice Pavis às maquiagens. (2003).<br />
4 Des<strong>de</strong> 1994 que <strong>de</strong>senvolvo o trabalho <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> maquiagens para alguns grupos e espetáculos<br />
teatrais.<br />
17
A corporalida<strong>de</strong> e o sentido me fizeram buscar caminhos na Semiótica, e esta<br />
me fez procurá-los também na Filosofia, na Fenomenologia, na Psicanálise, na<br />
Antropologia e nas próprias Artes. A diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caminhos é <strong>de</strong>vida à complexida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sse suporte que, <strong>de</strong> acordo com o antropólogo francês David Le Breton (2003), vem<br />
sendo colocado em oposição ao homem, pelo dualismo contemporâneo, em<br />
substituição à oposição platônica entre corpo e alma. Gilles Deleuze acredita que<br />
apenas a arte, com todos os seus recursos, seria capaz <strong>de</strong> liberar no corpo todos os<br />
<strong>de</strong>vires reais e recriar, assim, um corpo múltiplo, sensível e polivalente na<br />
contemporaneida<strong>de</strong>. E, na tentativa <strong>de</strong> reinventar o corpo contemporâneo, <strong>de</strong>ve-se<br />
reativar a sensibilida<strong>de</strong> e usá-lo como suporte da arte. O próprio Deleuze revela que os<br />
primitivos consagram a multidimensionalida<strong>de</strong> dos corpos por meio das pinturas, das<br />
tatuagens e das marcas corporais. Nessas culturas, nada passa pelo rosto, ao<br />
contrário das culturas contemporâneas, nas quais ele é supervalorizado.<br />
Para Merleau-Ponty (2006b), o corpo é simultaneamente consciência e matéria,<br />
sujeito e objeto, observador e observado. O corpo é uma base espaço-temporal no<br />
processo <strong>de</strong> percepção. Po<strong>de</strong>ríamos, então, supor que o corpo é o suporte i<strong>de</strong>al para a<br />
arte? Henri-Pierre Jeudy (2002) <strong>de</strong>fine o corpo como um objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong><br />
estereótipos, do amor, uma fonte <strong>de</strong> prazeres, um objeto <strong>de</strong> arte. Ou ainda como um<br />
objeto <strong>de</strong> tortura. Em alguns rituais <strong>de</strong> iniciação das ditas culturas primitivas, o corpo<br />
po<strong>de</strong> ser submetido a diversos tipos <strong>de</strong> torturas que são um “sofrimento obrigatório”<br />
(KEIL e TIBURI, 2004, p.19), cujas marcas <strong>de</strong>ixadas sobre a pele são enunciações <strong>de</strong><br />
um saber fundamental e <strong>de</strong> signos <strong>de</strong> pertença. Tais torturas são totalmente distintas<br />
dos sofrimentos e horrores aos quais são ou foram submetidos diversos corpos em<br />
nossas socieda<strong>de</strong>s – nos campos <strong>de</strong> concentração nazistas, nos sequestros, na prisão<br />
<strong>de</strong> Guantanamo, nas guerras, no período <strong>de</strong> ditadura brasileira etc. – com a imposição<br />
<strong>de</strong> marcas não apenas nos corpos, mas na alma.<br />
A tentativa <strong>de</strong> reaproximação do ser humano contemporâneo da natureza,<br />
assim como a tentativa <strong>de</strong> escapar da globalização, da padronização, passa pela body<br />
art 5 , pela body painting 6 e pelos mo<strong>de</strong>rn primitives 7 , que são realizações que fazem<br />
5 A Body Art (Palavra inglesa que significa arte do corpo) está associada à arte conceitual e ao<br />
minimalismo. É uma manifestação das artes visuais em que o corpo do artista é utilizado como suporte<br />
18
dos corpos humanos “um hábitat <strong>de</strong> um ser em estado <strong>de</strong> pura vertigem” (BOCCARA,<br />
2005, p. 11). No entanto, as tatuagens e as perfurações são processos <strong>de</strong>finitivos,<br />
quase sempre doloridos e que, no caso <strong>de</strong> serem removidas, <strong>de</strong>ixarão marcas<br />
<strong>de</strong>finitivas na superfície da pele. Um caminho mais efêmero e, tão ou mais estético,<br />
porém menos agressivo para o corpo, seria a pintura corporal e/ou facial. Ela “faz do<br />
corpo uma matriz <strong>de</strong> símbolos e um objeto <strong>de</strong> pensamento” (VIDAL; SILVA, 1992, p.<br />
283) e <strong>de</strong> sensações, cujos temas são mitológicos, cerimoniais e refletem também uma<br />
organização social.<br />
No teatro, a pintura corporal e/ou facial é capaz <strong>de</strong> transformar o corpo do<br />
atuante em cenário. Sobre o rosto ou o corpo, a maquiagem é um recurso produtor <strong>de</strong><br />
sentido e, ainda, <strong>de</strong> acordo com Pavis (2003), é uma arte que possui certa autonomia<br />
em relação às <strong>de</strong>mais. De livre acesso, a maquiagem permite dizer o que o enunciador<br />
<strong>de</strong>sejar. Do simples truque <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r olheiras e dar mais vivacida<strong>de</strong> ao rosto, a<br />
maquiagem po<strong>de</strong> chegar ao extremo <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r o corpo suporte. Po<strong>de</strong> se manifestar<br />
escandalosamente para alguns, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a elegância natural do seu<br />
enunciador ou po<strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar revoltas sociais, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da cultura em que se<br />
encontra. As pinturas corporais e faciais são como investimentos figurativos que<br />
manipulam e transformam conteúdos, procedimentos e motivos. Muito mais que um<br />
simples embelezamento, elas se tornam campos <strong>de</strong> condutas estratégicas que<br />
provocam conflitos e cumplicida<strong>de</strong> entre os actantes sujeitos encarnados 8 . Porém, é ao<br />
sair dos limites do rosto que a maquiagem formará, então, “um sistema estético que<br />
ou meio <strong>de</strong> expressão. Popularizou-se na década <strong>de</strong> 1960 e se espalhou pelo mundo. Há casos em que<br />
a body art assume o papel <strong>de</strong> ritual ou apresentação pública, apresentando, portanto, ligações com o<br />
Happening e a Performance. A sua comunicação com o público po<strong>de</strong> se dar por meio <strong>de</strong><br />
documentação, por meio <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os ou fotografia. Suas origens encontram referências no início do séc.<br />
XX na premissa <strong>de</strong> Marcel Duchamp <strong>de</strong> que "tudo po<strong>de</strong> ser usado como uma obra <strong>de</strong> arte", inclusive o<br />
corpo. Além <strong>de</strong> Duchamp, po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados precursores da body art o francês Yves Klein, que<br />
usava corpos femininos como "pincéis vivos", o americano Vito Acconci e o italiano Piero Manzoni.<br />
6 Body painting (palavra inglesa que significa pintura corporal) é a pintura exercida sobre um corpo nu.<br />
Lavável e efêmera, po<strong>de</strong> ser fotografada para registro documental, ou não.<br />
7 Mo<strong>de</strong>rn Primitives é um termo criado por Fakir Musafar para <strong>de</strong>nominar as pessoas que se submetem<br />
a qualquer tipo <strong>de</strong> manipulação corporal: perfurações ou jogos <strong>de</strong> penetração ( piercings, tatuagens e<br />
ritual <strong>de</strong> suspensão), jogos <strong>de</strong> constrição (espartilho, cintas, cinturões especiais), Jogos <strong>de</strong> contorção<br />
(técnicas <strong>de</strong> alongamento), Jogos <strong>de</strong> impedimento (acessórios, adornos e vestimentas que restringem<br />
os movimentos) (PIRES, 2005).<br />
8 Os actantes sujeitos encarnados além <strong>de</strong> serem forças e papéis necessários ao processo, passam a<br />
ser concebidos como posição corporal com uma carne e uma forma corporal. Essas <strong>de</strong>finições são<br />
aprofundadas no primeiro capítulo.<br />
19
obe<strong>de</strong>ce apenas às suas próprias regras”, correndo o risco <strong>de</strong> “abandonar a fe<strong>de</strong>ração<br />
das artes que constitui representação para fundar sua própria república”, chamando<br />
atenção para “sua própria prática autônoma” (PAVIS, 2003, p. 172).<br />
A pintura corporal vem explorando a diversida<strong>de</strong> e transformando a anatomia<br />
humana em palco para a expressão artística. Talvez seja a arte do momento e venha<br />
ganhando espaço em exposições, matérias jornalísticas, internet etc., confirmando,<br />
<strong>de</strong>ssa maneira, o pensamento <strong>de</strong> Patrice Pavis. A exposição Corpos Pintados<br />
instalada entre os meses <strong>de</strong> maio e julho <strong>de</strong> 2005, na OCA do Parque Ibirapuera, em<br />
São Paulo, é um exemplo <strong>de</strong> como o interesse pela arte da pintura corporal vem<br />
crescendo. Esse projeto teve início nos anos 80, por Roberto Edwards, que, ao ver as<br />
fotos que a cineasta alemã Leni Riefenstahl tinha feito dos indivíduos da tribo Nuba, no<br />
Sudão, se encantou com as pinturas corporais <strong>de</strong>sse grupo. A partir daí, convidou<br />
artistas para pintarem corpos e o resultado foi a mostra que estava em sua segunda<br />
edição, tendo já percorrido 32 museus da Europa e das Américas.<br />
Além da própria exposição, o projeto “Corpos pintados” lançou em 2005 cerca<br />
<strong>de</strong> 100 publicações sobre essa temática. Ampliando esse rol, outra artista, Joanne<br />
Gair, assim como Riefenstahl e Edwards, se inspirou nos primitivos e publicou um livro<br />
em que celebra os vinte anos <strong>de</strong> sua carreira. Nascida e criada na Nova Zelândia, ela<br />
teve acesso aos Maori, cujas tatuagens faciais, os mokos, foram as fontes <strong>de</strong><br />
inspiração <strong>de</strong> suas obras artísticas, nas quais mostra a diversida<strong>de</strong> do seu trabalho e<br />
dos corpos pintados. Segundo a artista (2006, p. 12), o corpo suporte é que dá vida à<br />
pintura, que, por ser <strong>de</strong> fácil remoção, precisa que um fotógrafo a registre para<br />
ultrapassar os limites do tempo e do espaço, do aqui e do agora.<br />
Em 2006, o artista plástico americano Craig Tracy inaugurou a primeira galeria<br />
especializada em body painting. Na Painted Alive Galeria, em New Orleans,<br />
encontram-se fotografias, gravuras em papel e tela, além <strong>de</strong> livros e ví<strong>de</strong>os sobre o<br />
processo <strong>de</strong> pintura corporal. Para Tracy é por meio da galeria que as pessoas têm a<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem apresentadas à mais antiga e, ao mesmo tempo,<br />
contemporânea e sedutora forma <strong>de</strong> arte.<br />
É meu <strong>de</strong>sejo que o trabalho que eu criei torne-se parte da vida das<br />
pessoas. Eu o quero pendurado na sala e no espaço <strong>de</strong> trabalho,<br />
assim, as pessoas vão sentir e vivenciar a energia dinâmica, a paixão e<br />
20
o mistério <strong>de</strong> cada peça e, por sua vez, a minha energia 9 . (TRACY,<br />
2006)<br />
A partir disso, eu po<strong>de</strong>ria utilizar o pensamento da semioticista Lucia Teixeira<br />
(2004d, p. 231) a respeito das colagens dos cubistas, tomadas como pintura, para<br />
estendê-lo ao conceito <strong>de</strong> maquiagem, acrescentando apenas algumas palavras: “A<br />
pintura [e a maquiagem] tem [têm] qualida<strong>de</strong>s próprias que operam sobre uma<br />
materialida<strong>de</strong> específica e singular, caracterizada pelos modos <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong> um<br />
espaço plano [ou tridimensional] por meio <strong>de</strong> cores e formas. [...] a pintura [e a<br />
maquiagem] se afirma[m] como unida<strong>de</strong> formal e íntegra, submetida[s] a um código<br />
próprio <strong>de</strong> ocupação do espaço da tela [e/ou do corpo humano]”.<br />
Temos, então, um suporte sensível, que, <strong>de</strong> acordo com os conceitos <strong>de</strong><br />
Merleau-Ponty (2006b, 1980), possui a característica da reflexibilida<strong>de</strong>: toca e é<br />
tocado, é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Assim, a maquiagem aplicada sobre esse<br />
corpo, vista como um meio <strong>de</strong> expressão artística, que se utiliza das mesmas técnicas<br />
da pintura tradicional, apenas mudando o suporte e materiais apropriados para o corpo<br />
humano, po<strong>de</strong>ria ser analisada semioticamente. Algirdas Julien Greimas, fundador da<br />
semiótica francesa, no artigo Semiótica figurativa e semiótica plástica (2004, p. 75),<br />
argumenta que “uma das razões <strong>de</strong> ser da semiótica é chamar à existência novos<br />
domínios <strong>de</strong> interrogação do mundo e ajudá-los a se constituir como disciplinas<br />
autônomas”. O fazer semiótico, segundo Greimas (1975), é uma prática científica, ou<br />
melhor, um diálogo entre o que é formado e o que é analisável.<br />
É na correlação entre os fundamentos greimasianos e os textos verbais,<br />
visuais, sonoros ou sincréticos que tal edificação se viabiliza, uma vez<br />
que a semiótica discursiva tem como objeto investigável toda e<br />
qualquer linguagem textual e possibilita a transitivida<strong>de</strong> contínua entre a<br />
teoria e a prática. (CURADO, 2004, p.57)<br />
Portanto, um rosto ou um corpo utilizado como suporte <strong>de</strong> uma arte que gera<br />
uma imagem efêmera, que po<strong>de</strong> ser imortalizada pela fotografia ou reaplicada dia após<br />
dia no cotidiano, ou a maquiagem como uma linguagem artística que é um elemento <strong>de</strong><br />
um espetáculo teatral, <strong>de</strong> performances individuais ou <strong>de</strong> um ritual nas culturas<br />
9 As traduções do Inglês foram feitas por Mônica Ferreira Magalhães. Em rodapé será transcrito o trecho<br />
original: It is my wish that the work that I create becomes a part of peoples lives. I want it to hang in their<br />
living and working spaces so that they will feel and experience the dynamic energy, passion, and mystery<br />
of each piece and in turn, my energy.<br />
21
primitivas, po<strong>de</strong>m ser submetidos à análise semiótica plástica, como também à<br />
perspectiva tensiva <strong>de</strong> análise. A semiótica plástica, <strong>de</strong> acordo com Greimas e<br />
Courtés, “é uma linguagem segunda elaborada a partir da dimensão figurativa <strong>de</strong> uma<br />
primeira linguagem, visual ou não, ou a partir do significante visual da semiótica do<br />
mundo natural” (1986, p. 169) e procura analisar a materialida<strong>de</strong> do significante das<br />
imagens e dos espaços construídos, além <strong>de</strong> verificar os modos <strong>de</strong> existência<br />
semiótica do que, Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss <strong>de</strong>nomina “lógica do sensível”. Contudo, o<br />
corpo como espaço <strong>de</strong> inscrição <strong>de</strong> signos e códigos, como se refere Maria Augusta<br />
Babo (2001) a partir da antropologia <strong>de</strong> Mauss, acolhe-os e, em seguida, recebe o<br />
estatuto <strong>de</strong> significante flutuante. O corpo, sob esse ponto <strong>de</strong> vista, é plural: capta os<br />
signos e se torna um envelope corporal-superfície <strong>de</strong> inscrição, submetido a códigos<br />
sociais e ao espaço-tempo. Além disso, ele é capaz <strong>de</strong> produzir significados <strong>de</strong>vido a<br />
sua condição <strong>de</strong> corpo vivo.<br />
A maquiagem, inscrição sobre um corpo, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada um texto plástico<br />
significante, que forma um todo <strong>de</strong> sentido. As análises da semiótica discursiva<br />
procuram examinar o que é próprio <strong>de</strong> cada texto, assim como suas estratégias<br />
enunciativas. Greimas parte dos fundamentos estabelecidos por Hjelmeslev, nos quais<br />
a significação, função semiótica, acontece a partir da relação entre o plano do<br />
conteúdo (significado) e o plano da expressão (que suporta ou expressa o conteúdo)<br />
das linguagens. Na busca da compreensão dos mecanismos da produção <strong>de</strong> sentido<br />
dos textos, ou seja, como explica Diana <strong>de</strong> Barros (2001), do que o texto diz e <strong>de</strong> como<br />
faz para dizer o que diz, a teoria semiótica <strong>de</strong>senvolveu uma metodologia para a<br />
observação da produção da significação: a organização textual e os mecanismos<br />
enunciativos <strong>de</strong> sua produção e <strong>de</strong> sua recepção. Para isso, foi <strong>de</strong>senvolvido o<br />
percurso gerativo <strong>de</strong> sentido, importante para a teoria semiótica, que vai do mais<br />
simples e abstrato ao mais complexo e concreto nível <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> sentido. Esse<br />
percurso tem três etapas constituídas por gramáticas autônomas, cujos níveis –<br />
fundamental, narrativo e discursivo - se relacionam.<br />
Os estudos voltados para a dimensão sensível e afetiva do sentido tomaram<br />
impulso a partir da publicação do último livro <strong>de</strong> Greimas, Da Imperfeição. Com a<br />
tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a estesia e a investigação da semiose na experiência<br />
22
sensível, o corpo voltou a fazer parte dos estudos semióticos. O corpo, tão próximo e<br />
tão distante ao mesmo tempo, tinha sido excluído da teoria semiótica, <strong>de</strong> acordo com<br />
Fontanille (2004a, p. 13), pelo formalismo, pela lógica da linguística estrutural dos anos<br />
60, e pela teoria da ação. Seu retorno se <strong>de</strong>u pelo fato <strong>de</strong> o corpo proporcionar uma<br />
alternativa às soluções logicistas:<br />
em vez <strong>de</strong> tratar dos problemas teóricos e metodológicos como<br />
problemas lógicos, ficamos convidados a tratá-los pelo ângulo<br />
fenomenológico, e para isso é preciso contar com o corpo do operador.<br />
Comprometer-se a tratar uma relação, uma operação ou uma<br />
proprieda<strong>de</strong> como um fenômeno, é comprometer-se a examinar a<br />
formação das diferenças significativas e das posições axiológicas a<br />
partir da percepção e da presença sensível <strong>de</strong>sses fenômenos 10 .<br />
(FONTANILLE, 2004a, p.15)<br />
A semiótica corporal, conforme explica Fontanille, tem a consciência da<br />
ambivalência que vem do duplo estatuto do corpo na produção <strong>de</strong> significações. O<br />
corpo é um substrato da semiose, que participa da modalida<strong>de</strong> semiótica,<br />
proporcionando um dos seus aspectos. Além disso, ele é consi<strong>de</strong>rado uma figura<br />
semiótica entre outras, apto a adotar a forma das figuras do discurso, da expressão ou<br />
do conteúdo, provenientes do processo <strong>de</strong> semiotização e da formação do corpo dos<br />
atores semióticos.<br />
Como figura discursiva, o corpo tem movimentos e envelopes, que darão acesso<br />
às representações profundas da semiose em ato, que formam campos sensíveis e<br />
perceptivos, fundadores do campo enunciativo do discurso. No campo fenomenológico,<br />
a noção <strong>de</strong> corpo estabelecida por Merleau-Ponty (2006b), <strong>de</strong> acordo com o<br />
semioticista Luiz Tatit (1996, p. 201), não é muito diferente do “sincretismo actancial<br />
que suspen<strong>de</strong> a oposição sujeito/objeto e convoca os mecanismos <strong>de</strong> sensibilização”.<br />
Sendo assim, quando se trata do corpo, a ação das qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção e do<br />
vigor <strong>de</strong> sensibilização aparece antes do sentido cognitivo. Desse modo, como em<br />
10 As traduções do francês foram feitas por Eduardo Ewald Maya. Em rodapé será transcrito o trecho<br />
original : Au lieu <strong>de</strong> traiter les problèmes théoriques et méthodologiques comme <strong>de</strong>s problèmes<br />
logiques, on est désormais invité à les traiter sous l‟angle phénoménal, et, pour cela, le corps <strong>de</strong><br />
l‟opérateur est requis. S‟engager à traiter une relation, une opération ou une proptiété comme un<br />
phénomène, c‟est s‟engager à examiner la formation <strong>de</strong>s différences significatives et <strong>de</strong>s positions<br />
axiologiques à partir <strong>de</strong> la perception et <strong>de</strong> la présence sensible <strong>de</strong> ce phénomène.<br />
23
qualquer texto há lugar para o arrepio, o susto, o inusitado e o êxtase, o que caberá ao<br />
texto pintado no suporte corporal? O estado <strong>de</strong> pura vertigem atribuído aos mo<strong>de</strong>rn<br />
primitives também atinge os admiradores das maquiagens artísticas e teatrais, pelo<br />
menos é o que afirma Pavis:<br />
O travestimento <strong>de</strong> roupa e <strong>de</strong> rosto redobra a vertigem e a<br />
ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, seja um travestimento do<br />
sexo, da ida<strong>de</strong> ou da natureza humana... Muitas vezes a maquiagem se<br />
torna uma encenação contemporânea muito mais que um disfarce ou<br />
uma acentuação dos traços existentes: é uma vertigem que bloqueia<br />
toda interpretação segura e toda metamorfose <strong>de</strong>finitiva. (...) Difícil<br />
analisar uma vertigem! (PAVIS, 2003, p.172)<br />
E o que é uma vertigem senão a perturbação da razão ou da serenida<strong>de</strong> do<br />
espírito? Na busca por compreen<strong>de</strong>r a semiose vertiginosa da maquiagem e da pintura<br />
corporal, do sentido “sentido” provocador <strong>de</strong> vertigens, estabeleço como corpus <strong>de</strong><br />
análise da manifestação sensorial, diferentes tipos <strong>de</strong> maquiagem:<br />
1 - algumas maquiagens corporais expostas na mostra Corpos Pintados - 2005,<br />
São Paulo e alguns trabalhos <strong>de</strong> Joanne Gair, <strong>de</strong> Joe Brands, <strong>de</strong> Kevin Aucoin, <strong>de</strong><br />
Duda Molinos e da Los Angeles Makeup school, que ilustram os conceitos <strong>de</strong><br />
envelope corporal e as <strong>de</strong>formações sofridas a partir das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />
(projeção dos actantes e das coor<strong>de</strong>nadas espácio-temporais), uma estratégia<br />
enunciativa que ocorre no nível discursivo. Em um segundo momento, essas pinturas<br />
corporais, objetos estéticos e semióticos em <strong>de</strong>vir, <strong>de</strong>monstram os procedimentos da<br />
práxis enunciativa;<br />
2 - as maquiagens dos ritos corporais dos habitantes das montanhas Nuba, do<br />
sul do Sudão, África, juntamente com as pinturas <strong>de</strong> Craig Tracy, cujas pinturas<br />
corporais artísticas são analisadas em relação às respectivas culturas e em relação à<br />
articulação entre os planos <strong>de</strong> conteúdo e da expressão, no qual se <strong>de</strong>staca o grau <strong>de</strong><br />
figurativida<strong>de</strong>;<br />
3- as maquiagens da peça teatral O Carrasco, espetáculo realizado pelo grupo<br />
Amok <strong>de</strong> teatro, que servem <strong>de</strong> base para retomar as estratégias enunciativas, a<br />
práxis, o <strong>de</strong>senvolvimento do plano da expressão e as articulações tensivas, agora no<br />
simulacro teatral.<br />
Esta pesquisa tem por objetivo geral investigar as estratégias enunciativas<br />
24
mobilizadas na práxis da maquiagem. Para isso, verificará a articulação entre os<br />
planos do conteúdo e da expressão, além <strong>de</strong> observar as categorias tensivas<br />
aplicáveis à manifestação sensorial expressa nas maquiagens sociais, artísticas<br />
corporais, rituais primitivas e teatrais. Pretendo buscar, nas diferentes formas <strong>de</strong><br />
manifestação, recorrências que indiquem um uso próprio do corpo como suporte, bem<br />
como uma função estética e funcional da pintura sobre o corpo. Da mesma maneira,<br />
serão i<strong>de</strong>ntificadas também as particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses modos <strong>de</strong><br />
apropriação do corpo.<br />
No primeiro capítulo, faço uma reflexão acerca da maquiagem como enunciado<br />
pintado sobre o corpo, tomada como uma expressivida<strong>de</strong> que alimenta o corpo na<br />
necessida<strong>de</strong> da integração linguístico-cultural. Para isso, a compreensão do conceito<br />
<strong>de</strong> corpo se faz indispensável, uma vez que ele é o suporte das maquiagens e pinturas<br />
corporais. Mais que suporte, o corpo é visto como pertencente a um actante, não mais<br />
como uma posição formal, conforme explica Fontanille (2004a), mas um actante<br />
encarnado que possui uma carne e uma forma corporal, responsável pelos impulsos e<br />
pelas resistências que levam à ação transformadora dos estados <strong>de</strong> coisas.<br />
A elaboração das bases teóricas da semiótica do ponto <strong>de</strong> vista tensivo foi feita<br />
conjuntamente por Clau<strong>de</strong> Zilberberg e por Jacques Fontanille, no livro Tensão e<br />
significação (2001). A partir <strong>de</strong>ssa publicação, o primeiro autor, <strong>de</strong> acordo com<br />
Desidério Blanco (2008), centrou-se na elaboração da tensivida<strong>de</strong> fórica, iniciada no<br />
livro Semiótica das paixões, <strong>de</strong> Greimas e <strong>de</strong> Fontanille (1991). Já Fontanille<br />
<strong>de</strong>senvolveu as pesquisas pela encarnação da tensivida<strong>de</strong> no corpo sensível. O<br />
esquema tensivo coloca em relação a intensida<strong>de</strong> (sensível) e a extensida<strong>de</strong><br />
(inteligível), que formam o espaço tensivo, do qual emergem os valores, a re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
entradas e <strong>de</strong> saídas, e as valências intensivas e extensivas que se correlacionam<br />
diferentemente em cada caso.<br />
As teorias <strong>de</strong> Fontanille sobre o actante encarnado, dividido em carne e corpo<br />
próprio, são exploradas no sentido <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a relação que o corpo mantém<br />
com a alterida<strong>de</strong>, com o mundo, com cada meio cultural, como também a sua função<br />
<strong>de</strong> vetor da socieda<strong>de</strong>. O campo <strong>de</strong> presença, um espaço tensivo, é organizado pela<br />
tomada <strong>de</strong> posição da carne, <strong>de</strong>finida como referência. Nesse espaço se exerce a<br />
25
percepção a partir da gradação da relação entre sujeito e objeto, articulada pelas<br />
operações do foco e da apreensão. O foco correspon<strong>de</strong> ao eixo da intensida<strong>de</strong> que<br />
me<strong>de</strong> a potência da tensão entre sujeito e objeto; a apreensão traça os limites da<br />
dimensão do campo <strong>de</strong> percepção do sujeito, correlativo ao eixo da extensida<strong>de</strong>. O<br />
corpo próprio seria a mediação entre os planos do conteúdo e da expressão, uma<br />
fronteira que permite que o actante encarnado se relacione com o mundo. Ele é uma<br />
espécie <strong>de</strong> invólucro sobre o qual se inscrevem expressões, entre as quais <strong>de</strong>staco a<br />
maquiagem e a pintura corporal. No entanto, a carne, um Eu <strong>de</strong> referência e o corpo<br />
próprio e o Seu Outro são inseparáveis, como o anverso e o reverso <strong>de</strong> uma mesma<br />
entida<strong>de</strong>.<br />
A visão do sociólogo Pierre Bourdieu (2008) e o conceito <strong>de</strong> hexis corporal,<br />
assim como os conceitos <strong>de</strong> actancialida<strong>de</strong> e intencionalida<strong>de</strong>, norteiam o caminho que<br />
leva à aproximação com o corpo fenomenológico: o corpo sentiente, <strong>de</strong> Merleau-Ponty<br />
(2006b, 1980). Os movimentos intencionais do corpo são as forças que interagem com<br />
as substâncias e formas do corpo próprio. O conceito <strong>de</strong> envelope corporal, oriundo da<br />
psicanálise, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das posturas (movimento e sensoriomotricida<strong>de</strong>) e das<br />
superfícies (fronteiras e envelopes). De acordo com Fontanille, o envelope corporal se<br />
converte em um actante do mundo sensível, um filtro protetor dos estímulos<br />
exteriores, conforme <strong>de</strong>fine o psicanalista Didier Anzieu (1989). Esse envelope torna-<br />
se um Eu-pele, em que, entre outras funções, <strong>de</strong>staca-se a <strong>de</strong> superfície <strong>de</strong> inscrição.<br />
A transformação do envelope corporal em superfície <strong>de</strong> inscrição é feita a partir da<br />
operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, uma estratégia enunciativa que provoca a transição <strong>de</strong> uma<br />
realida<strong>de</strong> indizível para um discurso realizado.<br />
Se, na psicanálise, para Anzieu, o Eu-pele <strong>de</strong>termina o limite do corpo com o<br />
meio externo, para a semiótica essa interface é um Seu-outro-pele, que comunica e<br />
torna significativa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> preservada, como uma superfície que,<br />
simultaneamente, separa e coloca em contato as fronteiras <strong>de</strong> mundos distintos. Como<br />
espaço topológico, o envelope corporal po<strong>de</strong> ter suas proprieda<strong>de</strong>s conservadas ou<br />
alteradas pela operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Por meio <strong>de</strong>ssa operação, o envelope corporal<br />
po<strong>de</strong> ser percebido como um suporte visível ou como virtualmente distanciado. A<br />
maquiagem, como inscrição, atua, por meio da <strong>de</strong>breagem, nas proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
26
conexão, <strong>de</strong> compactação, <strong>de</strong> interface <strong>de</strong> triagem do envelope corporal. As pinturas<br />
corporais contemporâneas, exibidas na exposição Corpos Pintados ou nas páginas dos<br />
livros <strong>de</strong> Gair e <strong>de</strong> Joe Brands, ou ainda, as pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex<br />
confeccionadas na Los Angeles School of Makeup, e as maquiagens dos Punks e as<br />
realizadas por Kevin Aucoin, ilustram a preservação e a <strong>de</strong>formação dos envelopes<br />
corporais. A maquiagem como marca, instrumentalização das inscrições que<br />
evi<strong>de</strong>nciam o substrato material e o gesto que inscreve, também é examinada, porém<br />
esse conceito é mais evi<strong>de</strong>nte nas tatuagens, cicatrizes e piercings, enunciados<br />
<strong>de</strong>finitivos.<br />
O segundo capítulo é <strong>de</strong>dicado às inscrições efêmeras, características que<br />
colaboram diretamente no <strong>de</strong>vir figurativo do corpo próprio, permitindo, <strong>de</strong>sse modo, o<br />
acesso <strong>de</strong> um actante encarnado em diversos meios sociais. Fazer-se outro ou<br />
mostrar-se com veemência por meio <strong>de</strong> uma arte que, <strong>de</strong> acordo com o filosófo francês<br />
Michel Serres (2001), correspon<strong>de</strong> ao mesmo tempo à or<strong>de</strong>m e ao ornamento, i<strong>de</strong>ia<br />
corroborada por Bourdieu. Por mais inocentes que pareçam, as maquiagens fascinam<br />
e proporcionam um jogo <strong>de</strong> persuasão. Bau<strong>de</strong>laire (1988) acreditava que, apesar da<br />
notorieda<strong>de</strong> da astúcia e do artifício, a maquiagem não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser irresistível. O<br />
fazer persuasivo da maquiagem também convoca as modalida<strong>de</strong>s para fazer com que<br />
o enunciatário aceite o contrato enunciativo proposto pelo enunciador. Contudo, o /ser/<br />
e o /parecer/, modalida<strong>de</strong>s veridictórias, têm papel fundamental no julgamento <strong>de</strong> uma<br />
manifestação ou da imanência.<br />
Ao fazer uma maquiagem, o enunciador convoca modalida<strong>de</strong>s, principalmente<br />
as modalida<strong>de</strong>s do ser que se relacionam diretamente com os envelopes corporais. As<br />
modalida<strong>de</strong>s, os modos <strong>de</strong> existência e os valores são verificados nas tensões que<br />
<strong>de</strong>marcam o percurso da motivação <strong>de</strong> fazer uma maquiagem até a sua realização, ou<br />
seja, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o querer, motivações virtualizadas, do actante encarnado, que passa pelo<br />
saber e po<strong>de</strong>r (competências modais) até que o sujeito possa entrar em conjunção<br />
com os valores do meio social <strong>de</strong>sejado e realizar a si mesmo e ao próprio objeto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sejo.<br />
27
A plenitu<strong>de</strong>, a vivacida<strong>de</strong> e os usos da maquiagem <strong>de</strong>monstram a articulação<br />
das formas discursivas <strong>de</strong> um enunciador individual com os significados construídos<br />
culturalmente. O discurso <strong>de</strong> formas e cores efêmeras faz parte <strong>de</strong> uma práxis<br />
enunciativa que administra a presença das gran<strong>de</strong>zas discursivas em um campo <strong>de</strong><br />
discurso. Nesse campo, po<strong>de</strong> acontecer a recuperação <strong>de</strong> maquiagens<br />
esquematizadas pelo uso por meio <strong>de</strong> uma simples reprodução ou uma <strong>de</strong>svirtuação<br />
que promove novas significações. A práxis da maquiagem é <strong>de</strong>monstrada por meio das<br />
maquiagens sensuais glamourosas da década <strong>de</strong> 40, época em que se <strong>de</strong>staca a atriz<br />
norte-americana Rita Hayworth.<br />
As maquiagens que transformam o envelope corporal em objetos estéticos e<br />
semióticos são observadas por meio dos atos da práxis enunciativa. A combinação dos<br />
modos <strong>de</strong> existência e das gran<strong>de</strong>zas em competição po<strong>de</strong> promover revoluções,<br />
distorções, remanejamento e flutuações semióticas. Os trabalhos <strong>de</strong> Gair, <strong>de</strong> Duda<br />
Molinos e Aucoin exemplicam prontamente todos os efeitos <strong>de</strong> sentido da práxis<br />
enunciativa da maquiagem.<br />
No capítulo 3, parto da observação das fotografias do povo Nuba realizadas por<br />
Leni Riefenstahl, uma das mais notáveis diretoras <strong>de</strong> cinema documental e fotógrafa<br />
da década <strong>de</strong> 60. Vale ressaltar que essas pinturas corporais não são feitas para<br />
serem registradas fotograficamente, mas sim fazem parte do ritual <strong>de</strong>ssa tribo africana.<br />
No entanto, para ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise, é necessário recorrer a esse tipo <strong>de</strong><br />
registro. Tanto as maquiagens sociais, verda<strong>de</strong>iros autorretratos ambulantes, quanto<br />
as maquiagens teatrais também não têm o objetivo <strong>de</strong> serem fotografadas ou filmadas.<br />
Porém, da mesma maneira que as pinturas dos Nubas, foi preciso recorrer aos<br />
eventuais registros <strong>de</strong>vido à efemerida<strong>de</strong> das pinturas corporais e faciais. Apenas as<br />
maquiagens da exposição Corpos Pintados e do livro Arte en el cuerpo, <strong>de</strong> Gair e<br />
Painted Alive Gallery, <strong>de</strong> Craig Tracy, são observadas em seu próprio fim: a fotografia.<br />
Em 1975, Leni Riefenstahl (1976, 2005) passou 4 meses entre os habitantes<br />
dos remotos vales dos Montes Nuba, nas vilas do Kau, Nyaro e Fungor, no sul da<br />
província sudanesa <strong>de</strong> Kordofan, África. A fotógrafa consi<strong>de</strong>rava que os Nubas eram<br />
um povo gentil e amável, apesar <strong>de</strong> viverem praticamente isolados nas montanhas e<br />
28
sem muito contato com outras socieda<strong>de</strong>s. Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o modo <strong>de</strong><br />
vida <strong>de</strong>sse povo, a fotógrafa buscou informações no único trabalho acadêmico sobre<br />
eles, escrito pelo professor e antropólogo americano James C. Faris (1972), que havia<br />
passado os períodos secos entre 1966 e 1969 no Kau. Faris havia feito um estudo<br />
minucioso sobre a arte da pintura corporal local, no qual <strong>de</strong>stacava a relação social e<br />
cultural dos Nubas com o corpo. Para Riefenstahl, a princípio, suas fotos seriam<br />
apenas um registro pessoal <strong>de</strong> suas experiências memoráveis, mas elas acabaram<br />
sendo publicadas em revistas, jornais e livros, <strong>de</strong>vido ao gran<strong>de</strong> interesse pela cultura<br />
dos Nubas, até então <strong>de</strong>sconhecida.<br />
Os estudos <strong>de</strong> Faris e as fotografias <strong>de</strong> Riefenstahl foram fundamentais para as<br />
análises das pinturas corporais dos Nubas. A importância estética que eles dão ao<br />
corpo, assim como às pinturas corporais, diferentemente dos outros povos pré-<br />
letrados, serviu como contraponto com o corpo contemporâneo. As pinturas corporais<br />
Nubas e algumas contemporâneas, formam um sistema semissimbólico, no qual uma<br />
categoria do plano da expressão se correlaciona com uma categoria do plano do<br />
conteúdo. A semiótica plástica, apropriada para analisar tais sistemas, é constituída<br />
pelos formantes pictóricos que, <strong>de</strong> acordo com Oliveira (2004, p. 119) estão na<br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma pintura, “possuem uma natureza composta por certas dimensões”:<br />
as cores constituem a dimensão cromática e a forma compõe a dimensão eidética. É a<br />
partir das matérias, dos materiais, das técnicas e dos procedimentos que essas duas<br />
dimensões irão se organizar e ganhar uma corporeida<strong>de</strong> “que, quando é apreendida<br />
por sua fisicalida<strong>de</strong> própria, constitui-se por si mesma uma dimensão distinta das<br />
<strong>de</strong>mais, a matérica” (OLIVEIRA, 2004, p. 119). A combinação <strong>de</strong>ssas três dimensões<br />
concretiza a dimensão topológica, que é a distribuição e a ocupação espacial em um<br />
suporte.<br />
Assim, o caminho <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> uma pintura tradicional também servirá para<br />
falar do objeto maquiagem:<br />
analisar a distribuição <strong>de</strong> formas no espaço, o uso das cores, a textura<br />
das pinceladas, os recursos <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong> e sombreamento, as<br />
iterações e contrastes plásticos como recursos capazes <strong>de</strong> construir<br />
categorias significantes associadas a significados e, nas relações<br />
entre signos assim constituídos, a organização sêmio-narrativa e<br />
discursiva que faz um quadro existir como texto, como um “todo <strong>de</strong><br />
sentido”. (TEIXEIRA, 2004e, p. 233)<br />
29
Além disso, nas análises das maquiagens e/ou pinturas corporais primitivas e<br />
contemporâneas foram observadas as figuras, os temas e o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> por<br />
meio dos elementos visuais. O tema, elemento da semântica narrativa “não remete a<br />
elementos do mundo natural, e sim às categorias „lingüísticas‟ ou „semióticas‟ que o<br />
organizam” (BARROS, 2003, p.90). Já a figura “é um elemento da semântica<br />
discursiva que se relaciona com um elemento do mundo natural, o que cria, no<br />
discurso, o efeito <strong>de</strong> sentido ou a ilusão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>” (BARROS, 2003, p. 87).<br />
O capítulo 4 é <strong>de</strong>dicado às maquiagens da peça teatral O Carrasco, espetáculo<br />
realizado pelo grupo Amok Teatro, sobre textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist, Ingmar Bergman,<br />
Jean Genet e Amok Teatro. A peça, que teve sua estréia em 2000, foi inspirada no<br />
romance O Carrasco, do sueco Pär Lagerkvist e se divi<strong>de</strong> em quatro quadros<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e dois entreatos em que a presença do carrasco incorpora a barbárie<br />
humana. A escolha <strong>de</strong>sse espetáculo se <strong>de</strong>ve à suspensão epistêmica, que abandona<br />
numa inquietação o enunciatário, que ignora “o estatuto veridictório do saber recebido”<br />
(GREIMAS, 2008, p. 491). Essa suspensão é proporcionada pela maquiagem do<br />
personagem Carrasco, interpretado pelo ator Marcus Pina, e pela troca das<br />
maquiagens à vista do público, durante os entreatos, realizada no palco pelos atores<br />
Stéphane Brod e Renata Collaço. No <strong>de</strong>correr da análise são observadas as<br />
estratégias enunciativas que organizam os elementos numa manifestação sincrética e<br />
que estabelecem a interação entre o enunciador e o enunciatário (<strong>de</strong>sdobramentos do<br />
sujeito da enunciação), além das relações entre o sujeito atuante e a personagem<br />
construída e os modos como a maquiagem ancora o sujeito (personagem) na<br />
encenação.<br />
Também foram examinados os mecanismos <strong>de</strong> articulação entre os planos <strong>de</strong><br />
conteúdo e <strong>de</strong> expressão, planos da linguagem <strong>de</strong>finidos por Louis Hjelmslev. O<br />
primeiro, <strong>de</strong> acordo com as teorias <strong>de</strong> Ferdinand <strong>de</strong> Saussure, é o plano do significado,<br />
“veiculado pelo plano da expressão” (BARROS, 2003, p. 85). O segundo, é o plano do<br />
significante, “que suporta ou expressa o conteúdo”. Ambos os planos “mantêm relação<br />
<strong>de</strong> pressuposição recíproca”.<br />
As formas <strong>de</strong> incidência das categorias tensivas também foram examinadas. O<br />
espaço tensivo, nas palavras <strong>de</strong> Teixeira (2004d, p. 233) é <strong>de</strong>finido pela junção do par:<br />
30
intensida<strong>de</strong> (estado <strong>de</strong> alma) versus extensida<strong>de</strong> (os estados <strong>de</strong> coisas). O ponto <strong>de</strong><br />
vista tensivo é observado tanto na composição espacial quanto na relação entre as<br />
maquiagens. Apesar da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> maquiagem, todos eles, em grau maior<br />
ou menor, provocam estesia e a cognição. A partir disso po<strong>de</strong>-se dizer que a<br />
maquiagem assume a função <strong>de</strong> vetor, tanto na socieda<strong>de</strong> quanto na encenação,<br />
papel fundamental em todas as socieda<strong>de</strong>s e, muito especialmente, na encenação<br />
teatral.<br />
A pouca literatura <strong>de</strong> reflexão sobre a arte da maquiagem é uma contradição em<br />
relação à <strong>de</strong>manda artística e acadêmica na área. Acredito que a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong>va ser<br />
um local propício ao procedimento <strong>de</strong> reflexões e estudos críticos facilitadores <strong>de</strong><br />
construções e revisões epistemológicas. No caso específico da maquiagem para o<br />
teatro, linguagem artística ainda bem pouco afeita às sistematizações, as lacunas são<br />
gran<strong>de</strong>s. Apesar <strong>de</strong> um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> publicações acerca das maquiagens<br />
sociais e corporais, essas publicações visam mais a um conteúdo técnico ou a<br />
coletâneas com a documentação fotográfica das obras dos artistas. As reflexões sobre<br />
as novas <strong>de</strong>mandas estéticas conceituais, no âmbito da caracterização como um todo<br />
e em particular sobre a maquiagem para o teatro, ou a maquiagem corporal utilizada<br />
em performances, ou mesmo em exposições, po<strong>de</strong>m efetivamente trazer uma<br />
contribuição bem-vinda ao ainda incipiente campo <strong>de</strong> estudo da maquiagem social,<br />
teatral e corporal, como também contribuir para os estudos <strong>de</strong> semiótica.<br />
31
1 - ENUNCIADOS PINTADOS SOBRE O ROSTO OU O CORPO<br />
Meu rosto está maquiado, limpo <strong>de</strong><br />
Toda singularida<strong>de</strong>, tornado vazio, para refletir<br />
Os pensamentos, agora mutáveis (...) (BRECHT, 2000, p.247)<br />
Um espelho na frente, em seus reflexos percebe-se um rosto, aliás, esta é a<br />
única maneira <strong>de</strong> ver os próprios traços do rosto 1 . Base e corretivo são como borracha<br />
para apagar alguns in<strong>de</strong>sejáveis traços <strong>de</strong> uma história, cansaços, abatimentos,<br />
espinhas e inchaços. Pronto! Aí está uma tela preparada para enunciar novos textos,<br />
novas histórias, novas personagens. Bastam pincéis, pós, sombras, blushes e batons<br />
para darem novas cores, outras texturas, diferentes brilhos, aumentar ou diminuir<br />
profundida<strong>de</strong>s e volumes e, assim, <strong>de</strong>scobrir ou inventar rostos. O que quero dizer<br />
hoje? Quem eu quero mostrar? Quero me ocultar no meio da massa urbana ou quero<br />
que os outros olhos me percebam?<br />
Mais que técnicas <strong>de</strong> aplicação, mais que correções <strong>de</strong> formato <strong>de</strong> rosto, <strong>de</strong><br />
nariz, <strong>de</strong> olhos e <strong>de</strong> bochechas, a maquiagem é um acontecimento <strong>de</strong>finido no tempo e<br />
no espaço, ou seja, é uma enunciação. Ao pensar a maquiagem como um enunciado<br />
que ocorre em contextos sociais cuja apreensão se dá na multiplicida<strong>de</strong> das<br />
dimensões sociais e psicológicas, ela é, então, operada na dimensão do discurso, ou<br />
seja, <strong>de</strong> fato, po<strong>de</strong>-se afirmar que a maquiagem é um discurso em ato proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
uma presença. O conjunto das operações, dos operadores e dos parâmetros que<br />
orientam o discurso, antes mesmo da exposição do sujeito, é resultado <strong>de</strong> “um ato <strong>de</strong><br />
enunciação que produz a função semiótica” (FONTANILLE, 2007, p.97).<br />
Além do mais, a maquiagem é uma conversão <strong>de</strong> um envelope corporal em<br />
superfície <strong>de</strong> inscrição semiótica e efêmera, na medida em que se po<strong>de</strong>m inscrever<br />
1 Merleau-Ponty observa a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um segundo corpo para observar o próprio corpo,<br />
principalmente a cabeça: “Minha cabeça só é dada à minha visão pela extremida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu nariz e pelo<br />
contorno <strong>de</strong> minhas órbitas. Posso ver meus olhos em um espelho com três faces, mas eles são os<br />
olhos <strong>de</strong> alguém que observa, e mal posso surpreen<strong>de</strong>r meu olhar vivo quando, na rua, um espelho me<br />
envia inopinadamente minha imagem. (...) Meu corpo visual é objeto nas partes distanciadas <strong>de</strong> minha<br />
cabeça, mas, à medida que se aproxima dos olhos, ele separa dos objetos, arranja no meio <strong>de</strong>les um<br />
quase-espaço ao qual eles não têm acesso, e, quando quero preencher este vazio recorrendo à imagem<br />
do espelho, ela ainda me remete a um original do corpo que não está ali, entre as coisas, mas do meu<br />
lado, aquém <strong>de</strong> qualquer visão. (2006b, p.135)<br />
32
diversos textos sobre a pele, algo parecido com o palimpsesto 2 , que permitia que um<br />
mesmo pergaminho, um suporte <strong>de</strong> inscrição escasso nos tempos remotos da<br />
civilização, fosse utilizado até mais <strong>de</strong> duas vezes. Desse modo, o texto era raspado e<br />
um novo texto escrito sobre a superfície do pergaminho. Entretanto, no âmbito do<br />
corpo, para que a conversão ocorra, é necessário existir uma <strong>de</strong>breagem que converta<br />
o envelope corporal em objeto semiótico. A partir disso, po<strong>de</strong>-se dizer que o corpo,<br />
mais que um simples suporte para as maquiagens, <strong>de</strong>ve pertencer a um actante que<br />
sofrerá ou realizará um ato, por meio da operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Contudo, esse<br />
actante, além do envelope corporal, <strong>de</strong>ve estar dotado da intencionalida<strong>de</strong> para<br />
realizar a enunciação e ser, efetivamente, um corpo sensível que se exprime.<br />
2 Exemplo utilizado por Didier Anzieu na <strong>de</strong>finição do Eu-pele, que será visto no tópico 1.1.3.<br />
33
1.1- O CORPO SEMIÓTICO: DA HEXIS CORPORAL AO CORPO DO ACTANTE<br />
O corpo é uma espécie <strong>de</strong> escrita viva no qual as forças imprimem<br />
“vibrações”, ressonâncias e cavam “caminhos”. O sentido nele se<br />
<strong>de</strong>sdobra e nele se per<strong>de</strong> como num labirinto on<strong>de</strong> o próprio corpo traça<br />
os caminhos. (LINS, 2003, p. 11)<br />
Mas a partir do momento em que alguém se pergunta pela operação<br />
que reúne os dois planos <strong>de</strong> uma linguagem, o corpo se faz<br />
indispensável 3 . (FONTANILLE, 2004a, p.13)<br />
Figura 1: Maquiagem Glamourosa. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 59.<br />
Na figura acima, Shinya e Masako Mori (Fig. 1) enunciam que são glamourosas:<br />
usam os clássicos lábios vermelhos, porém se diferenciam nos olhos: Shinya, à<br />
esquerda, <strong>de</strong> olhos proeminentes, usa sombras escuras para dar-lhes profundida<strong>de</strong>; e<br />
Masako os tem mais leves, iluminados com sombra dourada e enfatizados pela linha<br />
3 Mais, dès qu‟on s‟interroge sur l´opération qui réunite les <strong>de</strong>ux plans d‟un langage, le corps <strong>de</strong>vient<br />
indispensable.<br />
34
dos cílios ressaltada com <strong>de</strong>lineador preto. Além disso, usa as sobrancelhas finas<br />
estilo anos 30. “Cada visual tem o seu próprio recurso, enquanto ambos são<br />
<strong>de</strong>cididamente glamourosos” 4 (AUCOIN, 1995, p. 60). Neste exemplo, percebe-se que,<br />
para ser consi<strong>de</strong>rada glamourosa, a maquiagem <strong>de</strong>ve conter alguns requisitos<br />
<strong>de</strong>terminados pelo grupo <strong>de</strong> referência, ou seja, <strong>de</strong>ve ter cores brilhantes, batons<br />
vermelhos, entre outros elementos. Contudo, sob a camada da maquiagem, encontra-<br />
se um corpo que garante a presença do ser no mundo e que significa em ato, isto é, no<br />
mesmo momento em que é feita a enunciação. Há uma “relação <strong>de</strong> copresença em<br />
que os efeitos <strong>de</strong> sentido só po<strong>de</strong>m surgir e ser vividos hic et nunc, mediante uma<br />
experiência recíproca, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estésica, entre participantes” (LANDOWSKI, 2001,<br />
p.285).<br />
Da origem etimológica (corpus, -õris), que opõe a “materialida<strong>de</strong>” ou a<br />
“carnalida<strong>de</strong>” do corpo à espiritualida<strong>de</strong> da alma, às abordagens da semiótica ou da<br />
antropologia, que preenchem o corpo <strong>de</strong> sentidos culturalizados, chega-se ao corpo<br />
que nos interessa, aquele que, sendo suporte da maquiagem, oferece sua superfície já<br />
preenchida <strong>de</strong> sentidos. É assim que a semiótica compreen<strong>de</strong>:<br />
O corpo é simultaneamente um dos vetores da socieda<strong>de</strong> e da relação<br />
com o outro, o objeto e o suporte <strong>de</strong> práticas terapêuticas, rituais e<br />
simbólicas, a ancoragem principal das „lógicas do sensível‟ e das<br />
formas <strong>de</strong> relações semióticas com o mundo que o ro<strong>de</strong>ia,<br />
características <strong>de</strong> cada cultura 5 . (FONTANILLE, 2004a, p.12)<br />
Para Bourdieu, há um corpo característico em cada círculo <strong>de</strong> convívio, ou seja,<br />
nas profissões tradicionais ou não, nos círculos <strong>de</strong> capital social, nos círculos culturais,<br />
entre outros. A formação familiar, escolar e extra escolar é que conce<strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>terminado corpo a um indivíduo por meio <strong>de</strong> tendências duradouras que são<br />
características <strong>de</strong> uma hexis corporal, conforme explica o autor :<br />
Tudo se passa como se os condicionamentos sociais vinculados a uma<br />
condição social ten<strong>de</strong>ssem a inscrever a relação com o mundo social<br />
em uma relação duradoura e generalizada com o próprio corpo, uma<br />
4 Each look has its own appeal, while both are <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>dly glamorous.<br />
5 Le corps est tout cela à la fois: un <strong>de</strong>s vecteurs <strong>de</strong> la socialité et <strong>de</strong> la relation à autrui, l‟objet et le<br />
support <strong>de</strong> pratiques thérapeutiques, rituelles et symboliques, l‟ancrage principal <strong>de</strong>s “logiques du<br />
sensible” et <strong>de</strong>s formes <strong>de</strong> relations sémiotiques avec le mon<strong>de</strong> environnant, caractéristique <strong>de</strong> chaque<br />
culture.<br />
35
maneira <strong>de</strong> posicionar o corpo, <strong>de</strong> apresentá-lo aos outros, <strong>de</strong><br />
movimentá-lo, <strong>de</strong> reservar-lhe um lugar, que lhe dá sua fisionomia<br />
social. (BOURDIEU, 2008, p. 439)<br />
Para Fiorin (2008a, p.144), a hexis corporal seria a maneira como o indivíduo<br />
mantém o corpo, um modo <strong>de</strong> apresentação aos outros indivíduos, a maneira como se<br />
move e como ocupa um espaço. A hexis corporal “é a manifestação <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong><br />
vida por meio do corpo” (FIORIN, 2008a, p. 144). Assim como Shinya e Masako (Fig.1)<br />
que se apresentam glamourosas ao se maquiarem daquele modo, revelando, além dos<br />
seus estilos <strong>de</strong> vida, o grupo social ao qual pertencem. O corpo é, portanto,<br />
consi<strong>de</strong>rado um produto social, uma imagem da socieda<strong>de</strong>, contudo, é necessário que<br />
os sinais que o compõem pareçam naturais ao grupo <strong>de</strong> referência. De modo geral, os<br />
indivíduos procuram se camuflar no grupo, se adaptam e se conformam com as<br />
imposições do meio social e adotam a hexis corporal característica do seu grupo. A<br />
manifestação estética do vestir, que é também um componente da hexis corporal, é<br />
abordada por Greimas no artigo Uma estética exaurida, do livro Da imperfeição (2002).<br />
Nele, o autor discrimina os parâmetros para as escolhas das roupas. Em primeiro lugar<br />
estaria a funcionalida<strong>de</strong> das vestimentas em relação às condições atmosféricas, <strong>de</strong>pois<br />
a referência passa a ser o meio social:<br />
As pressões sociais em segundo lugar: a mulher se vestirá em função<br />
do meio ao qual ela pertence, da previsão do ambiente – ou dos<br />
ambientes e das circunstâncias – que ela <strong>de</strong>verá afrontar. As<br />
exigências da “natureza”- e sobretudo <strong>de</strong> sua representação social –<br />
conjugam-se assim com as da “cultura” (GREIMAS, 2002, p. 76).<br />
Desse modo, o corpo é submetido às forças e aos valores que a socieda<strong>de</strong> lhe<br />
impõe e, a partir disso, ele po<strong>de</strong> reagir contra essas tensões ou po<strong>de</strong> se submeter a<br />
elas. O corpo, assim, po<strong>de</strong> ser visto como objeto ou como sujeito. O corpo, tanto para<br />
Jeudy (2002, p. 14) quanto para Merleau-Ponty (2006b, p. 110), po<strong>de</strong> ser sujeito do<br />
objeto que ele representa, das sensações que o excitam.<br />
Não querendo prejulgar nada, tomamos ao pé da letra o pensamento<br />
objetivo e não lhe colocaremos questões que ele próprio não se coloca.<br />
Se somos conduzidos a reencontrar a experiência atrás <strong>de</strong>le, essa<br />
passagem só será motivada por seus próprios embaraços. Vamos<br />
então consi<strong>de</strong>rá-lo operando na constituição <strong>de</strong> nosso corpo como<br />
objeto, já que este é um momento <strong>de</strong>cisivo na gênese do mundo<br />
36
objetivo. Ver-se-á que o corpo próprio se furta, na própria ciência, ao<br />
tratamento que a ele se quer impor. E, como a gênese do corpo objetivo<br />
é apenas um momento na constituição do objeto, o corpo, retirando-se<br />
do mundo objetivo, arrastará os fios intencionais que o ligam ao seu<br />
ambiente e <strong>final</strong>mente nos revelará o sujeito que percebe assim como o<br />
mundo percebido. (MERLEAU- PONTY, 2006b, p. 110)<br />
O corpo fenomenológico é, por conseguinte, um corpo visível e reflexivo, com<br />
formas físicas constituintes <strong>de</strong> um indivíduo, fruto das interrogações que Merleau-Ponty<br />
(1989) fez à Ciência e à Filosofia. Um corpo concreto e sensível, exposto a forças e<br />
tensões, internas e externas. Um corpo que é um “sincretismo <strong>de</strong> sujeito e objeto”,<br />
parafraseando Luiz Tatit (1996), actantes das categorias funcionais, termos que<br />
possuem a mesma extensão, todavia, sem redução <strong>de</strong> um diante do outro:<br />
“O corpo, como objeto entre outros, é também sujeito, com o ato <strong>de</strong><br />
ver implicando que a corporeida<strong>de</strong> das coisas se impõe a ele no<br />
momento mesmo em que – como objeto – ele crê <strong>de</strong>cidir por uma boa<br />
parte do que está vendo” (JEUDY, 2002, p.150).<br />
Na semiótica, Luiz Tatit explica que as marcas <strong>de</strong> percepção e sensibilização do<br />
corpo têm um tratamento mais técnico:<br />
Tudo ocorre como se houvesse a supressão do núcleo sintáxico que<br />
distingue os actantes sujeito e objeto por meio <strong>de</strong> uma superposição<br />
(que, por vezes, dá origem a uma certa confusão) <strong>de</strong>ssas funções, <strong>de</strong><br />
tal maneira que po<strong>de</strong>ríamos falar <strong>de</strong> „sincretismo actancial‟. A<br />
manifestação figurativa mais freqüente <strong>de</strong>sse estado indiferenciado –<br />
ou mesmo invertido – das funções é a do sujeito tornando-se objeto das<br />
emoções produzidas pelo objeto estético. (TATIT, 1996, p. 201)<br />
Shinya e Masako, ao se maquiarem daquela maneira, estão realizando um ato<br />
enunciativo, estão em junção com o objeto hexis corporal do grupo <strong>de</strong> referência<br />
glamouroso. Por outro lado, <strong>de</strong>vido à complexida<strong>de</strong> do corpo visível, elas po<strong>de</strong>m se<br />
tornar o objeto <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> várias outras mulheres que <strong>de</strong>sejam se a<strong>de</strong>quar àquele<br />
grupo, e, por conseguinte, as duas são actantes <strong>de</strong> um processo narrativo. Assim, o<br />
actante, gerador do “sincretismo actancial” ao qual se refere Tatit, é “uma entida<strong>de</strong><br />
sintática da narrativa que se <strong>de</strong>fine como termo resultante da relação transitiva, seja<br />
ela uma relação <strong>de</strong> junção ou <strong>de</strong> transformação” (BARROS, 2003, p.84). Greimas e<br />
Courtés (2008, p.20) explicam que ele “po<strong>de</strong> ser concebido como aquele que realiza ou<br />
que sofre o ato in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer outra <strong>de</strong>terminação”. Desse modo, o<br />
37
“sincretismo actancial” ao suspen<strong>de</strong>r a oposição sujeito/objeto e convocar os<br />
mecanismos <strong>de</strong> sensibilização se aproxima da noção da “coisa senciente”, como<br />
explica Merleau-Ponty em O olho e o espírito:<br />
O enigma resi<strong>de</strong> nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vi<strong>de</strong>nte e visível.<br />
Ele, que olha todas as coisas, também po<strong>de</strong> olhar a si e reconhecer no<br />
que está vendo então o “outro lado” do seu po<strong>de</strong>r vi<strong>de</strong>nte. Ele se vê<br />
vi<strong>de</strong>nte, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si,<br />
não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer<br />
que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em<br />
pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência<br />
daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele<br />
toca, do senciente no sentido -, um si, portanto, que é tomado entre<br />
coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um<br />
futuro...(MERLEAU-PONTY, 1980, p. 88)<br />
Além <strong>de</strong> realizarem ou sofrerem o ato, os actantes são “forças e papéis<br />
necessários à realização <strong>de</strong> um processo” (FONTANILLE, 2007, p. 147). Porém, do<br />
ponto <strong>de</strong> vista corporal, o actante <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser concebido como uma pura posição<br />
formal presumida para ser uma posição corporal, ou melhor, o actante passa a possuir<br />
uma carne e uma forma corporal, “se<strong>de</strong> primordial dos impulsos e das resistências que<br />
sustentam a ação transformadora dos estados <strong>de</strong> coisas” 6 (FONTANILLE, 2004a,<br />
p.22). Tal fato é vivenciado por Shinya e Masako, actantes que possuem corpos, que<br />
po<strong>de</strong>m se manifestar ou serem percebidas como forma, já que possuem um envelope<br />
corporal, e/ou como força, ou seja, energia e movimento. O actante encarnado,<br />
portanto, se lança à orientação e à assimetria da relação humana com o mundo. 7<br />
O corpo é veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo,<br />
juntar-se a um meio <strong>de</strong>finido, confundir-se com certos projetos e<br />
empenhar-se continuamente nele.(...) pois se é verda<strong>de</strong> pela mesma<br />
razão que meu corpo é pivô do mundo: sei que os objetos tem várias<br />
faces porque eu po<strong>de</strong>ria fazer a volta em torno <strong>de</strong>les, e neste sentido<br />
tenho consciência do mundo por meio do meu corpo. (MERLEAU-<br />
PONTY, 2006b, p.122)<br />
Só posso compreen<strong>de</strong>r a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo<br />
e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao<br />
mundo (MERLEAU-PONTY, 2006b, p.114).<br />
6<br />
Premier siège <strong>de</strong>s impulsions et <strong>de</strong>s résistances qui sous-ten<strong>de</strong>nt l‟action transformatrice <strong>de</strong>s états <strong>de</strong><br />
choses.<br />
7<br />
As questões sobre o corpo do actante serão aprofundadas no tópico 1.1.1.<br />
38
Em suma, é com o corpo que o ser humano apreen<strong>de</strong> as coisas ao seu redor, à<br />
medida que vai vivenciando diversas situações. A presença do ser no mundo é uma<br />
presença corporal. Shinya e Masako são percebidas, naquele momento eternizado<br />
pela fotografia, em uma festa, em um evento <strong>de</strong> moda ou apenas num estúdio<br />
fotográfico; ou seja, assim como todos nós, possuidores <strong>de</strong> um corpo, somos, então,<br />
percebidos no tempo e no espaço. Como corpos, somos “uma ancoragem espaço-<br />
temporal que serve <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> referência central ao processo perceptivo”, como<br />
afirma Merleau-Ponty (2006b). A zona <strong>de</strong> corporeida<strong>de</strong> é o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivenciamos<br />
o mundo: é ao habitar o espaço e o tempo que as ações humanas vão adquirindo um<br />
sentido que é imputado pela corporeida<strong>de</strong>; pensamento este que é corroborado por<br />
Bourdieu:<br />
Dimensão fundamental do sentido da orientação social, a hexis corporal<br />
é uma maneira prática <strong>de</strong> experimentar e exprimir o sentido que se tem,<br />
como se diz, <strong>de</strong> seu próprio valor social: a relação que se mantém com<br />
o mundo social e o lugar que a pessoa se atribui nesse mundo nunca<br />
se <strong>de</strong>clara tão bem quanto através do espaço e do tempo que ela se<br />
sente no direito <strong>de</strong> tomar aos outros, e, mais precisamente, o lugar que<br />
ocupa com seu corpo no espaço físico, por uma postura e por gestos<br />
firmes ou reservados, amplos ou acanhados (<strong>de</strong> alguém que pretenda<br />
parecer importante diz-se, <strong>de</strong> forma bem clara, que é “espaçoso”) e<br />
com sua fala no tempo, pela parte do tempo <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> que se<br />
apropria e pela maneira, segura ou agressiva, <strong>de</strong>senvolta ou<br />
inconsciente, <strong>de</strong> se apropriar <strong>de</strong>sse tempo. (BOURDIEU, 2008, 439-<br />
440)<br />
A relação espaço-temporal do corpo com o mundo social se intensifica quando<br />
diz respeito à cosmética, em especial, à maquiagem como marca social, que atuará<br />
nas partes modificáveis do corpo para dar novos sentidos e fazer o sujeito adquirir<br />
outros valores no mundo. A capacida<strong>de</strong> que o corpo possui <strong>de</strong> colocar o indivíduo em<br />
contato com o mundo, <strong>de</strong> fazer com que ele se mova até a significação, se <strong>de</strong>ve a<br />
diversas proprieda<strong>de</strong>s: ao movimento, ao foco, à sensoriomotricida<strong>de</strong> e à<br />
intencionalida<strong>de</strong>. O corpo fenomenológico é um ser indissociável e polissensorial, no<br />
qual há a junção <strong>de</strong> uma forma e uma experiência. O corpo é assim, para além <strong>de</strong><br />
veículo ou suporte, “o princípio mesmo da actancialida<strong>de</strong> e da intencionalida<strong>de</strong>” 8<br />
(FONTANILLE, 2004a, p. 124).<br />
8 Au principe même <strong>de</strong> l‟actantialité et <strong>de</strong> l‟intentionnalité.<br />
39
A intencionalida<strong>de</strong> é um traço <strong>de</strong>finidor da narrativida<strong>de</strong>, função do actante<br />
sujeito, que, ao ser concebida em um nível mais abstrato, “permite uma generalização<br />
crescente e facilita a tarefa <strong>de</strong> análise narrativa” (BARROS, 2001, p. 45) <strong>de</strong> um gesto,<br />
<strong>de</strong> um movimento corporal ou <strong>de</strong> uma maquiagem. Greimas explica que prefere o<br />
conceito <strong>de</strong> intencionalida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong> intenção, já que o primeiro, oriundo da<br />
fenomenologia, acolhe a motivação e a <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>, permitindo “conceber o ato como<br />
uma tensão que se inscreve entre dois modos <strong>de</strong> existência: a virtualida<strong>de</strong> e a<br />
realização” (GREIMAS, 2008, p. 267). Tal conceito <strong>de</strong> intencionalida<strong>de</strong> está<br />
relacionado ao <strong>de</strong> competência modal.<br />
Se a narrativa recobre uma relação <strong>de</strong> junção entre sujeito e objeto, a<br />
competência modal é a dotação <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> um saber ao sujeito que<br />
concretizará a performance, ou o fazer transformador do homem no mundo, em<br />
constante <strong>de</strong>vir na busca <strong>de</strong> sentido. Tanto Shinya quanto Masako, por meio da<br />
maquiagem, pu<strong>de</strong>ram e souberam enunciar a sua posição no meio social. Desse<br />
modo, um indivíduo, ao se apresentar maquiado <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada maneira aos<br />
outros indivíduos, ao adotar <strong>de</strong>terminados movimentos e ocupar <strong>de</strong>terminados espaços<br />
com uma <strong>de</strong>terminada “fisionomia corporal”, vai construindo sua hexis corporal, para se<br />
inserir em uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong>, ou negá-la. Para Fontanille, “a<br />
intencionalida<strong>de</strong> é significante porque é movimento até as coisas” (2004a, p.131) 9 , e o<br />
movimento é intencional, orientado.<br />
1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do<br />
corpo próprio<br />
Por mais frustrante que seja, essa hipó<strong>tese</strong> apresenta, a nosso ver, o<br />
interesse <strong>de</strong> introduzir uma distinção não insuperável, certamente, mas<br />
pelo menos heuristicamente (e, portanto, provisoriamente) útil entre<br />
dois níveis: em profundida<strong>de</strong>, um mínimo <strong>de</strong> permanência, um núcleo<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cujo caráter relativamente estável se postula; e ao<br />
contrário, na superfície, um jogo <strong>de</strong> substituições entre formas<br />
passageiras que <strong>de</strong>terminam outros tantos estados transitórios, frutos<br />
<strong>de</strong> transformações bruscas ou <strong>de</strong> mutações mais lentas, mas que tanto<br />
umas como outras só adquirem sentido em referência à existência<br />
pressuposta (ao nível „profundo‟) <strong>de</strong> um ser que perdura „tal como em si<br />
9 L‟intentionnalité est signifiante parce qu‟elle est mouvement vers les choses.<br />
40
mesmo‟ através <strong>de</strong> todos os seus avatares. Efetivamente, para que<br />
alguma coisa possa se transformar <strong>de</strong> maneira significativa, é preciso<br />
que esse algo exista e, <strong>de</strong> certa forma, se mantenha. (LANDOWSKI<br />
2002, p. 101-102)<br />
A relação entre Shinya e Masako e o meio social <strong>de</strong> referência, no caso, o<br />
glamouroso, servirá também como exemplo <strong>de</strong> como um actante encarnado po<strong>de</strong> ser<br />
analisado. Desse modo, para dar um sentido <strong>de</strong> glamour a suas maquiagens,<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas, Shinya e Masako precisam da alterida<strong>de</strong> dos glamourosos.<br />
Portanto, ativos ou passivos, os actantes sujeitos encarnados vão construindo as suas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, incluindo as figurativas, durante a realização <strong>de</strong> um processo semiótico<br />
por meio da intencionalida<strong>de</strong>, ou seja, a partir da orientação que vão seguindo em<br />
relação ao grupo social <strong>de</strong> referência. Em outras palavras, o actante sujeito encarnado,<br />
individual ou coletivo, eu ou nós, para constituir sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, conforme explica<br />
Landowski, tem a “necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ele – dos „outros‟ (eles) para chegar à existência<br />
semiótica” (2002, p.4), uma vez que o si próprio se organiza na relação com a<br />
alterida<strong>de</strong>.<br />
Fontanille (2004a, p.23), ao conceber o actante do ponto <strong>de</strong> vista corporal,<br />
primeiramente, o divi<strong>de</strong> em duas instâncias, uma dupla i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: a carne e o corpo<br />
próprio. A primeira instância, a carne, seria um eu <strong>de</strong> referência, que resistirá ou<br />
participará da ação <strong>de</strong> transformação dos estados <strong>de</strong> coisas. É a instância que toma<br />
posição e organiza o campo <strong>de</strong> presença. Por ser a se<strong>de</strong> do núcleo sensoriomotor,<br />
pura sensibilida<strong>de</strong>, a carne é também a matéria submetida a pressões e tensões<br />
oriundas do campo perceptivo. A carne seria, então, como consta em epígrafe, nas<br />
palavras <strong>de</strong> Landowski: o nível “em profundida<strong>de</strong>, um mínimo <strong>de</strong> permanência, um<br />
núcleo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cujo caráter relativamente estável se postula”. Como exemplo da<br />
<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> carne, po<strong>de</strong>-se utilizar o da materialida<strong>de</strong>, ainda sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
Shinya e Masako. Materialida<strong>de</strong> esta que participa da transformação em estado <strong>de</strong><br />
glamourosas.<br />
Quanto aos avatares <strong>de</strong> Shinya e Masako com maquiagens glamourosas, po<strong>de</strong>-<br />
se dizer que são exemplos da segunda instância do actante encarnado, ou seja, o<br />
corpo próprio que é constituído na semiose, uma vez que é consi<strong>de</strong>rado a única<br />
entida<strong>de</strong> comum entre o eu e o mundo. Desse modo, a materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong><br />
41
Masako tem em comum com o mundo do glamour os seus avatares glamourosos. O<br />
corpo próprio é, por conseguinte, o mediador da relação <strong>de</strong> um plano da expressão e<br />
<strong>de</strong> um plano do conteúdo 10 no discurso em ato. De acordo com Hjelmslev (1975,<br />
p.215), a função semiótica (semiose), é a reunião completa do plano do conteúdo e do<br />
plano da expressão e pressupõe uma homogeneização da existência semiótica.<br />
Homogeneização esta que é o resultado da articulação da exteroceptivida<strong>de</strong> - os<br />
produtos da percepção das figuras do mundo natural provenientes do mundo exterior -<br />
e a interoceptivida<strong>de</strong> 11 - os produtos da percepção do mundo interior, cognitivo e<br />
emocional. Para Fontanille (2007), trata-se <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>nominação favorável ao<br />
perceptivo que reconfigura os planos da expressão (associado ao exteroceptivo) e do<br />
conteúdo (ligado ao interoceptivo).<br />
A instância do corpo próprio é, portanto, uma fronteira, o meio com o qual o<br />
actante sujeito encarnado se relaciona com o mundo. É um invólucro sensível<br />
<strong>de</strong>limitador <strong>de</strong> um domínio interior (conteúdo) e <strong>de</strong> um domínio exterior (expressão),<br />
portanto, uma percepção proprioceptiva da posição do corpo próprio. Por conseguinte,<br />
o corpo-próprio traz consigo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em construção e em <strong>de</strong>vir, submetido a um<br />
princípio <strong>de</strong> força diretriz. Assim, ele é consi<strong>de</strong>rado como o suporte do Seu Outro.<br />
Seria, no nível da superfície, um jogo <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> aparências fugazes que motivam<br />
diversos estados momentâneos cujas transformações, lentas ou bruscas, apenas<br />
alcançarão sentido em relação com o eu <strong>de</strong> referência que permanece, como afirma<br />
Landowski, “„tal como em si mesmo‟ através <strong>de</strong> todos os seus avatares”. A carne é,<br />
então, matéria visível; o corpo próprio é a fronteira, o invólucro, como também as<br />
diferentes formas e as diversas cores, tais quais as carnes matérias <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong><br />
Masako e seus invólucros lapidados em glamour.<br />
10 Vale lembrar que os elementos do plano do conteúdo são aqueles ligados à sintaxe e à semântica das<br />
etapas do percurso gerativo, já os elementos materiais, como o som na linguagem verbal, ou a cor e a<br />
topologia, em textos visuais, pertencem ao plano da expressão.<br />
11 Merleau-Ponty explica que quando um corpo segue em direção ao mundo, “a extereoceptivida<strong>de</strong> exige<br />
uma enformação dos estímulos, a consciência do corpo inva<strong>de</strong> o corpo, a alma se espalha em todas as<br />
suas partes, o comportamento extravasa seu setor central (...)” (2006b, p.114). Assim, as noções <strong>de</strong><br />
esquema corporal “são primeiramente empregadas então em um sentido que não é seu sentido pleno, e<br />
é seu <strong>de</strong>senvolvimento imanente que <strong>de</strong>mole os métodos antigos. Primeiramente, entendia-se por<br />
„esquema corporal‟ um resumo <strong>de</strong> nossa experiência corporal capaz <strong>de</strong> oferecer um comentário e uma<br />
significação à interoceptivida<strong>de</strong> e à proprioceptivida<strong>de</strong> do momento. Ele <strong>de</strong>via fornecer-me a mudança<br />
<strong>de</strong> posições das partes <strong>de</strong> meu corpo para cada movimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las (...)” (MERLEAU-PONTY,<br />
2006b, p.144).<br />
42
É a carne como tangibilida<strong>de</strong> e também como visibilida<strong>de</strong> que atravessa<br />
o corpo próprio, num movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>ssubjectivação. Outro nome para<br />
<strong>de</strong>signar o „ser bruto‟, a carne é uma instância <strong>de</strong> anonimização do<br />
corpo, enquanto este é uma figuração da carne. (BABO, 2001, p. 257)<br />
Assim, conforme explica Fontanille (2004a, p. 36), o corpo do actante po<strong>de</strong> ser<br />
analisado a partir das duas instâncias: pela carne, um eu <strong>de</strong> referência, e pelo corpo<br />
próprio, Seu Outro em <strong>de</strong>vir. Desse modo, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
actancial do sujeito encarnado se constrói no ato semiótico que emerge do estímulo<br />
sensoriomotriz do actante, cujo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção semiótica se apoiará na<br />
interrelação entre a carne e o corpo próprio, entre o Eu e o Seu Outro.<br />
O ato será então o resultado da correlação (conversa ou diversa) entre<br />
as pressões exercidas sobre o moi-carne (<strong>de</strong> tipo sensoriomotor) e as<br />
pressões exercidas sobre o soi-corpo-próprio: permanecer o mesmo,<br />
transformar-se e apropriar-se etc. Toda figura <strong>de</strong> ato po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida,<br />
nesse sentido, como o resultado <strong>de</strong> uma dupla <strong>de</strong>terminação, <strong>de</strong> um<br />
equilíbrio ou <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sequilíbrio entre esses dois tipos <strong>de</strong> pressões. 12<br />
(FONTANILLE, 2004a, p. 36)<br />
O corpo como ancoragem da presença no mundo é o primeiro modo <strong>de</strong><br />
existência da significação, <strong>de</strong> acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p.123). Sendo<br />
assim, cada efeito <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>ve reunir um grau <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> (energia, força,<br />
intensida<strong>de</strong> sensível, resistência), que “torna a percepção mais viva ou menos viva”<br />
(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.19), e <strong>de</strong>terminada posição ou quantida<strong>de</strong> na<br />
extensida<strong>de</strong> (duração, espaço, número <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>s integradas etc.), que guia ou<br />
condiciona “o fluxo da atenção do sujeito da percepção” (FONTANILLE e<br />
ZILBERBERG, 2001, p. 19).<br />
As correlações conversas e diversas das dimensões intensivas e extensivas são<br />
responsáveis pela formação e estabilização das figuras semióticas. Desse modo, “a<br />
presença conjuga, em suma, forças (internas) <strong>de</strong> um lado, e posições e quantida<strong>de</strong>s<br />
(externas), do outro” (FONTANILLE, 2007, p. 76), domínios internos e externos em um<br />
mundo sensível. Portanto, o corpo próprio se constitui na força da relação semiótica,<br />
em cujo fenômeno do ato possuirá uma competência interna (energia) e uma<br />
12 L‟acte résultera alors <strong>de</strong> la corrélation (convergente ou divergente) entre les pressions exercées sur le<br />
Moi-chair (<strong>de</strong> type sensori-moteur) et les pressions exercées sur le Soi-corps prope: rester Le même,<br />
<strong>de</strong>venir et tenir, etc. Toute figure d‟acte peut alors être définie comme résultant d‟une double<br />
détermination, d‟un équilibre ou d‟un déséquilibre entre ces <strong>de</strong>ux types <strong>de</strong> pressions.<br />
43
competência externa (posições). No caso do actante encarnado, a competência<br />
interior, a energia, está no domínio da carne (Eu) e a competência exterior está no<br />
domínio do corpo próprio (Seu Outro).<br />
De volta à materialida<strong>de</strong> da carne <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong> Masako, po<strong>de</strong>-se<br />
compreen<strong>de</strong>r como se organiza o campo <strong>de</strong> presença que é constituído a partir da<br />
percepção da presença da matéria corporal das duas moças. Esse campo seria, assim,<br />
uma espécie <strong>de</strong> equivalência das relações juntivas entre sujeito e objeto, uma área na<br />
qual se exerce a percepção e na qual o sujeito se constitui no percurso (entradas,<br />
estadas, saídas e retornos) para alcançar um objeto. No caso <strong>de</strong> Shinya e Masako,<br />
em um primeiro momento, percebe-se a presença da materialida<strong>de</strong> dos dois corpos<br />
numa <strong>de</strong>terminada intensida<strong>de</strong>, nesse instante forma-se o campo <strong>de</strong> presença; no<br />
instante seguinte, passa-se a perceber Shinya e Masako maquiadas<br />
glamourosamente, em junção com o glamour 13 (objeto <strong>de</strong> valor) do meio social <strong>de</strong><br />
referência. O percurso é, portanto, circunscrito pela própria percepção do sujeito. As<br />
gradações da relação entre sujeito e objeto são <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da tensivida<strong>de</strong>,<br />
que é “a pressuposição recíproca entre dois gradientes orientados, representados nos<br />
gráficos tensivos por um eixo da intensida<strong>de</strong> – relacionado aos estados <strong>de</strong> alma, ao<br />
sensível –, e um eixo da extensida<strong>de</strong> – relacionado aos estados <strong>de</strong> coisas, ao<br />
inteligível” (MANCINI, TROTTA e SOUSA, 2007, p.296).<br />
No instante em que a presença das materialida<strong>de</strong>s dos corpos <strong>de</strong> Shinya e<br />
Masako, ainda sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, é percebida, é estabelecido um foco; no momento<br />
seguinte, ocorre a apreensão cognitiva da tomada <strong>de</strong> posição das moças glamourosas.<br />
Portanto, o eixo da intensida<strong>de</strong> está relacionado à potência da tensão entre sujeito e<br />
objeto, à tonicida<strong>de</strong> da percepção, já o outro eixo, da extensida<strong>de</strong>, irá circunscrever a<br />
dimensão do campo <strong>de</strong> percepção do sujeito. Na função percepção, as duas<br />
operações necessárias para uma representação da significação em ato são assim<br />
<strong>de</strong>nominadas: foco (intensida<strong>de</strong>) e apreensão (extensida<strong>de</strong>). Desse modo, os graus <strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> extensão, controlados pelas operações do foco e da apreensão,<br />
13 Além <strong>de</strong> magnetismo e charme pessoal, glamour é consi<strong>de</strong>rado um objeto <strong>de</strong> valor do mundo luxuoso:<br />
muitas festas, grifes caras, maquiagens e cabelos <strong>de</strong> acordo com o estilo <strong>de</strong> vida luxuoso e<br />
contemporâneo.<br />
44
convertem-se em graus <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> perceptiva 14 .<br />
Os eixos da intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong> e a área <strong>de</strong> correlação po<strong>de</strong>m ser<br />
representados conforme o esquema tensivo número 1:<br />
Eixo da<br />
Intensida<strong>de</strong><br />
Domínio Interno,<br />
Interoceptivo,<br />
Plano do<br />
conteúdo.<br />
Estado <strong>de</strong> alma,<br />
sensível.<br />
Operação: Foco<br />
Carne<br />
+<br />
-<br />
Área <strong>de</strong> correlação<br />
Resulta da tomada <strong>de</strong><br />
posição.<br />
Presença Sensível<br />
Proprioceptiva<br />
- Eixo da Extensida<strong>de</strong><br />
Domínio Externo, exteroceptivo.<br />
Plano da Expressão.<br />
Estado <strong>de</strong> coisas, inteligível.<br />
Operação: apreensão<br />
Corpo-próprio<br />
+<br />
A figura do ato semiótico dos actantes sujeitos encarnados Shinya e Masako<br />
correspon<strong>de</strong> a um equilíbrio entre as pressões exercidas sobre a carne e as pressões<br />
exercidas sobre o corpo próprio que, neste caso, entra em <strong>de</strong>vir e se apropria do<br />
glamour do meio <strong>de</strong> referência, representado no esquema tensivo número 2:<br />
14 “A profundida<strong>de</strong> é justamente a distância (sensível, percebida) entre o centro e os horizontes (...). É<br />
um movimento entre o centro e os horizontes, uma variação da tensão entre a intensida<strong>de</strong> e a<br />
extensão” (Fontanille, 2007, p. 102).<br />
45
Assim, as moças glamourosas, presentes num meio social glamouroso, partem<br />
<strong>de</strong> uma presença da materialida<strong>de</strong> dos seus corpos que se manterá quando ocorrer a<br />
apreensão do glamour dos seus invólucros maquiados. Por estarem em conjunção<br />
com o seu meio <strong>de</strong> referência, ou seja, <strong>de</strong> acordo com a hexis corporal glamourosa,<br />
trata-se <strong>de</strong> uma correlação conversa, isto é, se o meio pe<strong>de</strong> glamour então as moças<br />
se apresentam maquiadas apropriadamente a ele, conforme o esperado. As duas<br />
dimensões evoluem na mesma direção, ou seja, quanto mais Shynia e Masako são<br />
focadas, maior será a extensão da apreensão, e a estabilização das presenças das<br />
duas moças.<br />
Eixo da<br />
Intensida<strong>de</strong><br />
Operação:<br />
Foco<br />
Carne Shinya e<br />
Masako<br />
Desse modo, “o aumento da intensida<strong>de</strong> combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da<br />
extensão produz uma tensão afetiva e cognitiva” (FONTANILLE, 2007, p.112),<br />
gerando, assim, um esquema <strong>de</strong> amplificação 15 .<br />
+<br />
-<br />
-<br />
Eixo da Extensida<strong>de</strong><br />
Operação: apreensão<br />
Corpo-próprio Shynia e Masako<br />
Glamourosas<br />
15 De acordo com Fontanille, “os esquemas tensivos serão esquemas discursivos elementares, que<br />
regulam a interação do sensível e do inteligível, as tensões e os relaxamentos que modulam essa<br />
interação” (2007, p.109). O princípio que organiza a estrutura tensiva possibilita quatro tipos <strong>de</strong><br />
esquemas: <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, <strong>de</strong> ascendência, da amplificação (exemplificado acima) e da atenuação.<br />
(FONTANILLE, 2007, p.110 - 112)<br />
+<br />
46
Fontanille explica que o Eu e o Seu Outro (carne e corpo próprio) são<br />
inseparáveis, é como se fossem o anverso e o reverso <strong>de</strong> uma mesma entida<strong>de</strong>. As<br />
duas instâncias do actante encarnado se pressupõem e se <strong>de</strong>terminam<br />
reciprocamente, ou seja:<br />
o Soi [Seu Outro] é essa parte <strong>de</strong>le mesmo que o Moi [Eu] projeta para<br />
fora <strong>de</strong> si para po<strong>de</strong>r construir-se atuando; o Moi [Eu] proporciona ao<br />
Soi [Seu Outro] o impulso e a resistência que lhe permitem colocar-se<br />
em marcha até seu <strong>de</strong>vir; o Soi [Seu Outro] proporciona ao Moi [Eu] a<br />
reflexibilida<strong>de</strong> que necessita para medir-se a si mesmo durante a troca.<br />
O Moi [Eu] estabelece ao Soi [Seu Outro] um problema que tem que ser<br />
resolvido permanentemente: o Moi [Eu] se <strong>de</strong>sloca, se <strong>de</strong>forma, resiste,<br />
e obriga o Soi [Seu Outro] a afrontar sua própria alterida<strong>de</strong>, problema<br />
que o Soi [Seu Outro] se esforça em resolver, seja por repetição e<br />
semelhança, seja por foco 16 constante e mantido. (FONTANILLE,<br />
2004a, p.24) 17<br />
Percebe-se, portanto, que são várias estratégias a que um sujeito encarnado<br />
po<strong>de</strong> recorrer para representar e <strong>de</strong>senvolver sua própria “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” ante a figura<br />
complementar que ele se dá como representante do “outro”. Nesse caso, o plano das<br />
práticas sociais em questão é o da problemática das relações intersubjetivas<br />
16 Quando Fontanille explica que o corpo-próprio Seu Outro ao afrontar a alterida<strong>de</strong> procura fazê-lo<br />
por repetição e semelhança ou por foco constante e mantido, ele se baseia nas teorias <strong>de</strong> Paul Ricoeur<br />
sobre os modos <strong>de</strong> construção do Seu Outro: Soi-i<strong>de</strong>m, por repetição e semelhança (apreensão) e soiipse<br />
por manutenção e permanência (foco). Paul Ricoeur explica que a sua <strong>tese</strong> é “que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na<br />
acepção <strong>de</strong> ipse não implica nenhuma afirmação relativa a um pretendido núcleo não variável da<br />
personalida<strong>de</strong>. É aquilo, quando bem mesmo a ipseida<strong>de</strong> traria modalida<strong>de</strong>s claras <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
Como a análise da promessa atesta. Ora o equivoco da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> refere-se ao nosso título por meio do<br />
sinônimo parcial em francês entre “mesmo” e “idêntico”. Nas suas acepções variadas, “mesmo” é<br />
empregado no âmbito <strong>de</strong> uma comparação: tem por contrários: outro, contrário, distinto, diversos,<br />
<strong>de</strong>sigual, oposto. O peso <strong>de</strong>sse uso comparativo do termo “mesmo” me pareceu tão gran<strong>de</strong> que eu teria<br />
doravante que adotar mesmice para sinônimo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>-i<strong>de</strong>m e que eu oporia a ipseida<strong>de</strong> por<br />
referência a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>-ipse (1990, p.13). Notre thèse será que l‟i<strong>de</strong>ntité au sens d‟ipse n‟implique<br />
aucune assertion concernant um prétendu noyau non changeant <strong>de</strong> la personalité. Et cela, quand bien<br />
même l‟ipséité apporterait <strong>de</strong>s modalités propres d‟i<strong>de</strong>ntité. Comme l‟analyse <strong>de</strong> La promesse l‟attestera.<br />
Or l‟équivocité <strong>de</strong> l‟i<strong>de</strong>ntité concerne motre titre à travers La synonymie partielle, en français du moins,<br />
entre “même” et “i<strong>de</strong>ntique”. Dans ses acceptions variées , “même” est employé dans le cadre d‟une<br />
comparaison: il a pour contraires: autre, contraire, distinct, divers, inégal, inverse. Le poids <strong>de</strong> cet usage<br />
comparatif du terme “même” m‟a paru si grand que je tiendrai désormais la mêmeté pour synonyme <strong>de</strong><br />
l‟i<strong>de</strong>ntité-i<strong>de</strong>m et que je lui opposerai l‟ipséité par référence à l‟i<strong>de</strong>ntité-ipsé.<br />
17 Le Soi est cette part <strong>de</strong> lui-même que le Moi projette hors <strong>de</strong> lui pour pouvoir se construire en<br />
agissant; le Moi est cette part <strong>de</strong> lui-même auquel le Soi se réfère en se construisant. Le Moi procure au<br />
Soi l‟impulsion et la résistance qui lui permettent <strong>de</strong> se mettre en <strong>de</strong>venir; le Soi procure au Moi cette<br />
réflexivité dont Il a besoin pour se mesurer à lui-même dans le changement. Le Moi pose au Soi un<br />
problème qu‟il n‟a <strong>de</strong> cesse <strong>de</strong> résoudre: le Moi se déplace, se déforme et résiste, et contraint le Soi à<br />
affronter sa propre altérité, problème que le Soi s‟efforce <strong>de</strong> résoudre soit par répétition et similitu<strong>de</strong>, soit<br />
par visée constante et maintenue.<br />
47
vivenciadas, tais como se manifestam em um conjunto <strong>de</strong> discursos e <strong>de</strong> práticas<br />
empiricamente observáveis. São “os sujeitos em situação” (LANDOWSKI, 2002, p.31).<br />
Landowski (2002) esclarece que, ao dar forma à própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, não seria<br />
apenas pela maneira reflexiva que o sujeito tenta se <strong>de</strong>finir, isto é, como o outro o vê,<br />
mas também pela maneira por meio da qual o sujeito percebe o outro e lhe atribui um<br />
conteúdo próprio à diversida<strong>de</strong> que os separa. Isso significa que seja no plano da<br />
vivência individual, seja no da coletiva, “a emergência do sentimento <strong>de</strong> „i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>‟<br />
parece passar necessariamente pela intermediação <strong>de</strong> uma „alterida<strong>de</strong>‟ a ser<br />
construída” (LANDOWSKI, 2002, p.4). Contudo, conforme observam Fontanille e<br />
Zilberberg (2001, p.153), do ponto <strong>de</strong> vista fenomenológico, o mundo sensível, quando<br />
é observado por um sujeito, passa a ser um eterno <strong>de</strong>vir. Po<strong>de</strong>-se reter ou esten<strong>de</strong>r “os<br />
esboços que constituem o ser sensível”, suce<strong>de</strong>ndo-se ou superpondo-se<br />
in<strong>de</strong>terminadamente.<br />
Em primeiro lugar, ela [a percepção] não se apresenta como um<br />
acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a<br />
categoria da causalida<strong>de</strong>, mas a cada momento como uma re-criação<br />
ou uma re-constituição do mundo. Se acreditamos em um passado do<br />
mundo, no mundo físico, nos „estímulos‟, no organismo tal como nossos<br />
livros o representam, é primeiramente porque temos um campo<br />
perceptivo presente e atual, uma superfície <strong>de</strong> contato com o mundo ou<br />
perpetuamente enraizada nele, é porque sem cessar ele vem assaltar e<br />
investir a subjetivida<strong>de</strong>, assim como as ondas envolvem um <strong>de</strong>stroço na<br />
praia. (MERLEAU-PONTY, 2006b, p.279-280)<br />
Da mesma forma, o glamour envolve as materialida<strong>de</strong>s tanto <strong>de</strong> Shinya quanto<br />
<strong>de</strong> Masako fazendo-as utilizar cores e brilhos específicos na realização <strong>de</strong> suas<br />
maquiagens glamourosas.<br />
48
1.1.2- Corpo: movimento e envelope<br />
O movimento do corpo só po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar um papel na percepção<br />
do mundo se ele próprio é uma intencionalida<strong>de</strong> original, uma maneira<br />
<strong>de</strong> se relacionar ao objeto distinta do conhecimento. É preciso que o<br />
mundo esteja, em torno <strong>de</strong> nós, não como um sistema <strong>de</strong> objetos dos<br />
quais fazemos a sín<strong>tese</strong>, mas como um conjunto aberto <strong>de</strong> coisas em<br />
direção às quais nós nos projetamos. (MERLEAU-PONTY, 2006b,<br />
p.518)<br />
O movimento e o envelope têm o sentido <strong>de</strong> “uma interação entre forças e<br />
substâncias, entre uma energia e uma matéria” 18 (FONTANILLE, 2004a, p.127), cujo<br />
encontro produz um caso particular dos equilíbrios energéticos que dão lugar à<br />
conversão eidética. A partir das sensações provocadas pelos encontros <strong>de</strong> corpos,<br />
próximos ou distantes no espaço-tempo, são atualizadas zonas críticas e limites, ou<br />
seja, o movimento corporal que esbarra com o envelope do mundo ou vice-versa. O<br />
princípio semiótico continua inalterado, trocando-se apenas as posições dos corpos<br />
actanciais posicionais: fonte ou alvo. Assim, partindo do campo <strong>de</strong> presença do mundo<br />
glamouroso, no qual ele é o centro do campo, no modo da intensida<strong>de</strong>, ele sente a<br />
presença das materialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong> Masako, então, o mundo glamouroso<br />
procura focá-las para reconhecê-las como a origem da intensida<strong>de</strong>. Contudo, ele é a<br />
fonte do foco, mas também o alvo da intensida<strong>de</strong> das moças, uma vez que elas<br />
<strong>de</strong>sejam se inserir naquele mundo. O mundo, porém, permanecerá a fonte do foco até<br />
que a presença <strong>de</strong> ambas seja percebida como intencional. Assim, a partir <strong>de</strong>sse<br />
momento, o mundo do glamour, que até então era o centro do discurso, per<strong>de</strong> a<br />
iniciativa do foco e passa a ser ele próprio focado pela intensida<strong>de</strong> que sente das<br />
presenças das moças, ou seja, a alterida<strong>de</strong> intencional (das moças maquiadas <strong>de</strong><br />
glamour) toma a forma no interior do campo glamouroso.<br />
Inversamente, no modo da extensão, no qual se pratica a apreensão, o mundo<br />
do glamour é o centro do campo e também o ponto <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> todas as<br />
avaliações <strong>de</strong> distância espaço-temporal e <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> glamour. Portanto, ele é,<br />
simultaneamente, a fonte da apreensão e das medidas da extensão, ele é quem avalia.<br />
18 D‟une interaction entre <strong>de</strong>s forces et <strong>de</strong>s substances, entre une énergie et une matière,<br />
49
Porém, no momento em que a presença das duas moças é percebida como<br />
intencional, é o lugar do actante mundo glamouroso, centro do discurso, que passa a<br />
ser apreendido e avaliado por Shinya e por Masako. Agora, o mundo do glamour é que<br />
é o alvo da comparação e da quantificação. Essa é uma relação centrífuga, na qual<br />
Shinya e Masako focam o mundo sensível, elas saem da sua materialida<strong>de</strong> (centro <strong>de</strong><br />
referência) e adotam a hexis corporal glamourosa (seu outro).<br />
Nos preceitos da tradição psicológica, as concepções <strong>de</strong> esquema corporal<br />
(gestalt-teoria, Shil<strong>de</strong>r), esquema postural (Head), divi<strong>de</strong>m-se em duas tendências:<br />
esquema postural, que aprecia a posição do corpo em movimento, e os esquemas <strong>de</strong><br />
superfície, que remetem a uma percepção dos limites corporais, observados do interior<br />
e do exterior, que proporcionam uma forma e uma imagem ao corpo. Fontanille (2004a,<br />
p.125) alerta para as duas representações distintas do corpo: o movimento e o<br />
envelope, “as forças e a forma”. A primeira é Kinestésica e a segunda, sinestésica e<br />
holística. Desse modo, o gestual comunicativo e a energia libidinal, o fluxo perceptivo e<br />
a sensoriomotricida<strong>de</strong> dizem respeito à carne móvel. O envelope, mais ligado às<br />
semióticas <strong>de</strong>senvolvidas pela psicanálise, também faz referência aos gestos<br />
comunicativos, entretanto, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> tanto das posturas (movimento e<br />
sensoriomotricida<strong>de</strong>) quanto das superfícies (fronteiras e envelope).<br />
Finalmente, a distinção fenomenológica entre carne e corpo faz eco<br />
também, indiretamente e em um nível mais fundamental, a essa<br />
distinção figurativa: <strong>de</strong> fato, a unida<strong>de</strong> da carne e do Moi [Eu] se baseia<br />
em uma sín<strong>tese</strong> Kinestésica, enquanto que a do corpo, como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
do Soi [Seu Outro] em <strong>de</strong>vir, se apoia em uma sín<strong>tese</strong> sinestésica e<br />
holística. A carne husserliana é hilética e sensoriomotriz , enquanto o<br />
corpo próprio é eidético. 19 (FONTANILLE, 2004a, p. 126)<br />
O caminho que se apresenta a partir do movimento e dos envelopes é<br />
apropriado para a compreensão <strong>de</strong> como um indivíduo chega a uma <strong>de</strong>terminada<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa, ou mais especificamente, como chega a utilizar <strong>de</strong>terminado tipo<br />
<strong>de</strong> maquiagem num meio social. Desse modo, <strong>de</strong>ve estar claro que o movimento<br />
19 Enfin, la distinction phénoménologique entre chair et corps fait elle aussi echo, indirectement et à un<br />
niveau plus fundamental, à cette distinction figurative: en effet, l‟unité <strong>de</strong> la chair et du Moi repose sur<br />
une synthèse Kinesthésique, alors que celle du corps, comme i<strong>de</strong>ntité du Soi en <strong>de</strong>venir, repose sur une<br />
synthèse coenesthésique et holistique; la chair husserlienne est hylétique et sensori-motrice, alors que le<br />
corps propre est eidétique.<br />
50
semiótico permanece constante entre o movimento corporal que esbarra com o<br />
envelope do mundo e entre o movimento do mundo que esbarra com o envelope<br />
corporal, e o que se modifica é a distribuição dos papéis actanciais posicionais: fonte<br />
e alvo.<br />
Segundo Fontanille (2007, p.104), não há priorida<strong>de</strong> entre os actantes<br />
posicionais ou entre os focos e as apreensões, assim como os papéis que recobrirão<br />
os actantes serão <strong>de</strong>finidos pela orientação do discurso. Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer<br />
que quando o actante-fonte – movimento (matéria corporal <strong>de</strong> Shinya e Masako) entra<br />
em relação intensa e afetiva com o actante-alvo - envelope do mundo (seu outro<br />
glamouroso), está em um campo posicional aberto, no eixo da intensida<strong>de</strong> (foco).<br />
Como também, em um outro momento, po<strong>de</strong>rá ocorrer uma mudança <strong>de</strong> posição e <strong>de</strong><br />
registro: o actante fonte - envelope do mundo (seu outro glamouroso) – entrará em<br />
relação cognitiva e extensiva ou quantitativa com o actante alvo- movimento (matéria<br />
corporal <strong>de</strong> Shinya e Masako), em um campo posicional fechado, no eixo da<br />
extensida<strong>de</strong> (apreensão). Desse modo, o foco atualizará e abrirá as estruturas <strong>de</strong><br />
campo. Em outra situação, a apreensão as realizaria e as fecharia (2007, p.159).<br />
O movimento é, então, uma energia (sensoriomotriz) que se <strong>de</strong>stina às<br />
substâncias do mundo sobre as quais serão <strong>de</strong>senhadas ou reveladas formas<br />
(envelopes das coisas do mundo glamouroso e do corpo glamouroso). O envelope<br />
corporal é constituído a partir da energia do mundo (glamouroso) ou do corpo-carne<br />
sobre a matéria corporal, estabelecida como reativa e resistente. O corpo, portanto, é<br />
<strong>de</strong>finido como movimento e como envelope, por causa do <strong>de</strong>slocamento do ponto <strong>de</strong><br />
vista, que, <strong>de</strong>vido à inversão dos papéis actanciais, po<strong>de</strong> ser fonte da energia<br />
(movimento) ou alvo (envelope), como explica Fontanille (2004a, p. 128). Merleau-<br />
Ponty, no livro A estrutura do comportamento, também aborda esse princípio:<br />
Já que o próprio corpo não é apreendido como uma massa material e<br />
inerte ou como um instrumento exterior, mas como o invólucro vivo <strong>de</strong><br />
nossas ações, o princípio <strong>de</strong>stas não precisa ser uma força quase<br />
física. Nossas intenções encontram nos movimentos sua vestimenta<br />
natural ou sua encarnação e exprimem-se neles como a coisa se<br />
exprime em seus aspectos perspectivos. (MERLEAU-PONTY, 2006a, p.<br />
292)<br />
51
Desse modo, o que <strong>de</strong>ve ficar claro é que o movimento corporal é intencional e<br />
o envelope, individualizante, e ambos constituem o actante encarnado. A partir <strong>de</strong> uma<br />
lei semiótica geral, as figuras são formadas a partir da interação da matéria e da<br />
energia, e, mais adiante, <strong>de</strong> um diálogo entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>, no campo<br />
da presença, como po<strong>de</strong> ser visto no esquema tensivo número 2. A carne e o corpo<br />
próprio se distinguem dos outros sistemas físicos pela orientação e pela assimetria das<br />
relações com o mundo, característica, <strong>de</strong> acordo com Fontanille (2004a, p. 130-131),<br />
do encarnado. Também colaboram nessa distinção a natureza tímica das tensões<br />
<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes das condições anteriores e, ainda, os dois ícones actanciais: a forma do<br />
envelope e a carne movimento.<br />
1.1.3 - Eu-pele: um envelope corporal semiótico<br />
Por Eu-pele <strong>de</strong>signo uma representação <strong>de</strong> que se serve o Eu da<br />
criança durante as fases precoces <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento para se<br />
representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a<br />
partir <strong>de</strong> sua experiência da superfície do corpo (ANZIEU, 1989, p. 44).<br />
O psicanalista francês Didier Anzieu explica que “Envelope é uma noção<br />
abstrata que exprime o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um observador minucioso, mas <strong>de</strong> fora”<br />
(1989, p.67). Na semiótica, <strong>de</strong> acordo com Fontanille, o sujeito, a partir da experiência<br />
sensorial, passa a perceber seu próprio envelope, tanto no campo transitivo quanto no<br />
recursivo. Desse modo, todos os objetos palpáveis, odoríficos, auditivos ou visíveis são<br />
dotados <strong>de</strong> envelopes e po<strong>de</strong>m envolver qualquer coisa com suas capas englobantes.<br />
Além disso, “o envelope converte-se em uma parte característica <strong>de</strong> algo transformado<br />
em actante do mundo sensível 20 ” (2004a, p. 109). O envelope corporal seria “o<br />
resultado da energia do mundo ou do corpo-carne, aplicada à matéria corporal, tratada<br />
como forma reativa e resistente 21 ” (FONTANILLE, 2004a, p.128).<br />
Anzieu parte da noção <strong>de</strong> barreiras <strong>de</strong> contato, <strong>de</strong>senvolvida por Freud, para<br />
20 L‟enveloppe <strong>de</strong>vient une partie caractéristique d‟une chose transformée en actant du mon<strong>de</strong> sensible.<br />
21 Le résultat <strong>de</strong> l‟énergie du mon<strong>de</strong> ou du corps-chair lui-même, appliquée à la matière corporelle, traitée<br />
alors comme forme réactive et résistante.<br />
52
ampliar o conceito <strong>de</strong> envelope corporal, no qual há um duplo sentido: o primeiro <strong>de</strong><br />
para-excitação, uma espécie <strong>de</strong> filtro protetor dos estímulos exteriores, e, o segundo<br />
sentido, <strong>de</strong> membrana resistente e impermeável que abarca as forças interiores. Esses<br />
dois sentidos fazem das barreiras <strong>de</strong> contato uma espécie <strong>de</strong> operadoras <strong>de</strong> triagem<br />
que atuam sobre a quantida<strong>de</strong> (extensida<strong>de</strong>) e a intensida<strong>de</strong> das solicitações e agem a<br />
partir <strong>de</strong> um acordo modal e axiológico. Fontanille, então, enten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
envelope corporal como “uma re<strong>de</strong> polissensorial e superficial que põe em contato o<br />
Eu e o mundo, ou mais precisamente, que recebe, <strong>de</strong> um lado, solicitações do mundo<br />
e, do outro, solicitações do Eu 22 (2004a, p. 141). Portanto, po<strong>de</strong>-se dizer que o<br />
envelope é uma superfície protetora, uma membrana, “que po<strong>de</strong>ria ser relacionada<br />
com a percepção das fronteiras da imagem do corpo” (ANZIEU, 1989, p. 35), mais<br />
precisamente do corpo próprio.<br />
A partir <strong>de</strong> duas premissas, a primeira freudiana e a segunda Jacksoniana, nas<br />
quais a função psíquica se <strong>de</strong>senvolve apoiada na função corporal e na do córtex que<br />
ten<strong>de</strong> a comandar o sistema nervoso, Anzieu <strong>de</strong>senvolve a teoria do Eu-pele que<br />
combina as proprieda<strong>de</strong>s fenomenológicas do corpo – próprio, unitário e <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong><br />
uma forma global, e as proprieda<strong>de</strong>s da topologia energética oriundas da psicanálise,<br />
fundando, <strong>de</strong>ssa maneira, uma tipologia figurativa do corpo: “a experiência específica<br />
do corpo-próprio como envelope sensorial e psíquico, como película, fronteira e<br />
membrana que separa e coloca em comunicação o eu e o mundo para mim”<br />
(FONTANILLE, 2004b, p. 100).<br />
Para o psicanalista, a pele tem uma importância capital: ela fornece ao<br />
aparelho psíquico as representações constitutivas do Eu e <strong>de</strong> suas<br />
principais funções. Esta constatação está presente no quadro da teoria<br />
geral da evolução. (ANZIEU, 1989, p. 109)<br />
Ao Eu-pele Anzieu atribui algumas funções: sustentação, continente, para-<br />
excitação, individuação (filtro qualitativo), conector intersensorial, receptor do prazer e<br />
da dor, barreira <strong>de</strong> recarga e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga energética, superfície <strong>de</strong> inscrição dos<br />
<strong>de</strong>senhos exteriores significantes (ANZIEU, 1989, p. 111-120). E essas funções, como<br />
pensa Fontanille, “fazem dos avatares do corpo o verda<strong>de</strong>iro crisol da função semiótica<br />
22 Le réseau polysensoriel et superficiel qui met en contact le moi et le mon<strong>de</strong> ou, plus précisément qui<br />
reçoit d‟un côté <strong>de</strong>s sollicitations du mon<strong>de</strong> et, <strong>de</strong> l‟autre, celles du moi.<br />
53
e a manifestação concreta da formação das instâncias enunciantes” 23 (2004a, p. 124).<br />
Assim, “o corpo transformado em um Eu-pele é um corpo cinestésico, um invólucro<br />
suscetível <strong>de</strong> funcionar como „superfície <strong>de</strong> inscrição‟, e <strong>de</strong> engendrar por <strong>de</strong>breagem o<br />
conjunto dos suportes semióticos, os substratos materiais do „plano da expressão‟”<br />
(FONTANILLE, 2001, p.235).<br />
A pele é um envelope corporal semiótico especial para este trabalho, uma vez<br />
que “Anzieu transforma o Eu-pele em uma superfície na qual se po<strong>de</strong>m gravar signos”<br />
(FONTANILLE, 2004a, p. 233). Uma tela que recebe as projeções psíquicas, sobre a<br />
qual os jogos <strong>de</strong> sombra (masoquismos, auto torturas, narcisismo etc.) po<strong>de</strong>m<br />
significar os estados interiores do sujeito. A partir disso, <strong>de</strong> uma maneira mais geral, o<br />
envelope corporal semiótico seria, assim, “uma „superfície <strong>de</strong> inscrição‟, uma interface<br />
entre os „conteúdos‟ <strong>de</strong> sentido e suas „expressões‟ 24 (FONTANILLE, 2004a, p.233).<br />
1.2 DE ENVELOPE CORPORAL A OBJETO SEMIÓTICO<br />
(...)também se muda <strong>de</strong> roupa sem trocar <strong>de</strong> pele. (ASSIS, 1994, p.79)<br />
Deixo, momentaneamente, Shinya e Masako usufruindo toda glamourosida<strong>de</strong><br />
para apresentar um outro corpo actante: Margarete, agora figurativizada nas linhas do<br />
poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, O gran<strong>de</strong> circo místico:<br />
(...) A filha <strong>de</strong> Lily Braun – a tatuada no ventre<br />
quis entrar para um convento,<br />
mas Oto Fre<strong>de</strong>rico Knieps não aten<strong>de</strong>u,<br />
e Margarete continuou a dinastia do circo<br />
<strong>de</strong> que tanto se tem ocupado a imprensa.<br />
Então, Margarete tatuou 25 o corpo<br />
sofrendo muito por amor <strong>de</strong> Deus,<br />
23 Font <strong>de</strong>s avatars du corps, en outre, le véritable creuset <strong>de</strong> la fonction sémiotique, et la manifestation<br />
concrète <strong>de</strong> la formation <strong>de</strong>s instances énonçantes.<br />
24 Anzieu, convertit le Moi-peau en une surface où <strong>de</strong>s signes peuvent être gravés, en un écran ou <strong>de</strong>s<br />
jeux d‟ombres peuvent être projetés, et signifier ainsi les états intérieurs du sujeit. C‟est, plus<br />
généralement, dans une perspective sémiotique, ce qui fait <strong>de</strong> l‟‟enveloppe‟ corporelle une véritable<br />
„surface d‟inscription‟, une interface entre les „contenus‟ <strong>de</strong> sens et les „expressions‟ dont elle a recueilli<br />
les traces.<br />
25 Utilizo este exemplo da tatuagem, porque, mesmo ela não sendo efêmera, o efeito é praticamente o<br />
mesmo que daria a surpresa <strong>de</strong> um corpo totalmente maquiado. A tatuagem, no caso, tem um efeito<br />
mais dramático e duradouro, mas isso não tira o fator didático para a compreensão da <strong>de</strong>finição<br />
<strong>de</strong>sejada.<br />
54
pois gravou em sua pele rósea<br />
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.<br />
E nenhum tigre a ofen<strong>de</strong>u jamais;<br />
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,<br />
quando ela entrava nua pela jaula a<strong>de</strong>ntro,<br />
chorava como um recém-nascido.<br />
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pô<strong>de</strong> amar,<br />
pois as gravuras sagradas afastavam<br />
a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le (LIMA, 2006, p. 133).<br />
Apesar <strong>de</strong> o exemplo partir <strong>de</strong> um enunciado escrito, com a concepção formal<br />
<strong>de</strong> actantes que ocupam posições formais presumidas e explícitas, diferentemente do<br />
discurso em ato, ele <strong>de</strong>ixa claro como se dá a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que possibilita<br />
transformar a pele - envelope corporal - em superfície <strong>de</strong> inscrição semiótica sobre a<br />
qual se po<strong>de</strong>m pintar enunciados. A enunciação é concebida por Greimas (2008), a<br />
partir <strong>de</strong> três operações: a <strong>de</strong>breagem, a embreagem e a convocação 26 . Vale lembrar<br />
que o primeiro ato semiótico é o da tomada <strong>de</strong> posição, e assim, ao enunciar uma<br />
posição, ela é dotada <strong>de</strong> uma presença (a materialida<strong>de</strong> corporal- carne <strong>de</strong><br />
Margarete). Quem opera o ato <strong>de</strong> enunciação é o corpo próprio (seu outro- Margarete<br />
tatuada), primeira forma assumida pelo actante da enunciação. Desse modo,<br />
Margarete, ao tatuar a sua própria “pele rósea”, a torna uma superfície <strong>de</strong> inscrição<br />
sobre a qual figura a “Via-Sacra do Senhor dos Passos”, o mundo sagrado com o qual<br />
ela quer entrar em conjunção. A <strong>de</strong>breagem, segundo ato fundador da instância do<br />
discurso, instala as condições para a realização do discurso <strong>de</strong> Margarete ao provocar<br />
a transição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> indizível, ou seja, virtual, a um discurso realizado: a<br />
passagem do <strong>de</strong>sejo proibido <strong>de</strong> Margarete <strong>de</strong> “querer entrar para um convento” ao ato<br />
enunciativo operado pela <strong>de</strong>breagem que permite gravar “em sua pele rósea a Via-<br />
Sacra do Senhor dos Passos”, proporcionando, assim, a projeção do que era próprio a<br />
Margarete, ou seja, o mundo sagrado. As gravuras inscritas sobre o corpo-próprio,<br />
envelope corporal, provocaram um confronto direto com o mundo do circo cujas<br />
reações foram: o eterno respeito do tigre, o choro do feroz leão Nero ao ver Margarete<br />
“nua pela jaula a<strong>de</strong>ntro” e a impossibilida<strong>de</strong> do seu esposo – o trapezista Ludwig -<br />
26 O conceito das operações <strong>de</strong> embreagem e <strong>de</strong> convocação não será utilizado neste trabalho. Verificar<br />
GREIMAS e COURTÉS, Dicionário <strong>de</strong> semiótica, 2008, p. 159 e FONTANILLE e ZILBERBERG, Tensão<br />
e significação, 2001, p. 200.<br />
55
po<strong>de</strong>r amá-la, já que “as gravuras sagradas afastavam a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le”.<br />
Margarete, por suposição, nesse momento, separava-se do mundo do circo e este se<br />
distanciava <strong>de</strong> Margarete 27 .<br />
A <strong>de</strong>breagem separa a simples presença da materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Margarete do<br />
discurso realizado <strong>de</strong> Margarete tatuada. Desse modo, Margarete tatuada po<strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>sdobrar em extensão e pluralizar o seu discurso que foi aberto, admitindo mais<br />
espaços e mais momentos, proporcionando, <strong>de</strong>sse modo, <strong>de</strong>slocamentos dos pontos<br />
<strong>de</strong> vista, dos jogos <strong>de</strong> memória. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, portanto, oferece ao<br />
envelope corporal a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter vários sentidos e assim ser um objeto<br />
semiótico.<br />
1.3 ENVELOPE SEU OUTRO-PELE: SUPORTE SENSÍVEL PARA INSCRIÇÕES DE<br />
UM SUJEITO NO MUNDO<br />
O que há <strong>de</strong> mais profundo no homem é a pele. Depois medula,<br />
cérebro, tudo o que é necessário para sentir, sofrer, pensar... ser<br />
profundo (...), são as invenções da pele!... Nós nos esforçamos em vão<br />
<strong>de</strong> nos aprofundar, doutor, nós somos... ecto<strong>de</strong>rma. (VALÉRY, 1960, p.<br />
215-216)<br />
O Eu pele seria, assim, o protótipo <strong>de</strong> todas as superfícies <strong>de</strong><br />
inscrição 28 (FONTANILLE, 2004a, p. 150).<br />
Quando Margarete “gravou em sua pele rósea a Via-Sacra do Senhor dos<br />
Passos”, ela projetou as sensações do seu encontro corporal com o mundo do circo e<br />
enunciou a sua dor e o seu mal-estar em relação ao meio circense e, ao mesmo<br />
tempo, revelou o seu prazer e bem-estar perante Deus. Essas eram as solicitações do<br />
mundo circense e as solicitações do eu <strong>de</strong> referência (carne) <strong>de</strong> Margarete<br />
intermediadas pela re<strong>de</strong> polissensorial e superficial do seu envelope corporal.<br />
27 Digo que é uma suposição para o recorte feito do poema. Na verda<strong>de</strong>, o autor do poema não permitiu<br />
que Margarete se afastasse do circo, pois nos versos seguintes escreve:<br />
Então, o boxeur Rudolf que era ateu<br />
e era homem fera <strong>de</strong>rrubou Margarete e a violou.<br />
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.<br />
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Gran<strong>de</strong> Circo Knieps. (LIMA, 2006, p. 134)<br />
28 Le Moi-peau serait donc le prototype <strong>de</strong> toutes les surfaces d‟inscription.<br />
56
O afeto negativo, <strong>de</strong>nso e obscuro <strong>de</strong> Margarete em relação ao meio circense<br />
tornava o seu envelope corporal também opaco, assim, ela inscreve os efeitos do<br />
sentir nos estados <strong>de</strong> coisas, viabilizado pela operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Fontanille<br />
(2008, p.174), baseado nas teorias <strong>de</strong> Marc Richir, explica que a opacida<strong>de</strong> corporal<br />
causada pelos acontecimentos afetivos propicia ao corpo uma existência atual e<br />
autônoma, resistente e cheia <strong>de</strong> obstáculos. O envelope corporal, então, tem a<br />
opacida<strong>de</strong> como proprieda<strong>de</strong> que o torna impermeável sob a forma <strong>de</strong> uma película<br />
resistente e visível. Apesar do limite imposto por ele às emoções e aos afetos, estes<br />
ainda são forças capazes <strong>de</strong> modificá-lo. A modificação dos envelopes das coisas e<br />
do mundo só po<strong>de</strong> ser realizada pelo envelope corporal la<strong>de</strong>ado pela carne<br />
movimento; ele repleto <strong>de</strong> afetos e energia e ela possuidora da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> projeção<br />
sobre os estados <strong>de</strong> coisas.<br />
Contudo, vale ressaltar que, diante da característica do envelope corporal <strong>de</strong><br />
interface entre o Eu <strong>de</strong> referência e o outro, Fontanille modifica, para o envelope<br />
semiótico, a nomenclatura Eu-pele, adotada por Anzieu, na psicanálise.<br />
“O envelope possui, literalmente, o estatuto <strong>de</strong> um “eu-mesmo como<br />
outro”, quer dizer, segundo Ricoeur, <strong>de</strong> um Soi. Não seguiremos, pois,<br />
os psicanalistas, que i<strong>de</strong>ntificam o „envelope‟ com o Eu: o eu-pele será<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> já para nós o Soi-pele” 29 (FONTANILLE, 2004a, p. 143) .<br />
A pele, maior órgão do corpo humano, é o que <strong>de</strong>termina o limite do corpo com<br />
o meio externo (Eu e o Seu Outro). É formada por três camadas: uma, mais externa e<br />
responsável pela proteção da camada sensível (nervos e tato), é chamada <strong>de</strong><br />
epi<strong>de</strong>rme; <strong>de</strong>pois a <strong>de</strong>rme e a parte mais profunda, a hipo<strong>de</strong>rme. É na pele que se<br />
observam as seguintes funções orgânicas: 1- sustentação do esqueleto e dos<br />
músculos; 2- cobertura total da superfície do corpo no qual se inserem os sentidos<br />
externos; 3- proteção da camada sensível e do organismo; 4 – proteção da<br />
individualida<strong>de</strong> celular; 5- hospedagem dos órgãos <strong>de</strong> sentido (exceto o tato, que está<br />
na epi<strong>de</strong>rme); 6- Investimento libidinal; 7- estimulação do tônus sensório-motor; 8-<br />
fornecimento <strong>de</strong> informações sobre o mundo exterior (calor, frio, pressão, dor e tato); 9-<br />
auto<strong>de</strong>struição. A essas funções orgânicas, Anzieu faz uma correspondência às<br />
29 L‟enveloppe a donc, littéralement, le statut d‟un „moi-même comme un autre‟, c‟est-à-dire, selon<br />
Ricoeur, un „Soi‟. Nous ne suivrons donc pas les psychanalystes,qui i<strong>de</strong>ntifient l‟‟enveloppe‟ au „Moi‟: le<br />
moi-peau sera désormais pour nous un Soi-peau.<br />
57
funções do Eu-Pele: 1- Manutenção do psiquismo; 2– continente; 3– Para-excitação;<br />
4– Individuação do self; 5- inter-sensorialida<strong>de</strong>; 6- sustentação da excitação sexual; 7-<br />
recarga libidinal; 8- inscrição dos traços sensoriais; 9- auto<strong>de</strong>struição.<br />
As funções orgânicas do Eu-pele reafirmam a relação fronteiriça do Eu e o<br />
mundo. Seria por meio dos orifícios da pele, entre eles, os poros, que ela segue por<br />
<strong>de</strong>ntro do corpo, ligando as suas áreas externa e interna. E é na parte interna do corpo<br />
que o ser humano é semelhante, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando, obviamente, o funcionamento<br />
metabólico e o código genético (PIRES, 2005, p. 106). Externamente, é na pele que<br />
estão estampadas a pluralida<strong>de</strong> cultural e étnica, as misturas, a miscigenação <strong>de</strong><br />
raças, além <strong>de</strong> ser superfície para novas inscrições: “peles são preciosas máscaras<br />
contadoras <strong>de</strong> histórias” (CAMPELO, 1996, p. 96). O corpo, na parte interna, é uma<br />
estrutura com matérias e funções, e, na externa, um envelope por meio do qual se<br />
comunica com o entorno, com o mundo. O entorno, o tempo e a socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />
modificar esse envelope corporal, a película <strong>de</strong> superfície.<br />
Essa modificação, como pensa Fontanille (2004a, p. 246), ten<strong>de</strong> a proteger a<br />
estrutura interior contra as tensões, agressões, pressões do exterior. Além da função<br />
<strong>de</strong> recepção dos estímulos e excitações exteriores, o envelope corporal (físico ou<br />
psíquico) cumpre também os papéis <strong>de</strong> adaptação e modificação da superfície e <strong>de</strong><br />
proteção. Indo mais adiante, Fontanille (2004a, p.246) explica que é com o intuito <strong>de</strong><br />
um efeito persuasivo 30 e emblemático do corpo, centralizado pelo envelope, que ele<br />
comunica e torna significativa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> preservada, em harmonia ou em<br />
dissonância com um <strong>de</strong>terminado meio social.<br />
Michel Serres (2001, p. 66), assim como Anzieu, acredita que a pele é como se<br />
fosse um mapa; é história <strong>de</strong> cicatrizes, <strong>de</strong> marcas, <strong>de</strong> pistas lançadas em sua<br />
superfície que alguns tentam escon<strong>de</strong>r e outros exibem como se fossem livros abertos.<br />
As cicatrizes e as marcas na pele, como pensa Jeudy, são como sinais in<strong>de</strong>strutíveis<br />
<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>gradação física e natural que se quer escon<strong>de</strong>r. Já as escarificações 31 (Fig.<br />
2) e as tatuagens realizadas artificialmente são expostas aos olhos <strong>de</strong> todos. Ao<br />
30<br />
As questões sobre o efeito persuasivo serão aprofundadas no capítulo 3, tópico 3.1 O FASCÍNIO<br />
PERSUASIVO.<br />
31<br />
Escarificações: “produção <strong>de</strong> pequenas incisões simultâneas e superficiais na pele“. (FERREIRA,<br />
1999, p. 794)<br />
58
pensar nas marcas corporais como uma forma <strong>de</strong><br />
expressão do indivíduo em relação ao mundo,<br />
vemos que isso somente po<strong>de</strong>ria acontecer sobre<br />
o envelope corporal que <strong>de</strong>limita esses dois<br />
espaços.<br />
A sensibilida<strong>de</strong>, alerta aberta a<br />
todas as mensagens, ocupa<br />
mais a pele que o olho, a boca<br />
ou a orelha...Os órgãos dos<br />
sentidos acontecem aí quando<br />
ela se faz doce e fina, ultrareceptiva.<br />
Em alguns lugares,<br />
em locais <strong>de</strong>terminados, ela se<br />
rarefaz até a transparência,<br />
abre-se, esten<strong>de</strong>-se até a<br />
vibração, torna-se olhar, ouvido,<br />
olfato, paladar... Os órgãos dos<br />
sentidos variam estranhamente<br />
a pele, ela própria variável<br />
fundamental, sensorium<br />
commune: sentido comum a<br />
todos os sentidos, que serve <strong>de</strong><br />
elo, ponte, passagem entre Figura 2: Escarificações em uma mulher da<br />
eles, plano banal, pare<strong>de</strong>-meia, tribo Nuba. Fonte: GRÖNING, 1998, p. 135.<br />
coletiva, partilhada(...)<br />
A pele irradia seu feixe, revela sua <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sabrocha, expõe<br />
as coisas que os sentidos põem em um lugar centralizado, dilui e<br />
dissolve. A planície é feita das areias que rolam <strong>de</strong> cada montanha, o<br />
leito dos rios, como o rosto, é feito da erosão das lágrimas e das rugas<br />
do riso. Nosso amplo e longo invólucro variável ouve muito, vê pouco,<br />
aspira secretamente os perfumes, estremece sempre, ao ruído, à<br />
luminosida<strong>de</strong> forte, ao fedor, recua <strong>de</strong> pavor, retrai-se ou exulta. Freme<br />
diante do branco e das notas altas, <strong>de</strong>sliza suave, a qualquer carícia.<br />
As coisas nos banham dos pés à cabeça, a luz, a escuridão, os<br />
clamores, o silêncio, as fragrâncias, toda sorte <strong>de</strong> ondas impregnam,<br />
inundam a pele. Não estamos embarcados a <strong>de</strong>z pés <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>,<br />
mas mergulhados. (SERRES, 2001, p. 66)<br />
E é exatamente do encontro sensível entre o corpo e o mundo, como está<br />
relatado no texto <strong>de</strong> Serres, que nascem as sensações. As lágrimas e os risos, o<br />
pavor e as carícias, os prazeres e as dores, o bem-estar e o mal-estar, como os <strong>de</strong><br />
Margarete, que po<strong>de</strong>m ser afetos (positivos ou negativos) que se acumulam, que<br />
inva<strong>de</strong>m e enchem o corpo e que Fontanille tem a impressão “<strong>de</strong> que só po<strong>de</strong>m ser<br />
sentidos e pensados a partir da metáfora do continente: tudo ocorre como se os afetos<br />
59
atualizassem um envelope que contivesse um conteúdo mais ou menos saturado” 32<br />
(2004a, p.128).<br />
Assim como Margarete, no poema <strong>de</strong> Lima, ou como Shinya e Masako, na<br />
fotografia <strong>de</strong> Kei Ogata, ou, ainda, como qualquer um <strong>de</strong> nós, sujeitos corpos actantes,<br />
que, ao aplicar uma base, um corretivo, sombras, opacas ou cintilantes, ao utilizar as<br />
cores e brilhos, fazemos do nosso corpo e dos envelopes corporais superfícies <strong>de</strong><br />
inscrição para enunciar o mundo, ou os mundos, que nos afetam e aos quais afetamos.<br />
Ou ainda, o mundo com seus movimentos e variados envelopes que acabam por<br />
capturar e seduzir corpos actantes que procuram a<strong>de</strong>quar seus envelopes corporais,<br />
dando-lhes novas cores para conquistar <strong>de</strong>finitivamente o meio que os envolveu. Mais<br />
ainda, corpos actantes que, no intuito <strong>de</strong> preservar o que lhes é próprio, reagem e<br />
utilizam a superfície <strong>de</strong> inscrição para aplicar cores chocantes, formas escandalosas e,<br />
<strong>de</strong>sse modo, mostrar o mal-estar que lhes causam <strong>de</strong>terminados meios sociais.<br />
Fontanille (2004a, p. 129) afirma que o diálogo semiótico ininterrupto, as trocas<br />
tensivas e tímicas entre o sujeito e o mundo são traduzidos corporalmente e<br />
figurativamente pela tensão e pela dialética entre os movimentos da carne e o<br />
envelope corporal. O que faz, sem dúvida alguma, do envelope corporal Seu Outro-<br />
pele/superfície <strong>de</strong> inscrição um suporte sensível no qual se projetam em figuras o estar<br />
no mundo <strong>de</strong> um sujeito corpo actante.<br />
1.4 ENTRE SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO E SUPORTE DE ENUNCIAÇÕES<br />
O Eu-pele exerce uma função <strong>de</strong> inscrição dos traços sensoriais táteis,<br />
função <strong>de</strong> pictograma (...), <strong>de</strong> escudo <strong>de</strong> Perseu enviando(...) uma<br />
imagem da realida<strong>de</strong> em espelho. O Eu-pele é o pergaminho originário<br />
que conserva à maneira <strong>de</strong> um palimpsesto, os rascunhos rasurados,<br />
riscados, reescritos <strong>de</strong> uma escrita „originária‟ pré-verbal feita <strong>de</strong> traços<br />
cutâneos (ANZIEU, 1989, p. 120)<br />
Por meio da superfície <strong>de</strong> inscrição, Margarete entra em contato com o sagrado<br />
e, ao mesmo tempo, separa-se do mundo circense. “As gravuras sagradas afastavam<br />
32 Elles semblent ne pouvoir être senties et pensées qu‟à partir <strong>de</strong> la métaphore du „contenant‟: tout se<br />
passe comme si les „affections‟ actualisaient une „enveloppe‟ qui contiendrait un contenu plus ou moins<br />
saturé.<br />
60
a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le”. Assim, acontece o <strong>de</strong>frontamento direto do envelope do<br />
mundo circense com o envelope do Eu <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> Margarete. A superfície <strong>de</strong><br />
inscrição é, portanto, capaz <strong>de</strong> separar e <strong>de</strong> contatar as fronteiras <strong>de</strong> mundos<br />
diferentes, conforme revela Anzieu:<br />
A tela do pintor, a página branca do poeta, as folhas pautadas do<br />
compositor, o cenário ou o terreno <strong>de</strong> que dispõem o dançarino ou o<br />
arquiteto, e evi<strong>de</strong>ntemente o rolo <strong>de</strong> filme, a tela cinematográfica,<br />
materializam, simbolizam e reavivam essa experiência da fronteira entre<br />
dois corpos em simbiose como superfícies <strong>de</strong> inscrição, com seu<br />
caráter paradoxal - que volta a se encontrar na obra <strong>de</strong> arte, <strong>de</strong> ser ao<br />
mesmo tempo uma superfície <strong>de</strong> separação e uma superfície <strong>de</strong><br />
contatos (ANZIEU, 1993, p. 82) 33<br />
O enigma do envelope corporal está em ter, simultaneamente, um dorso, que<br />
abriga um conteúdo, e uma face, na qual se inscrevem expressões. Se Margarete<br />
estivesse em conjunção com o mundo do circo, ela inscreveria em sua face cores vivas<br />
e luminosas, ainda assim a superfície <strong>de</strong> inscrição a separaria dos outros mundos que<br />
não lhe fossem próprios. Contudo, ela projeta sobre a superfície o seu eu <strong>de</strong><br />
referência, fazendo com que a superfície <strong>de</strong> inscrição a separe do circo. A superfície,<br />
para Anzieu (1993, p. 82), constitui uma barreira protetora da autonomia interna e da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e, pelo outro lado, ela filtra seletivamente os intercâmbios entre o<br />
interior e o exterior, sobre a qual são inscritas as excitações. Fontanille, então, atribui<br />
ao envelope o caráter <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira interface semiótica, uma vez que “<strong>de</strong> um lado, o<br />
envelope “contém” os conteúdos, <strong>de</strong> outro „inscreve‟ as expressões” (2004b, p.107).<br />
Seria pela mediação do envelope e das inscrições que a semiose po<strong>de</strong> ser efetuada<br />
<strong>de</strong> maneira não formal, ou seja: o Seu Outro -envelope “é o operador corporal da<br />
reunião do plano do conteúdo e do plano da expressão e, <strong>de</strong>ssa vez, o contato entre<br />
os corpos, a contigüida<strong>de</strong> entre a carne e seu envelope basta à operação”<br />
(FONTANILLE, 2004b, p. 107).<br />
33 As traduções do espanhol foram feitas por Mônica Ferreira Magalhães. Em rodapé será transcrito o<br />
trecho original: La tela <strong>de</strong>l pintor, la página blanca <strong>de</strong>l poeta, las hojas pautadas <strong>de</strong>l compositor, el<br />
escenario o el terreno <strong>de</strong>l que disponen el bailarín o el arquitecto, y evi<strong>de</strong>ntemente el rollo <strong>de</strong> película, la<br />
pantalla cinematográfica, materializan, simbolizan y reavivan esa experiencia <strong>de</strong> la frontera entre los dos<br />
cuerpos en simbiosis como superficie <strong>de</strong> inscripciones, con su carácter paradójico – que vuelve a<br />
encontrarse en la obra <strong>de</strong> arte – <strong>de</strong> ser a la vez una superficie <strong>de</strong> separación y una superficie <strong>de</strong><br />
contactos.<br />
61
A função <strong>de</strong> inscrição permite abraçar o princípio da constituição do Eu e do Seu<br />
Outro e o princípio da produção semiótica, em especial a artística. E é exatamente por<br />
isso que Fontanille consi<strong>de</strong>ra o Eu-pele como o protótipo carnal <strong>de</strong> todas as superfícies<br />
<strong>de</strong> inscrição (2004a, p. 149-150). Cabe lembrar, então, conforme observa Fontanille,<br />
que:<br />
A dissociação do protoactante <strong>de</strong> substrato em um Eu <strong>de</strong> referência e<br />
em um Soi [Seu Outro] em construção permite dar um conteúdo não<br />
formal à noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, e compreen<strong>de</strong>r ao mesmo tempo porque<br />
a <strong>de</strong>breagem induz automaticamente a efeitos <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
coerência e <strong>de</strong> incoerência: o Soi <strong>de</strong>breado está feito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
múltiplas, transitórias e sucessivas, cuja reunião em uma só i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
actancial, em forma <strong>de</strong> papéis, por exemplo, é precisamente a questão<br />
a ser tratada no <strong>de</strong>vir narrativo do actante 34 . (2004a, p.27- 28).<br />
Desacelerar, inverter e modificar são as operações aptas para transformar o<br />
envelope: o recurso da relação <strong>de</strong> englobamento apoia a <strong>de</strong>saceleração; o interno e o<br />
externo são passíveis <strong>de</strong> inversão; a natureza e a forma da superfície po<strong>de</strong>m ser<br />
modificadas.<br />
1.4.1 Proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base, funções e oscilação dos modos <strong>de</strong> presença dos<br />
envelopes corporais<br />
O envelope corporal <strong>de</strong> um actante encarnado é um espaço topológico contínuo<br />
e maciço, contudo, ao enunciar suas novas posições por meio da operação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>breagem, essas proprieda<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser mantidas e ressaltadas ou po<strong>de</strong>m ser<br />
alteradas, invertidas ou <strong>de</strong>formadas, proporcionando, <strong>de</strong>sse modo, a atuação do<br />
envelope corporal como superfície <strong>de</strong> inscrição e suporte e, às vezes, visível ou<br />
virtualmente distanciado em uma enunciação. Essas transformações dos envelopes<br />
corporais fazem com que a percepção das suas presenças em um campo perceptivo<br />
oscile entre os dois gradientes da tonicida<strong>de</strong> perceptiva: o foco e a apreensão nos<br />
34 La dissociation du proto-actant substrat en un Moi <strong>de</strong> référence et un Soi en construction permet <strong>de</strong><br />
donner un contenu non-formel à la notion <strong>de</strong> débrayage, et en même temps <strong>de</strong> compren<strong>de</strong> pourquoi le<br />
débrayage induit automatiquement <strong>de</strong>s effets <strong>de</strong> pluralité, <strong>de</strong> cohérence et d‟incohérence: le Soi débrayé<br />
est fait d‟i<strong>de</strong>ntités multiples, transitoires et successives, dont la réunion en une seule i<strong>de</strong>ntité actantielle,<br />
sous forme <strong>de</strong> „rôles‟, par exemple, est justement la question à traiter dans le <strong>de</strong>venir narratif <strong>de</strong> l‟actant.<br />
62
eixos da intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong>, respectivamente.<br />
O campo <strong>de</strong> presença perceptivo fenomenológico se baseia na “interpretação<br />
do par presença/ausência em termos <strong>de</strong> operações (aparecimento/<strong>de</strong>saparecimento)”<br />
(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.123). Tanto para a fenomenologia quanto para<br />
a semiótica, a presença, além <strong>de</strong> ser o primeiro modo <strong>de</strong> existência da significação,<br />
<strong>de</strong>ve sempre conquistar a plenitu<strong>de</strong>.<br />
O esquema do campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> um envelope corporal como superfície <strong>de</strong><br />
inscrição ou como suporte, avançado ou recuado, irá variar conforme o grau <strong>de</strong> recuo<br />
(ausência virtualizada) ou avanço (presença) do corpo durante o ato enunciativo. De<br />
todo modo, há uma correlação divergente 35 na interação entre o sensível (a intensida<strong>de</strong>,<br />
o afeto) e o inteligível (o <strong>de</strong>sdobramento na extensão, o mensurável, a compreensão)<br />
no campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> um envelope corporal <strong>de</strong>formado, cujos esquemas tensivos<br />
po<strong>de</strong>rão ser <strong>de</strong> ascendência ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência (Fontanille, 2007, p.109). Desse modo,<br />
os enca<strong>de</strong>amentos e as sobreposições <strong>de</strong> atos conjugam as oscilações entre as<br />
dimensões da intensida<strong>de</strong> (sensível) e da extensão (inteligível), conforme esquema<br />
tensivo número 3.<br />
Eixo da<br />
Intensida<strong>de</strong><br />
Operação:<br />
Foco<br />
Avanço/Presença do<br />
Envelope Corporal<br />
Força<br />
+<br />
-<br />
-<br />
Eixo da Extensida<strong>de</strong> +<br />
Operação: apreensão<br />
Recuo/Ausência Virtualizada do Envelope<br />
Corporal<br />
Formas<br />
35 Ver tópico 1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do corpo<br />
próprio. Utilizo as nomenclaturas para as correlações e para os esquemas propostas por Fontanille nos<br />
livros Soma et Séma; figures du corps, 2004a, p.36 e Semiótica do Discurso, 2007, p. 111-112.<br />
63
A partir das explicações <strong>de</strong> Fontanille (2007, p.111), po<strong>de</strong>-se dizer que no<br />
esquema <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência ocorre uma diminuição da intensida<strong>de</strong> da presença do<br />
envelope corporal, isto é, a ausência virtual ou recuo do suporte corporal, que, ao ser<br />
combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da extensão (compreensão do enunciado pintado),<br />
produz um relaxamento cognitivo. Já no esquema <strong>de</strong> ascendência, há o aumento da<br />
intensida<strong>de</strong> da presença do envelope corporal, que, combinado com a redução da<br />
extensão (inteligível), produz uma tensão afetiva. Essa classificação dos esquemas<br />
<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes e ascen<strong>de</strong>ntes, uma oscilação entre a força e as formas, se torna nesta<br />
investigação uma maneira <strong>de</strong> representar como se dá a percepção <strong>de</strong> um corpo<br />
maquiado.<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que Fontanille (2004a), ao <strong>de</strong>senvolver as proprieda<strong>de</strong>s do<br />
envelope corporal e as subsequentes transformações operadas pela <strong>de</strong>breagem, se<br />
baseou nos modos <strong>de</strong> presença do actante e nas proprieda<strong>de</strong>s do envelope psíquico<br />
<strong>de</strong>senvolvidas por Anzieu. Desse modo, tomando por base um mo<strong>de</strong>lo referente às<br />
roupas, sugerido por Fontanille, penso, então, em relação a uma inscrição efêmera<br />
sobre a superfície da pele: a maquiagem, seja ela uma simples técnica ou uma arte<br />
complexa e autônoma, por meio da qual é possível realizar diversas inscrições sobre<br />
um mesmo envelope corporal e, por conseguinte, enunciar diferentes Seus Outros. Ela<br />
consente que um sujeito actante encarnado se insira, ativamente ou passivamente, em<br />
diversos mundos, pois ela é a responsável pela preparação da superfície <strong>de</strong> inscrição<br />
<strong>de</strong> acordo com a hexis corporal <strong>de</strong>sejada ou imposta ao indivíduo. Além do mais, a<br />
maquiagem permite expressar os afetos, positivos ou negativos, em relação ao meio<br />
social, enunciando, <strong>de</strong>sse modo, o que é próprio e o que não é próprio a um sujeito.<br />
Fontanille (2004a, p. 150) relaciona as ações e transformações que<br />
caracterizam concretamente a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem e que se referem precisamente<br />
às proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base do envelope corporal e seguem aqui adaptadas para a<br />
maquiagem:<br />
- Conexão: a maquiagem aplicada sobre a superfície <strong>de</strong> inscrição po<strong>de</strong> reforçar e<br />
realçar a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal, <strong>de</strong>ixando-o como um todo<br />
único e contínuo; a maquiagem também po<strong>de</strong> ser uma inscrição segmentada, dividindo<br />
coor<strong>de</strong>nadamente ou disjuntamente o envelope corporal que aparentaria estar<br />
64
segmentado. Portanto, a maquiagem, durante o ato enunciativo, ao reforçar a<br />
proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal estaria confortando-o, do contrário,<br />
quando aparece segmentada, estaria comprometendo a conexão <strong>de</strong> um envelope<br />
corporal.<br />
- Compactação: a maquiagem, por meio <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s, elemento supérfluo<br />
e inesperado, se ajusta ao corpo assumindo, <strong>de</strong>sse modo, a característica <strong>de</strong><br />
compactação do envelope corporal; no entanto, quando provoca espaços vazios, por<br />
meio <strong>de</strong> cores intensas, <strong>de</strong>spreza essa proprieda<strong>de</strong> corporal, provocando a ilusão <strong>de</strong><br />
um envelope corporal oco. Ao criar espaços vazios, a pintura corporal, então, não<br />
mostraria mais que uma cara, ocultaria o corpo, revelando, <strong>de</strong>sse modo, a cara interior<br />
do envelope corporal.<br />
- Interface <strong>de</strong> triagem: por meio da maquiagem po<strong>de</strong>-se regularizar e polarizar os<br />
intercâmbios entre o que é próprio e não próprio ao sujeito, ou o que é próprio e não<br />
próprio ao meio social <strong>de</strong> referência, <strong>de</strong>sse modo ela funciona como uma separação<br />
entre próprio e não próprio.<br />
- marca: por instrumentalização das inscrições que, nesta investigação, se adéqua<br />
melhor às marcas <strong>de</strong>finitivas, como tatuagens, escarificações e aplicação <strong>de</strong> piercings.<br />
Cabe ressaltar que, conforme explicam Zilberberg e Fontanille (2001, p. 200), a<br />
proprieda<strong>de</strong> pluralizante da <strong>de</strong>breagem é uma espécie <strong>de</strong> dissociação da pessoa e da<br />
não pessoa, ou do Eu e dos Seus Outros, ou seja, a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não pessoas, <strong>de</strong><br />
Seus Outros. Os autores lembram que a pessoa subjetiva po<strong>de</strong> ser singular ou<br />
massiva (nós) e coletiva. A <strong>de</strong>breagem, então, adquire forma ao modificar as<br />
proprieda<strong>de</strong>s figurativas do envelope. Como a inscrição é <strong>de</strong> suma importância para o<br />
princípio <strong>de</strong> produção semiótica, em especial da artística, exemplificarei, as ações e<br />
transformações do envelope corporal, operadas pela <strong>de</strong>breagem e as oscilações no<br />
modo <strong>de</strong> presença, em sua maioria, a partir da pintura corporal artística.<br />
65
1.4.1.1 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão: <strong>de</strong>formação do envelope ou pluralização do<br />
enunciado.<br />
Figura 3: De Julio Larraz (Cuba) – Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo.<br />
Neste exemplo (Fig. 3), vemos o simulacro <strong>de</strong> uma paisagem montanhosa<br />
constituída por partes <strong>de</strong> corpos humanos pintados, que, ao primeiro olhar, são<br />
imperceptíveis e talvez nem fossem percebidos como tal se a fotografia não fizesse<br />
parte <strong>de</strong> uma exposição relacionada a corpos pintados. Esse tipo <strong>de</strong> figuração realista<br />
<strong>de</strong> uma paisagem aérea é uma característica do autor da obra, Júlio Larraz.<br />
66
No plano da expressão <strong>de</strong>stacam-se quatro planos cromáticos. No primeiro<br />
plano revela-se a cor ver<strong>de</strong> texturizada com argila, que se sobressai sobre o dorso e<br />
parte do quadril <strong>de</strong> um envelope corporal na posição horizontal, dando a sensação <strong>de</strong><br />
proximida<strong>de</strong> com o observador. O segundo plano cromático é composto por dois<br />
corpos justapostos na posição horizontal, dos quais são mostrados apenas a região<br />
glútea do primeiro e o glúteo e dorso do segundo. A aplicação da cor ver<strong>de</strong> é mesclada<br />
com tons amarelos. A iluminação interfere diretamente ao <strong>de</strong>stacar os pontos mais<br />
elevados, da mesma maneira como a luz natural do sol ilumina os topos das<br />
montanhas naturais. Sobre os três primeiros corpos, coor<strong>de</strong>nados nesses dois planos,<br />
são distribuídos irregularmente pontos escuros que remetem a pequenos aci<strong>de</strong>ntes<br />
geográficos ou arbustos e vegetação.<br />
O terceiro plano cromático é composto por um único envelope corporal cuja<br />
parte <strong>de</strong>stacada parece ser um ventre volumoso. A tonalida<strong>de</strong> ver<strong>de</strong> já é mais<br />
dissipada, ce<strong>de</strong> lugar a uma tonalida<strong>de</strong> mais ocre, com menos niti<strong>de</strong>z. O quarto e<br />
último plano cromático é escuro, o infinito.<br />
Os envelopes corporais fracionados funcionam <strong>de</strong> modo articulado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
uma totalida<strong>de</strong> que é a paisagem montanhosa, mas a noção da unida<strong>de</strong> corporal se<br />
afasta, comprometendo a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal. A <strong>de</strong>formação<br />
do envelope provocada pelo processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem promove um recuo do corpo, que<br />
se torna um suporte invisível. Não há a mínima presença da carne humana <strong>de</strong><br />
referência, e o que sobressai é o corpo-próprio montanhoso. Mais que superfície <strong>de</strong><br />
inscrição, o envelope corporal é, neste exemplo, uma presença virtualizada, a fim <strong>de</strong><br />
que possa criar uma ilusão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> da paisagem. Ao ser <strong>de</strong>formado, o envelope<br />
corporal, diminui a sua participação em ato e pluraliza partes autônomas que se<br />
ajustam harmonicamente em novos enunciados e novos espaços topológicos.<br />
O campo <strong>de</strong> presença dos envelopes corporais montanhosos <strong>de</strong>sses actantes<br />
encarnados se movimenta em uma correlação divergente num esquema <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cadência: como a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal está comprometida<br />
pela inscrição, <strong>de</strong>formando o corpo, então a sua presença passa a ser distribuída, no<br />
eixo da intensida<strong>de</strong>, e dividida, no eixo da extensida<strong>de</strong>. Ocorre uma distensão<br />
provocada pelo recuo (ausência virtual) do envelope corporal, <strong>de</strong>ixando, <strong>de</strong>sse modo, o<br />
67
foco distribuído no eixo da intensida<strong>de</strong>, o que gera a pluralização e a divisão no<br />
gradiente da extensão. Há, portanto, uma “diminuição das tensões a seu<br />
fracionamento, e a morfologia associada é a que resulta da cisão, geradora do dividido”<br />
(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.137). Ao refutar a conexão, a articulação que<br />
a pintura corporal e o corte fotográfico provocam no envelope corporal ajuda na<br />
distensão que leva à virtualização da intensida<strong>de</strong> corporal.<br />
A imagem que Iregui (Fig. 4) produz também ameaça a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão<br />
do envelope corporal. Há somente<br />
um plano cromático e o corpo<br />
aparece irregularmente dividido<br />
pela única cor uniforme que se<br />
mistura ao fundo. O corpo é uma<br />
superfície <strong>de</strong> inscrição da<br />
figuração, enquanto o fundo é uma<br />
realida<strong>de</strong>. O movimento perceptível<br />
do corpo parece tentar inutilmente<br />
<strong>de</strong>scolá-lo <strong>de</strong>sse fundo branco.<br />
Aqui também há uma<br />
fragmentação do corpo que, como<br />
suporte, não está tão recuado<br />
quanto os corpos do exemplo<br />
anterior (Fig. 3), entretanto,<br />
também não se percebe um<br />
envelope corporal contínuo, e, sim,<br />
pedaços <strong>de</strong> um envelope corporal<br />
repartido. Há pontos em que não<br />
existe nenhuma separação com o<br />
fundo e esses pontos <strong>de</strong><br />
invisibilida<strong>de</strong> do envelope corporal<br />
é que dão a sensação da<br />
fragmentação total da unida<strong>de</strong><br />
Figura 4: De Jaime Iregui (Colombia).<br />
68<br />
Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo
corporal. A opacida<strong>de</strong> da cor que fragmenta o envelope e se mescla ao fundo,<br />
também, tenta fazer com que se esqueça da presença do suporte que ainda resiste,<br />
assim como a carne <strong>de</strong> referência sensoriomotriz que tentar resistir às pressões e<br />
tensões do mundo, tal qual Margarete, do poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, que se atira em<br />
direção ao mundo sagrado na tentativa <strong>de</strong> se libertar do mundo circense que não lhe<br />
era próprio. No entanto, apesar da resistência do envelope suporte <strong>de</strong> inscrição, sua<br />
proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão está ameaçada, uma vez que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />
modifica a envoltura por <strong>de</strong>formação, já que o corpo aparece disperso e a enunciação<br />
não mantém a unida<strong>de</strong> corporal.<br />
Do mesmo modo que o exemplo anterior (Fig.3), o campo <strong>de</strong> presença do<br />
envelope corporal <strong>de</strong>ste exemplo (Fig.4) se <strong>de</strong>sloca em uma correlação divergente<br />
num esquema <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência. Apesar da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope<br />
corporal da figura 4 não estar tão comprometida pela inscrição como no primeiro<br />
exemplo, ainda assim há uma <strong>de</strong>sfiguração corporal. Por esse motivo, a sua presença<br />
também é distribuída, mesmo que em um grau menor que no exemplo anterior (Fig. 3),<br />
no eixo da intensida<strong>de</strong>, e dividida, no eixo da extensida<strong>de</strong>. A maneira como a pintura<br />
se pronuncia sobre o envelope corporal promove um certo afastamento do seu suporte<br />
e, portanto, o foco fica também distribuído no eixo da intensida<strong>de</strong> causando a divisão<br />
no gradiente da extensão. O esquema tensivo é o mesmo para os dois exemplos (Figs.<br />
3 e 4), como é <strong>de</strong>monstrado no esquema número 4:<br />
Concentrado<br />
INT<br />
Distribuído<br />
EXT<br />
Massivo Dividido<br />
69
Figura 5: De JOS BRANDS. Fonte: BRANDS, Jos - Airbrush and makeup, 2000.<br />
Figura 6: Estudo <strong>de</strong> Desnudo.Fonte: GAIR, Joanne. Arte en el Cuerpo, 2006.<br />
Nos dois exemplos acima aparecem o conforto da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do<br />
envelope corporal. No exemplo à esquerda, uma pintura <strong>de</strong> Brands (Fig. 5) feita com<br />
airbrush 36 , a unida<strong>de</strong> da superfície <strong>de</strong> inscrição está envolta pela cor azul, contudo, não<br />
há planos cromáticos, mas um perfeito jogo <strong>de</strong> luzes e sombras em uma fusão <strong>de</strong> tons<br />
que ressalta a musculatura do corpo do rapaz, preservando, <strong>de</strong>sse modo, a unida<strong>de</strong> do<br />
36 O airbrush (aerógrafo) é uma pequena pistola operada por ar que pulveriza vários tipos <strong>de</strong> tintas e<br />
corantes por um processo <strong>de</strong> atomização. Esse aparelho foi inventado por Charles Burdick, em 1893,<br />
para pintar aquarelas na intenção <strong>de</strong> ser um meio mais rápido e eficiente para aplicar a tinta sobre<br />
diversas superfícies. A aplicação <strong>de</strong> maquiagem com o airbrush vem sendo utilizada nos últimos anos<br />
em todos os tipos <strong>de</strong> maquiagem (beleza, efeitos especiais, cinema, pintura corporal, cobertura <strong>de</strong><br />
tatuagens e, principalmente, na HDTV) <strong>de</strong>vido ao seu acabamento impecável sobre a pele.<br />
70
envelope corporal. O suporte corporal está presente e tem volumes e <strong>de</strong>pressões<br />
valorizados, permitindo um acúmulo da função <strong>de</strong> inscrição e <strong>de</strong> figuração. Esse corpo<br />
sobre o qual são aplicadas cores também é mais um grafite da pare<strong>de</strong>.<br />
A obra <strong>de</strong> Gair (Fig. 6), exemplo da direita, preserva a conexão do envelope<br />
corporal que é apresentado completamente envolto por uma calda <strong>de</strong> chocolate, que<br />
começa a invadir também o rosto da mo<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong>ixando-se supor que ele também será<br />
todo coberto. A unida<strong>de</strong> corporal, nesse momento, está completamente resguardada,<br />
contudo, o enunciado leva a crer que o envelope corporal po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>rreter como o<br />
chocolate, já que a calda escorre em longos fios pelos braços. Os volumes e as<br />
<strong>de</strong>pressões do corpo não são ressaltados como na pintura <strong>de</strong> Brands (Fig. 5), o que<br />
favorece a ligação do envelope, porém percebem-se todos os contornos do esbelto<br />
corpo da mo<strong>de</strong>lo por causa do contraste com o fundo claro. Da mesma forma que nos<br />
dois primeiros exemplos (Figs. 3 e 4), nos quais a fragmentação dos envelopes<br />
corporais apresenta graus diferenciados, a conexão <strong>de</strong>stes dois envelopes (Figs. 5 e<br />
6) também exibe graus distintos, uma vez que os músculos ressaltados do rapaz (Fig.<br />
5) po<strong>de</strong>m remeter a uma divisão se comparados com a envoltura criada pela calda <strong>de</strong><br />
chocolate que envolve todo o corpo da moça (Fig. 6). A <strong>de</strong>breagem, <strong>de</strong>sse modo,<br />
conserva intacta a conexida<strong>de</strong> do envelope corporal que se transforma em uma<br />
superfície <strong>de</strong> inscrição cuja enunciação mantém a unida<strong>de</strong> do corpo.<br />
Desse modo, po<strong>de</strong>-se verificar que, quando o papel <strong>de</strong> unificação da<br />
proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal do actante é preservado pela inscrição,<br />
a presença no eixo da intensida<strong>de</strong> se torna concentrada, ou seja, o foco é mantido a<br />
partir uma reunião em um mesmo ponto, sem chance para <strong>de</strong>svios e, no eixo da<br />
extensida<strong>de</strong>, a apreensão se dá como uma totalida<strong>de</strong> indivisível, ou seja, como<br />
“massas pouco articuladas porém individualizadas” (FONTANILLE e ZILBERBERG,<br />
2001, p.137). A reconstituição da intensida<strong>de</strong> da presença promove uma<br />
correspondência <strong>de</strong> forma massiva na extensida<strong>de</strong>, tal qual acontece na dissolução<br />
dos contornos e dos limites na arte barroca, como foi observado por Wölfflin (1989).<br />
A oscilação no campo <strong>de</strong> presença dos envelopes corporais dos dois exemplos<br />
(Figs. 5 e 6) também acontece numa correlação divergente, como os exemplos<br />
anteriores (Figs. 3 e 4), contudo, num esquema <strong>de</strong> ascendência, por causa da unida<strong>de</strong><br />
71
corporal. A preservação da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão <strong>de</strong>sses envelopes corporais pela<br />
inscrição provoca o aumento da dilatação da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> existencial, provocada pelo<br />
aumento do foco no gradiente da intensida<strong>de</strong>, seguido pela redução da extensão. A<br />
preservação da conexão dos envelopes corporais torna a percepção <strong>de</strong>ssas presenças<br />
mais sensível, como po<strong>de</strong> ser observado no esquema abaixo:<br />
Concentrado<br />
INT<br />
Distribuído<br />
EXT<br />
Massivo Dividido<br />
72
1.4.1.2 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação: o avesso e as espessuras do envelope<br />
corporal.<br />
Figura 7: Ofelia Dammert (Peru)<br />
Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo.<br />
A pintura corporal acima (Fig. 7) é uma obra da peruana Dammert e apresenta<br />
dois contrastes cromáticos: o lado esquerdo é uniformizado por uma cor rosa muito<br />
clara, que contrasta com o fundo preto, efeito oposto ao que acontece no lado direito,<br />
no qual o fundo preto da fotografia se mescla com a base preta aplicada sobre o<br />
73
envelope corporal, promovendo, assim, o recuo do suporte e revelando os ossos que<br />
estruturam o corpo humano, <strong>de</strong>talhadamente pintados com colorações que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o branco amarelado até o marrom claro. A <strong>de</strong>limitação regular da ossatura pintada<br />
suscita no observador uma sensação <strong>de</strong> segurança que o leva a acreditar na<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocá-los. A pintura promove, <strong>de</strong>sse modo, o aumento <strong>de</strong> vazios entre<br />
os ossos pintados cujas formas são mantidas inabaláveis, virtualizando, assim, o<br />
suporte envelope corporal no lado direito. Há, portanto, uma cisão e a distinção do<br />
<strong>de</strong>ntro em relação ao fora, sendo este um exemplo <strong>de</strong> como a <strong>de</strong>breagem modifica por<br />
inversão que compromete a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> compactação corporal.<br />
Esse comprometimento da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação faz com que o foco se<br />
espalhe no eixo da intensida<strong>de</strong>, tornando a presença difusa e, como correlato,<br />
acontece o aumento da apreensão cognitiva, há mais <strong>de</strong>talhes a serem percebidos. A<br />
movimentação no campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>sse envelope corporal se dá numa correlação<br />
divergente cujo esquema é <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência. A difusão do foco e o aumento do número<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes a observar no lado direito da figura 7 estimulam um relaxamento cognitivo.<br />
De acordo com Fontanille e Zilberberg, “com o difuso, do ponto <strong>de</strong> vista da intensida<strong>de</strong>,<br />
e o numeroso do ponto <strong>de</strong> vista da extensida<strong>de</strong>, a distensão se manifesta pela<br />
distância estabelecida e mantida entre o sujeito e o objeto, ainda quando benéfico”<br />
(2001, p. 137). Os autores ainda observam que essa “distensão era a categoria diretriz<br />
do estilo do Renascimento” que provocava uma sensação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, como é<br />
<strong>de</strong>monstrado no esquema tensivo número 6:<br />
Compacto<br />
INT<br />
Difuso<br />
Uno EXT Numeroso<br />
74
Figura 8: Special Make-up. Fonte: Catálogo Make-up Designory from the Los Angeles Campus, 2009.<br />
Figura 9: Keiko González (Bolívia). Fonte: Exposição Corpos Pintados.<br />
No exemplo da esquerda (Fig. 8) temos uma maquiagem <strong>de</strong> efeito especial com<br />
(2005) OCA – São Paulo.<br />
aplicação <strong>de</strong> uma pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex colada ao rosto <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo. Desse<br />
modo, a maquiagem aumenta a espessura do envelope corporal com elementos<br />
supérfluos e surpreen<strong>de</strong>ntes. Devido à qualida<strong>de</strong> da textura da pró<strong>tese</strong> e ao<br />
acabamento <strong>de</strong>licado <strong>de</strong> sua aplicação não se nota a emenda, isto é, on<strong>de</strong> começa a<br />
pró<strong>tese</strong> e on<strong>de</strong> termina o envelope corporal, o que não permite espaços vazios entre<br />
eles. O próprio movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que partiu do corpo engendrou objetos<br />
significantes para ele. A pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> látex guarda a memória da sua origem corporal,<br />
75
isto é, fora do rosto, ela antecipa o regresso ao corpo, como também o contato entre os<br />
dois, no momento da aplicação. Por ser ergonômica, a pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> látex guarda a<br />
impressão (forma) do invólucro corporal, é o seu novo sentido <strong>de</strong>breado a partir do<br />
corpo e, logo, o completará. Neste exemplo, também acontece uma oscilação dos<br />
modos <strong>de</strong> presença, isto é, a primeira face <strong>de</strong>saparece para que a segunda possa<br />
aparecer. A pró<strong>tese</strong> é, então, um meio <strong>de</strong> multiplicação das espessuras dos envelopes<br />
corporais que permite a percepção <strong>de</strong> um corpo em diálogo com outro corpo.<br />
O exemplo da direita (Fig. 9), a pintura <strong>de</strong> González, também utiliza pró<strong>tese</strong>s,<br />
agora <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, que prolongam as pernas e um braço do mo<strong>de</strong>lo. Além da<br />
multiplicação das espessuras, temos um complexo variado <strong>de</strong> cores que formam<br />
texturas e estas impe<strong>de</strong>m a visão dos espaços vazios da divisão entre a pró<strong>tese</strong> e as<br />
pernas. É claro que as pernas <strong>de</strong> pau não chegam a ser tão ergonômicas quanto as<br />
pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> látex e também não acontece uma variação tão nítida entre os modos <strong>de</strong><br />
presença. Ocorre uma virtualização do envelope corporal, principalmente o do rosto,<br />
por meio apenas da pintura e não por meio da pró<strong>tese</strong> que é indispensável ao<br />
enunciado. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, assim como no outro exemplo (Fig. 8), também<br />
proporciona ao envelope corporal novos sentidos por meio do aumento da sua<br />
compactação.<br />
Essa proprieda<strong>de</strong> do envelope corporal, a Compactação, cuja <strong>de</strong>breagem<br />
ocorre por meio <strong>de</strong> excrescências, como nos dois exemplos (Figs. 8 e 9), seja por meio<br />
<strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex ou pernas e braço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, faz com que aconteça<br />
o ajuste da superfície envelope <strong>de</strong> inscrição ao envelope corporal. A preservação da<br />
compactação entre o corpo e as pró<strong>tese</strong>s está assegurada. A percepção <strong>de</strong>sses<br />
actantes encarnados atinge a compacida<strong>de</strong>, no eixo da intensida<strong>de</strong> e, permanece a<br />
unida<strong>de</strong> no eixo da extensida<strong>de</strong>, uma vez que o corpo e o envelope <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s são<br />
singulares, indivisíveis.<br />
A presença <strong>de</strong>sses actantes encarnados se <strong>de</strong>senvolve numa correlação<br />
divergente em um esquema <strong>de</strong> ascendência: a compactação entre o envelope corporal<br />
do actante e a pró<strong>tese</strong> também provoca o recuo do rosto, já que é impossível<br />
reconhecer a verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>lo sob a maquiagem, contudo, há uma<br />
tensão afetiva, pois a presença é viva, o gradiente da intensida<strong>de</strong> está no ápice e o<br />
76
gradiente da extensão se mantém no uno, conforme é <strong>de</strong>monstrado no esquema<br />
tensivo número 7:<br />
Compacto<br />
INT<br />
Difuso<br />
Uno EXT Numeroso<br />
1.4.1.3 Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filtro <strong>de</strong> seleção: projeção do próprio sobre o não próprio.<br />
Figura 10: Punks.Fonte: GRÖNING, 1998, p. 235.<br />
77
Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> padronizada a partir dos princípios<br />
clássicos, <strong>de</strong>ntro dos quais a maioria dos seres humanos se enquadra, acontece, no<br />
exemplo acima (Fig. 10), uma <strong>de</strong>breagem que regulariza os intercâmbios entre o<br />
próprio e o não próprio. As duas pessoas caracterizam a hexis corporal dos punks em<br />
distinção da hexis corporal clássica. Os estilos <strong>de</strong> cabelo moicano com cores exóticas,<br />
entre outros penteados fantasiosamente ilimitados, assim como as sobrancelhas<br />
modificadas e os piercings, são alguns dos elementos que, em conjunto com a<br />
maquiagem exagerada, com formas e cores não convencionais, caracterizam uma<br />
contra-cultura e não são visuais esperados em uma socieda<strong>de</strong> padronizada, causando,<br />
<strong>de</strong>sse modo tensões e provocações.<br />
“Os punks, que surgiram na década <strong>de</strong> 70 na Grã-Bretanha <strong>de</strong> Margaret<br />
Thatcher, estabelecem seus próprios padrões” (...) As perfurações e<br />
mutilações são uma forma <strong>de</strong> expressão da dor emocional que está<br />
associada ao significado da palavra punk: lixo.” 37 (GRÖNING, 1998, p.<br />
235).<br />
Desse modo, os punks modificam o seus envelopes corporais ao projetar sobre<br />
eles o que lhes é próprio, enunciando, portanto, os afetos negativos em relação à<br />
socieda<strong>de</strong> padrão, ou seja, é a projeção sobre o envelope das outras entida<strong>de</strong>s<br />
distintas do Eu-carne. Neste exemplo, po<strong>de</strong>-se dizer que o suporte envelope corporal<br />
está visível e se mantem presente durante a enunciação, possibilitando o<br />
reconhecimento das feições do sujeito após a retirada da maquiagem. Por outro lado,<br />
também fica claro o caráter paradoxal da superfície <strong>de</strong> inscrição que é,<br />
simultaneamente, uma superfície <strong>de</strong> separação e uma superfície <strong>de</strong> contatos, ou seja,<br />
ao mesmo tempo em que separa os punks da socieda<strong>de</strong> padronizada, os coloca em<br />
contato com o seu eu <strong>de</strong> referência e com o meio social que lhes é familiar.<br />
Como toda enunciação, a maquiagem é realizada em um tempo e em um<br />
espaço <strong>de</strong>terminados. Assim, quando os punks estão próximos do seu meio social <strong>de</strong><br />
referência, há uma tensão afetiva familiar, entretanto, quando eles se distanciam do<br />
seu meio e se aproximam <strong>de</strong> um meio social executivo, cuja hexis corporal exige<br />
maquiagens suaves e neutras, a tensão afetiva será do estranho. Zilberberg e<br />
37 The punks, who emerged at the end of the 1970s in Mrs Thatcher‟s Britain, set their own standards.<br />
(…) In piercing their skin and mutilating (…) themselves, the punks are giving visible expression to the<br />
emotional pain that is associated with the meaning of the word punk: trash.<br />
78
Fontanille explicam que “no que tange à espacialida<strong>de</strong>, a distância métrica <strong>de</strong>ve se<br />
entrosar com uma distância afetiva” (2001, p. 140). Assim, quando os punks se<br />
aproximam <strong>de</strong> um meio social não-próprio a eles, a correlação tensiva será divergente<br />
e o esquema ascen<strong>de</strong>nte, ou seja, com a aproximação dos punks em um meio social<br />
clássico, reduz-se a distância métrica e aumenta-se a intensida<strong>de</strong> afetiva da<br />
estranheza, produzindo, <strong>de</strong>ssa maneira, uma tensão afetiva, como é <strong>de</strong>monstrado no<br />
esquema tensivo número 8:<br />
Estranho<br />
Por outro lado, quando os punks se afastam <strong>de</strong>sse meio, reduz-se a intensida<strong>de</strong><br />
afetiva e aumenta-se a distância métrica, produzindo ainda uma correlação divergente,<br />
porém, um esquema tensivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, pois há um relaxamento cognitivo <strong>de</strong><br />
tensões, <strong>de</strong>vido ao afastamento do ser estranho ao meio executivo, como po<strong>de</strong> ser<br />
visto no esquema número 9:<br />
INT<br />
Familiar<br />
Estranho<br />
INT<br />
Familiar<br />
Próximo EXT Distante<br />
Próximo EXT Distante<br />
79
Caso os punks se mantenham em seus espaços próprios, a tensão se mantém<br />
afetiva familiar e cognitiva, isto é, a distância métrica é próxima da distância afetiva em<br />
uma correlação conversa, num esquema tensivo da amplificação, em outras palavras,<br />
distantes do mundo clássico (estranho) e próximo do meio punk (familiar), ou seja, isso<br />
retrata a separação e o contato paradoxal característicos da superfície <strong>de</strong> inscrição,<br />
como po<strong>de</strong> ser observado no esquema tensivo número 10:<br />
No caso dos punks, assim como <strong>de</strong> qualquer grupo <strong>de</strong> actantes sujeitos<br />
encarnados que se utilizam das maquiagens efêmeras, existe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas<br />
<strong>de</strong>breagens e novos enunciados; assim, se eles <strong>de</strong>sejarem, po<strong>de</strong>m se inserir em um<br />
novo meio social e adotar a respectiva hexis corporal 38 , sem <strong>de</strong>ixar marcas e pistas<br />
sobre a pele.<br />
Estranho<br />
INT<br />
Familiar<br />
38 A tatuagem também po<strong>de</strong> ser escondida ou até mesmo retirada, contudo requer um longo, caro e<br />
dolorido processo para o <strong>de</strong>saparecimento.<br />
Próximo EXT Distante<br />
80
Figura 11: Tom Woolley. Fonte: AUCOIN, Kevyn, 1997, p.145.<br />
Figura 12: The Player. Fonte: AUCOIN, Kevyn, 1997, p.144.<br />
Sem querer entrar em questões <strong>de</strong> opções sexuais ou psicológicas, mas apenas<br />
analisar as transformações <strong>de</strong> um envelope corporal e seus sentidos semióticos, po<strong>de</strong>-<br />
se verificar que, neste exemplo, aparece o travestimento <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 11) que<br />
se enuncia uma mulher como na Figura 12: um eu-carne próprio que se projeta sobre<br />
as entida<strong>de</strong>s distintas, não próprias, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>breagem. Do mesmo modo<br />
que Shinya e Masako (Fig. 1), Tom Woolley, além <strong>de</strong> se enunciar uma mulher, se<br />
enuncia uma mulher glamourosa: olhos proeminentes com sombreado escuro e com<br />
os lábios cobertos pelo clássico batom vermelho. Neste caso, é difícil reconhecer o<br />
verda<strong>de</strong>iro rosto <strong>de</strong> Tom, que se mantém recuado sob a base clara que cobre o seu<br />
rosto e seu colo durante o ato <strong>de</strong> enunciação.<br />
As correlações e os esquemas tensivos são iguais aos produzidos pelo campo<br />
<strong>de</strong> presença dos punks (Fig. 10). O mais importante neste exemplo, em comparação<br />
ao anterior, é a questão da presença ou recuo do suporte corporal que na figura 10 se<br />
mantém em um grau mais presente do que na figura 11. Ou seja, observando a figura<br />
81
12 é mais difícil reconhecer a real fisionomia <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 11) do que<br />
reconhecer os punks (Fig. 10) sem as suas maquiagens. Em suma, o engendramento<br />
das “operações <strong>de</strong> inscrição” a partir das “proprieda<strong>de</strong>s” do envelope corporal fica<br />
resumido no seguinte quadro proposto por Fontanille (2004a, p. 151):<br />
Quadro 1: proprieda<strong>de</strong> do envelope e efeito da <strong>de</strong>breagem:<br />
Proprieda<strong>de</strong> Papel Operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />
Conexão Formação e unificação do Pluralização e<br />
envelope<br />
<strong>de</strong>formação do envelope<br />
Compactação Coesão e i<strong>de</strong>ntificação Inversão do conteúdo e<br />
distintiva do conteúdo do continente (fora e<br />
<strong>de</strong>ntro)<br />
Filtro <strong>de</strong> seleção Regulagem dos Projeção do “próprio”<br />
intercâmbios entre<br />
“próprio” e “não próprio”<br />
sobre o “não próprio”<br />
Ao pensar nas alterações do envelope corporal provocadas pelas operações <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>breagem, percebe-se o avanço ou o recuo do corpo no enunciado pintado sobre a<br />
superfície <strong>de</strong> inscrição, ou seja, sobre a presença ou ausência virtual do envelope<br />
corporal como suporte <strong>de</strong>ssas inscrições, como segue no quadro abaixo:<br />
Quadro 2: avanço e recuo do envelope corporal:<br />
Relação corpo/inscrição Presença (avanço) do Ausência virtualizada<br />
corpo<br />
(recuo) do corpo<br />
Conexão Todo único e contínuo Divisão em partes-<br />
Compactação Mais compactação – Menos compactação –<br />
Direito – Mostra o Induz ao avesso -<br />
Filtro <strong>de</strong> triagem<br />
envelope corporal.<br />
Uso <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s<br />
Mostra mais a pele natural Mostra menos a pele<br />
Maquiagens mais leves, natural.<br />
sem muitos contrastes e Maquiagens mais intensas<br />
intensida<strong>de</strong>s.<br />
e contrastadas.<br />
A partir das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, das relações do envelope corporal com<br />
as inscrições, com os planos cromáticos, eidéticos e topológicos, percebe-se que<br />
82
quando a <strong>de</strong>breagem projeta o próprio sobre o não próprio como nos casos dos punks<br />
(Fig. 10) ou do travestimento <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 12), assim como <strong>de</strong> Margarete, do<br />
poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, e <strong>de</strong> Shinya e Masako (Fig.1) criam-se efeitos estéticos aos<br />
quais se sobrepõem ou acrescentam efeitos <strong>de</strong> aproximação e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com os<br />
grupos <strong>de</strong> referência: punks, travestis, sagrado e glamouroso. Contudo, ao mesmo<br />
tempo em que essas relações produzem o sentido <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> elas também<br />
produzem o sentido <strong>de</strong> estranhamento e afastamento dos outros grupos sociais.<br />
Como “o sentido não é algo isolado”, conforme explica Fiorin (1999), mas surge<br />
<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> relações, po<strong>de</strong>-se dizer que ao formar, unificar, ligar e i<strong>de</strong>ntificar os<br />
envelopes corporais, pluralizando-os, <strong>de</strong>formando-os e invertendo-os, as operações <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>breagem relacionadas aos planos cromáticos, eidéticos e topológicos nas figuras 3,<br />
4, 5, 6, 7, 8 e 9 criam efeitos <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> verossimilhança, <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
inverossimilhança, além <strong>de</strong> sentidos estéticos e poéticos. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />
<strong>de</strong>forma os envelopes corporais que, relacionados às disposições topológicas e ao<br />
cromatismo, provocam, na pintura <strong>de</strong> Julio Larraz (Fig. 1), um efeito <strong>de</strong> verossimilhança<br />
na relação com as figuras das montanhas do mundo natural. Já no trabalho <strong>de</strong> Iregui<br />
(Fig. 4) a topologia e o cromatismo relacionados à <strong>de</strong>sconexão do envelope corporal têm<br />
valor <strong>de</strong> ornamento, que a<strong>de</strong>nsa o efeitos <strong>de</strong> sentido estético da pintura corporal.<br />
Tanto na pintura corporal <strong>de</strong> Brands (Fig. 5) quanto na <strong>de</strong> Gair (Fig. 6) a<br />
conexão do envelope corporal relacionada à materialida<strong>de</strong> das pinturas assim como ao<br />
cromatismo produzem um efeito sensorial tátil, na fig 5, em que o volume do corpo se<br />
<strong>de</strong>staca do fundo colorido geometrizado e um efeito gustativo na figura 6, coberta <strong>de</strong><br />
calda <strong>de</strong> chocolate. Por outro lado, o recuo do envelope corporal promovido pela<br />
<strong>de</strong>breagem, que inverte o fora e o <strong>de</strong>ntro, relacionado ao alto grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> 39<br />
provoca sensorialmente o espectador, que pensa ver, na pintura <strong>de</strong> Dammert (Fig. 7), o<br />
próprio “interior” do corpo. O apagamento das características humanas, nas figuras 8 e<br />
9, por meio das pró<strong>tese</strong>s que constituem os mecanismos coesivos do envelope corporal,<br />
constrói, com verossimilhança, as imagens monstruosas.<br />
39 As questões sobre os graus <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> serão discutidas no capítulo 3.<br />
83
1.4.1.4- Proprieda<strong>de</strong> da marca: instrumentalização das inscrições.<br />
Fontanille esclarece que a quarta modificação das proprieda<strong>de</strong>s figurativas do<br />
envelope é a marca que modificaria o envelope por instrumentalização das inscrições,<br />
ou seja, a marca é que fornece o princípio <strong>de</strong> pertinência. Esse princípio refere-se “à<br />
maneira como as figuras da expressão tomam forma a partir do substrato material das<br />
inscrições e do gesto que as inscreveu” (2004b, p. 110), po<strong>de</strong>-se, <strong>de</strong>sse modo, afirmar<br />
que a maquiagem é uma forma <strong>de</strong> marca, uma impressão, contudo, ela é efêmera. Os<br />
gestos que a inscreveram e as formas adquiridas po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>vidamente percebidos,<br />
porém, em um curto espaço <strong>de</strong> tempo. E é na tentativa <strong>de</strong> apagar as marcas <strong>de</strong>sses<br />
gestos da aplicação que a utilização da maquiagem feita com airbrush dominou o<br />
espaço nestes tempos da televisão digital.<br />
Desse modo, acredito que as tatuagens, os piercings, as cicatrizes, as<br />
escarificações e outras formas <strong>de</strong> inscrições duráveis sejam um caso especial da<br />
semiótica da marca, pois o tempo <strong>de</strong> duração, após a aplicação, é o mesmo da<br />
envoltura corporal e, mesmo após ocorrerem as suas remoções, efetivamente <strong>de</strong>ixam<br />
marcas e pistas, tornando-se, assim, testemunhas visíveis <strong>de</strong> um enunciado realizado<br />
no passado.<br />
Figura 13: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba.<br />
Fonte: GRÖNING, 1998, p. 146.<br />
Figura 14: Piercings. Fonte: FUNNY PHOTOS, 2009.<br />
84
No exemplo à esquerda (Fig. 13), aparece uma das mulheres da tribo Nuba 40 .<br />
Conforme a tradição <strong>de</strong>sse povo, as mulheres utilizam o envelope corporal para<br />
enunciar a história <strong>de</strong> suas vidas, transformado-o em superfície <strong>de</strong> inscrição e, por<br />
meio <strong>de</strong> espinhos, facas e navalhas, têm os seus corpos escarificados a partir da ida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos. Nessa ida<strong>de</strong>, as escarificações são feitas na parte frontal do tronco.<br />
Depois, após a primeira menstruação, essa área é ampliada. Somente após o<br />
nascimento do primeiro filho é que as escarificações são feitas nas costas.<br />
O exemplo da direita (Fig. 14) é <strong>de</strong> um rapaz que faz parte dos mo<strong>de</strong>rn<br />
primitives, que se submetem a diversas manipulações corporais, neste caso, nos<br />
“jogos <strong>de</strong> penetração”, e utiliza piercings basicamente como um modo <strong>de</strong> se tornar<br />
diferente das outras pessoas. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma projeção do próprio sobre o não<br />
próprio, mas também é uma modificação do envelope corporal por instrumentalização<br />
das inscrições. De todo modo, as marcas que ficam após a retirada <strong>de</strong> um piercing<br />
(como po<strong>de</strong>m ser observadas nas laterais da cabeça) servem <strong>de</strong> testemunhas <strong>de</strong> uma<br />
enunciação passada 41 .<br />
40 As pinturas corporais Nuba serão analisadas em <strong>de</strong>talhe no capítulo 3.<br />
41 Fontanille explica que “o testemunho implica, pois, uma origem, que é já inacessível à percepção<br />
direta, cujo <strong>de</strong>senho só po<strong>de</strong>ria ser testemunhado e encontrado nos corpos. No caso em que o corpotestemunha<br />
não é o corpo sensível original, não po<strong>de</strong> haver testemunho se não se po<strong>de</strong> garantir um<br />
relevo contínuo do contato entre esse corpo original e os corpos intermediários, graças às impressões<br />
<strong>de</strong>ixadas pelos contatos sucessivos” (2004a, p. 226). Le témoignage implique donc une origine, <strong>de</strong>venue<br />
inaccessible à la perception directe, dont on ne pourrait attester et retrouver la trace que sur <strong>de</strong>s corps.<br />
Dans le cas où le corps-témoin n‟est pas le corps sensible originel, il ne peut y avoir témoignage que si<br />
on peut garantir un relais continu du contact entre ce corps originel et les corps intermédiaires, grace aux<br />
empreintes laissées par les contacts successifs.<br />
85
Na figura 15 po<strong>de</strong>-se observar um processo <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> tatuagens, outro<br />
tipo <strong>de</strong> marca em um envelope corporal que funciona tal e qual os exemplos <strong>de</strong><br />
escarificação e <strong>de</strong> piercings.<br />
As superfícies <strong>de</strong> inscrição, variadas maneiras <strong>de</strong> expressão semiótica “são<br />
“duplas” projetadas a partir do envelope do Seu Outro (projeção)”: po<strong>de</strong>m ter a forma e<br />
a matéria que geram uma pluralização; po<strong>de</strong>m também gerar uma inversão na qual o<br />
conteúdo do envelope passaria a ser um conjunto <strong>de</strong> signos e <strong>de</strong> figuras observáveis<br />
no mundo exterior. Desse modo, as inscrições das enunciações semióticas “seriam<br />
avatares projetados e invertidos do envelope do Seu outro” 42 (FONTANILLE, 2004a, p.<br />
151).<br />
Figura 15: Tatuagem. Fonte: GRÖNING, 1998, p. 221.<br />
Fontanille afirma, então, que os três primeiros tipos <strong>de</strong> operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />
citados anteriormente produzem os “significantes formais” do envelope e são<br />
suficientes para, com o suporte do envelope seu-outro, gerar as superfícies <strong>de</strong><br />
inscrição semiótica. Todo envelope corporal é, então, fruto das funções genéricas <strong>de</strong><br />
continente e <strong>de</strong> superfície <strong>de</strong> inscrição que se <strong>de</strong>senvolvem em forma <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s<br />
42 Seraient <strong>de</strong>s avatars projetés et inversés <strong>de</strong> l‟enveloppe du Soi.<br />
86
(Conexida<strong>de</strong>, Compacticida<strong>de</strong> e Seleção) e em forma <strong>de</strong> operações (Projeção,<br />
Pluralização e Inversão).<br />
A maquiagem e a pintura corporal são, sem dúvida alguma, um ato <strong>de</strong><br />
significação, e, sendo um enunciado em ato, acontece a partir <strong>de</strong> uma presença<br />
efetiva, mesmo que o suporte corporal esteja virtualmente afastado. Conforme explica<br />
Fontanille (2001, p.242), para que a impressão funcione como signo e consequente<br />
processo interpretativo e persuasivo, “é necessário que uma das “faces” seja atual e a<br />
outra potencial”(guardada na memória). O campo <strong>de</strong> presença perceptivo originado a<br />
partir da carne sensível <strong>de</strong> um actante sujeito encarnado e <strong>de</strong> sua tomada <strong>de</strong> posição<br />
no mundo é colocado em comunicação com o espaço tensivo criado pelo corpo-próprio<br />
– envelope corporal – <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição por meio do exercício <strong>de</strong><br />
enunciação (domínio da práxis enunciativa). A maquiagem, portanto, promove a<br />
transição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> indizível (por isso virtual) a um discurso persuasivo<br />
realizado, ou seja, movimento entre modos <strong>de</strong> existência, por isso torna-se necessário<br />
verificar a inscrição efêmera, maquiagem, como uma práxis enunciativa.<br />
87
2. INSCRIÇÕES EFÊMERAS<br />
Na pintura corporal, a tela é lavável. A maquiagem é aplicada, a mo<strong>de</strong>lo<br />
dá vida à tela e o fotógrafo a captura (GAIR 2006, p.5). 1<br />
A cumplicida<strong>de</strong> entre a tela <strong>de</strong> pintura e a pele humana também é revelada nas<br />
palavras <strong>de</strong> Serres (2001, p.27): “Ela [a mulher] maquia a sua pele, base e ruge <strong>de</strong><br />
superfície, como o pintor prepara uma tela. A pele se i<strong>de</strong>ntifica à tela como a tela há<br />
pouco se i<strong>de</strong>ntificava à pele” (SERRES, 2001, p. 27). Des<strong>de</strong> os primórdios o ser<br />
humano utiliza a pele como suporte <strong>de</strong> uma expressão plástica (pinturas,<br />
escarificações, tatuagens, piercings) e, no caso da maquiagem, com produtos<br />
apropriados que, além <strong>de</strong> evoluírem quantitativa e qualitativamente durante os séculos,<br />
permitem a sua remoção por meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>maquilantes e/ou <strong>de</strong> um banho mais<br />
caprichado. As inscrições transitórias têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modificar completamente o<br />
envelope corporal, po<strong>de</strong>m camuflá-lo, levando-o à ausência virtualizada, como também<br />
po<strong>de</strong>m ressaltá-lo, fortalecendo a sua presença. Esse diferencial da tela lavável<br />
permite que a superfície <strong>de</strong> inscrição <strong>de</strong> um mesmo envelope receba diversos<br />
enunciados.<br />
Nas pinturas corporais dos povos pré-letrados e até nas mais simples<br />
maquiagens sociais, verda<strong>de</strong>iros autorretratos, verifica-se a autonomia dos seus<br />
códigos, das suas regras e seus valores. Seja aplicada por um artista da maquiagem<br />
ou, simplesmente, uma auto-aplicação, a pele torna-se o que o artista, amador ou<br />
profissional, faz <strong>de</strong>la, ou melhor, é uma tomada <strong>de</strong> posição da instância corpo próprio<br />
(envelope corporal) <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição. Por ser efêmera, a<br />
maquiagem, então, facilita as diversas tomadas <strong>de</strong> posição que darão uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
figurativa ao indivíduo, sujeito actante encarnado, assegurando, <strong>de</strong>ssa maneira, o<br />
constante <strong>de</strong>vir da instância corpo próprio.<br />
Duda Molinos, famoso maquiador brasileiro, afirma que a maquiagem não é<br />
apenas para embelezar, ela “é um po<strong>de</strong>roso acessório que reforça seu estilo, a<br />
personalida<strong>de</strong> ou a atitu<strong>de</strong> que você quer ter num <strong>de</strong>terminado dia, num certo lugar”<br />
1 En la pintura corporal, el lienzo es lavable. El maquillaje se aplica, la mo<strong>de</strong>lo da vida al lienzo y el<br />
fotógrafo lo captura.<br />
88
(2000, p.15). Aucoin, maquiador americano (1995, p.1), pergunta: quem você quer ser<br />
hoje? Seja no dia a dia ou em ocasiões especiais, o mo<strong>de</strong>lo e o artista ou o mo<strong>de</strong>lo<br />
artista “têm em comum a virtuosida<strong>de</strong> dos efeitos ópticos” (SERRES, 2001, p. 27) e<br />
trabalham com suportes comuns, porém com uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores, formas,<br />
texturas: são “mãos enluvadas <strong>de</strong> pele (que) passeiam por uma pele” (SERRES, 2001,<br />
p. 27), dando-lhe máscaras sociais transitórias e que, algumas vezes, acabam<br />
tornando-se <strong>de</strong>finitivas, a partir do encontro sensível e afetivo entre o sujeito e o objeto<br />
<strong>de</strong> valor.<br />
Na etimologia do verbo maquiar encontra-se a sua origem francesa e revela-se<br />
que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, o uso da maquiagem/máscara está diretamente ligado ao<br />
significado <strong>de</strong> fazer-se outro na aparência, mostrar-se outro por meio <strong>de</strong> uma máscara<br />
ou simplesmente mostrar-se com mais veemência.<br />
A etimologia do vocábulo não é fácil. A forma recente <strong>de</strong>ste transitivo<br />
direto remonta a 1450, ao francês „„maquiller‟‟, <strong>de</strong> significado<br />
„„trabalhar‟‟. Passou pelo teatro do séc. XVIII, já com o sentido <strong>de</strong><br />
„„pintar o rosto‟‟, proveniente do picardo antigo „„maquier‟‟ (fazer), e,<br />
este, do holandês „„maken id‟‟, a resultar nos comparativos inglês e<br />
português. O vocábulo „„máscara‟‟, proveniente do italiano „„maschera‟‟<br />
(1348-1353) a abrigar a acepção <strong>de</strong> „„pessoa disfarçada‟‟, tem como<br />
base „„masca‟‟, do baixo-latim, com diversos significados ao longo dos<br />
séculos. O italiano „„maschera‟‟ ainda é tido como <strong>de</strong>rivado do árabe<br />
„„mashara‟‟ („„bufão, ridículo‟‟), que sofreu outras influências na Europa,<br />
mas que redundaram em muitos cognatos <strong>de</strong> língua portuguesa, como<br />
por exemplo: máscara, mascaração, mascaramento e<br />
maquilhado/maquiado/maquilado. (PEREIRA, 2006, p.2 )<br />
Serres ainda explica que nos referimos à “cosmética ou a arte da maquiagem”<br />
<strong>de</strong> uma maneira equivalente. Esse mérito ele atribui à sabedoria dos gregos que<br />
fundiram “numa mesma palavra a or<strong>de</strong>m e o ornamento, a arte <strong>de</strong> ornar com a <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>nar” (2001, p.27).<br />
O cosmo <strong>de</strong>signa a arrumação, a harmonia, a lei, a conveniência: eis o<br />
mundo, terra e céu, mas também a <strong>de</strong>coração, o embelezamento ou o<br />
arranjo. Nada é tão profundo como o enfeite, nada é tão abrangente<br />
como a pele, o ornato e as dimensões do mundo. Cósmico e<br />
cosmética, a aparência e a essência saem <strong>de</strong> uma mesma fonte. A<br />
maquiagem iguala a or<strong>de</strong>m, e o embelezamento equivale à lei, o<br />
mundo surge or<strong>de</strong>nado, em qualquer nível em que se consi<strong>de</strong>rem os<br />
fenômenos. Todo véu sempre se apresenta magnificamente historiado.<br />
(SERRES, 2001, p. 27)<br />
89
O ato <strong>de</strong> maquiar associado à or<strong>de</strong>m do mundo é corroborado pelo pensamento<br />
<strong>de</strong> Bourdieu (2008), para quem a maquiagem, além <strong>de</strong> ser uma das marcas sociais<br />
que caracterizam um <strong>de</strong>terminado grupo (sujeito coletivo), revela também alguns<br />
valores sociais:<br />
As diferenças <strong>de</strong> pura conformação são reduplicadas e,<br />
simbolicamente, acentuadas pelas diferenças <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, diferenças na<br />
maneira <strong>de</strong> portar o corpo, <strong>de</strong> apresentar-se, <strong>de</strong> comportar-se em que<br />
se exprime a relação com o mundo social. A esses itens, acrescentamse<br />
todas as correções intencionalmente introduzidas no aspecto<br />
modificável do corpo, em particular, pelo conjunto das marcas relativas<br />
à cosmética – penteado, maquiagem, barba, bigo<strong>de</strong>, suíças etc – ou ao<br />
vestuário que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo dos meios econômicos e culturais<br />
suscetíveis <strong>de</strong> serem investidos aí, são outras tantas marcas sociais<br />
que recebem seu sentido e seu valor <strong>de</strong> sua posição no sistema <strong>de</strong><br />
sinais distintivos que elas constituem, além <strong>de</strong> que ele próprio é<br />
homólogo do sistema <strong>de</strong> posições sociais. (BOURDIEU, 2008, p. 183)<br />
Essa distinção social do corpo é um dos apoios para o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
função do Eu-pele exposta por Anzieu. O primeiro apoio é o biológico, que fornece um<br />
primeiro <strong>de</strong>senho da realida<strong>de</strong> que se imprime na pele. A base social é a da pertença<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo, estabelecido por incisões, escarificações, pinturas,<br />
tatuagens, maquiagens, penteados e os dublês da pele, as roupas (ANZIEU, 1989, p.<br />
119). A efemerida<strong>de</strong> característica da maquiagem sobre uma tela corpo/rosto lavável<br />
permite, <strong>de</strong>sse modo, infinitas modificações, verda<strong>de</strong>iros disfarces, diversos <strong>de</strong>vires.<br />
Com o auxílio da maquiagem, um indivíduo po<strong>de</strong> se inserir em qualquer grupo social,<br />
adotar as hexei corporais das diversas classes e grupos sociais. Tais transformações<br />
po<strong>de</strong>m ser impostas pela socieda<strong>de</strong> ou po<strong>de</strong>m ser reações contra essas<br />
<strong>de</strong>terminações. Transformações visíveis não somente na face <strong>de</strong> um indivíduo, mas<br />
também na própria socieda<strong>de</strong> que, atualmente, <strong>de</strong> estação em estação, varia as<br />
tonalida<strong>de</strong>s e os produtos para a criação dos rostos sociais, tal qual a moda das<br />
roupas. Landowski (2002, p. 99) observa que a socieda<strong>de</strong> em movimento exige do<br />
sujeito individual que ele consiga “mudar em cadência” para que não corra o risco “<strong>de</strong><br />
talvez não se reconhecer inteiramente a si mesmo”.<br />
Além do mais, a maquiagem é um nítido momento em que a reflexibilida<strong>de</strong> e a<br />
visibilida<strong>de</strong> do corpo se encontram. Essa relação reflexiva diante das transformações<br />
visuais e as relações <strong>de</strong> transição com os outros sujeitos se referem à constituição,<br />
90
“<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> através do reconhecimento, sob uma forma ou outra, <strong>de</strong> uma<br />
alterida<strong>de</strong>” (LANDOWSKI, 2002, p. 101). Por outro lado, a relação do indivíduo com o<br />
Seu Outro salienta o sincretismo actancial do corpo, uma vez que o sujeito faz do seu<br />
corpo um objeto <strong>de</strong> arte capaz <strong>de</strong> se modificar constantemente. É o momento <strong>de</strong> fusão<br />
<strong>de</strong> papéis, o próprio encontro entre sujeito e objeto. Serres (2001, p. 28) explica que ao<br />
pintar a pele do rosto se “pinta uma máscara sobre uma máscara”. É como se a “fina<br />
membrana”, como <strong>de</strong>screve Patrice Pavis (2003, p. 172), recebesse a impressão da<br />
face. O rosto singular imprime sob a película seu relevo in<strong>de</strong>strutível, contudo, passível<br />
<strong>de</strong> ausências virtuais para privilegiar um enunciado. É como se o enfeite fosse tão<br />
perfeito que se pu<strong>de</strong>sse arrancá-lo e, diante <strong>de</strong>ssa impossibilida<strong>de</strong>, resta à fotografia<br />
eternizá-lo. A maquiagem é, portanto, um objeto inconstante e volante (SERRES,<br />
2001, p. 28). Ao ser maquiada, “a pele do sujeito se objetiva, po<strong>de</strong>ria ser exposta no<br />
museu” (SERRES, 2001, p.28). Além <strong>de</strong> ela ser um arranjo estético que po<strong>de</strong><br />
transgredir os clichês e <strong>de</strong>rrubar simulacros preestabelecidos e persuadir os seus<br />
enunciatários.<br />
2.1 FASCÍNIO PERSUASIVO<br />
Entremos nas festas galantes on<strong>de</strong> rodopiam e dançam tantas<br />
máscaras e disfarces fantásticos: mostram-se, exibem-se, escon<strong>de</strong>mse,<br />
caem, mudam, em dado momento a pele se per<strong>de</strong>, a pessoa se<br />
afasta, as metamorfoses voam pelo ar. Nas quermesses amorosas, os<br />
dançarinos mudam <strong>de</strong> pele. Os <strong>de</strong>spojos que passam, vivos, lestos,<br />
<strong>de</strong>licados, no ar tênue, como espíritos, só são visíveis no instantâneo;<br />
Watteau, Verlaine os perceberam. Pequena explosão <strong>de</strong> alegria<br />
perigosa, on<strong>de</strong> a cosmética, enfeite preparado para a noite, apenas,<br />
<strong>de</strong>staca-se sobre a beleza, para a eternida<strong>de</strong>. (SERRES, 2001, p.28)<br />
Thelma Aucoin (Figs. 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22), na época da publicação do<br />
livro Making Faces (1995), era uma mulher sexagenária <strong>de</strong> origem simples que havia<br />
trabalhado durante toda a sua vida, com <strong>de</strong>staque para o trabalho social entre grupos<br />
<strong>de</strong> gays e lésbicas. Kevin Aucoin, seu filho e autor do livro acima referido, a<br />
consi<strong>de</strong>rava uma das melhores mo<strong>de</strong>los para as suas criações por causa da sua<br />
mente aberta e sem preconceitos. Desse modo, Aucoin, por meio da maquiagem, lhe<br />
construiu diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas ou diversas máscaras sociais: maquiagem<br />
91
natural (Fig. 18), clássica sensual (Fig.17 ), mo<strong>de</strong>rna (Fig. 19), coquete (Fig. 22), e<br />
sensualmente glamourosa estilo Marlene Dietrich (Fig. 21) ou estilo Coco Chanel (Fig.<br />
20). Aucoin fez <strong>de</strong> sua mo<strong>de</strong>lo uma mulher <strong>de</strong> mil faces efêmeras, que, assim como<br />
Serres <strong>de</strong>screve no texto em epígrafe, são diversos enfeites, nada inocentes,<br />
preparados para fascinar, admirar e persuadir.<br />
Figura 16: Thelma Aucoin. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 91.<br />
Figura 17: Thelma Aucoin com maquiagem sensual. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 90.<br />
Figura 18: Thelma Aucoin com maquiagem natural. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 41.<br />
Figura 19: Thelma Aucoin com maquiagem mo<strong>de</strong>rna. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 152.<br />
Figura 20: Thelma Aucoin como „Coco‟ Chanel. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 174.<br />
Figura 21: Thelma Aucoin como Marlene Dietrich. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 104.<br />
92
Figura 22: Thelma Aucoin coquete. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 40.<br />
Aucoin, além <strong>de</strong> materializar as palavras <strong>de</strong> Serres, parece comandado pela<br />
teoria <strong>de</strong> Charles Bau<strong>de</strong>laire (1988), uma vez que o maquiador escon<strong>de</strong> as manchas e<br />
rugas que a natureza semeou no rosto <strong>de</strong> sua mãe; <strong>de</strong>ixa a pele <strong>de</strong> Thelma uniforme,<br />
aproximando-a <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte, dando a ela, um ser humano comum, um ar divino<br />
e superior. Desse modo, Thelma causa fascínio e admiração por meio das maquiagens<br />
que são culturalmente um atributo tipicamente feminino 2 que o poeta elogiava,<br />
<strong>de</strong>fendia e incentivava no século XIX:<br />
A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma<br />
espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é<br />
2 Em alguns povos antigos ou grupos atuais, praticamente todos os primitivos, os Babilônios, os Assírios,<br />
os Egípcios, e em algumas épocas, <strong>de</strong>staque para o séc. XVII, na França, sob o comando do Rei-Sol,<br />
Luís XIV, a maquiagem era utilizada também pelos homens. (CORSON, 1972)<br />
93
preciso que <strong>de</strong>sperte admiração e que fascine; ídolo, <strong>de</strong>ve dourar-se<br />
para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para<br />
elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os corações e<br />
surpreen<strong>de</strong>r os espíritos. Pouco importa que a astúcia e o artifício<br />
sejam conhecidos <strong>de</strong> todos, se o sucesso está assegurado e o efeito é<br />
sempre irresistível. (BAUDELAIRE, 1988, p.202-203)<br />
Com certeza Bau<strong>de</strong>laire não se enganou ao afirmar que o conhecimento do<br />
artifício da maquiagem não impe<strong>de</strong> que o fascínio aconteça. Pelo contrário, favorece a<br />
enunciação e o fazer persuasivo entre os actantes encarnados. O impacto <strong>de</strong> uma<br />
maquiagem influi profundamente na aceitação <strong>de</strong> um indivíduo em um grupo social, em<br />
uma hexis corporal. Por ser um enunciado, a maquiagem po<strong>de</strong> ser entendida como um<br />
fazer persuasivo, uma vez que, para a semiótica, enten<strong>de</strong>-se que a enunciação prevê<br />
um fazer persuasivo e interpretativo entre um enunciador e um enunciatário. Assim, ao<br />
maquiar o rosto ou o corpo, ao adotar as mesmas marcas <strong>de</strong> um sujeito coletivo, um<br />
actante sujeito encarnado tenta conseguir a<strong>de</strong>são do enunciatário, que se condiciona<br />
pelo fazer interpretativo. Aucoin, enunciador, ao maquiar Thelma faz do seu rosto um<br />
enunciado que constrói um simulacro <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, tarefa que liga os universos<br />
axiológicos tanto do enunciador quanto do enunciatário.<br />
O fazer persuasivo ocorre porque “não se imagina que o enunciador produza<br />
discursos verda<strong>de</strong>iros, mas discursos que produzem um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”<br />
(GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.531). Assim, por mais fascinantes e vertiginosas que<br />
possam ser as pinturas <strong>de</strong> Thelma, po<strong>de</strong>-se perguntar: qual é a Thelma verda<strong>de</strong>ira?<br />
O crer verda<strong>de</strong>iro do enunciador não basta para transmitir uma verda<strong>de</strong>. Assim, do<br />
mesmo modo como Thelma adquire e mostra diversas máscaras sociais, um outro<br />
enunciador po<strong>de</strong> “dizer” o quanto quiser. Thelma se mostra segura e parece ser<br />
evi<strong>de</strong>nte que ela seja mo<strong>de</strong>rna, coquete, clássica ... Mas isto não significa que o<br />
enunciatário acredite em seus avatares. O crer verda<strong>de</strong>iro tem que estar estabelecido<br />
na outra ponta da comunicação. Greimas e Courtés (2008, p. 530) afirmam que é a<br />
partir do entendimento subentendido entre os dois cúmplices com certa consciência<br />
que se estabelece o contrato <strong>de</strong> veridicção.<br />
94
Aucoin propõe diversas maquiagens enunciados sobre o rosto <strong>de</strong> Thelma 3 , que<br />
é apresentado <strong>de</strong> maneiras diferentes e a cada novo avatar é criado um novo contrato<br />
<strong>de</strong> veridicção: Thelma com uma base numa tonalida<strong>de</strong> mais bronzeada que a sua pele<br />
natural; com um sombreado marrom esfumado sobre as pálpebras superiores; com<br />
lápis preto contornando os olhos; com cílios curvados e alongados com máscara preta;<br />
com sobrancelhas reforçadas pelo lápis marrom; com os lábios contornados por lápis<br />
cor <strong>de</strong> pele e cobertos por batom e gloss <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> rosa e caramelo que<br />
simulam a coloração natural e com blush <strong>de</strong> cor rosa aplicado sobre a região dos<br />
ossos da face, apresenta um visual mo<strong>de</strong>rno (Fig. 19). Aucoin segue à risca os<br />
conselhos <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire e “doura” sua mo<strong>de</strong>lo para que ela seja mo<strong>de</strong>rna. Desse<br />
modo, o rosto maquiado se torna um enunciado produtor <strong>de</strong> um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>, neste caso com um visual mo<strong>de</strong>rno, no intuito <strong>de</strong> conseguir a a<strong>de</strong>são do<br />
enunciatário, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do grupo social a que ambos pertençam. Os outros<br />
actantes encarnados, então, passam a interpretá-lo, são subjugados, surpreendidos<br />
até que consi<strong>de</strong>rem que aquele enunciado seja verda<strong>de</strong>iro ou falso, mentiroso ou<br />
secreto. Cabe lembrar que a enunciação acontece num tempo e num espaço e estes<br />
influirão no julgamento das aparências <strong>de</strong> Thelma. O mesmo processo acontece com<br />
todos os outros avatares apresentados por Thelma: Thelma clássica sensual (Fig.17 ),<br />
Thelma coquete (Fig. 22), e Thelma simulacro <strong>de</strong> “Coco” Chanel (Fig. 20) ou Marlene<br />
Dietrich (Fig. 21). A “Coco” Chanel e a Marlene Dietrich originais po<strong>de</strong>m ser<br />
observadas nas figuras. 23, 24 e 25:<br />
3 No caso da automaquiagem o sujeito actante encarnado é o próprio enunciador.<br />
95
Figura 23: Coco Chanel. Fonte: MUSEU DEL PERFUM, 2009.<br />
Figura 24: Marlene Dietrich. Fonte: BELAS ATRIZES DO MUNDO, 2009.<br />
Figura 25: Marlene Dietrich. Fontes: DEVIANTART, 2009.<br />
Assim, o fazer persuasivo, conforme <strong>de</strong>finem Greimas e Courtés (2008, p.368),<br />
seria a convocação <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s, pelo enunciador, para que o<br />
enunciatário aceite o contrato enunciativo proposto, tornando, assim, a comunicação<br />
eficaz. O fazer persuasivo po<strong>de</strong>, então, ser concebido sob dois aspectos da<br />
modalida<strong>de</strong> factitiva, que garante, <strong>de</strong>sse modo, o fazer persuasivo (enunciador) e o<br />
fazer interpretativo (enunciatário): visar ao ser do sujeito a modalizar, ou ao seu fazer<br />
eventual. No caso da maquiagem, refere-se ao primeiro, ou seja, é uma proposta feita<br />
ao ser do sujeito, fazendo uso das modalida<strong>de</strong>s veridictórias, uma vez que o fazer<br />
persuasivo é :<br />
como um fazer cognitivo que visa levar o enunciatário a atribuir ao<br />
processo semiótico ou a qualquer um <strong>de</strong> seus segmentos – que só<br />
po<strong>de</strong> ser por ele recebido como uma manifestação [representação] - o<br />
estatuto da imanência [referente ao verda<strong>de</strong>iro], a fazê-lo inferir do<br />
fenomenal [parecer] o numenal [ser]” (GREIMAS E COURTÉS, 2008, p.<br />
368).<br />
É a partir da colocação dos esquemas parecer/não-parecer (manifestação) e<br />
ser/não ser (imanência) que a categoria <strong>de</strong> veridicção é construída, como po<strong>de</strong> ser<br />
visto no quadrado semiótico abaixo (GREIMAS E COURTÉS, 2008, p. 532):<br />
96
segredo<br />
ser<br />
As modalida<strong>de</strong>s veridictórias, portanto, <strong>de</strong>terminam a relação do sujeito com o<br />
objeto e articulam-se, como categoria modal, em /ser/ vs. /parecer/. Ser é o estatuto<br />
veridictório exposto pela narrativa do sujeito, e parecer é o estatuto veridictório<br />
imputado a um estado por um observador, como um julgamento. Assim, a<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Thelma po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma verda<strong>de</strong>, ela parece e é mo<strong>de</strong>rna,<br />
contudo, sua manifestação como “diva”, por mais eficiente que seja, é mentira: ela<br />
parece, mas não é Marlene Dietrich ou Coco Chanel; ou ainda, o seu classicismo po<strong>de</strong><br />
ser consi<strong>de</strong>rado como uma falsida<strong>de</strong>, nem parecer e nem ser clássica, ou um segredo,<br />
não-parecer e ser completamente clássica. Do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, o campo <strong>de</strong><br />
veridicção teria o seguinte resultado, conforme <strong>de</strong>monstra Desi<strong>de</strong>rio Blanco (2008, p.<br />
14), no esquema tensivo 11 :<br />
verda<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong><br />
parecer<br />
não-parecer não-ser<br />
falsida<strong>de</strong><br />
mentira<br />
97
Ser +<br />
INT<br />
Não Ser -<br />
Segredo<br />
Falsida<strong>de</strong><br />
Verda<strong>de</strong><br />
Ilusão/<br />
Mentira<br />
- Não Parecer EXT Parecer +<br />
Com esse esquema, <strong>de</strong>monstra-se que, na correlação divergente entre<br />
intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>, quanto mais se é, menos se parece (Segredo), ou quanto<br />
mais parece, menos é (Mentira). Na correlação conversa, quanto mais se é, mais se<br />
parece (Verda<strong>de</strong>), ou quanto menos se é, menos se parece (Falsida<strong>de</strong>). Portanto, um<br />
enunciatário, no seu fazer interpretativo, ao perceber Thelma Aucoin como simulacro<br />
<strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20) ou Marlene Dietrich (Fig. 21) a julga como uma mentira, pois<br />
há a diminuição da intensida<strong>de</strong> da referência do Eu-Thelma (imanência) e aumenta-se<br />
a extensida<strong>de</strong> da manifestação (parecer): quanto mais se parece com Coco Chanel<br />
(Fig. 20) ou Marlene Dietrich (Fig. 21) menos se é Thelma Aucoin.<br />
É a partir da <strong>de</strong>cisão do enunciatário sobre o ser ou não ser do actante sujeito<br />
encarnado que aparece o conhecimento coletivo, proporcionado culturalmente, relativo<br />
às interpretações veridictórias, tais como as que <strong>de</strong>terminam as hexei corporais. A<br />
modalização do ser é que dá existência modal ao sujeito do estado e modifica a<br />
relação do sujeito com os valores (BARROS, 2003, p.88). Desse modo, a partir do<br />
esquema da manifestação (parecer/não parecer), Thelma Aucoin, a cada avatar<br />
apresentado, constrói suas máscaras transitórias, <strong>de</strong> acordo com os valores <strong>de</strong> cada<br />
grupo social, sem, contudo, per<strong>de</strong>r o seu Eu <strong>de</strong> referência, com exceção dos<br />
simulacros <strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20) e Marlene Dietrich (Fig. 21). Com base no<br />
pensamento <strong>de</strong> Landowski, po<strong>de</strong>-se dizer que a “evanescência das formas que<br />
98
passam 4 ” (2002, p.101) não prejudica a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da pessoa em cada maquiagem<br />
informada continuamente. Tanto para os grupos sociais quanto para os sujeitos<br />
individuais, as metamorfoses físicas, intelectuais e afetivas não proíbem a<br />
permanência, nem que seja para si mesmo, <strong>de</strong> serem eles mesmos, uma vez que<br />
existe em cada segmento social algo <strong>de</strong> inalterável, que supera as metamorfoses dos<br />
modos <strong>de</strong> ser. Assim, Thelma segue pelos percursos do parecer capaz <strong>de</strong> conduzi-la<br />
ao esquema <strong>de</strong> imanência (ser/não ser), como <strong>de</strong>terminam Greimas e Courtés (2008,<br />
p. 368):<br />
Partindo do parecer, Thelma (Fig. 16) recebe sobre a pele uma base <strong>de</strong><br />
tonalida<strong>de</strong> clara, pó facial translúcido; tem as sobrancelhas preenchidas sutilmente<br />
com traçados tipo pena na cor marrom claro, usa sombras <strong>de</strong> cor pêssego e marrom<br />
claro esfumadas sobre as pálpebras, tem os cílios cobertos por várias camadas <strong>de</strong><br />
máscara preta, as maçãs do rosto, a testa, a ponta do queijo e as têmporas coloridas<br />
com blush rosa claro; recebe sobre os lábios o batom na cor vermelho cereja e, <strong>de</strong>sse<br />
modo, <strong>de</strong>monstra ser coquete (Fig. 22), como também po<strong>de</strong>ria receber outras cores e<br />
tonalida<strong>de</strong>s em outros pontos <strong>de</strong> sombreado e contornos, como é feito nos <strong>de</strong>mais<br />
avatares, e não ser coquete.<br />
É no interior <strong>de</strong>sses percursos que, conforme explicam Greimas e Courtés, além<br />
<strong>de</strong> procurar transformar o semiótico em ontológico, são construídos os programas<br />
modais <strong>de</strong> persuasão. Assim, a construção visual, por meio das maquiagens fugazes<br />
ou das tatuagens e piercings permanentes, figurativizam as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s do corpo<br />
próprio (Seu Outro), e também <strong>de</strong>signam as hexei corporais dos grupos sociais.<br />
Percebe-se, portanto, que a maquiagem impressa sobre a superfície <strong>de</strong><br />
inscrição, um enunciado efêmero, seria o plano <strong>de</strong> expressão do <strong>de</strong>vir do actante<br />
sujeito enunciador encarnado. Os valores dos objetos também mudam <strong>de</strong> acordo com<br />
cada época, com cada classe social, com cada estética, assim como os materiais para<br />
expressar um conteúdo: cores e texturas dos batons (opacos, tonalida<strong>de</strong>s, brilho), dos<br />
blushes (tonalida<strong>de</strong>s, posicionamentos topológicos, opacida<strong>de</strong> ou brilho), das sombras,<br />
entre outros, como po<strong>de</strong> ser verificado em cada enunciação manifestada no rosto <strong>de</strong><br />
Thelma Aucoin.<br />
4 Landowski refere-se ao pensamento <strong>de</strong> Michel <strong>de</strong> Certeau (2002, p.101).<br />
99
100<br />
O que se observa a partir <strong>de</strong> Thelma e Seus Outros maquiados é que a<br />
maquiagem é um sinal constitutivo <strong>de</strong> um corpo percebido, da construção <strong>de</strong> uma<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa, é produto <strong>de</strong> um engendramento cultural. O efeito <strong>de</strong>ssa<br />
construção baseia-se na distinção feita pelos grupos sociais. Apesar da distância entre<br />
essa concepção social e a natureza, tais hexei corporais se tornam naturais para o<br />
grupo <strong>de</strong> origem, isto é, Thelma clássica (Fig. 17) é natural em relação ao grupo <strong>de</strong><br />
referência clássico. Desse modo, como explica Bourdieu (2008, p. 183), a maneira<br />
como o sujeito apresenta o seu corpo “é espontaneamente percebida como índice <strong>de</strong><br />
conduta moral” e, se, ao contrário do esperado, o corpo tiver a “aparência „natural‟”<br />
será tido como “índice <strong>de</strong> displicência, <strong>de</strong> abandono culpável à facilida<strong>de</strong>” (BOURDIEU,<br />
2008, p. 183).<br />
Produto social, o corpo - única manifestação sensível da “pessoa” – é<br />
comumente percebido como a expressão mais natural da natureza<br />
profunda: não há sinais propriamente “físicos”; <strong>de</strong>ste modo, a cor e a<br />
espessura do batom ou a configuração <strong>de</strong> uma mímica, assim como a<br />
forma do rosto ou da boca, são imediatamente lidas como índices <strong>de</strong><br />
uma fisionomia “moral”, socialmente caracterizada, ou seja, estados <strong>de</strong><br />
ânimo “vulgares” ou “distintos”, naturalmente “naturais” ou naturalmente<br />
“cultivados”. (BOURDIEU, 2008, p. 183)<br />
Para Bau<strong>de</strong>laire, o sucesso <strong>de</strong> uma maquiagem é certo e o seu efeito é sempre<br />
irresistível, por mais que se conheçam a astúcia e o artifício, <strong>de</strong> certo modo o poeta<br />
está certo. Sem dúvida alguma, as maquiagens <strong>de</strong> Thelma possuem um fascínio<br />
persuasivo, mas a eficácia 5 <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá dos enunciatários que a julgarão.<br />
2.2 CONVOCATÓRIA MODAL E ASSOCIAÇÃO DE VALORES NA<br />
NARRATIVIDADE DA MAQUIAGEM<br />
Conheço muito bem vossas pinturas; Deus vos <strong>de</strong>u um rosto e arrumais<br />
outro [...] (SHAKESPEARE 2009, p.34);<br />
Na epígrafe está a fala <strong>de</strong> Hamlet a Ofélia, no ato III, cena I, no momento em<br />
que os antigos namorados se reencontram. Contudo, po<strong>de</strong>ria ser dito a Thelma Aucoin,<br />
assim como para qualquer um <strong>de</strong> nós que se arrisca a corrigir as olheiras, valorizar os<br />
5 De acordo com Greimas e Courtés, o conceito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> vem sendo “substituído pelo <strong>de</strong> eficácia na<br />
reflexão epistemológica” (2008, p. 531).
lábios com diferentes cores e brilhos, aumentar ou diminuir os olhos, alterar a<br />
tonalida<strong>de</strong> da pele na tentativa <strong>de</strong> fascinar, seduzir e persuadir alguém para obter nem<br />
que seja um simples elogio.<br />
101<br />
Kevin Aucoin, maquiador enunciador, é efetivamente um sujeito competente na<br />
realização <strong>de</strong> sua performance, como po<strong>de</strong> ser observado nas transformações<br />
figurativas <strong>de</strong> Thelma. A narrativida<strong>de</strong> em semiótica é exatamente essa “transformação<br />
entre dois estados sucessivos e diferentes” (FIORIN, 2008b, p. 27). Desse modo, o<br />
maquiador possibilita a Thelma sair do seu Eu <strong>de</strong> referência, sem maquiagem,<br />
culturalmente recebido como displicência, e partir para manifestar as suas máscaras<br />
sociais. Para isso, além <strong>de</strong> todos os cosméticos que utiliza nas transformações do<br />
envelope corporal/superfície <strong>de</strong> inscrição, ele também convoca modalida<strong>de</strong>s para o<br />
jogo persuasivo das maquiagens para, assim, entrar em conjunção com o objeto <strong>de</strong><br />
valor (mo<strong>de</strong>rno, clássico sensual, natural, coquete, glamour à Marlene Dietrich ou à<br />
Coco Chanel).<br />
De acordo com Fontanille (2004a, p.142), o movimento intencional do actante<br />
relaciona-se com as modalida<strong>de</strong>s do fazer, já o envelope corporal, com as<br />
modalida<strong>de</strong>s do ser. Portanto, para transformar o envelope corporal em superfície <strong>de</strong><br />
inscrição, Thelma, por meio <strong>de</strong> uma automaquiagem, precisaria querer modificá-lo,<br />
como também <strong>de</strong>veria saber como modificá-lo para que pu<strong>de</strong>sse realizar sua<br />
transformação e entrar em conjunção com os valores <strong>de</strong> um meio social. Contudo,<br />
Thelma, nas páginas do livro <strong>de</strong> seu filho maquiador, é manipulada por ele: é o<br />
maquiador que faz com que Thelma queira, possa e seja clássica, mo<strong>de</strong>rna, coquete<br />
etc. Essas modalida<strong>de</strong>s (querer, po<strong>de</strong>r, ser) estão implícitas no processo <strong>de</strong><br />
transformação visual da mo<strong>de</strong>lo.<br />
Desse modo, Thelma, manipulada pelo maquiador, por uma vonta<strong>de</strong> própria<br />
(querer) ou por imposição (<strong>de</strong>ver) <strong>de</strong> um meio, permite que seja feita a maquiagem. O<br />
maquiador é dotado do conhecimento técnico e artístico do seu ofício: conhece (saber)<br />
as regras <strong>de</strong> uma maquiagem <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada hexis corporal, domina os métodos<br />
<strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> uma maquiagem e, portanto, é capaz (po<strong>de</strong>r) <strong>de</strong> realizar o seu<br />
objetivo, ou seja, fazer com que Thelma seja clássica, sensual, mo<strong>de</strong>rna, entre outras.<br />
Greimas e Courtés explicam que “os valores modais querer, <strong>de</strong>ver, po<strong>de</strong>r e saber,” são
capazes <strong>de</strong> modalizar tanto o ser quanto o fazer” (2008, p.315). A partir das<br />
exposições acima relacionadas, po<strong>de</strong>-se concluir que a maquiagem faz parte da<br />
construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa <strong>de</strong> um sujeito actante encarnado.<br />
Figurativida<strong>de</strong> esta que está a serviço <strong>de</strong> um fazer persuasivo que se estabelece entre<br />
o enunciador e enunciatário e se constrói <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma práxis enunciativa.<br />
102<br />
Nessa práxis, Thelma se motiva a modificar o seu envelope corporal por meio da<br />
maquiagem, e, até que isso efetivamente se realize, passa por tensões que<br />
<strong>de</strong>marcam esse percurso, isto é, a modalização no espaço tensivo assume o “aspecto<br />
<strong>de</strong> modulações <strong>de</strong> um continuum tensivo” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.<br />
229). As instâncias que balizam o percurso são constituídas pelos modos e níveis <strong>de</strong><br />
existência, que segundo Fontanille (2007, p. 175) se configuram a partir da categoria<br />
da presença e se distinguem segundo a lógica dos lugares. Veja-se o quadro 3<br />
(ZILBERBERG e FONTANILLE, 2001, p.231):<br />
Sujeito/objeto<br />
Endógena<br />
Sujeito/terceiro<br />
Exógena<br />
Modo<br />
Virtualizado<br />
Modo<br />
Potencializado<br />
Modo<br />
Atualizado<br />
Modo<br />
Realizado<br />
Motivações Crenças Aptidões Efetuações<br />
Querer Crer Saber Ser<br />
Dever A<strong>de</strong>rir Po<strong>de</strong>r Fazer<br />
Os modos existenciais são como estatutos dos objetos que a teoria da<br />
linguagem manipula, são também o meio pelo qual o campo perceptivo da presença é<br />
organizado. Logo, vale lembrar que as modulações da presença e ausência “fornecem<br />
a primeira modalização das relações entre o sujeito e o objeto tensivos, a modalização<br />
existencial” (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.131). Assim, os autores propõem<br />
a seguinte homologação:
103<br />
Greimas e Courtés (2008, p. 195) explicam que a <strong>de</strong>finição da existência<br />
semiótica dos sujeitos e dos objetos no discurso é <strong>de</strong> suma importância. Po<strong>de</strong>-se dizer,<br />
então, que quando Thelma (actante sujeito encarnado) vislumbra qualquer uma das<br />
hexei corporais dos grupos sociais, elas se tornam objetos-valor.<br />
(...) o valor que se investe no objeto visado semantiza, <strong>de</strong> algum modo,<br />
todo o enunciado, tornando-se no mesmo ato o valor <strong>de</strong> sujeito, que o<br />
encontra ao visar o objeto, e o sujeito se vê <strong>de</strong>terminado em sua<br />
existência semântica pela sua relação com o valor. Bastará, portanto,<br />
numa etapa posterior, dotar o sujeito <strong>de</strong> um querer-ser, para que o valor<br />
do sujeito, no sentido semiótico, transforme-se em valor para o sujeito,<br />
no sentido axiológico do termo 6 . (GREIMAS, 1989, p, 27)<br />
Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer que Thelma e as hexei corporais são,<br />
respectivamente, sujeito e objetos semióticos, pois estão em relação, já que os sujeitos<br />
atribuem um valor aos objetos e estes são visados pelos sujeitos. Ambos, sujeito e<br />
objeto, são entida<strong>de</strong>s que comportam as transformações que as afetam e procuram<br />
lhes dar um sentido: “uma direção e, por isso, primeiro, uma significação e um valor”<br />
(LANDOWSKI, 2002, p.103).<br />
PLENITUDE VACUIDADE<br />
Realizante virtualizante<br />
FALTA INANIDADE<br />
Atualizante potencializante<br />
Portanto, somente quando houver a junção <strong>de</strong> Thelma com o glamour, com o<br />
clássico sensual, com o mo<strong>de</strong>rno, entre outras, é que eles existirão semioticamente.<br />
Assim, tanto Thelma (sujeito) quanto os mundos (objetos valores) antes da junção são<br />
6 Grifo do autor. (...) el valor que se vierte en el objeto enfocado semantiza en cierto modo el enunciado<br />
entero, y se convierte <strong>de</strong> golpe en el valor <strong>de</strong>l sujeto que se encuentra con él al enfocar el objeto, y el<br />
sujeto se ve <strong>de</strong>terminado en su existencia semántica por su relación con el valor. Bastará por tanto, en<br />
una etapa ulterior, con dotar al sujeto <strong>de</strong> un querer-ser para que el valor <strong>de</strong>l sujeto, en el sentido<br />
semiótico, se transforme en valor para el sujeto, en el sentido axiológico <strong>de</strong> este término.
virtuais e apenas serão atualizados a partir da função semiótica (relação entre forma<br />
da expressão e forma do conteúdo). Enquanto o sujeito negar a disjunção com o<br />
objeto, ambos continuarão atualizados, somente após a conjunção [Thelma<br />
glamourosa] ou [Thelma mo<strong>de</strong>rna] é que todos serão realizados. Somente quando<br />
Thelma (sujeito) tornar real o que era visado (os mundos glamourosos, mo<strong>de</strong>rnos,<br />
clássicos, entre outros), é que, consequentemente, estes se realizam também.<br />
Thelma e os objetos <strong>de</strong> valor passam por dois percursos com entradas e saídas<br />
no campo <strong>de</strong> presença. Thelma, para preencher a lacuna social <strong>de</strong> sua carne, ainda<br />
“adormecida” no campo <strong>de</strong> presença, precisa atingir a plenitu<strong>de</strong> com seus envelopes<br />
sociais. Então, parte <strong>de</strong>ssa vacuida<strong>de</strong>, com uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> presença mínima, para<br />
o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> uma falta que a mobiliza em um campo aberto, cujo foco é firmado na<br />
intensida<strong>de</strong> da tensão instaurada entre o sujeito e o objeto, até alcançar a plenitu<strong>de</strong>,<br />
um sujeito realizado, com foco e apreensão tônicos. Thelma, <strong>de</strong>sse modo, segue pelo<br />
primeiro caminho no campo <strong>de</strong> presença: do virtual, atualizante e realizante, um<br />
percurso <strong>de</strong> ascendência em uma correlação conversa, como é <strong>de</strong>monstrado no<br />
esquema tensivo 12:<br />
Tônico<br />
INT<br />
Átono<br />
Falta<br />
Atualizante<br />
Vacuida<strong>de</strong><br />
Virtualizante<br />
Átono EXT Tônico<br />
Plenitu<strong>de</strong><br />
Realizante<br />
104<br />
Inanida<strong>de</strong><br />
Potencializante
105<br />
Após a realização <strong>de</strong> qualquer uma das máscaras sociais, acontece um<br />
fechamento do campo <strong>de</strong> presença, já que a apreensão <strong>de</strong>marca o domínio e<br />
circunscreve o objeto, consequentemente o foco se torna átono, <strong>de</strong>vido ao costume do<br />
observador com a presença <strong>de</strong> Thelma maquiada. Sua presença, porém, continua a<br />
tomar espaço no eixo da extensida<strong>de</strong>, e Thelma po<strong>de</strong> ser mais bem apreendida. Desse<br />
modo,Thelma maquiada se torna um sujeito sem tensões (distendido), isto é, um<br />
sujeito potencializado, após a saturação do uso <strong>de</strong> sua maquiagem. Quando Thelma<br />
retirar a maquiagem, ela voltará ao vazio social da matéria carnal, entretanto, com uma<br />
máscara social já memorizada. O percurso passa a ser do realizante, potencializante e<br />
virtualizante, um percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência em uma correlação conversa que segue do<br />
realizado ao virtualizado, passando pela potencialização, conforme o esquema tensivo<br />
13:<br />
Tônico<br />
INT<br />
Átono<br />
Falta<br />
Atualizante<br />
Vacuida<strong>de</strong><br />
Virtualizante<br />
Átono EXT Tônico<br />
Plenitu<strong>de</strong><br />
Realizante<br />
Inanida<strong>de</strong><br />
Potencializante
2.2.1 Os valores semióticos<br />
106<br />
Quantas mulheres po<strong>de</strong>m ser vistas diariamente pelas ruas harmonicamente<br />
maquiadas, com olhos suntuosos, com a pele fresca e uniforme e os lábios<br />
perfeitamente <strong>de</strong>lineados e estonteantemente coloridos e vibrantes? Em um dia <strong>de</strong><br />
semana, em horário comercial, raríssimas. Em uma festa à noite em um evento<br />
fechado, algumas. Harmonia <strong>de</strong> cores, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fixação, acabamento impecável e<br />
<strong>de</strong>licado, pele clara, uniforme e opaca, pós-faciais finos, batons com espessura fina<br />
que hidratam e cobrem os lábios com cores elegantes, do opaco <strong>de</strong>nso ao brilho<br />
imponente, estes são valores <strong>de</strong> uma maquiagem sensual glamourosa como a <strong>de</strong><br />
Thelma. O acesso aos produtos apropriados para uma maquiagem com esse efeito é<br />
para poucos, já que a alta qualida<strong>de</strong> equivale ao preço.<br />
O valor semiótico do objeto também é orientado pelas duas dimensões<br />
(intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>) que se tornam valências. A maquiagem glamourosa<br />
possui, por conseguinte, valores <strong>de</strong> absoluto: é <strong>de</strong>slumbrante em intensida<strong>de</strong> e<br />
concentrada em extensida<strong>de</strong>, tal qual seu mundo <strong>de</strong> referência. Isto significa que há<br />
muita técnica e muitos produtos dispendiosos concentrados sobre os rostos <strong>de</strong> poucas<br />
pessoas.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, como explica Zilberberg (2008), a distinção entre os<br />
valores <strong>de</strong> absoluto e <strong>de</strong> universo <strong>de</strong>senvolveu-se a partir das seguintes<br />
consi<strong>de</strong>rações:<br />
I – os valores são por continuida<strong>de</strong> complexos, a tensivida<strong>de</strong> é o lugar<br />
<strong>de</strong> reencontro e ajustamento entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong> entre<br />
o sensível e o inteligível, se bem que dizer <strong>de</strong> um valor que ele é<br />
tensivo volta a dizer que ele é complexo;<br />
II – a complexida<strong>de</strong> é o pressuposto para qualquer análise, é uma<br />
função canônica ou uma coincidência.<br />
III – a distinção entre os valores absolutos e <strong>de</strong> universo é sustentada<br />
por uma correlação divergente entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>,<br />
assim cada tipo <strong>de</strong> valor conjuga um i<strong>de</strong>al, um superlativo e uma<br />
nulida<strong>de</strong>,como sugere o diagrama seguinte 7 :<br />
7 (i) les valeurs sont par continuité complexes, puisque la tensivité n‟est rien d‟autre que le lieu <strong>de</strong><br />
rencontre et d‟ajustement entre l‟intensité et l‟extensité, entre le sensible et l‟intelligible, si bien que dire<br />
d‟une valeur qu‟elle est tensive revient à dire qu‟elle est complexe ; (ii) la complexité est le présupposé
Esquema tensivo 14<br />
Impacto<br />
INT<br />
Fraqueza<br />
Concentração EXT Difuso<br />
107<br />
De acordo com Zilberberg (2008), “os valores <strong>de</strong> absoluto são impactantes em<br />
intensida<strong>de</strong> e concentrado em extensida<strong>de</strong>, enquanto os valores <strong>de</strong> universo são fracos em<br />
intensida<strong>de</strong> e difuso em extensida<strong>de</strong>” 8 . Po<strong>de</strong>-se dizer que a maquiagem glamourosa,<br />
estilo <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> absoluto, tem um regime axiológico <strong>de</strong> exclusão-concentração,<br />
operado pela triagem, que resulta da correlação divergente entre as valências<br />
intensivas e extensivas, regida pela disjunção. Isso po<strong>de</strong> significar que uma<br />
maquiagem com um visual mais natural, com um olho contornado por lápis, sem<br />
cobertura total da pele e apenas com correção <strong>de</strong> olheiras, com aplicação <strong>de</strong> batons<br />
sem contorno dos lábios, tem um valor <strong>de</strong> universo: menos produtos, menos técnica<br />
sobre o rosto <strong>de</strong> várias mulheres, no cotidiano. Trata-se <strong>de</strong> um regime <strong>de</strong> participação<br />
e expansão, cujo operador é a mistura. A correlação é estabelecida pela convergência<br />
entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>, na qual há participação <strong>de</strong> mais pessoas regidas<br />
pela conjunção. Cabe observar que uma mesma maquiagem realizada com produtos<br />
qualitativamente diferentes possuem valores também distintos.<br />
Valores <strong>de</strong> absoluto<br />
Valores <strong>de</strong> universo<br />
<strong>de</strong> toute analyse, qu‟elle porte sur une fonction canonique ou sur une coïnci<strong>de</strong>nce ; (iii) la distinction<br />
entre les valeurs d‟absolu et les valeurs d‟univers est soutenue par une corrélation inverse entre<br />
l‟intensité et l‟extensité, si bien que chaque type <strong>de</strong> valeur conjugue un optimum, un superlatif et une<br />
nullité, comme le suggère le diagramme suivant :<br />
8 Les valeurs d‟absolu sont éclatantes en intensité et concentrées en extensité, tandis que les valeurs<br />
d‟univers d‟univers sont faibles en intensité et diffuses en extensité.
2.3 PRÁXIS ENUNCIATIVA<br />
108<br />
As gran<strong>de</strong>s batalhas, os reinados e as <strong>de</strong>scobertas da ciência são<br />
alguns dos marcos tradicionalmente evocados para se contar a história<br />
da humanida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos, no entanto, „ler‟ essa mesma história através<br />
<strong>de</strong> sinais do cotidiano, entre eles a maquiagem, pois a pintura corporal<br />
e a facial sempre representaram, como um documento vivo, o modo <strong>de</strong><br />
vida das civilizações ao longo dos séculos. Reis, sacerdotes,<br />
camponeses e escravos empregaram-na como importante forma <strong>de</strong><br />
expressão, fosse para insinuar po<strong>de</strong>r e força, para assustar o inimigo,<br />
para <strong>de</strong>monstrar respeito e temor às divinda<strong>de</strong>s, ou até mesmo para<br />
dar forma a um simples impulso <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, a<br />
evolução da maquiagem é uma outra forma, colorida e vibrante, <strong>de</strong> se<br />
contar a história do mundo (LEÃO, 1997).<br />
Como foi visto no capítulo anterior, as hexei corporais são estabelecidas<br />
culturalmente, do mesmo modo como a práxis enunciativa é constituída por “formas<br />
discursivas que o uso das comunida<strong>de</strong>s sócio- culturais fixa sob a forma <strong>de</strong> tipos, <strong>de</strong><br />
estereótipos ou <strong>de</strong> esquemas” (TEIXEIRA, 2001a, p. 45). Po<strong>de</strong>-se dizer, portanto, que<br />
a maquiagem se baseia na articulação das formas discursivas dos atos individuais da<br />
enunciação com os significados que são constituídos culturalmente. A maquiagem<br />
como práxis enunciativa po<strong>de</strong> ser, <strong>de</strong>sse modo, uma criação ou o resultado <strong>de</strong> uma<br />
bricolage 9 que reaproveita elementos <strong>de</strong> outras criações. Conforme explica Teixeira<br />
(2001a), “a originalida<strong>de</strong> do discurso vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dos modos como reage ou respon<strong>de</strong><br />
à exploração dos resíduos discursivos que acolhe”. Por isso a enunciação passou a ser<br />
concebida por Schulz (1995) como uma articulação das formas discursivas do ato<br />
enunciativo individual com as organizações culturais estabelecidas, “que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />
da iniciativa particular do sujeito enunciador, mas que o incluem numa práxis<br />
enunciativa (TEIXEIRA, 2001a, p. 45).<br />
Por isso é possível “contar uma história” por meio da maquiagem. Isso significa<br />
narrar algo que está retido na memória e, se uma maquiagem está guardada na<br />
memória, é porque seu colorido e sua vibração foram, em algum lugar e em algum<br />
momento, sentidos mais intensamente, foram vivos, plenos e fixados culturalmente.<br />
Houve por parte dos sujeitos percebedores, nesses tempos <strong>de</strong> mais intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
9 Zilberberg e Fontanille (2001, p. 174) <strong>de</strong>stacam a metáfora da bricolage, elaborada por Lévi-Strauss e<br />
utilizada por Jean-Marie Floch, <strong>de</strong> cunho figurativo, na qual há conjuntos <strong>de</strong> figuras e motivos, oriundos<br />
<strong>de</strong> universos semióticos heterogêneos e, muitas vezes, <strong>de</strong>sconhecidos entre si, e que são convocados<br />
para constituir outros discursos com axiologias diferentes das originais.
estilo <strong>de</strong> maquiagem, espanto diante <strong>de</strong> um objeto novo. Admiração que vai diminuindo<br />
com o ganho da distância espacial e temporal <strong>de</strong> uma maquiagem que vai per<strong>de</strong>ndo<br />
intensida<strong>de</strong> e ganhando extensida<strong>de</strong> até que tenha se tornado um estereótipo e seja<br />
potencializada para uma futura convocação. Mas também po<strong>de</strong>ria se virtualizar e cair<br />
no esquecimento.<br />
Figura 26: Rita Hayworth. Fonte: SCREEN MEMORIES, 2009.<br />
Figura 27: Camila Espinosa como Rita Hayworth. Fonte: Molinos, 2000, p.198.<br />
Po<strong>de</strong>ria utilizar qualquer tipo <strong>de</strong> maquiagem e <strong>de</strong> qualquer época para explicar a<br />
maquiagem como práxis enunciativa. Preferi escolher uma não tão remota, em uma<br />
época <strong>de</strong> conflito histórico generalizado e que, ao mesmo tempo, aproveitasse os<br />
valores glamourosos que vêm sendo relevantes nesta pesquisa. Portanto, <strong>de</strong>staco a<br />
maquiagem <strong>de</strong> um ícone sensual glamouroso do cinema americano: Rita Hayworth,<br />
figura 26, durante os anos 40, época em que a cor vermelha dos batons vibrava sobre<br />
os lábios cheios e <strong>de</strong>lineados; as sobrancelhas eram <strong>de</strong>senhadas e mais espessas que<br />
109
na década anterior e davam um efeito agressivo e sensual. Um discurso com cores<br />
vivas e sensuais para amenizar o sofrimento provocado nos anos <strong>de</strong> guerra.<br />
110<br />
Enquanto a Europa sofria com as atrocida<strong>de</strong>s da guerra, os Estados Unidos<br />
enviavam soldados após o bombar<strong>de</strong>io <strong>de</strong> Pearl Harbour, em 1941, época em que o<br />
cinema tornou-se um trunfo, já que junto com os aliados chegaram à Europa as atrizes<br />
<strong>de</strong> Hollywood que faziam shows para as tropas. O glamour dos anos 30 foi substituído<br />
pelo heroísmo e as mulheres realçavam a sensualida<strong>de</strong> para que fossem imaginadas<br />
como “a moça que espera por mim quando eu voltar da guerra” (VITA, 2008, p.124).<br />
Na maquiagem dos anos 40, além do resgate da rigi<strong>de</strong>z dos padrões da beleza<br />
clássica, são difundidos os cílios postiços, o pancake 10 e o rouge 11 .<br />
Duda Molinos, em 2000, reconvoca a cor vermelha dos batons, as sobrancelhas<br />
<strong>de</strong>senhadas e espessas conforme o discurso <strong>de</strong> Hayworth, colocado em memória, e o<br />
realiza novamente, agora, sobre o rosto <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), simulacro <strong>de</strong><br />
Rita Hayworth. Um mesmo enunciado, em outro tempo e num outro espaço. Agora<br />
não mais para persuadir soldados <strong>de</strong> guerra, mas para enunciar a maquiagem<br />
cristalizada dos anos 40. Percebe-se, portanto, que, além da relação da maquiagem<br />
com os momentos históricos e sociais <strong>de</strong> cada época, algumas cores se evi<strong>de</strong>nciam,<br />
outras <strong>de</strong>saparecem, alguns produtos vão sendo esquecidos e outros aprimorados,<br />
novos usos, novas formas, novas figuras vão ganhando espaço sobre os rostos dos<br />
sujeitos actantes encarnados. Verifica-se que num outro momento o mesmo irá<br />
acontecer, muitos produtos, cores e formas <strong>de</strong>saparecerão e muitos outros surgirão.<br />
São inovações, criações e bricolages no discurso da maquiagem.<br />
Quais são os valores glamourosos da maquiagem mais recentes? Desaparece o<br />
pancake, consi<strong>de</strong>rado muito artificial, e propagam-se as bases suaves com um leve<br />
brilho dourado sobre todo o rosto e colo. Cai em <strong>de</strong>suso o vermelho vivo para os lábios<br />
e surgem os tons <strong>de</strong> cereja sobre os lábios <strong>de</strong>lineados com lápis em um tom mais<br />
escuro que a pele natural da mo<strong>de</strong>lo. Os cílios postiços se tornam excessivos para<br />
os olhos atuais, são aceitos apenas para os shows, ópera e teatro. Destacam-se as<br />
máscaras para alongar os cílios, continuam os lápis para sobrancelhas. Sombras<br />
10 Base compacta <strong>de</strong>nsa, criada por Max Factor, que podia cobrir muitas imperfeições da pele.<br />
11 Antecessor do blush, nos anos 40 estava em voga o rouge opalescent da Helena Rubinstein.
creme num tom cinza marrom em toda a<br />
pálpebra e na linha dos cílios inferiores são<br />
usados para expressar todo o erotismo sensual<br />
da femme fatale mo<strong>de</strong>rna, Julia Roberts, figura<br />
28. Aucoin <strong>de</strong>screve da seguinte maneira<br />
essas mudanças <strong>de</strong> valores:<br />
111<br />
Nos tempos <strong>de</strong> guerra,<br />
durante os anos 40, a<br />
América criou uma<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fugir e <strong>de</strong><br />
criar fantasia. E Hollywood<br />
estava pronta, como sempre,<br />
para explorar a necessida<strong>de</strong><br />
do cidadão <strong>de</strong> sonhar. Hedy<br />
Lamarr, Gene Tierney, e,<br />
especialmente, por causa do<br />
seu cabelo vermelho<br />
flamejante, Rita Hayworth,<br />
era a amante, a rainha do<br />
glamour e da sedução do seu<br />
tempo. Levando o nome da<br />
mitologia grega, essas<br />
<strong>de</strong>usas <strong>de</strong> celulói<strong>de</strong><br />
seduziam e imobilizavam <strong>de</strong><br />
admiração legiões <strong>de</strong><br />
cinéfilos com uma<br />
sobrancelha arqueada e olhar<br />
intenso em uma direção. Julia Roberts, com seu olhar sedutor e<br />
erotismo sensual, é uma versão mo<strong>de</strong>rna da eterna femme fatale 12 Figura 28: Julia Roberts.<br />
Fonte: AUCOIN, 1995, p. 118).<br />
.<br />
(AUCOIN, 1995, p. 119)<br />
Além da exploração criativa da remanescência discursiva das femmes fatales<br />
dos anos 40, a originalida<strong>de</strong> do discurso das maquiagens glamourosas mo<strong>de</strong>rnas tem<br />
como aliada a alta tecnologia dos produtos cosméticos da atualida<strong>de</strong>. O aparecimento<br />
e o <strong>de</strong>saparecimento dos enunciados, <strong>de</strong> um modo geral e, em particular, da<br />
12 Wartime 1940s America created a need for escape and fantasy. And Hollywood was ready, as always,<br />
to exploit the average citizen's need to dream. Hedy Lamarr, Gene Tierney, and especially because of<br />
her flaming red hair, Rita Hayworth, were the paramours, glamour queens and sirens of their time. Taking<br />
the name from Greek mythology, these celluloid god<strong>de</strong>sses lured and transfixed legions of moviegoers<br />
with an arched brow and come hither stare. Julia Roberts, with her seductive gaze and sensual eroticism,<br />
is a mo<strong>de</strong>rn-day version of this eternal femme fatale.
maquiagem, assim como das formas semióticas no campo do discurso ou, ainda, “o<br />
encontro entre o enunciado e a instância que lhe assume” (FONTANILLE, 2007, 271),<br />
originam-se na práxis enunciativa.<br />
112<br />
A práxis enunciativa administra essa presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas<br />
discursivas no campo do discurso: ela convoca ou invoca no discurso<br />
os enunciados que compõem o campo. Ela os assume mais ou menos,<br />
ela lhes atribui graus <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> e uma certa quantida<strong>de</strong>. Ela<br />
recupera formas esquematizadas pelo uso ou, ainda, estereótipos e<br />
estruturas cristalizadas. Ela as reproduz tais como são ou as <strong>de</strong>svirtua<br />
e lhes fornece novas significações. Ela também apresenta outras<br />
formas e estruturas, inovando <strong>de</strong> forma explosiva, assumindo-as como<br />
irredutivelmente singulares ou propondo-as para um uso mais<br />
amplamente difundido. (FONTANILLE, 2007, p. 271-272)<br />
Zilberberg e Fontanille (2001, p. 174) explicam que as gran<strong>de</strong>zas engendradas a<br />
partir <strong>de</strong> um discurso e as fixadas pelo uso convivem no <strong>de</strong>correr da evolução <strong>de</strong> uma<br />
cultura, dos seus discursos e da sua respectiva propagação. Assim, as gran<strong>de</strong>zas <strong>de</strong><br />
estatutos distintos só po<strong>de</strong>m conviver num mesmo discurso a partir da relação que<br />
elas têm com os diferentes modos <strong>de</strong> existência. A práxis enunciativa, então, manipula<br />
os modos <strong>de</strong> existência para po<strong>de</strong>r adquirir uma dialética <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong><br />
sedimentação, como também concorrer para a formação da dimensão retórica dos<br />
discursos. A práxis é exercida no campo do discurso <strong>de</strong> domínio espaço-temporal em<br />
cujo processo semiótico se distinguem três fases aspectuais: emergente, em processo<br />
ou concluída.<br />
Quando Margarita Carmen Cansino 13 , modalizada pelo querer virtual, toma a<br />
sua posição no mundo hollywoodiano e torna o seu envelope corporal uma superfície<br />
<strong>de</strong> inscrição, por meio do um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem é, então, criado um campo <strong>de</strong><br />
presença perceptivo. As primeiras articulações nesse campo são as valências<br />
intensivas e extensivas, isto é, uma intensida<strong>de</strong> sensível e afetiva e uma extensão<br />
perceptiva. Este processo ocorre durante a fase <strong>de</strong> emergência <strong>de</strong> uma forma.<br />
13 É comum entre as personalida<strong>de</strong>s, os artistas e os políticos, as mudanças <strong>de</strong> nome e <strong>de</strong> imagem.<br />
Não foi diferente com Rita Hayworth, registrada pelos pais como Margarita Carmen Cansino,<br />
artisticamente adotou primeiramente o nome <strong>de</strong> Rita Cansino com o qual trabalhou <strong>de</strong> 1935 até 1937,<br />
quando adotou o sobrenome <strong>de</strong> sua mãe Hayworth e, além do nome, mudou também a cor dos cabelos<br />
para ruivo (auburn).
113<br />
A fase seguinte, do processo, correspon<strong>de</strong> ao discurso em ato propriamente<br />
dito, ou seja, quando Rita Hayworth, com lábios precisamente <strong>de</strong>lineados e cheios <strong>de</strong><br />
batom vermelho, com cílios postiços e sobrancelhas <strong>de</strong>senhadas e espessas, vai<br />
enunciando a sua sensualida<strong>de</strong> glamourosa no mundo glamouroso e sensual <strong>de</strong><br />
Hollywood. Agora se trata <strong>de</strong> um campo esquemático no qual se instauram as formas<br />
discursivas e os valores se evi<strong>de</strong>nciam. As formas discursivas, no caso da maquiagem,<br />
são os “comportamentos somáticos significantes, manifestados pelas or<strong>de</strong>ns<br />
sensoriais” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.144) que geralmente qualificam o ator<br />
figurativo 14 . Assim, nesse momento, quem é visto e percebido é o ator Rita Hayworth,<br />
actante sujeito encarnado, cuja pele foi transformada em superfície <strong>de</strong> inscrição pela<br />
operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que projetou o próprio do meio glamouroso sobre o não<br />
próprio da materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Margarita Carmem Cansino. Rita Hayworth, <strong>de</strong>sse modo,<br />
foi engendrada para ser glamourosa, sensual e persuasiva.<br />
Após Rita Hayworth (Fig. 26) ter enunciado toda a sua sensualida<strong>de</strong> e glamour,<br />
o campo <strong>de</strong> discurso transforma-se em um conjunto <strong>de</strong> diferenças, um lugar <strong>de</strong><br />
categorizações, ou seja, conforme revela Fontanille, um campo diferencial, no qual o<br />
discurso (unida<strong>de</strong> semiótica construída) <strong>de</strong> Rita Hayworth será <strong>de</strong>finido com a ajuda<br />
dos conceitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e alterida<strong>de</strong>, “um par inter<strong>de</strong>finível pela relação <strong>de</strong><br />
pressuposição recíproca”, como <strong>de</strong>finem Greimas e Courtés (2008, p. 251),<br />
imprescindível no estabelecimento da construção da significação. É a relação reflexiva<br />
da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> reconhecida por meio da alterida<strong>de</strong>, da necessida<strong>de</strong> do outro para<br />
chegar à existência semiótica.<br />
O campo <strong>de</strong> presença, o campo esquemático e o campo diferencial, portanto,<br />
constituem o campo do discurso em um domínio espaço-temporal. A Práxis enunciativa<br />
é o domínio tanto dos discursos singulares quanto da memória cultural e dos<br />
esquemas semióticos. Apesar da fugacida<strong>de</strong> da maquiagem, ela guarda nos traços,<br />
nas cores e nas texturas sinais <strong>de</strong> histórias, particulares e universais. Po<strong>de</strong>-se<br />
14 De acordo com Greimas e Courtés, “o termo ator foi substituindo progressivamente personagem (ou<br />
dramatis persona) <strong>de</strong>vido a uma maior preocupação com a precisão e a generalização (um tapete<br />
voador ou uma socieda<strong>de</strong> comercial, por exemplo, são atores), <strong>de</strong> modo a possibilitar o seu emprego<br />
fora do domínio exclusivamente literário. O ator é obtido pelos procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem e <strong>de</strong><br />
embreagem – que remete diretamente à enunciação (...) O ator po<strong>de</strong> ser individual (Pedro) ou coletivo (a<br />
multidão), figurativo (antropomorfo ou zoomorfo) ou não figurativo (o <strong>de</strong>stino)”. (2008, p. 44-45)
enxergá-la com olhos <strong>de</strong> historiadores, <strong>de</strong> sociólogos, <strong>de</strong> filósofos, <strong>de</strong> antropólogos e<br />
<strong>de</strong> semioticistas, com os quais estes últimos são capazes <strong>de</strong> distinguir, além da<br />
dimensão pragmática e cognitiva, a dimensão sensível/vertiginosa do enunciado da<br />
maquiagem, que enquanto for novida<strong>de</strong> provocará impactos, contudo, quando se<br />
estabilizar e se tornar conhecido, proporcionará conforto ao enunciatário.<br />
2.3.1 As gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência<br />
114<br />
Po<strong>de</strong>-se afirmar que a maquiagem <strong>de</strong> Rita Hayworth (Fig. 26), além <strong>de</strong> ser<br />
constituída por valores engendrados por um meio social, também traz gran<strong>de</strong>zas<br />
engendradas por um sistema, que foram fixadas pelo uso. Zilberberg e Fontanille<br />
(2001, p.174) explicam que tanto na evolução da cultura quanto nos discursos que a<br />
formam há o convívio <strong>de</strong> pelo menos duas <strong>de</strong>ssas referidas gran<strong>de</strong>zas. E, para que<br />
haja o convívio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas diferentes em um mesmo discurso, como uma bricolage,<br />
é necessário que elas estejam em conexão com diferentes modos <strong>de</strong> existência<br />
(virtualizado, atualizado, potencializado e realizado), promovendo uma conversão da<br />
copresença em espessura discursiva e uma projeção <strong>de</strong> articulações modais sobre o<br />
campo do discurso.<br />
Assim, para administrar as diferentes gran<strong>de</strong>zas semióticas <strong>de</strong> um discurso em<br />
ato, ocorre uma disposição do que Zilberberg e Fontanille (2001, p.175) chamam <strong>de</strong><br />
„produtos‟ da práxis enunciativa e os modos <strong>de</strong> existência:<br />
Modo Virtual (...) é o modo das estruturas <strong>de</strong> um sistema subjacente, da<br />
competência formal disponível no momento da produção do sentido.<br />
Modo Atualizado é aquele das formas que advêm no discurso e das<br />
condições para que elas ali advenham: a atualização <strong>de</strong> um cromatismo<br />
em uma imagem(...).<br />
Modo realizado é justamente o modo pelo qual a enunciação faz as<br />
formas do discurso encontrarem-se com uma realida<strong>de</strong>, realida<strong>de</strong><br />
material do plano da expressão, realida<strong>de</strong> do mundo natural e do<br />
mundo sensível no plano do conteúdo.<br />
Uma forma é consi<strong>de</strong>rada potencializada quando sua difusão ou seu<br />
reconhecimento são tais que ela po<strong>de</strong> figurar como tópos do discurso<br />
(tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações). O<br />
modo virtualizado (nunca voltamos ao virtual propriamente dito, pois<br />
estamos ainda no discurso em ato) é aquele das gran<strong>de</strong>zas que servem<br />
<strong>de</strong> segundo plano ao funcionamento das figuras do discurso: o ato<br />
semiótico consiste, então, em realizar uma figura, em remeter uma
115<br />
outra figura ao estado virtualizado e em colocá-las em interação <strong>de</strong><br />
modo que, no momento da interpretação, o enunciatário seja conduzido<br />
a ir e vir <strong>de</strong> uma figura a outra (FONTANILLE, 2007, p. 276)<br />
Quando Rita Hayworth (Fig, 26) se enuncia sensual e glamourosa, parte do<br />
modo virtual, do qual fazem parte as estruturas <strong>de</strong> um sistema (actantes, modalida<strong>de</strong>s)<br />
e a competência formal disponível no momento da produção do sentido. As cores,<br />
vermelha sobre os lábios, marrons que <strong>de</strong>lineiam e <strong>de</strong>ixam espessas as sobrancelhas,<br />
o pancake que uniformiza a pele e o rouge que dá cor às maçãs do rosto, atualizam o<br />
discurso <strong>de</strong> Hayworth que se realiza ao encontrar com o mundo cinematográfico <strong>de</strong><br />
Hollywood. Desse modo, o ato produtor do discurso <strong>de</strong> significação é, a princípio, uma<br />
tensão entre o virtual, ainda fora do campo <strong>de</strong> discurso, e o realizado, centro do campo<br />
do discurso, intermediado pelo modo atualizado.<br />
Entretanto, em relação à maquiagem-enunciado <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), o<br />
ato produtor do discurso faz um movimento inverso, uma vez que a maquiagem é<br />
realizada a partir <strong>de</strong> uma forma potencializada disponível para outras convocações.<br />
Assim, quando Espinosa usa os lábios precisamente <strong>de</strong>lineados e cheios <strong>de</strong> batom<br />
vermelho, os cílios postiços e as sobrancelhas <strong>de</strong>senhadas e espessas potencializadas<br />
pelo discurso <strong>de</strong> Hayworth, um tópos do discurso, o ato semiótico irá realizar a figura<br />
<strong>de</strong> Hayworth e remeter a figura <strong>de</strong> Espinosa ao estado virtualizado, colocando-as em<br />
interação. Desse modo, no instante em que o enunciatário interpretar o discurso, ele<br />
será levado “a ir e vir <strong>de</strong> uma figura à outra” (FONTANILLE, 2007, p. 276).<br />
2.3.2 Maquiagem na tipologia das operações da práxis enunciativa<br />
Para o campo <strong>de</strong> discurso da maquiagem ou da pintura corporal subenten<strong>de</strong>-se<br />
um campo <strong>de</strong> presença no qual se relacionam instâncias sensíveis e perceptíveis<br />
como as cromáticas, eidéticas e topológicas, e somente por meio <strong>de</strong>ssas instâncias é<br />
que os modos <strong>de</strong> existência e as tensões po<strong>de</strong>m ocorrer na instância <strong>de</strong> discurso da<br />
maquiagem. Apenas quando um observador sensível, em algum lugar, é afetado por<br />
um corpo maquiado é que os modos <strong>de</strong> existência passam a existir. A presença da<br />
maquiagem sobre um corpo faz com que esse observador sensível seja atingido por
ela e comece a vivenciar emoções, ou, como explica Fontanille, “varieda<strong>de</strong>s diferentes<br />
do sentimento <strong>de</strong> existência” (2007, p. 280).<br />
116<br />
O campo esquemático, formado na segunda fase da práxis enunciativa, no qual<br />
se controlam as varieda<strong>de</strong>s do efeito <strong>de</strong> presença do discurso, é composto por duas<br />
dimensões: a intensida<strong>de</strong> da assunção, que obe<strong>de</strong>ce à lógica das forças, e a extensão<br />
do reconhecimento, que obe<strong>de</strong>ce à lógica dos lugares.<br />
Retomo a maquiagem dos anos 40, representada por Rita Hayworth (Fig. 26),<br />
para refletir sobre as transformações que a maquiagem sofre no <strong>de</strong>correr das décadas,<br />
anos, estações. Tal diversificação é justificada pelo <strong>de</strong>vir existencial da instância <strong>de</strong><br />
discurso. Zilberberg e Fontanille (2001, p. 181) explicam que é “a troca social, a<br />
circulação dos objetos semióticos e dos discursos no seio das culturas e comunida<strong>de</strong>s<br />
que adota ou rejeita os usos inovadores ou cristalizados, e que <strong>de</strong> certo modo<br />
„canoniza‟ as criações do discurso”. Essa troca social é muito clara na história da<br />
maquiagem, o que justifica também a velocida<strong>de</strong> com que os estilos <strong>de</strong> maquiagem<br />
surgem e <strong>de</strong>saparecem, uma vez que a circulação das tendências vem abrangendo<br />
mais rapidamente os sujeitos. A busca por inovações aumenta na mesma proporção<br />
em que os usos saturados ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>saparecer.<br />
Se, por um lado, na década <strong>de</strong> 40 <strong>de</strong>saparecem as sobrancelhas arqueadas e<br />
<strong>de</strong>senhadas a lápis, a pele pálida e a sutileza dos coloridos das pálpebras<br />
características da década anterior, por outro, aumenta-se a espessura das<br />
sobrancelhas, carrega-se mais na maquiagem, no batom vermelho sobre lábios cheios<br />
e <strong>de</strong>lineados. Na década seguinte, essas características já não têm o mesmo valor, as<br />
cores dos batons se tornam mais suaves para evi<strong>de</strong>nciar mais os olhos pelo uso <strong>de</strong><br />
sombras e <strong>de</strong>lineadores. Percebe-se, portanto, que a práxis da maquiagem segue as<br />
mesmas direções que a práxis enunciativa e cumpre percursos e transformações<br />
características da sua sintaxe. Ela é responsável pela regulação global, diacrônica ou<br />
sincronicamente, “dos diferentes modos <strong>de</strong> existência das gran<strong>de</strong>zas das quais os<br />
discursos lançam mão” (FONTANILLE, 2007, p. 280).<br />
As varieda<strong>de</strong>s do efeito <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> uma instância sensível e perceptível são<br />
controladas pelas dimensões do campo esquemático, ou seja, da intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
assunção (lógica da força) e da extensida<strong>de</strong> do reconhecimento (lógica dos lugares).
Quando Margarita Carmen Cansino se percebe fortemente ligada às figuras e valores<br />
que ela utiliza em sua maquiagem sensual glamourosa (Fig. 26) e se reconhece em<br />
sua produção Rita Hayworth, po<strong>de</strong>-se dizer que há um elo empático entre o sujeito e a<br />
sua produção. A extensão do reconhecimento <strong>de</strong> Rita Hayworth, sensual e<br />
glamourosa, é medida a partir da difusão das formas significantes. As figuras sensuais<br />
e glamourosas ao modo Hayworth se repetem diversas vezes, e tornam-se referência<br />
<strong>de</strong> uma época <strong>de</strong>vido à quantida<strong>de</strong> e freqüência da sua assunção por instâncias <strong>de</strong><br />
discurso. Percebe-se aqui que a intensida<strong>de</strong> da assunção e a extensão do<br />
reconhecimento das maquiagens <strong>de</strong> Rita Hayworth progri<strong>de</strong>m na mesma direção,<br />
numa correlação conversa entre intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>, o que fortalece as duas e,<br />
ao mesmo tempo, assegura o valor <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> uma forma.<br />
117<br />
Por outro lado, a emissão excessiva <strong>de</strong> uma maquiagem faz com que o valor <strong>de</strong><br />
uso <strong>de</strong> uma forma provoque o seu <strong>de</strong>sgaste, o que leva à procura <strong>de</strong> inovações, cada<br />
vez mais rápidas. Na outra extremida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que, atualmente, são lançadas,<br />
a cada nova estação, tendências <strong>de</strong> cores, <strong>de</strong> produtos, <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong><br />
maquiagem que nem sempre chegam a ser utilizadas por um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
sujeitos. É o caso dos <strong>de</strong>lineadores brancos (Fig. 29), das máscaras <strong>de</strong> cílios coloridas<br />
(Fig.30) que, na verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m funcionar numa passarela <strong>de</strong> moda, em maquiagens<br />
fashions, mas que não alcançam um uso generalizado.<br />
Figura 29: Delineador branco. Fonte: AVON, 2009.<br />
Figura 30: Desfile DKNY – Rímel ver<strong>de</strong> água. Fonte: BETA ATELIE, 2009.
Isso significa que uma forma inovadora surge, porém é pouco difundida. Essas<br />
maquiagens estão investidas do impacto explosivo <strong>de</strong> forte assunção, com o valor <strong>de</strong><br />
uso intacto. Nestes dois casos, do excesso e da intactilida<strong>de</strong> do uso, a intensida<strong>de</strong> da<br />
assunção e a extensão do reconhecimento evoluem inversamente. Desse modo, há<br />
uma correlação divergente entre as duas dimensões. Portanto, a partir do cruzamento<br />
das duas dimensões da presença, há o engendramento <strong>de</strong> várias posições<br />
i<strong>de</strong>ntificadas por Fontanille (2007, p.282).<br />
Na correlação conversa há a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> duas operações sobre o valor <strong>de</strong><br />
troca: a amplificação e a atenuação, que “se referem à regulação do valor <strong>de</strong> troca das<br />
formas na comunicação” (FONTANILLE, 2007, p. 282). A amplificação, cujo percurso<br />
vai da adoção <strong>de</strong> uma forma a sua integração na socieda<strong>de</strong>, seria o nítido caso, entre<br />
outros, da maquiagem sensual glamourosa <strong>de</strong> Hayworth (Fig. 23), em que, após a<br />
instauração da forma no uso, a força <strong>de</strong> assunção é fortalecida pela extensão do seu<br />
reconhecimento no seu próprio meio e também nos outros grupos sociais.<br />
118<br />
A fase da atenuação acontece após o uso vivo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />
maquiagem, essa saturação levando à sua obsolescência. Seria a fase seguinte da<br />
maquiagem sensual glamourosa, ou seja, quando a forma já não tem mais<br />
credibilida<strong>de</strong> para a enunciação que vai saindo <strong>de</strong> uso.<br />
Na correlação divergente, as operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento e <strong>de</strong> somação<br />
regulam o valor <strong>de</strong> uso das formas. Na operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento acontece a<br />
propagação do uso da maquiagem social glamourosa ao modo Hayworth (Fig. 23) que<br />
acaba por per<strong>de</strong>r a força <strong>de</strong> assunção, cujo trajeto segue da difusão à revivificação <strong>de</strong><br />
uma forma. A operação <strong>de</strong> somação conduz da formação <strong>de</strong> uma maquiagem<br />
inovadora ao seu <strong>de</strong>sgaste. Ela correspon<strong>de</strong>ria às maquiagens com <strong>de</strong>lineadores<br />
brancos (Fig. 26) e máscaras <strong>de</strong> cílios <strong>de</strong> cores claras (Fig. 27), que são impostas<br />
pelos estilistas nos <strong>de</strong>sfiles <strong>de</strong> moda e têm uma assunção forte e um reconhecimento<br />
fraco.
eproduzido:<br />
119<br />
Fontanille (2007, p. 282) propõe um quadro resumo, que segue aqui<br />
Assunção forte Assunção fraca<br />
Reconhecimento extenso Amplificação Desdobramento<br />
Reconhecimento restrito Somação Atenuação<br />
Essas operações também po<strong>de</strong>m ser representadas no esquema tensivo 16, aqui<br />
reproduzido, <strong>de</strong> Zilberberg e Fontanille (2001, p. 179):<br />
Tônico<br />
INT<br />
Átono<br />
Somação<br />
Atenuação<br />
2.3.3 Objeto estético e semiótico em <strong>de</strong>vir<br />
Átono EXT Tônico<br />
Amplificação<br />
Desdobramento<br />
Se eu entendo a pintura, ou qualquer outra manifestação estética, como<br />
um objeto que fala <strong>de</strong> si mesmo, do mundo natural e do mundo da<br />
memória, a própria natureza do objeto me obriga a consi<strong>de</strong>rar os<br />
retornos, os vaivéns, as sinuosida<strong>de</strong>s, os esboços, o movimento<br />
pendular, as hesitações como constitutivas do modo <strong>de</strong> analisar este<br />
objeto. (TEIXEIRA, 2004e, p.234)<br />
Do mesmo modo que uma pintura feita sobre um suporte tradicional, a<br />
maquiagem é uma inscrição estética no corpo próprio dos actantes encarnados, que<br />
faz <strong>de</strong>les objetos estéticos que falam <strong>de</strong> si mesmos, mas que só po<strong>de</strong>m ser
apreendidos ao se referirem “a duas gran<strong>de</strong>zas e dois modos <strong>de</strong> existência em<br />
competição” (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p. 186), com operações intensivas<br />
combinadas a duas operações elementares: uma <strong>de</strong> ascendência, que alcança a<br />
manifestação, e a outra <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, que retorna ao sistema, cristalizando as<br />
formas vivas em estereótipos que acabam nutrindo a competência dos sujeitos por<br />
produzirem as aplicações mais características.<br />
120<br />
Os atos da práxis, além <strong>de</strong> regularem o <strong>de</strong>vir do objeto semiótico, agem sobre o<br />
seu modo <strong>de</strong> existência, o percurso <strong>de</strong> ascendência.<br />
1 – A fase virtual → Atualizado: revela a emergência <strong>de</strong> uma forma, uma<br />
inovação que <strong>de</strong>ixa os sujeitos observadores surpreendidos e maravilhados.<br />
2 – A fase Atualizado → Realizado: expõe o aparecimento <strong>de</strong> uma forma. É a<br />
fase em que ela recebe uma expressão e um estatuto <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que lhe<br />
possibilita ser um referencial, como a maquiagem <strong>de</strong> Rita Hayworth.<br />
Na outra etapa, do percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, as formas significantes são<br />
contidas, memorizadas, tipificadas, ou po<strong>de</strong>m ser apagadas e esquecidas. Esse<br />
percurso abarca também duas fases:<br />
3 – A fase Realizado → Potencializado: é a condição para a queda <strong>de</strong> uma<br />
forma até então viva e inovadora. Com o <strong>de</strong>sgaste e saturação <strong>de</strong> um uso<br />
constante, e a consequente fixação, ela se torna potencialmente disponível<br />
para outras convocações, como aconteceu no caso <strong>de</strong> Espinosa, simulacro<br />
<strong>de</strong> Rita Hayworth, criado por Duda Molinos (Fig. 24).<br />
4 – A fase Potencializado → Virtualizado: ocorre o “<strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> uma<br />
forma e sua diluição nas estruturas virtuais subjacentes ao exercício <strong>de</strong> uma<br />
prática significante” (FONTANILLE, 2007, p. 278).<br />
A combinação <strong>de</strong>, no mínimo, dois modos <strong>de</strong> existência e duas gran<strong>de</strong>zas em<br />
competição faz com que uma forma diminua <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> para que outra forma seja<br />
promovida, numa concorrência solidária entre os modos <strong>de</strong> existência. Para<br />
<strong>de</strong>monstrar o <strong>de</strong>vir das maquiagens numa práxis enunciativa, tomo como exemplos<br />
diversos estilos <strong>de</strong> maquiagem, principalmente as pinturas corporais.
2.3.2.1 Revolução semiótica<br />
Figura 31: Sasha. Fonte: GAIR, 2006, p. 30-31.<br />
121<br />
Este trabalho <strong>de</strong> Joanne Gair foi realizado em Los Angeles, no ano <strong>de</strong> 2000,<br />
para o programa <strong>de</strong> televisão “Aunque usted no lo crea”, num episódio <strong>de</strong>dicado<br />
exclusivamente a suas pinturas corporais, no qual a artista criou uma sessão<br />
fotográfica especialmente para o programa.
122<br />
Trabalhei com a mo<strong>de</strong>lo russa Sasha e me concentrei no lado mágico<br />
do meu trabalho... Como posso fazer para parecer que as pessoas<br />
tenham <strong>de</strong>saparecido por meio do meu pincel 15 . (GAIR, 2006, p. 149)<br />
Nessa pintura aplicada sobre uma tela bidimensional e, conjuntamente, sobre o<br />
suporte tridimensional do envelope corporal <strong>de</strong> Sasha (Fig. 31), aparecem diversos<br />
tipos <strong>de</strong> flores, com diferentes cores, texturas e formatos que formam um único plano.<br />
O efeito mágico promovido pela profusão <strong>de</strong> matizes cromáticos das flores, distribuídas<br />
com certa linearida<strong>de</strong>, entre os tons vermelhos, mais <strong>de</strong>stacados; os azuis, mais<br />
recuados, e os brancos, que salpicam luzes na composição, é o da diluição do corpo<br />
da mo<strong>de</strong>lo. A artista aproveita as características <strong>de</strong> cada cor para conseguir escon<strong>de</strong>r<br />
os volumes naturais do corpo humano. Assim, vale-se do grau <strong>de</strong> cromaticida<strong>de</strong> da<br />
cor vermelha, naturalmente mais saturada que as <strong>de</strong>mais, como também a <strong>de</strong> maior<br />
visibilida<strong>de</strong>; do azul e do branco, explora suas respectivas profundida<strong>de</strong> e<br />
luminosida<strong>de</strong> naturais para <strong>de</strong>sviar o olhar do enunciatário para as flores e diminuir o<br />
foco <strong>de</strong> atenção do corpo <strong>de</strong> Sasha (Fig. 31). Além disso, as flores têm ritmos<br />
contínuos sobre o fundo amarelo das duas telas (fundo e corporal), promovendo uma<br />
camuflagem do corpo no meio florido. É uma maneira <strong>de</strong> fazer com que o corpo passe<br />
<strong>de</strong>spercebido, como um camaleão que adapta seu aspecto às normas do meio<br />
ambiente. Apesar da operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem conservar a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do<br />
envelope corporal <strong>de</strong> Sasha, ele sucumbe diante da gran<strong>de</strong>za cromática da<br />
enunciação.<br />
As pinturas se completam formando uma massa única, um plano contínuo no<br />
qual a tridimensionalida<strong>de</strong> do corpo humano parece recuar sob a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
flores, <strong>de</strong> cores, <strong>de</strong> formas e <strong>de</strong> texturas. Quanto maior a distância do observador<br />
(enunciatário) em relação à composição, menor será a percepção do corpo. Distância<br />
essa que promove ainda mais a virtualização do corpo. A competição das gran<strong>de</strong>zas e<br />
dos modos <strong>de</strong> existência é evi<strong>de</strong>nte numa operação intensiva <strong>de</strong> sua práxis<br />
enunciativa cujas operações <strong>de</strong> ascendência e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência se articulam<br />
mutuamente. As oscilações ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes são primordiais para explicar e<br />
15 Trabajé con la mo<strong>de</strong>lo rusa Sasha y me concentré en el lado mágico <strong>de</strong> mi trabajo... Cómo puedo<br />
hacer que parezca que las personas <strong>de</strong>saparecen con mi pincel.
epresentar o percurso que um observador faz diante dos corpos pintados, ou diante<br />
<strong>de</strong> qualquer outro texto observado. O movimento <strong>de</strong> percepção <strong>de</strong> um observador<br />
diante da pintura <strong>de</strong> Gair (Fig. 31) segue do ato <strong>de</strong> ascendência (Atualizado →<br />
Realizado), no qual aparecem as flores que recebem uma expressão e um estatuto <strong>de</strong><br />
realida<strong>de</strong>, para o ato <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte (Potencializado →Virtualizado) que culmina no<br />
<strong>de</strong>saparecimento do corpo e sua diluição nas estruturas virtuais subjacentes ao<br />
exercício <strong>de</strong> uma prática significante. É o aparecimento <strong>de</strong> uma forma que estabelece<br />
uma relação mútua com <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> outra, constituindo, <strong>de</strong>ssa maneira,<br />
conforme esclarece Fontanille (2007, p. 278), uma revolução semiótica.<br />
123
2.3.2.2 Distorção semiótica<br />
Figura 32: Christina Ricci como Edith Piaf.Fonte: AUCOIN, 2000, p.100.<br />
Figura 33: Christina Ricci. Fonte: MORPHTHING, 2009.<br />
Figura 34: Edith Piaf. Fonte: DAYS EYE, 2009.<br />
124<br />
Neste exemplo, acontece uma mudança do sentido na i<strong>de</strong>ntificação do rosto da<br />
atriz Christina Ricci (Fig. 33). Cabe ressaltar que o mesmo acontece com Thelma<br />
Aucoin (Fig. 16) quando figuram sobre o seu rosto as imagens <strong>de</strong> Marlene Dietrich<br />
(Fig. 21) ou <strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20), ou ainda, no simulacro <strong>de</strong> Rita Hayworth sobre o<br />
rosto <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27). Christina Ricci (Fig. 33) empresta seu suporte<br />
facial para que Kevyn Aucoin a transforme em Edith Piaf (Fig. 34). Para isso, as<br />
sobrancelhas naturais <strong>de</strong> Ricci (Fig. 32) são cobertas, outras novas, bem finas, são
<strong>de</strong>senhadas com lápis marrom, acima das naturais cobertas. Base e pó facial são<br />
aplicados para uniformizar o rosto, sombras em pó são aplicadas sobre as pálpebras,<br />
primeiramente a <strong>de</strong> cor pêssego em toda a extensão, <strong>de</strong>pois a marrom sob a cavida<strong>de</strong><br />
das sobrancelhas, seguindo do mais intenso próximo ao nariz e fazendo um <strong>de</strong>gradé<br />
até chegar ao canto externo dos olhos. A linha dos cílios inferiores também recebe a<br />
mesma sombra marrom esfumada sobre ela. Os cílios recebem várias camadas <strong>de</strong><br />
máscara preta. Os lábios são contornados e aumentados com lápis no tom <strong>de</strong> pele e<br />
preenchidos com batom vermelho sangue. A área do osso malar é levemente colorida<br />
com um blush rosa, a peruca e o jogo <strong>de</strong> luzes completam o visual. É claro que os<br />
formatos das sobrancelhas e dos lábios já são um indicativo do rosto <strong>de</strong> Piaf, porém,<br />
ao se relacionarem com o trabalho <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> Ricci, como o próprio Aucoin<br />
<strong>de</strong>staca, criam o efeito <strong>de</strong> mimese e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com Edith Piaf, <strong>de</strong>stacando<br />
principalmente a força passional da cantora <strong>de</strong> referência.<br />
125<br />
Neste exemplo, acontece uma distorção semiótica, provocada pela competição<br />
das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong> existência numa operação intensiva <strong>de</strong> sua práxis<br />
enunciativa. Ocorre uma operação <strong>de</strong> ascendência, do Virtualizado para o Atualizado<br />
e, <strong>de</strong>pois, outra <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado. É a emergência<br />
da forma do rosto <strong>de</strong> Piaf correlacionada à diminuição gradativa da intensida<strong>de</strong> do<br />
rosto <strong>de</strong> Ricci. Este caso seria uma espécie <strong>de</strong> sinédoque visual, na qual há uma<br />
relação <strong>de</strong> contiguida<strong>de</strong> das figuras, isto é, po<strong>de</strong>r-se-ia chamá-las <strong>de</strong> as “Piafs”. Há<br />
nas “Piafs”, assim como nas “Dietrichs”, nas “Chanels” e nas “Hayworths”, a<br />
concorrência <strong>de</strong> um conteúdo figurante atualizado e um conteúdo reconstituído<br />
potencializado.
126<br />
Dois corpos femininos juntos, dispostos horizontalmente em direções inversas,<br />
cobertos por uma maquiagem corporal ver<strong>de</strong>, distribuída uniformemente sobre os dois,<br />
compõem o primeiro plano cromático da obra. Uniformida<strong>de</strong> cromática que é quebrada<br />
pela centralida<strong>de</strong> dos musgos verda<strong>de</strong>iros que cobrem os sexos das mo<strong>de</strong>los,<br />
configurando dois pontos <strong>de</strong> textura ao plano, além <strong>de</strong> serem dois pontos <strong>de</strong> tensão na<br />
extensão dos envelopes corporais pintados <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>. Os musgos figuram como duas<br />
aglomerações arbóreas caracterizadas pela fertilida<strong>de</strong> do solo e pela exuberância da<br />
vegetação e estão estrategicamente posicionados como sinalizadores do também solo<br />
fértil feminino.<br />
Figura 35: Skinscapes – Colinas. Fonte: GAIR, 2006, p. 44-45.
127<br />
O segundo plano cromático é formado pela cor azul clara que forma o céu<br />
aberto da paisagem. Esses corpos colinas (Fig. 35) foram pintados por Gair, no verão<br />
<strong>de</strong> 2000, para a revista Black Book <strong>de</strong> New York, Estados Unidos. Tal qual uma<br />
metáfora visual, essa paisagem corporal se baseia numa relação <strong>de</strong> semelhança<br />
subtendida entre o sentido próprio e o figurado. A práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa<br />
maquiagem também é uma distorção semiótica, como no exemplo do simulacro <strong>de</strong> Piaf<br />
(Fig. 32). A práxis acontece por meio da competição das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong><br />
existência numa operação intensiva, na qual primeiro ocorre uma operação <strong>de</strong><br />
ascendência, do Virtualizado para o Atualizado, seguida por uma operação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado. A relação dos planos cromáticos, com<br />
a <strong>de</strong>formação do envelope corporal promovida pela <strong>de</strong>breagem cria um efeito <strong>de</strong><br />
verossimilhança na relação com as colinas do mundo natural. As colinas pintadas<br />
emergem enquanto o envelope corporal entra em <strong>de</strong>clínio, intensificado pelo<br />
comprometimento da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal, provocado pela<br />
operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, pela composição e pelo corte fotográfico, do mesmo modo<br />
como acontece na obra <strong>de</strong> Julio Larraz (Fig. 3), que consta no primeiro capítulo, outro<br />
exemplar <strong>de</strong> uma pintura corporal que promove uma distorção semiótica.
2.3.2.3 Remanejamento semiótico<br />
Figura 36: Flora/A Primavera. Fonte: GAIR, 2006, p. 87<br />
128
129<br />
Ao ver pela primeira vez essa mulher grávida adornada por flores que olha<br />
diretamente para o observador (Fig. 36), po<strong>de</strong>-se associá-la imediatamente a uma obra<br />
<strong>de</strong> arte famosa. E foi exatamente essa a intenção <strong>de</strong> Gair quando, em 1994, soube do<br />
interesse da atriz Demi Moore, grávida <strong>de</strong> oito meses, em participar <strong>de</strong> uma pintura<br />
corporal. A maquiadora, nessa época, acabara <strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> uma visita à Itália, on<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> ver os originais do artista renascentista italiano, Sandro Botticelli. Ainda sob o<br />
impacto das obras primorosas em <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> Botticelli, ela propôs à atriz recompor<br />
Flora, uma das personagens do quadro A primavera 16 (Fig. 37), sobre o seu corpo.<br />
Figura 37: A Primavera- Sandro Botticelli – 1478/82<br />
Fonte: Nova Cultural, 1991.<br />
Flora, <strong>de</strong>usa das<br />
florestas e das flores, aparece à<br />
direita do referido quadro, e<br />
surge a partir do rapto<br />
apaixonado <strong>de</strong> Clóris, ninfa das<br />
flores, por Zéfiro, vento do<br />
oeste 17 . Essa cena é<br />
proveniente das histórias do<br />
poeta Ovídio, que narrava o<br />
princípio da primavera no<br />
momento em que a ninfa Clóris<br />
se transforma em Flora: “Eu era<br />
Clóris, a quem chamam Flora”. Na pintura <strong>de</strong> Botticelli, ela traja uma túnica talaris<br />
ricamente <strong>de</strong>talhada, com qual a <strong>de</strong>usa espalha flores pelos campos. Gair aproveita o<br />
volume da barriga <strong>de</strong> oito meses <strong>de</strong> Moore para reproduzir o volume da túnica sobre o<br />
corpo ligeiramente volumoso, característico dos corpos renascentistas, <strong>de</strong> Flora. Gair<br />
não apenas recompõe Flora sobre o corpo <strong>de</strong> Moore, mas reconstitui alguns dos<br />
significados alegóricos <strong>de</strong>ssa pintura <strong>de</strong> Botticelli cuja mensagem é recebida, <strong>de</strong><br />
acordo com Argan (2003, p. 261), em diversos níveis. A artista reproduz a amenida<strong>de</strong><br />
16<br />
“A primavera”, têmpera sobre ma<strong>de</strong>ira, foi pintada por volta <strong>de</strong> 1478/82, tem 203X314 cm e se<br />
encontra em Florença, na galeria <strong>de</strong>gli Uffizi.<br />
17<br />
O quadro “A Primavera” é composto por nove personagens, da esquerda para a direita aparecem:<br />
Mercúrio, o mensageiro do <strong>de</strong>uses; as tres graças, componentes habituais do séquito <strong>de</strong> Vênus; a<br />
própria Vênus; cupido, Flora, Clóris e Zéfiro.
do pequeno bosque e do prado florido que está ao fundo da pintura. Do mesmo modo<br />
que no original, na reprodução há a ausência <strong>de</strong> perspectiva do “alinhamento dos<br />
troncos paralelos e o rendilhado das folhas no fundo da primavera”, um fundo sem<br />
profundida<strong>de</strong>, que, junto com a reforçada cadência daquelas paralelas, agrega valor<br />
aos fluxos dos ritmos lineares das figuras. Gair conserva em sua reconstituição “as<br />
tênues passagens da cor” e “o preciso recorte dos escuros das árvores contra a<br />
clarida<strong>de</strong> do céu” (ARGAN, 2003, p. 261).<br />
130<br />
A recomposição dos <strong>de</strong>talhes é preciosa, feita minuciosamente pela<br />
maquiadora: as flores que <strong>de</strong>coram a túnica, o movimento do tecido ao vento, o<br />
rendado da manga magistralmente pintado a mão, o fundo composto por árvores e o<br />
chão também adornado por flores. Para dar um aspecto tridimensional à túnica, foram<br />
agregadas peças <strong>de</strong> chiffon <strong>de</strong>coradas com o mesmo motivo floral que está pintado<br />
sobre o corpo <strong>de</strong> Moore. Da mesma maneira que as pró<strong>tese</strong>s das figuras 8 e 9,<br />
apresentadas no primeiro capítulo, as peças <strong>de</strong> chiffon são um meio <strong>de</strong> multiplicação<br />
da espessura do envelope corporal <strong>de</strong> Moore. A <strong>de</strong>breagem mantém a conexão do<br />
envelope corporal <strong>de</strong> Moore e também ocorre por meio <strong>de</strong> excrescências, que fazem<br />
com que aconteça o ajuste da superfície do envelope <strong>de</strong> inscrição ao envelope<br />
corporal. Por outro lado, a atriz se posiciona tal qual Flora original, e também acomoda<br />
em seus braços as flores acumuladas em sua túnica para que possa cumprir a missão<br />
<strong>de</strong> florir o mundo. Nenhum <strong>de</strong>talhe escapa a Gair, que enfeita os cabelos e o colo <strong>de</strong><br />
sua Flora com arranjos florais tridimensionais. O ritmo da figura, a atraente beleza e o<br />
semblante do corpo <strong>de</strong> Flora sobre o corpo <strong>de</strong> Moore aparecem na fotografia <strong>final</strong>, tal<br />
qual o original “no fluir das linhas, nos <strong>de</strong>licados acor<strong>de</strong>s das cores” (ARGAN, 1957,<br />
p.74).<br />
Neste exemplo, além do acréscimo do tecido proeminente ao corpo que se<br />
compacta ao envelope, a reconstituição <strong>de</strong> Flora conserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão<br />
do envelope corporal, proporcionando um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> referência à obra <strong>de</strong><br />
Botticelli, ou seja, a maquiadora “diz” o que o pintor havia “dito” antes. Há, portanto, um<br />
remanejamento semiótico, pois Gair afeta as relações entre o original cultural e o<br />
sistema, fazendo com que a práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa pintura corporal combine as<br />
gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência numa operação intensiva. Assim, com a
eativação da combinatória virtual em um estereótipo, promove a emergência da<br />
pintura <strong>de</strong> Botticelli que é ajustada ao ofuscamento do envelope corporal <strong>de</strong> Moore,<br />
isto é, um ato <strong>de</strong> ascendência, do Virtualizado para o Atualizado, seguido por um ato<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Potencializado para o Virtualizado.<br />
2.3.2.4 Flutuação semiótica<br />
Figura 38: Jovem <strong>de</strong> cabelo comprido. Fonte: GAIR, 2006, p. 126.<br />
Figura 39: Deborah Lin. Fonte: GAIR, 2006, p. 105.<br />
Figura 40: Yana. Fonte: GAIR, 2006, p. 121<br />
131<br />
Uma imagem na imagem é o que vemos nessas três obras artísticas. A<br />
concepção <strong>de</strong>sses trabalhos, realizados por Gair entre meados dos anos 80 e início<br />
do anos 90, é basicamente a mesma: a utilização dos dorsos das mo<strong>de</strong>los orientais<br />
como suporte <strong>de</strong> uma pintura com motivos também orientais.<br />
A jovem <strong>de</strong> cabelo comprido (Fig. 38) impressionou Gair tanto por sua beleza<br />
quanto pelo seu cabelo comprido e pelo tom <strong>de</strong> sua pele oriental que, segundo a<br />
maquiadora, seriam as telas mais suaves e perfeitas. A artista, então, projetou sobre<br />
as costas da mo<strong>de</strong>lo uma imagem <strong>de</strong>la própria. Desse modo, a pintora conseguiu
“contar uma história com várias imagens” (GAIR, 2006, p. 155). A mo<strong>de</strong>lo aparece <strong>de</strong><br />
costas, sentada sobre os próprios pés, como uma gueixa. Um tecido leve, <strong>de</strong> cor<br />
vermelha, envolve os seus quadris. Os cabelos lisos, pretos e longos, são acomodados<br />
no ombro direito da moça, o que leva o observador a <strong>de</strong>duzir que eles <strong>de</strong>scem pelo<br />
seu corpo nu. O dorso liso e suave da mo<strong>de</strong>lo recebeu a pintura <strong>de</strong> si mesma: uma<br />
moça oriental que também está sentada penteando os longos cabelos lisos e pretos,<br />
que passam pelo seu ombro esquerdo e atingem o colo nu, um tecido vermelho se<br />
<strong>de</strong>staca sobre o volume da saia e alcança a materialização sobre os quadris da<br />
mo<strong>de</strong>lo.<br />
132<br />
A segunda composição (Fig. 39) foi feita em Los Angeles durante a gravação <strong>de</strong><br />
um ví<strong>de</strong>o musical <strong>de</strong> Janet Jackson. Da mesma maneira que a anterior (Fig. 38), Gair<br />
pinta sobre as costas <strong>de</strong> Deborah Lin uma imagem <strong>de</strong>la própria que, no ví<strong>de</strong>o, é<br />
revelada quando o quimono da mo<strong>de</strong>lo cai em cena. A moça oriental (Fig. 39) tem os<br />
cabelos lisos e pretos penteados para trás, formando um coque baixo, preso pelos<br />
tradicionais hashi vermelho com <strong>de</strong>talhes brancos. Ela também aparece<br />
comportadamente sentada e mostra a pintura <strong>de</strong> si mesma que repousa em seu dorso:<br />
uma gueixa com o rosto maquiado tradicionalmente, vestida com um quimono<br />
suntuoso, <strong>de</strong> cor ver<strong>de</strong> com <strong>de</strong>talhes vermelhos.<br />
Yana, mo<strong>de</strong>lo da terceira composição (Fig. 40), se distingue das outras duas<br />
(fig. 38 e 39), uma vez que o ângulo e o corte fotográfico não permitem que o<br />
observador visualize nitidamente qual é a sua real postura, mas, mesmo assim,<br />
percebe-se que ela se movimenta. O que se consegue vislumbrar dos seus braços dá<br />
a impressão <strong>de</strong> que ambos seguem para a esquerda. Dos seus cabelos apenas po<strong>de</strong>-<br />
se ver que são lisos e pretos por meio <strong>de</strong> duas mechas, aparentemente molhadas,<br />
que caem sobre as costas pintadas com símbolos assimilados da ópera chinesa: uma<br />
personagem da ópera em plena ação, que parece se mover tal e qual seu suporte,<br />
caminha com os braços completamente abertos; as longas mangas amarelas da roupa<br />
branca com estampas azuis, dobram-se sobre as mãos e balançam no espaço. Ao<br />
redor <strong>de</strong>ssa figura central são <strong>de</strong>senhados flores e i<strong>de</strong>ogramas chineses. Além das<br />
imagens chinesas, Gair utiliza os próprios produtos <strong>de</strong> maquiagem específicos para a
ópera, como também aquacolor 18 e caneta da marca sharpie 19 para os <strong>de</strong>talhes mais<br />
finos e <strong>de</strong>licados da pintura.<br />
133<br />
Em nenhum momento vemos os traços faciais que i<strong>de</strong>ntificam mais facilmente<br />
um oriental, mas po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar, nos três sujeitos actantes encarnados, traços<br />
orientais, como os cabelos lisos, pretos, longos, que estão soltos, presos ou molhados.<br />
A postura das duas primeiras mo<strong>de</strong>los (Figs. 38 e 39), que estão <strong>de</strong>licadamente<br />
sentadas como duas gueixas, ao contrário da terceira (fig. 40), que parece se mover tal<br />
qual a pintura que leva às costas, é um dos pontos <strong>de</strong> distinção entre as composições.<br />
Todos esses <strong>de</strong>talhes das mo<strong>de</strong>los são isotopias figurativas 20 orientais ligadas e<br />
reforçadas pelas pinturas tradicionalmente orientais que são manifestadas<br />
alternadamente na composição. São Isotopias orientais pintadas sobre corpos<br />
configurados como isotopias também orientais. A relação entre as isotopias e a<br />
manutenção da conexão dos envelopes corporais provoca um efeito <strong>de</strong> redundância e<br />
<strong>de</strong> reiteração da origem oriental dos respectivos suportes. As manifestações<br />
alternadas na composição fazem com que “a isotopia figurante [pintura corporal] vá e<br />
venha entre atualização e realização, e a isotopia figurada [envelopes corporais], entre<br />
realização e potencialização” (FONTANILLE, 2007, p. 279).<br />
Há uma combinação entre o aparecimento <strong>de</strong> uma forma (as pinturas orientais)<br />
e o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> outra (os envelopes corporais) na práxis <strong>de</strong>ssas três composições.<br />
Uma operação intensiva que promove um ato <strong>de</strong> ascendência do Atualizado para o<br />
Realizado e, na sequência, um ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado<br />
que configura o que Zilberberg e Fontanille (2001, p. 187) <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> flutuação<br />
semiótica.<br />
18<br />
Um produto <strong>de</strong> maquiagem artística, com cores intensas, que é aplicado com esponja úmida ou pincel.<br />
Produz um acabamento similar às pinturas <strong>de</strong> aquarela.<br />
19<br />
Caneta utilizada para diversos fins, ícone nos Estados Unidos cujo traçado fino e preciso se fixa sobre<br />
variadas superfícies.<br />
20<br />
De acordo com Diana Barros, a “isotopia figurativa caracteriza-se pela redundância <strong>de</strong> traços<br />
figurativos, pela associação <strong>de</strong> figuras aparentadas e correlacionadas a um tema, o que atribui ao<br />
discurso uma imagem organizada da realida<strong>de</strong>”. (BARROS, 2003, p.86)
Figura 41: Emma Belcher - Rosas.<br />
Fonte: GAIR, 2006, p. 110.<br />
134<br />
Ao contrário da figura 31, na<br />
qual Gair apagou o corpo <strong>de</strong> Sasha<br />
sobre um mundo <strong>de</strong> flores pintadas,<br />
agora ela cerca o corpo <strong>de</strong> Emma<br />
Belcher (Fig. 41) <strong>de</strong> rosas naturais e<br />
as recompõe, em pintura, sobre a<br />
superfície <strong>de</strong> inscrição da mo<strong>de</strong>lo.<br />
O mesmo tema, as mesmas figuras<br />
florais com práxis enunciativas<br />
distintas. O primeiro correspon<strong>de</strong> a<br />
uma revolução semiótica na qual há<br />
uma correlação entre o<br />
aparecimento das flores, fase<br />
Atualizado → Realizado, e o<br />
<strong>de</strong>saparecimento do corpo, fase<br />
Potencializado → Virtualizado.<br />
Nessa última composição (fig. 41),<br />
realizada em 2004, na Nova<br />
Zelândia, país <strong>de</strong> nascença da<br />
artista, acontece uma flutuação<br />
semiótica que surge <strong>de</strong> uma combinação do aparecimento das flores pintadas sobre o<br />
corpo, fase Atualizado → Realizado, e a diminuição gradativa da intensida<strong>de</strong> das<br />
rosas naturais, fase Realizado → Potencializado. O observador oscila seu olhar entre<br />
as imagens das rosas <strong>de</strong>talhadamente pintadas sobre o corpo e as rosas naturais <strong>de</strong><br />
várias tonalida<strong>de</strong>s, do rosa chá ao vermelho escuro, que cercam o corpo pintado. As<br />
rosas naturais permanecem ali, disponíveis ao olhar que po<strong>de</strong> ir e vir o quanto quiser,<br />
flutuando entre o natural e sua imitação artística. O efeito <strong>de</strong> verossimilhança em<br />
relação com as rosas naturais é promovido pelas formas e pelas cores.<br />
Zilberberg e Fontanille (2001, p. 187) <strong>de</strong>monstram, em uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> figuras<br />
sintáxicas, a práxis enunciativa, apreendida do ponto <strong>de</strong> vista do <strong>de</strong>vir dos objetos,<br />
como uma composição <strong>de</strong> atos ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes, dos quais se originam
quatro transformações elementares e quatro transformações tensivas:<br />
(Decadência)<br />
(Ascendência)<br />
Emergência Aparecimento<br />
Declínio Distorção Flutuação<br />
Desaparecimento Remanejamento Revolução<br />
135<br />
A partir disso, percebe-se que, nas pinturas corporais ou nas maquiagens<br />
cotidianas, a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos, tipos e composições, assim como os diferentes<br />
sentidos que elas têm nas diversas culturas do mundo, estão sempre em<br />
transformação. Em cada época, a maquiagem se modifica. Algumas vezes, valorizam-<br />
se mais os olhos; em outras, os lábios é que ganham <strong>de</strong>staque. Ela também po<strong>de</strong> ser<br />
mais suave e neutra ou mais forte e colorida, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tempo e do espaço em<br />
que está inserida.<br />
Posição hierárquica em uma socieda<strong>de</strong>; po<strong>de</strong>r para reis e nobres; respeito às<br />
divinda<strong>de</strong>s sobrenaturais e aos <strong>de</strong>uses para os primitivos; aceitação social para os<br />
contemporâneos e, essencialmente, o estético, são alguns dos significados atribuídos<br />
à maquiagem facial ou corporal. Entretanto, é ao combinar gran<strong>de</strong>zas, modos <strong>de</strong><br />
existência e tensões que a maquiagem alcança o status <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte. A partir<br />
<strong>de</strong>ssas relações entre as gran<strong>de</strong>zas, os modos <strong>de</strong> existência e as tensões torna-se<br />
possível compreen<strong>de</strong>r as vertigens, os torpores, os arrepios e as surpresas provocadas<br />
pela maquiagem. Maquiar-se é discorrer com cores, com nuances, com ritmos, com<br />
formas e tensões que se transformam em discursos coloridos, originais e extasiantes.<br />
Uma tomada <strong>de</strong> posição no mundo, cujo modo <strong>de</strong> expressão gera sentidos<br />
apreendidos com mais ou menos intensida<strong>de</strong>.<br />
Assim como a instância do corpo próprio está em eterno <strong>de</strong>vir, as inscrições<br />
efêmeras, maquiagens e pinturas corporais, como objetos estéticos e semióticos, se<br />
transformam incessantemente. Essas metamorfoses são reguladas pelos atos da<br />
práxis, sejam nas maquiagens sociais cotidianas e, mais evi<strong>de</strong>ntemente, nas pinturas<br />
corporais. Estas últimas, originadas nas ditas socieda<strong>de</strong>s primitivas, são percebidas,<br />
nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, como uma maneira <strong>de</strong> reconectar o ser humano à
natureza. Diferentemente das culturas atuais, os povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada, têm um<br />
modo <strong>de</strong> vida tradicional, uma continuida<strong>de</strong> temporal e espacial e necessitam que as<br />
enunciações coloridas sejam constantemente atualizadas para que possam continuar<br />
vivas.<br />
136
3 - NOVOS SENTIDOS PARA O CORPO: AS INSCRIÇÕES EFÊMERAS PARA OS<br />
PRIMITIVOS E PARA OS CONTEMPORÂNEOS<br />
137<br />
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário<br />
porque vinha <strong>de</strong> encontro à minha mais profunda suspeita <strong>de</strong> que o<br />
rosto humano também fosse uma espécie <strong>de</strong> máscara.(...)<br />
Eu mal podia esperar pela saída <strong>de</strong> uma infância vulnerável – e pintava<br />
minha boca <strong>de</strong> batom bem forte, passando também ruge nas minhas<br />
faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.<br />
(...) mas o rosto ainda nu não tinha a máscara <strong>de</strong> moça que cobriria<br />
minha tão exposta vida infantil (...) (LISPECTOR, 1998, p. 26 – 28)<br />
Des<strong>de</strong> cedo, as meninas observam a mãe e o “ritual” atrativo, mágico e<br />
fascinante <strong>de</strong> se maquiar, porém a influência da televisão vem acelerando esse<br />
processo, além <strong>de</strong> promover a padronização e a serialização dos rostos. Atualmente,<br />
há produtos e cores específicas para essas meninas/mulheres, que, como disse<br />
Lispector, tanto <strong>de</strong>sejam escapar “da meninice”. Colorir o rosto, <strong>de</strong>senvolver uma<br />
máscara tem o sentido <strong>de</strong> acesso ao misterioso mundo adulto no qual, na imaginação<br />
inocente da infância, tudo se po<strong>de</strong>. A maquiagem seria uma tentativa <strong>de</strong> cobrir “a<br />
exposta vida infantil” e entrar em um mundo <strong>de</strong>sconhecido, que, só mais tar<strong>de</strong>, as<br />
meninas perceberão que é tão ou mais cheio <strong>de</strong> regras, tensões e responsabilida<strong>de</strong>s.<br />
Essas transformações figurativas dos sujeitos actantes encarnados,<br />
correspon<strong>de</strong> à narrativida<strong>de</strong> da maquiagem que é comum entre as culturas letradas e<br />
pré-letradas. Porém, os grupos culturais pré-letrados, normalmente, possuem um<br />
modo <strong>de</strong> vida coletivo e tradicional. A cada nova aplicação das pinturas corporais<br />
significa a continuida<strong>de</strong> e a permanência <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> vida. Seria como a<br />
coexistência atual e anterior das enunciações. Fontanille (2004a, p.253) explica que “a<br />
tradição funciona por continuida<strong>de</strong> temporal e espacial <strong>de</strong> sua transmissão” 1 , e, para<br />
mantê-la viva, as enunciações impessoais não po<strong>de</strong>m ser interrompidas. Então, po<strong>de</strong>-<br />
se dizer que cada vez que um indivíduo Nuba se pinta, ele reativa a enunciação <strong>de</strong><br />
forma pessoal.<br />
1 La tradition que celui <strong>de</strong> la continuité temporelle et spatiale <strong>de</strong> sa transmission.
Fontanille e Zilberberg (2001, p. 213) explicam que “há forma <strong>de</strong> vida a partir do<br />
momento em que a práxis enunciativa apareça como intencional, esquematizável e<br />
estética, ou seja, preocupada com um plano da expressão que lhe seja peculiar”.<br />
Desse modo, os Nubas e seus sentidos estéticos completamente esquematizados<br />
mantêm viva a sua tradição da pintura corporal. Essas pinturas Nuba estão fixadas<br />
pelo uso e são imediatamente reconhecidas no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma estesia. A cada nova<br />
aplicação, um indivíduo Nuba <strong>de</strong>seja entrar em conjunção com a beleza (objeto <strong>de</strong><br />
valor) e atualizam o discurso por meio da categoria eidética do plano da expressão,<br />
uma vez que as cores correspon<strong>de</strong>m às faixas etárias. Assim, o actante sujeito<br />
encarnado Nuba, por meio das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem (<strong>de</strong>formações e projeções),<br />
transformam suas peles em superfície <strong>de</strong> inscrições efêmeras que são revestidas por<br />
figuras, se tornam os atores socias Nubas, com força <strong>de</strong> transformação e forma<br />
i<strong>de</strong>ntificável.<br />
138<br />
Quanto aos corpos contemporâneos, para Le Breton (2003), eles ou são<br />
cultuados ou são <strong>de</strong>sprezados nesses tempos <strong>de</strong> exibição <strong>de</strong> músculos tonificados, <strong>de</strong><br />
beleza estética acima <strong>de</strong> qualquer coisa, que produzem imagens corporais<br />
constantemente reversíveis, às quais se atribuem incertezas <strong>de</strong> significados que<br />
acabam parecendo ser inatingíveis. Um corpo que, tal como o rosto, acentua a sua<br />
situação <strong>de</strong> projeto, como <strong>de</strong>fine Fiorin (2008a). O corpo contemporâneo não é nada<br />
mais que um projeto, um corpo inacabado. O corpo que antes era pertencente à<br />
natureza, hoje é da or<strong>de</strong>m da cultura. Um indivíduo antigamente se resignava ao corpo<br />
com que nascera, agora, diante dos avanços da cosmética, da produção<br />
<strong>de</strong>rmatológica, das cirurgias plásticas, o corpo possui uma imagem i<strong>de</strong>alizada “e em<br />
relação a ela, o corpo <strong>de</strong> cada um é sentido como uma falta” (FIORIN, 2008a, p. 149).<br />
Os corpos pertencentes à natureza são representados nesta pesquisa pelos<br />
habitantes das montanhas Nuba, no su<strong>de</strong>ste da província sudanesa <strong>de</strong> Kordofan,<br />
África. Como são muitos os primitivos com culturas específicas, um estudo<br />
generalizado que abranja a maioria <strong>de</strong>les não levaria a compreensão <strong>de</strong> todo o<br />
contexto social específico <strong>de</strong> cada grupo. Conforme explica Lévi-Strauss (1981), <strong>de</strong>ve-<br />
se compreen<strong>de</strong>r tanto as máscaras quanto os ritos, o cotidiano que está associado ao<br />
meio social <strong>de</strong> cada cultura.
139<br />
Os Nubas foram fotografados por Riefenstahl, que, atraída por suas pinturas<br />
corporais, buscou maior aprofundamento nos estudos <strong>de</strong> Faris. Essas fotografias e a<br />
beleza das suas pinturas corporais influenciaram Roberto Edward, criador e diretor do<br />
projeto Cuerpos Pintados. Portanto, os corpos estéticos, bonitos, esbeltos e <strong>de</strong>finidos,<br />
padrão <strong>de</strong> beleza dos Nubas, não po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, nesta investigação, os<br />
representantes dos povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada. A partir das pinturas e escarificações<br />
corporais dos Nubas comprova-se a multidimensionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse corpos.<br />
De acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996, p. 43), a valorização da<br />
multidimensionalida<strong>de</strong> corporal assegura a conexão da cabeça ao corpo. É raro que<br />
algo passe pelo rosto, diferentemente do ser humano contemporâneo, que tem o rosto<br />
como forma <strong>de</strong> expressão primeira. A polivalência está em todo o corpo, passa por<br />
seus volumes, por suas cavida<strong>de</strong>s internas, por suas conexões e por “coor<strong>de</strong>nadas<br />
exteriores variáveis (territorialida<strong>de</strong>s)” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 43).<br />
As pinturas sobre a pele revelam “codificações simbólicas complexas” (JEUDY,<br />
2002, p. 89), motivo pelo qual foram estudadas profundamente nas pesquisas<br />
etnográficas. As tatuagens e as escarificações são exibidas como um “<strong>de</strong>safio para os<br />
olhos”, e também são sinais <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> pertença. “O corpo tatuado parece<br />
<strong>de</strong>spossuir a si mesmo para pertencer ao Outro” (JEUDY, i<strong>de</strong>m, p. 91), à medida que o<br />
outro tenta vencer o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar seus segredos. Até mesmo as máscaras<br />
que aparecem sobre o rosto dos povos pré-letrados são para garantir a pertença da<br />
cabeça ao corpo. Deleuze e Guattari (i<strong>de</strong>m, p. 43) afirmam que as máscaras não<br />
valorizam um rosto.<br />
Os pré-letrados possuem um corpo sacro que é entendido como pertencente à<br />
natureza e é valorizado por essa condição. Segundo Viviane Baeke (1997, p. 19), a<br />
pintura corporal, as tatuagens e as escarificações são como as vestimentas, são<br />
maneiras <strong>de</strong> valorizar e/ou mudar o sentido do corpo. Além da busca estética nessa<br />
transformação, o motivo principal da metamorfose corporal são as relações sociais,<br />
religiosas ou políticas. Além disso, Fontanille (2004a) constata que, para os povos Tin<br />
<strong>de</strong> Nova Guiné, o corpo é uma “figura” mereológica:<br />
...diversas partes (os membros e os órgãos) são associadas para<br />
formar um todo fe<strong>de</strong>rativo on<strong>de</strong> as partes <strong>de</strong>vem conservar sua<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>; mas essa figura aparece <strong>de</strong> imediato como homólogo da
140<br />
representação do entorno natural, uma configuração em arquipélago,<br />
<strong>de</strong> tal modo que as relações entre as partes (os órgãos e os membros)<br />
são homólogas com as relações entre as ilhas e as águas que<br />
constituem o território <strong>de</strong>sse povo 2 . (2004a, p. 16).<br />
A corporalida<strong>de</strong> dos povos pré-letrados, conforme <strong>de</strong>nominação dada por Lux<br />
Vidal e Aracy Silva (1992), é um exemplo que serve como princípio para a semiótica<br />
do corpo, na qual “a forma e as transformações das figuras do corpo proporcionam<br />
uma representação discursiva das operações profundas do processo semiótico 3 ”<br />
(FONTANILLE, 2004a, p. 17). Nesses corpos, a conexão do envelope corporal é<br />
preservada pelas operações da <strong>de</strong>breagem, mantendo não apenas todo o corpo<br />
conectado, mas também a sua conexão com o mundo natural. São corpos que<br />
possibilitam uma leitura polissensorial, a partir da força <strong>de</strong> ligação entre eles e o grupo,<br />
como também com o entorno e o cosmos, que fazem <strong>de</strong>les um espaço <strong>de</strong><br />
semiotização durante toda a vida. São actantes competentes, são re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura das<br />
ocorrências do dia a dia. Um corpo cujas formas e transformações esclarecem, <strong>de</strong><br />
acordo com Fontanille (2004a, p. 17), o percurso “fenomenológico e „encarnado‟” da<br />
significação.<br />
O efeito coesivo do envelope corporal atribuído às pinturas, tatuagens,<br />
escarificações dos povos pré-letrados é percebido inclusive nos jovens. O rito <strong>de</strong><br />
passagem significa passar <strong>de</strong> um estado para outro; aprendizagem <strong>de</strong> novos hábitos;<br />
novos conhecimentos; novas obrigações e está relacionado, <strong>de</strong> acordo com Lévi-<br />
Strauss (1979), com a ecologia e com a estrutura social <strong>de</strong> cada sistema sócio-cultural.<br />
Os rituais <strong>de</strong> escarificação, <strong>de</strong> tatuagem e <strong>de</strong> pinturas corporais são os principais<br />
meios que esses povos usam para ensinar e induzir os indivíduos a se iniciarem nas<br />
novas tarefas que a socieda<strong>de</strong> lhes impõe, e, geralmente, é durante o período <strong>de</strong><br />
puberda<strong>de</strong> que eles são introduzidos.<br />
O rito <strong>de</strong> passagem na cultura Nuba indica escarificações para as meninas e<br />
2 Des parties (les membres el les organes) sont associées pour former un tout fédératif, où les parties<br />
doivent conserver leur i<strong>de</strong>ntité ; mais cette figure apparaît immédiatement comme l‟homologue <strong>de</strong> la<br />
représentation <strong>de</strong> l‟environnement naturel, une configuration en archipel, en ce sens que les rapports<br />
entre les parties (les organes et les membres) sont homologues <strong>de</strong>s rapports entre les îles et les eaux<br />
qui constituent le territoire <strong>de</strong> ce peuple.<br />
3 La forme et les transformations <strong>de</strong>s figures du corps fournissent une représentation discursive <strong>de</strong>s<br />
opérations profon<strong>de</strong>s du processus sémiotique.
cores para os homens. De certo modo, sem todos os rituais tradicionais apresentados<br />
nas culturas pré-letradas, po<strong>de</strong>-se dizer que nas socieda<strong>de</strong>s letradas a maquiagem<br />
também tem uma importância fundamental na fase <strong>de</strong> transição entre a infância, a<br />
adolescência e a ida<strong>de</strong> adulta, restrita ao sexo feminino. Apesar da <strong>de</strong>limitação da área<br />
para as inscrições efêmeras, estas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser um atrativo para o imaginário<br />
infantil tal qual um rito <strong>de</strong> passagem. As meninas, assim como Lispector, no texto em<br />
epígrafe, acreditam, cada vez mais, que as cores da maquiagem tem o sentido <strong>de</strong> um<br />
passaporte libertário para o mundo adulto.<br />
3.1 O CORPO ESTÉTICO, A CONSTRUÇÃO FIGURATIVA E O SEMISSIMBOLISMO<br />
DA PINTURA CORPORAL DOS NUBAS<br />
141<br />
O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais “humanos” dos<br />
homens o espetáculo <strong>de</strong> que participam sem perceber (MERLEAU-<br />
PONTY, 1980, p.120).<br />
O fascínio dos Nubas pela estética corporal está inserido em todos os<br />
momentos do seu cotidiano. De acordo com Riefenstahl e Faris, somente os novos e<br />
saudáveis consi<strong>de</strong>rados entre eles, pelos padrões locais, como fisicamente belos é que<br />
tinham a permissão <strong>de</strong> ficar <strong>de</strong>spidos. Dificilmente encontram-se homens ou mulheres<br />
gordos entre eles, uma vez que a obesida<strong>de</strong> é consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>sagradável. Os homens<br />
acima da faixa etária dos 30, que já não lutam, consequentemente não usam mais<br />
adornos, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> usar as pinturas corporais e não andam mais nus. Do mesmo<br />
modo, as mulheres <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> exibir o corpo <strong>de</strong>spido após a primeira gravi<strong>de</strong>z. Para<br />
eles, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embelezar um corpo que já não é mais consi<strong>de</strong>rado belo.<br />
Os Nubas se conformam com a <strong>de</strong>gradação corporal provocada pelo tempo e<br />
seguem para outras ativida<strong>de</strong>s nas quais o corpo não seja o centro das atenções. Eles<br />
têm um conhecimento extenso sobre o corpo humano e dão nomes específicos para<br />
cada músculo e para cada postura e atitu<strong>de</strong> física. Conforme revelam a fotógrafa e o<br />
antropólogo, o vocabulário dos Nubas em relação ao corpo humano é muito maior que<br />
o das socieda<strong>de</strong>s letradas, uma vez que eles têm um termo específico para cada<br />
postura, do ombro ao estômago. A forma <strong>de</strong> andar, a posição dos pés, o modo como o
calcanhar toca o chão, o volume do estômago, se os ombros são caídos, largos ou<br />
estreitos e assim por diante, tudo é minuciosamente observado, avaliado e <strong>de</strong>finido por<br />
eles. Esse fato revela a característica humana em buscar o sentido <strong>de</strong> estar no mundo.<br />
142<br />
Um indivíduo Nuba, para pertencer ao grupo, <strong>de</strong>ve manter o corpo belo e<br />
esbelto, pois essa é uma das características da hexis corporal Nuba. Além <strong>de</strong>ssa<br />
característica geral, há regras para ambos os sexos se apresentarem no grupo. Se,<br />
por um lado, o sentido da arte é estético, por outro, <strong>de</strong> acordo com Faris (1972), a<br />
<strong>de</strong>coração corporal segue regras sociais e também indica um status. As cores, os<br />
estilos, as formas dos cabelos e as escarificações servem para marcar a faixa etária, a<br />
hierarquia, a condição fisiológica e o estatuto ritual. As mulheres Nubas têm tratamento<br />
diferenciado em relação aos homens. Ambos po<strong>de</strong>m pintar o corpo, mas as mulheres,<br />
além das pinturas bem mais simples que as masculinas, passam pelo dolorido ritual<br />
das escarificações (Figs 2 e 13), que começam a ser realizadas por volta dos <strong>de</strong>z anos<br />
<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. São três fases <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong>ssas cicatrizes intencionais: a primeira por<br />
volta dos <strong>de</strong>z anos na parte frontal do tronco; a segunda após a primeira menstruação<br />
e a terceira, cujas escarificações são aplicadas nas costas, acontece após o<br />
nascimento dos filhos.<br />
Nas pinturas femininas não há contrastes cromáticos, somente usam a cor<br />
amarela ou vermelha sobre o corpo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do clã familiar paterno. As<br />
tonalida<strong>de</strong>s das duas cores são diferentes, pois cada clã tem um lugar próprio para<br />
buscar o pigmento. Se as cores são uniformes, as escarificações exploram os planos<br />
eidético e topológico, criando formas que, às vezes, se concentram em algumas áreas,<br />
e em outras, se espalham por todo o corpo e rosto, <strong>de</strong> acordo com a fase <strong>de</strong> vida <strong>de</strong><br />
cada mulher. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que preenche seus envelopes corporais com<br />
essas marcas <strong>de</strong>finitivas preserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão, resguardando a unida<strong>de</strong><br />
do corpo. As escarificações, em conjunto com a coloração terrosa, utilizada nas<br />
pinturas po<strong>de</strong>m ter o sentido associado ao seu processo dolorido e sangrento, uma<br />
vez que as mulheres Nuba reforçam no corpo as marcas que o tempo imprime<br />
naturalmente. Clei<strong>de</strong> Campelo (1996, p. 49) diz que “o corpo da mãe é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
gestação uma expansão do corpo do filho, relação textual que logo será ampliada com<br />
a aquisição <strong>de</strong> novos textos, como o corpo expandido da família”.
143<br />
Para os homens, há <strong>de</strong>terminados a<strong>de</strong>reços, como braceletes, cintos,<br />
penteados, além da luta <strong>de</strong> vara, que correspon<strong>de</strong> a algumas faixas etárias. O mesmo<br />
acontece com a <strong>de</strong>coração corporal, principalmente no que diz respeito à seleção<br />
cromática: o vermelho e o branco acinzentado são <strong>de</strong>stinados aos meninos acima <strong>de</strong> 8<br />
anos; a cor amarela é <strong>de</strong>stinada aos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> intermediária e a cor preta como fundo<br />
só po<strong>de</strong> ser usada a partir <strong>de</strong> dois anos após a entrada na ida<strong>de</strong> adulta. Vê-se,<br />
portanto, que a categoria cromática do plano da expressão correlaciona-se com o<br />
plano do conteúdo. Esse é um típico caso <strong>de</strong> como “a relação entre a expressão e<br />
conteúdo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser convencional ou imotivada” (BARROS, 2003, 89), para instituir<br />
uma nova perspectiva <strong>de</strong> visão. Desse modo, os Nubas, para exprimirem que<br />
pertencem à faixa etária das crianças, utilizam as cores vermelhas e brancas, em<br />
oposição às cores amarelas e pretas, reservadas aos adultos. No quadro 6 abaixo,<br />
está resumida a correspondência cromática das pinturas com o respectivo grau etário<br />
dos homens Nubas, como também os termos masculinos e femininos correspon<strong>de</strong>ntes<br />
às respectivas cores, conforme os dados fornecidos por Faris (1972):
Sexo do<br />
usuário<br />
Masculino vermelho e<br />
branco<br />
Masculino vermelho,<br />
Cor Ida<strong>de</strong> Grau Cor <strong>de</strong><br />
amarelo,<br />
branco<br />
Masculino vermelho,<br />
amarelo,<br />
branco e<br />
preto<br />
8-11/11-<br />
14/14-17<br />
Lōer<br />
17-20/20-23 Kadūndōr<br />
20-23/26-<br />
29/29-<br />
31/31-<br />
45/45-<br />
Feminino amarelo De acordo<br />
com o clã<br />
da família<br />
do pai<br />
Feminino Vermelho De acordo<br />
com o clã<br />
da família<br />
do pai<br />
Kadōnga<br />
fundo 4<br />
vermelho<br />
branco/cinza<br />
amarelo<br />
preto<br />
Termo<br />
144<br />
cōrda cōŗē<br />
cōrda cera<br />
cōrda calō<br />
cōrda cūņin<br />
wā wa ēcēɂēt<br />
wā wa wōŗē<br />
A oposição cromática, no plano da expressão, correlacionada à oposição etária,<br />
do plano do conteúdo, caracteriza uma semiótica semissimbólica, uma vez que as<br />
correlações parciais entre os dois planos da linguagem apresentam um conjunto <strong>de</strong><br />
microcódigos, conforme explica Greimas (2004, p.93), da mesma maneira como ocorre<br />
com o microcódigo gestual do sim vs. não, que correspon<strong>de</strong> à oposição verticalida<strong>de</strong><br />
vs. horizontalida<strong>de</strong>.<br />
O estudo tradicional do simbolismo é dominado por uma visão “lexical‟,<br />
em que uma figura da expressão é correlacionada a uma figura do<br />
conteúdo. Lévi-Strauss (em Le totémisme aujourd‟hui) foi um dos<br />
primeiros a opor a esta visão substancial uma visão relacional. Uma<br />
4 O azul também foi usado por um período, proveniente dos comerciantes árabes. O branco pálido é<br />
usado por ambos os sexos, porém, somente em rituais.
145<br />
análise aprofundada das linguagens simbólicas <strong>de</strong> diferentes culturas<br />
mostra que elas repousam amplamente – mesmo se permitem<br />
frequentemente uma leitura do tipo lexical – sobre sistemas<br />
semissimbólicos. Assim, a maior parte das culturas primitivas africanas<br />
se serve do contraste entre duas cores/cromático („vermelho‟)/ vs.<br />
/acromático („preto‟, „branco‟)/ para exprimir a oposição vida vs. morte.<br />
(GREIMAS, 1986) 5 .<br />
Se a categoria cromática correlaciona-se à faixa etária, as linhas e formas da<br />
categoria eidética são relacionadas com as coisas do mundo: animais e relevos, entre<br />
outros. Faris (1972, p. 50) relaciona alguns <strong>de</strong>sses grafismos representacionais Nuba:<br />
Figura 42: Representação linear. Fonte: FARIS, 1972, p.50.<br />
5 Tradução <strong>de</strong> Lucia Teixeira.<br />
Piton<br />
Cobra venenosa<br />
Montanha<br />
Seios Femininos<br />
Colar Shilluk<br />
Tamanduá<br />
Tartaruga<br />
pequena<br />
Chuva
146<br />
Essas linhas po<strong>de</strong>m aparecer em diversas posições do corpo, do rosto ou sobre<br />
o cabelo. Algumas formas representacionais, no entanto, <strong>de</strong>vem ser localizadas<br />
topologicamente no corpo ou no rosto, mas, mesmo com essas <strong>de</strong>terminações, o<br />
espaço para a imaginação está assegurado, uma vez que estilizações e variações são<br />
aceitas. Alguns <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m ser observados nas figuras abaixo:<br />
Pássaros mascarados<br />
Pássaro<br />
Mascarado<br />
Pássaro da<br />
floresta<br />
Antílope da<br />
Floresta<br />
Macaco Preto<br />
ou vermelho da<br />
floresta<br />
Veado<br />
pequeno da<br />
savana<br />
.Figura 43: Desenhos representacionais do rosto Fonte: FARIS, 1972, p. 85<br />
Vaca<br />
Abutre Antílope<br />
pequeno da<br />
floresta
Figura 44: Desenhos representacionais para os corpos.Fonte: FARIS, 1972, p.78<br />
147<br />
As normas atribuídas pelos Nubas ao uso das cores e das formas<br />
correspon<strong>de</strong>m à relação do sistema com o processo (lexicalizado), ou da dicotomia<br />
saussureana língua (virtual) com a fala (realizada) 6 . O uso das cores e das formas faz<br />
com que os Nubas fiquem completamente transfigurados, a tal ponto que Riefenstahl<br />
não podia reconhecê-los a cada mudança <strong>de</strong> pintura, o que normalmente acontecia<br />
duas vezes por dia 7 . Como actantes sujeitos encarnados competentes, esses artistas<br />
natos sabem e po<strong>de</strong>m facilmente trocar <strong>de</strong> estados figurativos distintos, fascinando e<br />
persuadindo esteticamente os enunciatários. Como o corpo é o princípio da<br />
actancialida<strong>de</strong> e da intencionalida<strong>de</strong>, conforme foi visto no primeiro capítulo, os Nubas<br />
fazem juz a essa premissa proposta por Fontanille (2004a, p. 124). Como actantes<br />
encarnados cumprem perfeitamente a função da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida pela<br />
intencionalida<strong>de</strong> que lhes é própria. No sistema semissimbólico essa intencionalida<strong>de</strong><br />
6 Vale observar que o semissimbolismo das pinturas dos Nubas caminha para um simbolismo, na<br />
medida que cristaliza a articulação entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, apontando, <strong>de</strong>sse<br />
modo, para um sentido global.<br />
7 Somente nos meses <strong>de</strong>votados ao trabalho nos campos é que o óleo, a pintura e os adornos não são<br />
feitos diariamente.<br />
Gato da Floresta<br />
Avestruz<br />
Chacal da<br />
montanha
po<strong>de</strong> ser dupla, no sentido <strong>de</strong> que se constrói uma linguagem segunda ao <strong>de</strong>sviar<br />
alguns traços da expressão para renovar ou confirmar certos significados. Isso permite<br />
às pinturas corporais Nuba ter um “discurso mais profundo e mais mítico” e também,<br />
por outro lado, mais verda<strong>de</strong>iro, uma vez que “a arbitrarieda<strong>de</strong> do signo está em parte<br />
abolida, já que o signo conquista alguma motivação” (GREIMAS e COURTÉS, 1986).<br />
148<br />
A oposição profunda entre o vermelho e o preto, da materialida<strong>de</strong> da pintura,<br />
correspon<strong>de</strong> à oposição do plano do conteúdo entre criança e adulto, que se a<strong>de</strong>qua<br />
ao primeiro nível, o fundamental, do percurso gerativo <strong>de</strong> sentido semiótico. Como<br />
actantes encarnados estéticos, os sujeitos Nubas se juntam ao objeto também<br />
estético: as formas e cores efêmeras que são projetadas sobre os seus corpos<br />
próprios. Desse modo, os indivíduos Nubas instauram o nível narrativo a partir da<br />
tomada <strong>de</strong> posição no mundo sócio/etário/cultural ao qual pertencem. Por meio da<br />
operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que conserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope<br />
corporal, os discursos topológicos, eidéticos e cromáticos <strong>de</strong> uma materialida<strong>de</strong><br />
caracteristicamente fugaz são percebidos em ato, e, assim, os Nubas exercem a<br />
persuasão ou a vertigem em seus enunciatários.<br />
3.2 PLANO DA EXPRESSÃO.<br />
O que me fascinou mais que tudo foi a pintura sobre os rostos dos<br />
homens. Esses nativos tinham um incrível dom da imaginação e da<br />
arte. Eles logo perceberam como eu estava impressionada com suas<br />
qualida<strong>de</strong>s artísticas e, a partir <strong>de</strong> então, competiam, para minha<br />
surpresa e admiração, elaborando novas máscaras diárias. Eu consegui<br />
conhecer muitos <strong>de</strong>les pelo nome com o passar do tempo, e alguns<br />
tinham um talento fora do comum. Eu me recordo particularmente <strong>de</strong><br />
Yunis, <strong>de</strong> Kaduma, <strong>de</strong> El Kallas, <strong>de</strong> Aliman e <strong>de</strong> Molle. Às vezes<br />
figurativas, mas frequentemente, bastante abstratas e servindo para fins<br />
estéticos ao invés <strong>de</strong> <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>s rituais, seus <strong>de</strong>senhos indicam um<br />
comando <strong>de</strong> todos os cânones da arte. Se eles se pintavam<br />
simetricamente ou assimetricamente, com ornamentos, linhas ou<br />
figuras estilizadas, o efeito era sempre harmonioso. O modo como<br />
usam a forma e a cor nasceu da gran<strong>de</strong> fonte da arte. Meninas e<br />
homens, igualmente, fizeram um genuíno culto <strong>de</strong> seus corpos. Fiquei<br />
impressionada pela sua extrema limpeza. Antes <strong>de</strong> pintar o rosto e o<br />
corpo, os Nubas do su<strong>de</strong>ste se lavam e passam óleo. Sem o óleo, que<br />
<strong>de</strong>ve ser completamente absorvido pela pele, a pintura seria impossível.<br />
Para remover a pintura eles usam uma argila úmida que é <strong>de</strong>ixada no
149<br />
corpo por aproximadamente meia hora. Isso absorve os pigmentos e o<br />
óleo que <strong>de</strong>pois são lavados 8 . (RIEFENSTAHL, 1976, p. 212).<br />
Nestas palavras, Riefenstahl <strong>de</strong>ixa clara a materialida<strong>de</strong> da pintura corporal dos<br />
Nubas, como também a utilização das outras categorias plásticas do plano da<br />
expressão semiótica: a cromática (categoria constituinte), a eidética (categoria<br />
constituida) e a topológica (categoria não constitucional). A semiótica plástica é<br />
apropriada para analisar os sistemas semissimbólicos constituídos por manifestações<br />
visuais. Durante a análise do plano da expressão, faz-se necessário <strong>de</strong>screver os seus<br />
componentes, verificando a organização hierárquica das categorias que po<strong>de</strong>m ser<br />
combinadas <strong>de</strong> variadas maneiras, o que <strong>de</strong>terminará os diversos efeitos plásticos.<br />
Conforme Greimas e Courtés(1986), as categorias constitucionais possibilitam “a<br />
apreensão <strong>de</strong> uma configuração plástica”, em oposição às categorias não<br />
constitucionais, que “regem a disposição das configurações já constituídas no<br />
espaço”.<br />
O discurso plástico dos Nubas, conforme esclarece Faris, po<strong>de</strong> ser ou não<br />
representacional, mas as escolhas dos traços e das formas sempre é feita <strong>de</strong> acordo<br />
com a morfologia do corpo.<br />
A arte pessoal dos Nubas do su<strong>de</strong>ste não é uma arte semântica no<br />
sentido <strong>de</strong> que todo projeto tem algum tipo <strong>de</strong> significado simbólico<br />
profundo. O elemento mais significativo é o meio em que ele é<br />
comumente produzido - o corpo humano. Esta exposição culturalmente<br />
apropriada po<strong>de</strong> ser, talvez, como Lévi-Strauss sugeriu, a expressão<br />
culturológica essencial do homem em oposição ao indivíduo<br />
biológico 9 .(FARIS, 1972, p. 50).<br />
8 What fascinated me more than all else was the painting on the men‟s faces. These natives had<br />
incredible gifts of imagination and artistry. They soon noticed how impressed I was by their handiwork,<br />
and from then on competed for my won<strong>de</strong>r and admiration by <strong>de</strong>vising new masks every day. I got to<br />
know many of them by name as time went by, and some were outstandingly talented. I particularly<br />
remember Yunis, Kaduma, El Kallas, Alimam and Molle. Sometimes figurative but often quite abstract<br />
and serving aesthetic rather than ritual purposes, their drawings displayed a command of all the canons<br />
of art. Whether they painted themselves symmetrically or asymmetrically, and whether with ornaments,<br />
lines or stylized figures, the effect was always harmonious. Their use of form and colour sprang from the<br />
very fount of art. Girls and men alike, they ma<strong>de</strong> a genuine cult of their bodies.<br />
I was impressed by their extreme cleanliness. Before painting the face and body, the South-East<br />
Nuba wash and oil themselves. Without oil, which must be thoroughly absorbed by the skin, painting<br />
would be impossible. For removing paint they use a moist clay which is left on the body for about half an<br />
hour. This absorbs the pigments and oil and is then washed off.<br />
9 Southeastern Nuba personal art is not a semantic art in the sense that all <strong>de</strong>sign has some type of<br />
<strong>de</strong>eper symbolic meaning. The most meaningful element is the medium on which it is commonly<br />
produced - the human body. This culturally proper exposure can be, perhaps, as Lévi-Strauss has
150<br />
De todo modo, ao pintarem o corpo e o rosto, os Nubas mantêm a conexão<br />
total do corpo, como explicaram Deleuze e Guatari (1996, p. 43). Contudo, sobre o<br />
rosto há uma maior concentração <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, justamente na área nobre do corpo<br />
humano. Talvez seja exatamente para não valorizar o rosto, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os<br />
filósofos. Com a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação individual e do estado emocional, eles<br />
direcionam o olhar para o conjunto do corpo, ressaltando a “expressão culturológica<br />
essencial”, como se referiu Leví-Strauss (1981).<br />
Percebe-se na pintura dos Nubas os contrastes e as oposições em todas as<br />
categorias plásticas: às vezes eles opõem a pintura simétrica do corpo à pintura<br />
assimétrica sobre o rosto; traços curvilíneos versus retilíneos; direita versus esquerda.<br />
Faris <strong>de</strong>screve cinco tipos <strong>de</strong> projetos topológicos básicos da pintura corporal Nuba,<br />
que po<strong>de</strong>m ser representacionais ou não representacionais:<br />
Ţōrē: projetos orientados sobre uma divisão vertical por meio das cores<br />
<strong>de</strong> simetria bilateral.<br />
Nyūlaņ: projetos que irradiam a partir <strong>de</strong> um único ponto ao longo do<br />
eixo <strong>de</strong> simetria bilateral.<br />
Pacōrē: projetos que divi<strong>de</strong>m o corpo (ou rosto), em paralelo a muitas<br />
seções: vertical, horizontal ou diagonal.<br />
Tōmā: projetos uniformemente distribuídos, carimbados ou manchados.<br />
Kōbera: sem distribuição uniforme dos diferentes projetos individuais,<br />
nomeadamente painéis <strong>de</strong> projeto 10 . (1976, p. 74)<br />
Seja como for o projeto topológico, os Nubas não per<strong>de</strong>m o sentido estético nas<br />
suas pinturas. De acordo com Faris, os projetos mais comuns são os não-<br />
representacionais, nos quais eles po<strong>de</strong>m usar elementos e traços das pinturas<br />
representacionais, porém essa mistura em um único conjunto faz com que se tornem<br />
mais abstratos.<br />
suggested, the essential expression of culturological man as opposed to the biological individual.<br />
10 Ţōrē: <strong>de</strong>signs orientated about a vertical division along axix of bilateral symmetry.<br />
Nyūlaņ:<strong>de</strong>signs which radiate from a single point along the axis of bilateral symmetry.<br />
Pacōrē: <strong>de</strong>signs which divi<strong>de</strong> body (or face) in to many parallel sections, vertically, horizontally, or<br />
diagonally.<br />
Tōmā: uniformly distributed stamped or spotted <strong>de</strong>signs.<br />
Kōbera: non- uniform distribution of different individual <strong>de</strong>signs, particularly panels of <strong>de</strong>sign.
151<br />
Com as pinturas representacionais dos Nubas po<strong>de</strong>-se perceber que um mínimo<br />
<strong>de</strong> traços representa um leopardo (Figs. 47 e 48), uma montanha (Fig. 49), um pássaro<br />
(Fig. 45 e 46), entre outros. Não existe iconicida<strong>de</strong> na representação, mas apenas um<br />
traço que retém a qualida<strong>de</strong> mais fundamental e mais profunda <strong>de</strong> cada representação.<br />
As pinturas corporais Nuba po<strong>de</strong>m ser comparadas à obra <strong>de</strong> Picasso, As<br />
metamorfoses <strong>de</strong> um touro, na qual o pintor vai “apagando os recursos <strong>de</strong><br />
referencialização do <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong>snudando-o até chegar a sua estrutura mínima”, como<br />
explica Lúcia Teixeira (2008b, p. 301). Os Nubas atingem naturalmente a “rarefação<br />
figurativa”, tornando, <strong>de</strong>sse modo, as suas representações, aos nossos olhos,<br />
verda<strong>de</strong>iras abstrações.<br />
Teixeira, no mesmo artigo, refere-se a uma conferência proferida por Italo<br />
Calvino, na qual ressalta a “nossa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> golpear o contínuo das sensações<br />
confusas, atribuindo-lhes a forma <strong>de</strong> signos inteligíveis”. Diante <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações,<br />
po<strong>de</strong>-se dizer que os Nubas, em suas pinturas corporais, <strong>de</strong>safiam a si próprios e,<br />
consequentemente, seus observadores, a “enfrentar sentidos inesperados” e também<br />
nos ensinam a compreen<strong>de</strong>r a produção do sentido, que vai do mais concreto e<br />
complexo ao mais simples e abstrato (TEIXEIRA, 2008b).<br />
Tanto nos recursos <strong>de</strong> expressão que imprimem direcionalida<strong>de</strong> às<br />
linhas, volume aos corpos e movimento ao conjunto, quanto no plano<br />
mais abstrato do conteúdo, que opera com o <strong>de</strong>spojamento das figuras<br />
para falar da essencialida<strong>de</strong> da representação, os procedimentos<br />
discursivos instalam um sujeito da enunciação cuja caligrafia rasura a<br />
representação convencional, anunciando um tempo <strong>de</strong> novos<br />
procedimentos estéticos. (TEIXEIRA, 2008b, p. 302)
Figura 45: Pintura simétrica e representativa – variação<br />
da cipalin – máscara <strong>de</strong> pássaro. Fonte: FARIS, 1972,<br />
p.103.<br />
Figura 46: Pintura simétrica e representativa – variação<br />
da cipalin – máscara <strong>de</strong> pássaro. Fonte: RIEFENSTAHL,<br />
1976, p. 191.<br />
152<br />
As figuras 45 e 46 apresentam maquiagens simétricas e representativas. Elas<br />
representam um pássaro, vale ressaltar que, na tradição dos Nubas, a representação<br />
<strong>de</strong> um animal, não faz com que eles se tornem ou adquiram o po<strong>de</strong>r do animal<br />
representado, mesmo porque, em uma mesma configuração, eles po<strong>de</strong>m representar<br />
vários animais. Como os Nubas valorizam a beleza corporal, eles procuram explorar e<br />
reforçar essa beleza por meio da imitação da padronagem das peles, das formas dos<br />
corpos dos animais nas pinturas corporais, produzindo por meio da relação dos planos<br />
eidéticos e topológicos um efeito puramente estético.<br />
A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal é assegurada pelas inscrições<br />
coloridas e efêmeras. Se o corpo se mostra evi<strong>de</strong>nciado nestas duas pinturas, o rosto,<br />
o que há <strong>de</strong> mais humano, está virtualizado.<br />
O rosto é humano, é somente em referência a um sentido profundo da<br />
humanida<strong>de</strong> que se falará do rosto por um animal, uma coisa, uma<br />
paisagem. O rosto está no alto do corpo, à frente, ele é a parte nobre do<br />
indivíduo; sobretudo, ele é o lugar do olhar. Lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se vê e <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong>, às vezes, é visto, por essa razão, é um lugar privilegiado das<br />
funções sociais - comunicativas, intersubjetivas, expressivas, linguagem
153<br />
- mas também, suporte visível da função mais ontológica, o rosto é do<br />
homem 11 . (AUMONT, 1992, p. 14)<br />
A cor <strong>de</strong> fundo da maquiagem à esquerda é amarela, da direita é branca. Isso<br />
significa que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> faixas etárias diferentes e pertencerem respectivamente ao<br />
grau <strong>de</strong> Lōer e Kadūndōr, com o tipo cōrda calō (amarelo) e cōrda cera (branco). Por<br />
ser representacional do tipo 2 12 , a pintura <strong>de</strong>ve ser simétrica, para que o formato possa<br />
ser i<strong>de</strong>ntificado, contudo, variações po<strong>de</strong>m ser realizadas, como nessas duas<br />
maquiagens. Os padrões originais po<strong>de</strong>m ser verificados na figura 43. Os dois<br />
exemplos apresentam dois triângulos equiláteros lado a lado, preenchidos pela cor<br />
preta. O primeiro recortou os triângulos verticalmente, o segundo, o dividiu em quatro<br />
partes. O arranjo <strong>de</strong> pluma <strong>de</strong> avestruz no cabelo completa a figura do exemplo da<br />
esquerda. Percebe-se que as formas das pinturas atualizaram a enunciação do ritual<br />
tradicional, garantido, <strong>de</strong>sse modo, a sua manutenção e um enunciado vivo e inovado.<br />
11 Le visage est humain, c‟est seulement en référence à un sens profond <strong>de</strong> l‟humanité qu‟on parlera <strong>de</strong><br />
visage pour un animal, une chose, un paysage ; le visage est au haut du corps, `l‟avant, il est la partie<br />
noble <strong>de</strong> l‟individu ; surtout, il est le lieu du regard. Lieu d‟où l‟on voit et d‟où l‟on est vu à la fois, et pour<br />
cette raison lieu privilégié <strong>de</strong> fonctions sociales – communicatives, intersubjectives, expressives,<br />
langagières – mais aussi, support visible <strong>de</strong> la fonction la plus ontologique, le visage est <strong>de</strong> l‟homme.<br />
12 Há três tipos <strong>de</strong> representação: tipo1, tipo2, tipo3 que são especificadas nos exemplos.
Figura 47: Rosto com pintura facial semissimétrica e não-representativa; corpo simétrico, representacional – tūrkā tera<br />
– Leopardo. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p. 90.<br />
Figura 48: Rosto com pintura assimétrica e representacional - tūrkā tera – Leopardo. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p.<br />
189.<br />
154<br />
Nestes dois exemplos (Figs. 47 e 48), o corpo representa o leopardo. São duas<br />
pinturas corporais do tipo Tōmā, com manchas distribuídas uniformemente por todo o<br />
corpo. Conforme esclarece Faris (1972, p. 91), os Nubas procuram respeitar a<br />
morfologia dos animais representados e reproduzem os seus <strong>de</strong>talhes mais<br />
característicos na parte do corpo humano que correspon<strong>de</strong> à localização daquela<br />
característica. Nestes exemplos, são representadas as manchas sobre o corpo do<br />
leopardo. A cor <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>termina a ida<strong>de</strong>, e não tem relação com o animal: o da<br />
esquerda, com pintura <strong>de</strong> fundo branca, é do grau Lōer (14 a17 anos); o da direita,<br />
com pintura <strong>de</strong> fundo amarela, é um Kadūndōr (17 a 23 anos). Os corpos são<br />
uniformes e representativos, entretanto, a maquiagem do rosto da figura 47 não é<br />
representacional e é simétrica; a da figura 48 é representacional do tipo 1, totalmente<br />
assimétrica.<br />
A pintura do rosto do Lōer, à esquerda, é feita com linhas finas sobre a testa,<br />
no topo há uma sequência <strong>de</strong> formas triangulares, na parte mais baixa, losangos
preenchidos com pequenos círculos. Um losango maior, também preenchido pelos<br />
pequenos círculos, divi<strong>de</strong> o centro da testa e aponta para a divisão do nariz. Nos dois<br />
lados <strong>de</strong>sse losango central aparecem dois losangos irregulares, preenchidos por dois<br />
grafismos diferentes, é esse o único <strong>de</strong>talhe assimétrico <strong>de</strong>ssa pintura.<br />
155<br />
As linhas duplas que divi<strong>de</strong>m o nariz seguem contornando e dividindo o rosto<br />
horizontalmente por cima das sobrancelhas, atingem a área do osso malar ou<br />
zigomático e ascen<strong>de</strong>m, fechando o contorno das laterais da testa. A área dos olhos e<br />
as laterais do nariz são completamente preenchidas por pequenos círculos, como os<br />
utilizados nos losangos da testa. Esses pequenos círculos também aparecem entre as<br />
linhas que contornam a face. Na área da boca e do queixo é <strong>de</strong>senhado um triângulo<br />
invertido, completamente preenchido pela cor preta que ressalta o sorriso.<br />
O rosto é divido em três partes horizontais (área da testa, dos olhos e da boca),<br />
o excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes lineares da testa se opõe à textura lisa da área da boca e essas<br />
duas áreas circundam a área dos olhos. A outra pintura, da figura da direita, é dividida<br />
em duas partes verticais, tem menos <strong>de</strong>talhes, mas é completamente assimétrica. Do<br />
lado esquerdo do rosto aparece uma estilização <strong>de</strong> um avestruz, representação<br />
kūngūrū ka lelr tipo 1, que, segundo Faris (1972, p. 92), é a forma apenas codificada do<br />
animal, relevante apenas para a i<strong>de</strong>ntificação, e po<strong>de</strong> ser aplicada em qualquer parte<br />
do corpo. É diferente do tipo 3, como o do leopardo, em que as características da<br />
superfície da pele do animal <strong>de</strong>vem ser aplicadas sobre a parte do corpo humano que<br />
corresponda à do animal representado. Do lado direito do rosto, um pouco escondido<br />
atrás da vara (arma utilizada nas lutas), percebe-se que apenas o olho é contornado e,<br />
na altura do osso malar, aparecem três linhas horizontais e paralelas.<br />
Nota-se novamente o equilíbrio e a harmonia das duas pinturas, uma com mais<br />
<strong>de</strong>talhes e a outra com uma composição mais simples, que conservam a conexão do<br />
envelope corporal (corpo e cabeça) e a ligação com a natureza ao utilizar as figuras do<br />
mundo natural. Os Nubas conseguem uma total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação e criativida<strong>de</strong>,<br />
mesmo regidos pelas regras impostas para as pinturas, para, além <strong>de</strong> atualizar as<br />
enunciações da tradição, criar efeitos estéticos a partir das relações entre os planos<br />
eidéticos, topológicos e a estratégia enunciativa da <strong>de</strong>breagem, que conserva a<br />
conexão corporal.
Esse Nuba (Fig. 49) é do grau<br />
Kadūndōr (17 a 23 anos), para o qual o uso<br />
do pigmento amarelo como fundo é<br />
permitido. O <strong>de</strong>senho sobre o seu rosto é<br />
bem simples, simétrico e harmonioso. A<br />
composição é não representacional, mas<br />
mistura a representação linear da montanha<br />
sobre a testa com o <strong>de</strong>senho dos olhos daņ<br />
daka awlad hēmed, que representa a vaca.<br />
Vale lembrar que isso não significa que ele<br />
seja ou se sinta como o animal<br />
representado, mas é puramente um efeito<br />
estético. Os Nubas tentam explicar o mundo<br />
com um texto, em forma <strong>de</strong> pintura corporal,<br />
predominante temático: a beleza. No nível<br />
narrativo a junção dos Nubas com a beleza<br />
estética que é recoberta no nível discursivo<br />
com algumas figuras do mundo natural:<br />
leopardo, pássaros, montanha, avestruz<br />
entre outros.<br />
Faris <strong>de</strong>screve com minúcia a leitura<br />
que os Nubas fizeram do mundo natural,<br />
tornado significante por meio da i<strong>de</strong>ntificação das suas figuras como objetos, que<br />
foram i<strong>de</strong>ntificados, classificados e relacionados entre si. O antropólogo afirma que a<br />
arte dos Nubas não é totalmente semântica, pois nem todas as pinturas têm algum tipo<br />
<strong>de</strong> significado simbólico profundo. Contudo, po<strong>de</strong>-se dizer que as que são<br />
representacionais não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser uma leitura <strong>de</strong> natureza semântica, como explica<br />
Greimas, “que serve <strong>de</strong> „código‟ <strong>de</strong> reconhecimento que torna o mundo inteligível e<br />
manuseável” (2004, p.79) tanto para os próprios Nubas como para nós.<br />
156<br />
Figura 49: Rosto simétrico não representacional -<br />
Montanha. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p. 109.<br />
...sendo cada cultura dotada <strong>de</strong> uma „visão <strong>de</strong> mundo‟ que lhe é própria,<br />
ela impõe por isso mesmo condições variáveis ao reconhecimento dos<br />
objetos e, consequentemente, à i<strong>de</strong>ntificação das figuras visuais como
157<br />
algo que „representa‟ os objetos do mundo, contentando-se<br />
frequentemente com esquematismos vagos, mas exigindo, por vezes,<br />
reprodução minuciosa dos <strong>de</strong>talhes „verídicos‟. (GREIMAS, 2004, p.80).<br />
Os “traços heterogêneos que constituem a pintura corporal representacional<br />
dos Nubas do tipo 1 reproduzem a forma apenas para codificar e, assim, serem<br />
passíveis <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação, têm uma figurativida<strong>de</strong> normal, e muitos po<strong>de</strong>m ser<br />
comparados com <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> uma criança, como o avestruz no rosto da Fig. 48 e<br />
das montanhas da figura 49. Muitos <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m ser i<strong>de</strong>ntificados<br />
inclusive por pessoas <strong>de</strong> outras culturas. Contudo, em relação às representações do<br />
tipo 2 (Fig. 45 e 46), que utilizam a forma e a superfície da pele do animal<br />
representado, e do tipo 3, que utilizam apenas as características da superfície da pele<br />
dos animais representados pelas pinturas (corpo das Figs. 47 e 48), apresentam<br />
graus variáveis da figurativida<strong>de</strong>.<br />
Assim, a figurativida<strong>de</strong> não é uma simples ornamentação das coisas,<br />
ela é esta tela do parecer cuja virtu<strong>de</strong> consiste em entreabrir, em <strong>de</strong>ixar<br />
entrever, graças ou por causa <strong>de</strong> sua imperfeição, como que uma<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> além (do) sentido. Os humores do sujeito reencontram,<br />
então, a imanência do sensível. (GREIMAS, 2002, p. 74).<br />
Para os Nubas, tais representações são facilmente i<strong>de</strong>ntificáveis, <strong>de</strong> natureza<br />
icônica, <strong>de</strong> acordo com Faris (1992, p.93). Porém, para as pessoas <strong>de</strong> culturas<br />
diferentes, essas representações são simples e abstratas, como o exemplo da<br />
montanha (Fig. 49), que, se comparado aos exemplos dos capítulos anteriores, as<br />
montanhas <strong>de</strong> Larraz e as colinas <strong>de</strong> Gair (Figs. 3 e 35), é menos icônico que estes.<br />
As pinturas dos Nubas provocam nos observadores <strong>de</strong> outra cultura uma<br />
tensão, uma surpresa, parecida com o estranhamento que os Punks (Fig. 10)<br />
promovem nos outros sujeitos encarnados <strong>de</strong> hexei corporais diferentes. Há, portanto,<br />
entre os Nubas e os habitantes <strong>de</strong> outras culturas uma tensão afetiva, numa correlação<br />
divergente cujo esquema é ascen<strong>de</strong>nte, como <strong>de</strong>monstrado no esquema tensivo 8 (p.<br />
79). Sem dúvida que o exotismo das pinturas encanta <strong>de</strong> todo modo e procura-se<br />
compreendê-las.<br />
Os Nubas, regidos pelo sentido estético, mantêm viva a tradição dos enunciados<br />
efêmeros das pinturas corporais pessoais a partir <strong>de</strong> uma enunciação tradicional. Eles<br />
são, <strong>de</strong>sse modo, atores semióticos com força <strong>de</strong> transformação e forma i<strong>de</strong>ntificável.
Como sujeitos actantes encarnados transformam o envelope corporal para reafirmar<br />
um ritual e se manterem conectados com a natureza. Os sujeitos actantes encarnados<br />
contemporâneos per<strong>de</strong>ram essa conexão com a natureza e fazem dos seus corpos<br />
projetos enunciativos culturais e, <strong>de</strong> acordo com Deleuze, restritos ao rosto. Deleuze e<br />
Guattari (1996) perguntam o que fazer para reiventar o corpo contemporâneo como<br />
multiplicida<strong>de</strong> heterogênea e polivalente.<br />
Seria, então, preciso levar o rosto a um<br />
“<strong>de</strong>sfazimento”, “encontrar ou fazer surgir a<br />
cabeça sob o rosto” (Deleuze, 2007, p. 28)<br />
e <strong>de</strong>scobrir um “corpo sem órgãos”, em que<br />
seria necessária a arte, com todos os seus<br />
recursos, como instrumento para liberar no<br />
corpo todos os “<strong>de</strong>vires” reais. Apenas a<br />
arte provocaria a junção <strong>de</strong>sses corpos<br />
com a natureza, liberando, <strong>de</strong>sse modo, o<br />
sentido social dos envelopes corporais na<br />
contemporaneida<strong>de</strong> para criar novos<br />
efeitos <strong>de</strong> sentido. Assim, passo a verificar<br />
a construção <strong>de</strong> sentido nas pinturas<br />
corporais contemporâneas <strong>de</strong> Tracy Craig.<br />
Procurei trabalhos que remetessem <strong>de</strong><br />
algum modo ao plano <strong>de</strong> expressão das<br />
pinturas dos Nubas.<br />
A figura 50 faz parte <strong>de</strong> uma<br />
campanha publicitária <strong>de</strong> preservativos cuja<br />
pintura corporal foi realizada por Craig<br />
Tracy. Essa campanha foi publicada em<br />
página inteira das revistas americanas<br />
Cosmopolitan, Shape and muscle e<br />
Fitness. O rosto da mo<strong>de</strong>lo está maquiado<br />
harmonicamente com cores quentes do<br />
158<br />
Figura 50: LifeStyles. Leopardo.Fonte: TRACY,<br />
2006.
mesmo grupo <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s da cor amarela aplicada sobre o corpo, o que garante a<br />
preservação da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal da mo<strong>de</strong>lo. Sobre o<br />
corpo foi pintado um fundo amarelo, que remete à tonalida<strong>de</strong> dos pelos <strong>de</strong> um<br />
leopardo. Sobre esse fundo foram distribuídas uniformemente diversos tamanhos e<br />
tipos <strong>de</strong> manchas. As manchas maiores reproduzem o formato <strong>de</strong> roseta com o centro<br />
“vazio”, e se espalham pela parte central do corpo; as menores, próximas ao pescoço e<br />
às mãos, mantêm a forma irregular, mas são completamente preenchidas pela cor<br />
preta, correspon<strong>de</strong>nte às do animal <strong>de</strong> referência. Na categoria topológica há uma<br />
oposição central vs periférico na distribuição das formas das manchas maiores vs<br />
menores. Tal oposição colabora com o efeito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o animal selvagem,<br />
além <strong>de</strong> aumentar o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> do trabalho do pintor. Para os leigos, a<br />
representação do leopardo encontrado nos corpos Nuba po<strong>de</strong> gerar dúvidas no<br />
reconhecimento por causa das cores <strong>de</strong> fundo, que têm o significado da faixa etária e<br />
não remetem diretamente à pelagem do animal, o que é agravado também pelo<br />
formato mais simples e pela distribuição uniforme das manchas pintadas. Isso não<br />
acontece quando observamos a pintura <strong>de</strong> Tracy, que por meio das relações entre as<br />
categorias cromáticas, topológicas e eidéticas e o alto nível <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> produz o<br />
sentido <strong>de</strong> iconicida<strong>de</strong> e verossimilhança em relação com o Leopardo. Acredita-se que<br />
qualquer pessoa que <strong>de</strong> algum modo conheça um leopardo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da<br />
cultura, po<strong>de</strong>ria reconhecê-lo na obra do pintor contemporâneo, <strong>de</strong>vido à minúcia <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes do plano da expressão. Vale ressaltar que na campanha publicitária para a<br />
qual foi feita essa pintura, a mo<strong>de</strong>lo está em um ambiente arborizado, do lado direito<br />
da figura da mulher/leopardo está escrita a frase em letras brancas “Release your inner<br />
beast” (libere a sua fera interior). Esse elemento verbal revela o sentido da mulher<br />
estar com seu corpo pintado como a pelagem <strong>de</strong> um felino 13 e a sugestão do sexo<br />
selvagem protegido.<br />
159<br />
Há, portanto, uma distorção semiótica, provocada pela práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa<br />
pintura corporal, que promove o movimento do observador diante <strong>de</strong>sse corpo pintado,<br />
ou seja, a pintura emerge enquanto o envelope corporal humano entra em <strong>de</strong>clínio.<br />
13 Não pretendo <strong>de</strong>talhar as relações dos textos verbais, uma vez que o foco da pesquisa é o corpo<br />
pintado e, neste caso, interessa-me o sentido figurativo da pintura.
160<br />
Com uma flutuação semiótica em Speed, título da obra a ser analisada (Fig. 51),<br />
Tracy faz uso da aparente simplicida<strong>de</strong>, para torná-la mais atraente com uma<br />
composição harmoniosa. Velocida<strong>de</strong> vs. inércia po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada a oposição<br />
fundamental <strong>de</strong>sse trabalho, que, por meio <strong>de</strong> traços visuais heterogêneos, é oferecido<br />
aos nossos olhos como uma imagem clara, simples e paradoxal.<br />
Um felino ocupa a posição central da imagem e é cercado pela imensidão<br />
branca. O artista não economiza recursos para a representação icônica do felino, que,<br />
a princípio, po<strong>de</strong>ria ser qualquer felino pintado: um leopardo, uma onça, uma pantera<br />
ou um guepardo. Para um exímio conhecedor <strong>de</strong> animais bastam os dois <strong>de</strong>talhes da<br />
imagem que reproduzem fielmente as manchas pretas, arredondadas e/ou ovaladas,<br />
distribuídas pelo corpo do animal, e o risco preto marcante entre os olhos e a boca<br />
como uma lágrima preta, para saber que se trata do felino mais veloz: o guepardo. Se<br />
não bastasse a riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, o pintor lança uma pista ao intitular a obra como<br />
speed.<br />
Figura 51: Speed. Fonte: TRACY, 2006.<br />
A mo<strong>de</strong>lo Cara se encontra <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> bruços, com a cabeça direcionada para a<br />
direita e repousada entre os braços cruzados. Tanto a pele quanto os cabelos estão<br />
completamente brancos, na mesma tonalida<strong>de</strong> do fundo e do chão. No centro <strong>de</strong>sse<br />
fundo branco, rente às costas da mo<strong>de</strong>lo, percebe-se o ícone da tecla play,<br />
semelhante à encontrada em aparelhos eletrônicos <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> sons e imagens.
161<br />
A lateral do corpo <strong>de</strong> Cara é a tela/suporte para a pintura do guepardo, que<br />
corre para o lado esquerdo, ou seja, contrário à posição corporal da mo<strong>de</strong>lo. A<br />
sugestão do movimento e da velocida<strong>de</strong> do felino é dada pela substituição das patas<br />
por rastros <strong>de</strong> tinta esmaecida, que também aparecem por trás da cauda.<br />
A oposição cromática amarelo vs branco correspon<strong>de</strong> à oposição semântica<br />
fundamental velocida<strong>de</strong> vs inércia, do mesmo modo que o felino em plena corrida se<br />
opõe ao corpo <strong>de</strong>itado da mo<strong>de</strong>lo. A tecla Play, no mesmo plano cromático da mo<strong>de</strong>lo<br />
cria um efeito <strong>de</strong> jogo no qual se espera que alguém o acione para que a moça<br />
comece a se movimentar. A natureza <strong>de</strong>sperta não espera que o ser humano a<br />
acompanhe...<br />
Tracy, a partir da práxis enunciativa da pintura, faz com que nossos olhos<br />
flutuem entre o envelope corporal branco potencializado <strong>de</strong> Cara e a figura realizada<br />
do guepardo. O semissimbolismo <strong>de</strong>ssa pintura, além <strong>de</strong> confirmar as correlações<br />
entre categorias do plano da expressão e do conteúdo, aclara “os mecanismos<br />
reveladores da transfiguração das sensações em manifestações sígnicas” (TEIXEIRA,<br />
1998a, p. 49). Também é revelador para a verificação da diferença <strong>de</strong> graus <strong>de</strong><br />
figurativida<strong>de</strong> entre as pinturas corporais dos Nubas e das pinturas contemporâneas.
Figura 52: Sister and brother. Fonte: TRACY, 2006.<br />
162<br />
Sister and brother (Fig. 52) foi realizada em março 2005 e tem uma dupla<br />
execução, por Craig Tracy e por Carolyn Roper, uma colaboração mútua na qual um<br />
pintou o outro. O trabalho i<strong>de</strong>alizado por Tracy tem uma prepon<strong>de</strong>rância do contraste<br />
acromático (preto) vs cinza metálico, com apenas um toque <strong>de</strong> vermelho no centro da<br />
parte mais alta do peito, o que cria o efeito <strong>de</strong> uma armadura, realçando a<br />
materialida<strong>de</strong> metálica da cobertura. As oposições cromáticas e eidéticas, assim como<br />
os arabescos, remetem às pinturas corporais dos Nubas.
163<br />
A pintura do rosto <strong>de</strong> Roper propõe uma assimetria na qual a face é dividida na<br />
vertical. O lado esquerdo é subdividido em duas partes preenchidas com a cor cinza<br />
metálica: na testa aparece um triângulo e na parte externa do rosto, da sobrancelha até<br />
a meta<strong>de</strong> do queixo, predomina a forma arredondada, e na parte interna, que<br />
compreen<strong>de</strong> o nariz e a boca, é retilíneo. O lado direito do rosto tem apenas duas<br />
pequenas áreas <strong>de</strong> contraste: o lábio inferior e a palpébra superior, ambos pintados <strong>de</strong><br />
cinza metálico. O pigmento preto circunda essas partes claras, dos dois lados do rosto,<br />
como também toda a cabeça e conectando-a ao corpo.<br />
Tanto nos braços quanto no tronco da mo<strong>de</strong>lo, a pintura segue a mesma<br />
estrutura do rosto, a parte externa é preta e a interna cinza metálica. A tinta preta, no<br />
tronco da moça, emoldura a forma cinza métalica, uma espécie <strong>de</strong> armadura medieval,<br />
com curvas que acompanham o formato do corpo feminino. No centro aparecem<br />
arabescos curvilíneos, mo<strong>de</strong>lados com luzes que proporcionam um aspecto <strong>de</strong> alto<br />
relevo e criam um efeito <strong>de</strong> uma armadura. Esses arabescos circundam um dos<br />
emblemas da monarquia francesa, a flor-<strong>de</strong>-lis 14 , também mo<strong>de</strong>lada com as luzes,<br />
provocando a sensação <strong>de</strong> volume que leva a um efeito <strong>de</strong> sentido tátil. Na parte alta e<br />
central do tronco, próximo à traqueia, entre os arabescos, há um pequeno losango<br />
vermelho. Os braços da mo<strong>de</strong>lo estão cruzados sobre a cabeça. No meio <strong>de</strong> cada<br />
braço está pintado um retângulo cinza metálico, sobre o qual repousam os <strong>de</strong>dos da<br />
moça, pintados <strong>de</strong> preto.<br />
14 De acordo com Bruce-Mitford, a lenda da flor-<strong>de</strong>-lis “diz que um anjo teria dado um lírio a Clóvis, rei<br />
dos Francos, em 496 d.C, quando este se converteu ao cristianismo” (1996, p. 105). A flor-<strong>de</strong>-lis é uma<br />
figura heráldica muito associada à monarquia francesa, particularmente, ligada ao o Rei da França.<br />
Assim, a representação <strong>de</strong>sta flor e seu simbolismo, é o que os elementos heráldicos querem transmitir<br />
quando a empregam sob as mais diversas formas. É uma das quatro figuras mais populares<br />
em brasonaria, juntamente com a águia, a cruz e o leão. (Enciclopédia Larouse Cultural, 1995, v.10, p.<br />
2465).É o símbolo do movimento escoteiro, as três pétalas representando os três pilares da promessa<br />
escoteira e o apontar para o Norte em mapas e bússolas, mostra para on<strong>de</strong> o jovem <strong>de</strong>ve ir, sempre<br />
para cima. Em New Orleans, cida<strong>de</strong> natal <strong>de</strong> Tracy, a flor-<strong>de</strong>-lis tem diversos significados, está na<br />
ban<strong>de</strong>ira e se tornou o símbolo da reconstrução da cida<strong>de</strong> após a passagem do furacão Katrina em<br />
agosto <strong>de</strong> 2005.
164<br />
A pintura sobre o rosto <strong>de</strong> Tracy é simétrica, em oposição à pintura do rosto da<br />
moça. No centro do rosto, a parte cinza metálica tem o formato mais anguloso, do<br />
mesmo modo que a pintura do tronco, o que faz uma oposição eidética em relação à<br />
pintura corporal da mo<strong>de</strong>lo. Os arabescos que preenchem essa armadura angulosa<br />
também têm traços predominantemente mais retílineos, em oposição à totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
traços curvilíneos dos arabescos da armadura pintada em Roper. O emblema da flor-<br />
<strong>de</strong>-lis também está presente, é menor, e o jogo <strong>de</strong> luz é reduzido, mais linear, se<br />
comparado ao que está pintado em Roper. O losango vermelho é maior, mas também<br />
está localizado na parte alta e central do tronco, próximo à traqueia do mo<strong>de</strong>lo. Os<br />
braços <strong>de</strong> Tracy também estão cruzados, mas à frente da testa. Nos antebraços estão<br />
pintados <strong>de</strong> cinza metálico triângulos pontiagudos assimétricos, como se fossem<br />
bainhas <strong>de</strong> faca.<br />
A oposição semântica fundamental do plano do conteúdo feminino vs.<br />
masculino correspon<strong>de</strong> à oposição eidética do plano da expressão: curvilíneo vs<br />
anguloso. As duas pinturas corporais têm, em comum, as categorias cromáticas e<br />
topológicas, mas se opõem na categoria eidética e proporcionam uma sensação <strong>de</strong><br />
força, <strong>de</strong> resistência. A composição traz a temática da força, que é recoberta, no nível<br />
discursivo, pelas figuras distintas masculina e feminina, que são unidas pelas figuras<br />
comuns do mundo natural contruído: a armadura, a flor-<strong>de</strong>-lis e os losangos vermelhos.<br />
O título irmão e irmã <strong>de</strong>nota um laço familiar do qual emerge a força da união<br />
masculina e feminina. Tracy e Roper conseguem mostrar, por meio da aparente<br />
distinção sexual, os efeitos <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> força e coragem que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das<br />
qualida<strong>de</strong>s femininas e masculinas e que po<strong>de</strong>m estar reunidos em uma única figura,<br />
como a <strong>de</strong> Joana D‟Arc. Há, portanto, um remanejamento semiótico nessa<br />
composição, no qual acontece a ascendência das armaduras e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência<br />
dos envelopes corporais <strong>de</strong> Tracy e Roper.
165<br />
Se nas figuras anteriores os corpos estão no ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio e <strong>de</strong>cadência, em<br />
Fallon (Fig. 53), o corpo <strong>de</strong>saparece não sob flores como na obra <strong>de</strong> Gair (Fig. 31),<br />
mas sob formas <strong>de</strong>sconexas e sob uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores frias e quentes<br />
contexturadas. A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal em Fallon está<br />
completamente comprometida, uma vez que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem o fragmenta<br />
duplamente; por um lado, pelas categorias cromáticas e eidéticas e, por outro, pelo<br />
recorte fotográfico. Tracy revela que “esta imagem foi criada <strong>de</strong> forma que permitisse<br />
que o corpo realmente ditasse o <strong>de</strong>senho e o conteúdo da pintura” 15 . E esse é o<br />
motivo pelo qual ela está aqui, pela relação estética da pintura com o corpo, tal qual a<br />
relação que os Nubas mantêm com o corpo. Para produzir o efeito puramente<br />
estético, Tracy faz com que as cores intercalem-se e entrelacem-se em curvas e<br />
diagonais, dando uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>. A categoria cromática é<br />
composta pela cor vermelha, pelas acromáticas, branca e preta e, por último, o neutro<br />
15 This image was created in a fashion that allows the body to truly dictate the <strong>de</strong>sign and content of the<br />
painting.<br />
Figura 53: Fallon. Fonte: TRACY, 2009.
cinza, proveniente da mistura <strong>de</strong>ssas últimas. Nenhuma cor está pura, todas se<br />
encontram mescladas e texturizadas umas pelas outras: a área branca é manchada<br />
pelo preto; a área cinza é formada pela soma <strong>de</strong> percentuais irregulares da mistura do<br />
preto com o branco; e a vermelha é contaminada pelas três. A materialida<strong>de</strong> das<br />
pinceladas, curtas e médias, sinuosas e diagonais, verticais e horizontais, ora mais<br />
brandas ora mais fortes, promove um ritmo acelerado ao trabalho. O preto circunda e<br />
divi<strong>de</strong> todas as áreas cromáticas e acromáticas, constituindo as formas diagonais e<br />
curvas.<br />
166<br />
As mãos brancas são os únicos elementos do corpo humano imediatamente<br />
i<strong>de</strong>ntificados entre as formas e as cores e acabam indicando o caminho para o<br />
reconhecimento do suporte recuado sob o enunciado. A assinatura do pintor surge<br />
próxima à linha preta que divi<strong>de</strong> o tornozelo: uma pequena flor-<strong>de</strong>-lis. Essa composição<br />
tem um percurso complexo e abstrato, com baixo grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> e auto grau <strong>de</strong><br />
plasticida<strong>de</strong>. A beleza pela beleza, a cor pela cor, a forma pela forma.<br />
Percebe-se nessas pinturas corporais contemporâneas o <strong>de</strong>sfazimento do rosto<br />
comparável às culturas primitivas, exemplificado pelos Nubas. Para esses, não havia<br />
importância se Riefenstahl não os reconhecesse, pois essa era a intenção. Produzir o<br />
efeito <strong>de</strong> beleza, valorizando a estética do corpo era o principal objetivo, mas uma<br />
beleza conectada à natureza. As pinturas corporais, contemporâneas e primitivas,<br />
livram o ser humano da primazia do rosto, tão aflorada nas socieda<strong>de</strong>s<br />
contemporâneas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que valoriza o rosto, a<br />
socieda<strong>de</strong> globalizada faz <strong>de</strong>le item <strong>de</strong> série, com regras limitadoras e exclu<strong>de</strong>ntes.<br />
As indústrias <strong>de</strong> cosméticos lançam, a cada nova estação, novas cores, novos<br />
produtos. “Novida<strong>de</strong>s” limitadoras, disputadas fortemente pelos consumidores, com o<br />
intuito <strong>de</strong> não se sentirem excluídos do grupo social escolhido. Num movimento<br />
contrário, as pinturas corporais Nubas, com todas as regras, os i<strong>de</strong>ntificam em um<br />
grupo e, simultaneamente, os fazem distintos uns dos outros: são enunciados pessoais<br />
que mantêm a enunciação ritual/tradicional viva e ativa.
3.3 O PONTO DE VISTA TENSIVO<br />
167<br />
O campo <strong>de</strong> presença dos Nubas, assim como o <strong>de</strong> qualquer actante<br />
encarnado, é formado quando a carne (matéria) toma uma posição no mundo social<br />
inscrevendo sobre o envelope corporal corpo próprio, superfície <strong>de</strong> inscrição, a pintura<br />
<strong>de</strong>sejada e entrando em junção com o objeto <strong>de</strong> valor, nesse caso, a beleza estética<br />
corporal. Quando o grupo social e Riefenstahl percebem os Nubas com as maquiagens<br />
vertiginosas e fascinantes, sujeitos e objeto se realizam. De acordo com Zilberberg e<br />
Fontanille (2001, p. 125), a presença para o sujeito é apreendida como espanto diante<br />
da presença realizada. Normalmente, o súbito, caracteristicamente efêmero, faz com<br />
que a presença realizada se virtualize e dê lugar ao hábito. Porém, os Nubas<br />
combatem a fugacida<strong>de</strong> do súbito com a mesma arma: a fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />
maquiagens. Como eles se pintam pelo menos duas vezes por dia, e a farta<br />
imaginação e criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses artistas natos sempre renovam e inovam as formas,<br />
combinando e harmonizando as pinturas <strong>de</strong> maneiras diferentes, provocam diversos<br />
espantos e súbitos diariamente. Seria como dizer as mesmas coisas <strong>de</strong> maneiras<br />
diferentes, conservando e atualizando a beleza estética e harmoniosa.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista do objeto, a relação é a mesma que a dos sujeitos. A pintura<br />
corporal como embelezamento estético corporal, como objeto <strong>de</strong> valor, é uma<br />
novida<strong>de</strong>, entretanto, com o tempo po<strong>de</strong> tornar-se antiga. Como a maquiagem dos<br />
Nubas é sempre renovada, ela permanece uma novida<strong>de</strong>. Desse modo, conforme<br />
explicam Zilberberg e Fontanille, no “campo <strong>de</strong> presença, o espanto e a novida<strong>de</strong><br />
carregam um valor <strong>de</strong> irrupção, o hábito e a antiguida<strong>de</strong>, um valor <strong>de</strong> estada 16 ” (2001,<br />
p.125). Portanto, o campo <strong>de</strong> presença dos Nubas, com suas pinturas corporais, po<strong>de</strong><br />
ser assim representado no esquema tensivo 17, um percurso <strong>de</strong> ascendência em uma<br />
correlação divergente:<br />
16 Grifo dos autores.
Espanto<br />
INT<br />
Hábito<br />
168<br />
O valor semiótico das pinturas corporais sociais Nuba tem o estilo <strong>de</strong> valor <strong>de</strong><br />
universo. Todos os homens e mulheres têm acesso à pintura corporal durante um<br />
período da vida. Os pigmentos são fornecidos pela natureza e po<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>ntro das<br />
regras cromáticas, ser utilizados por todos. Esse regime caracteriza-se pela<br />
participação e expansão operadas pela mistura. A correlação entre os eixos da<br />
intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong> é conversa, uma vez que muitos Nubas entram em<br />
conjunção com a pintura corporal.<br />
Irrupção<br />
Novo EXT Antigo<br />
Estada<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que os estilos <strong>de</strong> valor são os principais contrapontos entre as<br />
maquiagens sociais dos povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada e dos <strong>de</strong> cultura letrada. Como foi<br />
visto no capítulo 2, a maioria das maquiagens das culturas letradas tem o valor <strong>de</strong><br />
absoluto, com regime axiológico <strong>de</strong> exclusão-concentração. Além da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
exclusão <strong>de</strong> um grupo social, os actantes sujeitos encarnados contemporâneos são<br />
menos submetidos ao súbito, já que, pela rápida propagação dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />
maquiagem, o hábito se estabelece mais rapidamente. A irrupção acontece,<br />
principalmente, quando o espaço <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo com uma <strong>de</strong>terminada<br />
hexis corporal é “invadido” por pessoas com hexei corporais distintas.<br />
Os novos produtos <strong>de</strong> maquiagem, objetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo dos actantes sujeitos<br />
encarnados contemporâneos, são lançados a cada nova estação como novida<strong>de</strong>s,
porém, com a mesma velocida<strong>de</strong> com que são lançadas, tornam-se antiguida<strong>de</strong>s. O<br />
campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>sses sujeitos contemporâneos caminha para o valor <strong>de</strong> estada e<br />
po<strong>de</strong> ser assim representado no esquema tensivo 18, um percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência em<br />
uma correlação divergente:<br />
Espanto<br />
INT<br />
Hábito<br />
Irrupção<br />
Novo EXT Antigo<br />
Estada<br />
169<br />
Se, por um lado, o antigo, para os Nubas, está sempre sendo inovado, e tanto o<br />
indivíduo quanto o grupo sempre se espantam diante das inovações, por outro lado, o<br />
novo das maquiagens sociais, para os indivíduos contemporâneos, torna-se<br />
ultrapassado muito rapidamente, o que é provocado pela estabilização <strong>de</strong> formas e<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> maquiagens globalizadas. A escapatória <strong>de</strong>sse sistema <strong>de</strong> rostida<strong>de</strong>,<br />
como afirma Deleuze, passa pelas pinturas corporais contemporâneas. Do mesmo<br />
modo, as performances contemporâneas em que o corpo aparece pintado, segundo<br />
Jeudy, seriam o suporte da expressão artística que tem como possível origem as<br />
“maneiras pelas quais os homens das socieda<strong>de</strong>s primitivas utilizam seu próprio corpo<br />
para nele inscrever sinais” (2002: 92-93). Nessa analogia proposta pelo sociólogo, é<br />
mostrado como o corpo ultrapassa o po<strong>de</strong>r da mediatização. O corpo é, então, um<br />
“medium <strong>de</strong> todos os tempos e <strong>de</strong> todas as culturas”, que “se impõe como mito das<br />
origens <strong>de</strong> qualquer forma <strong>de</strong> expressão estética” (JEUDY, 2002, p. 92 a 93).
170<br />
Mais que em qualquer situação, o corpo suporte <strong>de</strong>verá ser o perfeito<br />
sincretismo actancial, a articulação do “sujeito-objeto”. E será pelas suas próprias<br />
sensações que ele atingirá a sensibilida<strong>de</strong> dos outros corpos ao seu redor. Um corpo<br />
que <strong>de</strong>ve romper com os vícios e clichês, surpreen<strong>de</strong>r, provocar fissuras, abrir fendas,<br />
para que o sentido pelos sentidos aconteça.
4 – A MAQUIAGEM NA CENA TEATRAL<br />
171<br />
Meus olhos boiaram por diversas vezes. Arrepiei-me inúmeras vezes.<br />
Mas calafrios no calor po<strong>de</strong> ser brisa na praia. Não era miragem. Eu<br />
estava em terra firme acreditando em tudo que via. Não tenho muita<br />
proprieda<strong>de</strong> para falar sobre o fazer teatral. Mas sei sentir. (NEVES,<br />
2009)<br />
Não quero falar tão somente das belas maquiagens com acabamento<br />
impecável, que ressaltam a merecida beleza física <strong>de</strong> um atuante, mas daquela que,<br />
para além da beleza, em traços muitas vezes imperfeitos, enaltece o ser teatral. Uma<br />
arte viva, que acontece no aqui e no agora, a partir dos sentidos presentes <strong>de</strong> atuantes<br />
e <strong>de</strong> espectadores, que juntos seguem para um novo tempo e novo espaço<br />
representado, em jogos <strong>de</strong> máscara e <strong>de</strong> vertigem.<br />
A maquiagem cênica é um dos elementos da caracterização da personagem e,<br />
assim como a pintura corporal, diferentemente <strong>de</strong> todos os outros tipos <strong>de</strong> maquiagem<br />
(sociais, televisivas, cinematográficas), tem maior liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão. Muitas<br />
vezes, o que é “proibido” em algum estilo <strong>de</strong> maquiagem social é muito bem-vindo na<br />
teatral. Apesar <strong>de</strong> a maquiagem cênica ser uma linguagem artística que faz parte <strong>de</strong><br />
um todo, ou seja, <strong>de</strong> uma encenação, ela forma “um sistema estético que obe<strong>de</strong>ce<br />
apenas às suas próprias regras” (PAVIS, 2003, p. 172). Sistema estético que, por si só,<br />
leva aos choques sensíveis, arrepios e vertigens, pelo simples fato <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r os<br />
espectadores com algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas inesperadas, porém com efeitos<br />
verda<strong>de</strong>iros, que levam os observadores a acreditar em tudo o que vêem, como no<br />
relato em epígrafe. Maquiagem que beneficia o <strong>de</strong>saparecimento do atuante em prol<br />
do aparecimento <strong>de</strong> diversas personagens, <strong>de</strong>ixando o Eu carne adormecido para que<br />
os Seus outros <strong>de</strong>spertem sobre a superfície <strong>de</strong> inscrição, conforme <strong>de</strong>screve Oida:<br />
Agora posso ver que aquelas perucas e aquela maquiagem com as<br />
quais eu brincava eram apenas versões diferentes do inusitado saco<br />
preto que minha mãe tinha feito para mim 1 . Eram um meio <strong>de</strong> sumir.<br />
Um jeito <strong>de</strong> me escon<strong>de</strong>r. Desaparecer na frente das pessoas, em vez<br />
<strong>de</strong> representar para elas. É evi<strong>de</strong>nte que eu não era invisível <strong>de</strong><br />
1 Para satisfazer o <strong>de</strong>sejo infantil <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer tal qual os ninjas dos filmes populares japoneses, a<br />
mãe <strong>de</strong> Oida o presenteou com um saco preto e estabeleceram um jogo : quando ele estava <strong>de</strong>ntro do<br />
saco se tornava invisível e não podia ser visto por ela.
172<br />
verda<strong>de</strong>, mas o “eu” que os outros viam não era o “verda<strong>de</strong>iro eu”.<br />
Através das máscaras e maquiagens, o “eu” se tornava invisível. (OIDA,<br />
2007, p. 20)<br />
O termo caracterização, conforme explica Pavis (1999, p. 38), é oriundo da<br />
técnica, literária ou teatral, utilizada pelos escritores para a criação dos atributos físicos<br />
e das características psicológicas das personagens. Conforme explica Fiorin (2008a, p.<br />
137), esses traços físicos são <strong>de</strong>scritos explicitamente no enunciado <strong>de</strong> um texto.<br />
Nesse caso, essas características vão sendo representadas por meio <strong>de</strong> uma<br />
sequência <strong>de</strong> figuras, que traduzem os temas. É no enunciado dos romances ou das<br />
peças teatrais 2 que os corpos das personagens são representados 3 : “a pintura <strong>de</strong> um<br />
corpo por meio <strong>de</strong> palavras concretas, no caso <strong>de</strong> um texto verbal, não é gratuita”<br />
(FIORIN, 2008a, p.140). São os traços físicos que concretizam uma característica da<br />
personagem: a sensualida<strong>de</strong>, a tensão, a bonomia entre outras.<br />
Então, é a partir da caracterização que se fará com que a personagem, criada<br />
por um autor ou coletivamente, e <strong>de</strong>scrita no enunciado ou apenas visível na<br />
imaginação <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong> criação, possa ser verossímil como ser humano: “seja<br />
ela vista pelo ângulo físico, psicológico ou social – ou outros -, a caracterização é um<br />
conjunto <strong>de</strong> traços organizados, que visam a pôr <strong>de</strong> pé um esquema <strong>de</strong> ser humano”<br />
(PALLOTINI, 1989, p. 67). E para a caracterização <strong>de</strong> uma personagem a hexis<br />
corporal tem papel fundamental no ponto <strong>de</strong> vista social da personagem. Por outro<br />
lado, essa técnica literária também po<strong>de</strong> ser utilizada para a construção <strong>de</strong><br />
personagens sobrenaturais, monstruosos, animalescos, entre outros.<br />
Cenicamente, para o atuante, a caracterização é um conjunto <strong>de</strong> técnicas que<br />
possibilitam a ele a construção da personagem criada anteriormente pelo autor ou por<br />
2 De acordo com Pavis (1999, p.38) nos romances, o escritor tem mais „espaço‟ e „tempo‟ para<br />
caracterizar o exterior das personagens. No texto teatral, o dramaturgo, <strong>de</strong>vido à „objetivida<strong>de</strong>‟ do drama,<br />
apresenta as personagens em ação, nas falas. As indicações cênicas do estado psicológico ou físico; os<br />
nomes dos lugares; o discurso da personagem e os comentários <strong>de</strong> terceiros; os jogos <strong>de</strong> cena, como<br />
também as entonações, a mímica e a gestualida<strong>de</strong>; a ação da peça; são alguns dos elementos que<br />
facilitam a leitura da personagem oriunda da dramaturgia teatral. Pavis esclarece que cada dramaturgia<br />
tem um grau específico da caracterização: “o teatro clássico tem um conhecimento essencialista e<br />
universal do homem”. O naturalismo <strong>de</strong>screve “escrupulosamente as condições <strong>de</strong> vida dos caracteres”.<br />
Em algumas formas <strong>de</strong> dramaturgia, como a Commedia <strong>de</strong>ll‟arte, há a pressuposição <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong><br />
personagens, que se tornam conhecidos por tradição ou por convenção.<br />
3 O texto no teatro, principalmente o contemporâneo, po<strong>de</strong> ser proveniente <strong>de</strong> diversas fontes: o próprio<br />
texto teatral, romances adaptados, criações coletivas, documentos históricos entre outros.
processos colaborativos. A personagem teatral po<strong>de</strong> “ser vista como intersecção (no<br />
sentido matemático) <strong>de</strong> dois conjuntos semióticos, o textual e o cênico” (UBERSFELD,<br />
2005, p.75). A caracterização teatral, portanto, abarca a construção visual do rosto, os<br />
recursos corporais e vocais utilizados para construir as personagens, bem como os<br />
figurinos.<br />
173<br />
O estatuto da personagem <strong>de</strong> teatro é ser encarnada pelo ator, não<br />
mais se limitar a esse ser <strong>de</strong> papel sobre o qual se conhece o nome, a<br />
extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras)<br />
ou indiretas (pelo autor). A personagem cênica adquire, graças ao ator,<br />
uma precisão e uma consistência que fazem-na passar do estado<br />
virtual ao estado real e icônico. Ora, o aspecto físico e eventual da<br />
personagem é exatamente o que há <strong>de</strong> especificamente teatral e mais<br />
marcante para a recepção do espetáculo. Tudo o que, na leitura,<br />
podíamos ler nas entrelinhas da personagem (seu físico, o ambiente<br />
on<strong>de</strong> evolui) foi ditatorialmente <strong>de</strong>terminado pela encenação: isto reduz<br />
nossa percepção imaginária do papel, mas acrescenta, ao mesmo<br />
tempo, uma perspectiva que não imaginamos, mudando a situação <strong>de</strong><br />
enunciação e, portanto, a interpretação do texto falado 4 . (PAVIS, 1999,<br />
p.288)<br />
Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer que, para a construção da personagem teatral,<br />
encarnada pelo atuante, numa correspondência com a dicotomia saussureana, o texto<br />
estaria para a língua (virtual), assim como a caracterização estaria para a fala<br />
(realizada). Do mesmo modo, po<strong>de</strong>-se dizer que o atuante oferece o seu envelope<br />
corporal polissensorial, superfície <strong>de</strong> inscrição, para que as figuras imaginadas pelo<br />
autor, pelo diretor, pela equipe <strong>de</strong> criação e pelo próprio atuante, possam se realizar<br />
em cena. A superfície <strong>de</strong> inscrição cedida pelo atuante será, na encenação, a memória<br />
figurativa do universo semiótico da personagem e do próprio espetáculo teatral.<br />
A caracterização, no texto e na encenação, tem estatutos distintos. No texto<br />
original a personagem po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>terminadas características, porém ao ser transposta<br />
para o palco, essa personagem construída pelo autor torna-se uma aura, como “um<br />
fantasma sem forma”, como <strong>de</strong>screve Pallotini (1989, p. 63). A sua plenitu<strong>de</strong> só<br />
acontecerá, no espaço cênico, por meio da <strong>de</strong>breagem, que transforma o envelope<br />
corporal do atuante em superfície <strong>de</strong> inscrição, quando, então, adquirirá forma<br />
i<strong>de</strong>ntificável, visível e reconhecível, uma manifestação concreta do ator semiótico.<br />
4 Grifos do autor.
174<br />
A maquiagem cênica, inscrição efêmera, que po<strong>de</strong> preservar ou não as<br />
proprieda<strong>de</strong>s do envelope corporal, é a arte que possibilita a criação do rosto e/ ou do<br />
corpo do ator. Para Pavis ela po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada o figurino vivo que se inscreve na<br />
pele do atuante, que “faz o rosto passar do animado ao inanimado, flerta com a<br />
máscara” (1999, p. 232).<br />
A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como po<strong>de</strong>m<br />
ser a máscara, o figurino ou o acessório. Não é tampouco uma „técnica<br />
do corpo‟, uma „maneira com a qual os homens sabem utilizar seu<br />
corpo‟. É, melhor dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana<br />
colada no rosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor<br />
para servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue. (PAVIS, 2003, p. 170).<br />
A maquiagem em uma encenação teatral tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> virtualizar ou<br />
potencializar o rosto do atuante para realizar o rosto da personagem. A virtualização<br />
promovida por ela era <strong>de</strong>sejada por Constantin Stanislavski 5 (1986) no intuito <strong>de</strong><br />
preservar o atuante para que ele pu<strong>de</strong>sse se transformar por completo em sua<br />
personagem. Ao mesmo tempo em que realiza a transformação do atuante em<br />
personagem, a maquiagem fortalece o vínculo natural e estreito entre eles, como<br />
privilegia a atuação realista, e ainda <strong>de</strong>monstra a relevância da caracterização nessa<br />
metamorfose. “Assim, a caracterização é a máscara que escon<strong>de</strong> o indivíduo- ator.<br />
Protegido por ela, [ele] po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spir a alma até o último, o mais íntimo <strong>de</strong>talhe. Este é<br />
um importante atributo ou traço da transformação” (STANISLAVSKI,op. Cit., p. 53).<br />
A encenação realista requer uma maquiagem imperceptível aos olhos do<br />
público, que aju<strong>de</strong> a envolvê-lo emocionalmente, promovendo, <strong>de</strong>sse modo, uma maior<br />
i<strong>de</strong>ntificação entre ele e a personagem. Numa tendência contrária, o expressionismo 6 ,<br />
o teatro brechtiano 7 , a teoria artaudiana 8 entre outros, buscam quebrar o ilusionismo<br />
5 Atuante e encenador russo, foi fundador do Teatro Artístico <strong>de</strong> Moscou (em 1898) e os seus princípios<br />
inscrevem-se na corrente naturalista.[...] A sua contribuição fundamental <strong>de</strong>ntro do quadro do movimento<br />
naturalista foi re<strong>de</strong>finir a noção <strong>de</strong> realismo colocando a tônica sobre o „realismo interior‟, e <strong>de</strong> se ligar<br />
ao problema da formação do atuante (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 1996, p.371).<br />
6 “É um movimento que apareceu nas artes da Alemanha entre 1911-1915. No plano teatral está<br />
representado por dramaturgos como Georg Kaiser, Ernat Toller, Walter Hasenclever. Ansioso por<br />
„exprimir‟ e não reproduzir, o expressionismo, nas suas origens, afirma-se como nostalgia <strong>de</strong> um<br />
aprofundamento da vida”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 415)<br />
7 É assim <strong>de</strong>nominado por causa <strong>de</strong> Bertolt Brecht (1898 – 1966) que “foi um autor dramático,<br />
encenador e poeta alemão. Para além <strong>de</strong> uma obra dramática muito rica, <strong>de</strong>ixou uma obra teórica<br />
importante que se esten<strong>de</strong> dos anos vinte aos anos cinquenta. Recusando o teatro „ dramático‟<br />
aristotélico, fundado na ilusão e na i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1926 o „teatro épico‟ e os seus
ealista e, com isso, a maquiagem po<strong>de</strong> servir como efeito <strong>de</strong> teatralização 9 , como<br />
observa Pavis (1999, 232). A maquiagem, então, por ser uma máscara totalmente<br />
perceptível, joga “com a ambiguida<strong>de</strong> constitutiva da representação teatral: mescla <strong>de</strong><br />
natural e artificial, <strong>de</strong> coisa e <strong>de</strong> signo” 10 (PAVIS, 1999, p.232).<br />
Po<strong>de</strong>-se notar que a caracterização como um todo e a maquiagem em particular<br />
são recursos importantes para o atuante, pois irão ajudá-lo a revelar a sua personagem<br />
para si mesmo, tanto durante o processo <strong>de</strong> sua construção quanto, mais adiante, no<br />
<strong>de</strong>svelamento a que irá proce<strong>de</strong>r o público que o assistirá.<br />
175<br />
O primeiro meio <strong>de</strong> apreensão que tem o espectador, a sua primeira<br />
forma <strong>de</strong> atingir essa criatura que é o[a] personagem é a visual. O [A]<br />
personagem se mostra, assim, inicialmente, sob seu aspecto, digamos,<br />
físico. (PALLOTINI, 1989, p. 64)<br />
Tal pensamento é corroborado por Richard Corson (1975), que diz que a<br />
maquiagem irá iluminar a personagem tanto para o atuante quanto para o público,<br />
provendo seu verda<strong>de</strong>iro retrato para ambos. Desse modo, a maquiagem teatral seria<br />
uma expressão plástica a serviço <strong>de</strong> um todo <strong>de</strong> sentido que é a obra <strong>de</strong> teatro.<br />
Portanto, “a pintura <strong>de</strong> um corpo” em um texto verbal, como <strong>de</strong>screve Fiorin (2008a,<br />
p.140), é, então, materializada, em cena, por meio dos produtos, técnicas, pincéis,<br />
princípios <strong>de</strong> distanciação. (...) propõe uma nova escrita dramática, uma nova prática <strong>de</strong> cena e uma<br />
nova técnica <strong>de</strong> interpretação para o ator. O teatro, espaço mediador entre o espectador e o mundo, é<br />
posto ao serviço <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira pedagogia social: surpreen<strong>de</strong>ndo-se e interrogando-se perante as<br />
contradições <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que a cena não mais lhe apresenta como natural, mas como manipulável<br />
e transformável”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 465)<br />
8 Teoria <strong>de</strong>senvolvida por Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e atuante francês, “participou<br />
no movimento surrealista antes <strong>de</strong> se separar <strong>de</strong>le no momento da criação do Teatro Alfred Jarry, em<br />
1926. Se nunca chegou a realizar esse „treatro da cruelda<strong>de</strong>‟ que propõe em O teatro e o seu duplo, não<br />
<strong>de</strong>ixou menos <strong>de</strong> alimentar toda uma corrente do teatro contemporâneo pela força <strong>de</strong>ssa visão limite.<br />
Essa visão é a <strong>de</strong> um teatro não apenas libertado da literatura e da psicologia, mas que reencontraria a<br />
eficácia original e mágica (quer dizer criadora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>) <strong>de</strong> uma linguagem <strong>de</strong> signos unificada,<br />
reconciliando, enfim, o corpo e o espírito, o abstrato e o concreto, o homem e o universo. O ator<br />
(atuante), portador <strong>de</strong> signos, está no centro: a sua respiração e o seu corpo estão na base <strong>de</strong>sta nova<br />
gramática. Eles animam seus „hieróglifos”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 447)<br />
9 De acordo com Pavis, “teatralizar um acontecimento ou um texto é interpretar cenicamente usando<br />
cenas e atores para construir a situação. O elemento visual da cena e a colocação em situação dos<br />
discursos são as marcas da teatralização” (1999, p.374).<br />
10 Além das funções <strong>de</strong> embelezamento, <strong>de</strong> teatralização e da acentuação dos traços do rosto do<br />
atuante, a maquiagem também codifica um rosto, como é o caso das maquiagens orientais: Teatro<br />
Kabuki japonês; Ópera <strong>de</strong> Pequim e o teatro dança indiano Kathakali. A maquiagem cênica também<br />
po<strong>de</strong> sair dos limites do rosto e ocupar todo o corpo do atuante, passa a não caracterizar <strong>de</strong> “maneira<br />
psicológica e, sim, contribui para a elboração <strong>de</strong> formas teatrais do mesmo modo que os outros objetos<br />
da representação (máscara, iluminação, figurino). (Pavis, 1999, p.232).
cores e formas das “finas membranas” (PAVIS, 2003, p. 170). Estas últimas atualizam<br />
as palavras concretas <strong>de</strong> um autor, a imaginação <strong>de</strong> um diretor, a criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
atuante e <strong>de</strong> toda a equipe <strong>de</strong> criação sob um envelope corporal <strong>de</strong>breado em<br />
superfície <strong>de</strong> inscrições, para fazer com que o rosto da personagem se realize na<br />
encenação teatral.<br />
4.1 Relações enunciativas<br />
176<br />
A maquiagem veste tanto o corpo como a alma daquele que a usa, daí<br />
sua importância estratégica tanto para a sedutora, na vida, como para o<br />
ator, no palco. (PAVIS, 2003, p. 170)<br />
A encenação “é o ato <strong>de</strong> colocar à vista, sincronicamente, todos os sistemas<br />
significantes cuja interação é produtora <strong>de</strong> sentido para o espectador” (PAVIS, 2008, p.<br />
21). Desse modo, numa encenação, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da estética teatral,<br />
encontram-se diversos sistemas expressivos que se relacionam num tempo e num<br />
espaço <strong>de</strong>terminados. Tanto o texto quanto a maquiagem são sistemas cênicos ligados<br />
aos atuantes, ao espaço e ao ritmo temporal. Cabe ressaltar que, <strong>de</strong> acordo com<br />
Ubersfeld (2005), o espaço cênico on<strong>de</strong> ocorre a encenação é limitado e circunscrito; é<br />
duplo (dicotomia palco-plateia), é codificado pelos hábitos cênicos <strong>de</strong> uma época e <strong>de</strong><br />
um lugar; é uma imitação <strong>de</strong> algo e, por fim, é a área <strong>de</strong> atuação. Do mesmo modo<br />
como o espaço, no teatro, há também duas temporalida<strong>de</strong>s distintas: a da<br />
representação e a da ação representada.<br />
Voltando ao pensamento <strong>de</strong> Pavis (2008), <strong>de</strong>ve-se observar que os materiais<br />
cênicos estabelecidos pelos sistemas expressivos tornam-se um objeto <strong>de</strong><br />
conhecimento, um sistema <strong>de</strong> relações entre os atuantes, o encenador, a equipe <strong>de</strong><br />
criação e os espectadores (sujeito coletivo).<br />
Decifrar a encenação consiste em receber e interpretar o sistema que<br />
se encontra na base da produção da equipe artística. Não se trata <strong>de</strong><br />
reconstituir as intenções do encenador, mas sim <strong>de</strong> emitir uma hipó<strong>tese</strong><br />
sobre o sistema escolhido pelos produtores/criadores, através daquilo<br />
que o espectador recebe. (PAVIS, 2008, p. 23).
177<br />
Cabe <strong>de</strong>stacar também as relações enunciativas entre o atuante (sujeito) e a<br />
representação do outro (personagem) que ele constrói. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das<br />
estéticas e estilos <strong>de</strong> atuação, o atuante, geralmente, é a parte central e essencial do<br />
acontecimento teatral. “Ele é o vinculo vivo entre o texto do autor, as diretivas <strong>de</strong><br />
atuação do encenador e o olhar e a audição do espectador” (PAVIS, 1999, p. 30). Além<br />
<strong>de</strong> conduzir signos, sobre ele se cruzam informações sobre a história contada, a<br />
caracterização física, psicológica, social e gestual das personagens e a relação com o<br />
espaço cênico.<br />
A relação que o atuante mantém com sua personagem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da estética<br />
cênica proposta. Por exemplo, na <strong>de</strong> cunho naturalista o atuante <strong>de</strong>ve manter a<br />
atuação ininterruptamente, sem quebras, e levar o espectador a se i<strong>de</strong>ntificar com a<br />
personagem, provocando uma ilusão contínua <strong>de</strong> que ela é uma pessoa complexa<br />
como qualquer ser humano real. A maquiagem, <strong>de</strong>sse modo, segue a estética proposta<br />
e <strong>de</strong>ve ser extremamente natural. Qualquer alteração facial pela maquiagem <strong>de</strong>ve ser<br />
imperceptível aos olhos do espectador, produzindo o efeito <strong>de</strong> que o que ele vê é<br />
verda<strong>de</strong>iro, real, verossímil.<br />
O atuante po<strong>de</strong> ainda ter a convicção <strong>de</strong> ser a personagem ou ter a habilida<strong>de</strong><br />
técnica <strong>de</strong> mostrar apenas a imagem externa da personagem. Além disso, po<strong>de</strong><br />
distanciar-se da personagem, citá-la, ironizá-la, quebrando a ilusão, “saindo” e<br />
“entrando” da personagem quando bem preten<strong>de</strong>r. Nesse caso, a maquiagem po<strong>de</strong> ser<br />
percebida e produzir o efeito <strong>de</strong> um estranhamento no espectador, com o intuito <strong>de</strong><br />
quebrar a ilusão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e realida<strong>de</strong>.<br />
De todo modo, no teatro o atuante tem dupla condição: é uma pessoa presente<br />
que se situa aqui e agora, no tempo da representação, e, simultaneamente,<br />
personagem imaginária, que se situa no tempo da ação representada e no espaço<br />
cênico. Cabe a ele transmitir ao espectador as orientações e impulsos para o sentido<br />
da obra. A relação enunciativa que se dá entre o atuante e o espectador, nesta<br />
investigação, é focada nas convenções estabelecidas pelas encenações oci<strong>de</strong>ntais.<br />
Pavis explica que se trata <strong>de</strong> uma convenção ficcional, e ocorre quando o atuante<br />
finge, conscientemente, ser um outro e o espectador (enunciatário) o consi<strong>de</strong>ra “como<br />
„extraído‟ da realida<strong>de</strong> ambiente e portador <strong>de</strong> uma situação, <strong>de</strong> um papel” (PAVIS,
2003, p. 51). E é a partir <strong>de</strong> então que a ação ficcional tem sentido e verda<strong>de</strong>, mas<br />
apenas nesse mundo convencionado.<br />
178<br />
O atuante oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> tradição psicológica, então, constrói vozes, gestos e<br />
fisionomias para dar ao espectador o sentido <strong>de</strong> que está diante <strong>de</strong> uma pessoa real.<br />
Os atuantes naturalistas procuram imprimir semelhanças com o caráter, com as<br />
experiências, com as emoções, valores e até feições do espectador, <strong>de</strong> modo a<br />
promover a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>ste com a personagem. O atuante <strong>de</strong>ve ter consciência dos<br />
índices <strong>de</strong> seus gestos, das suas expressões faciais e corporais, da maquiagem e do<br />
figurino, para que eles possam chegar até o espectador, possibilitando, <strong>de</strong>sse modo,<br />
suas percepções e as atribuições <strong>de</strong> significações. De acordo com Pavis, a teoria do<br />
atuante está inserida na teoria da encenação, da recepção e na produção do sentido.<br />
A preparação do ator, em particular <strong>de</strong> suas emoções, só faz sentido na<br />
perspectiva do olhar do outro, logo, do espectador, que <strong>de</strong>ve estar em<br />
condições <strong>de</strong> ler os índices fisicamente visíveis da personagem trazida<br />
pelo ator. (PAVIS, 2003, p.54)<br />
Pavis (2003, p. 57) explica que o atuante constrói o seu papel a partir <strong>de</strong><br />
fragmentos que produzirão a ilusão <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. Para analisar a sequência <strong>de</strong><br />
atuação <strong>de</strong>ve-se, portanto, consi<strong>de</strong>rar “o conjunto da representação, recolocando-a na<br />
estrutura narrativa que revela a dinâmica da ação e a organização linear dos temas”. O<br />
pesquisador distingue quatro tipos <strong>de</strong> vetores, que são uma primeira estrutura do<br />
trabalho do atuante, constituído por pequenos <strong>de</strong>talhes como nuances da voz e do<br />
gesto, indispensáveis à legibilida<strong>de</strong> da atuação. O atuante, portanto, funcionaria como<br />
um amplificador para todo o resto da representação, estruturado por vetores:<br />
1- ACUMULADORES: con<strong>de</strong>nsam ou acumulam vários signos;<br />
2- CONECTORES: ligam dois elementos da sequência em<br />
função <strong>de</strong> uma dinâmica;<br />
3- SECIONANTES: provocam uma ruptura no ritmo narrativo,<br />
gestual, vocal, o que chama a atenção no momento em que o<br />
sentido „troca <strong>de</strong> sentido‟;<br />
4- EMBREADORES: fazem passar <strong>de</strong> um nível <strong>de</strong> sentido a<br />
outro ou da situação <strong>de</strong> enunciação aos enunciados.(PAVIS,<br />
2003, p 58).
179<br />
O trabalho do atuante é complementado pelas nuances do figurino e da<br />
maquiagem. Pavis utiliza a tipologia dos vetores da atuação para classificar os<br />
figurinos. Dessa maneira, a partir <strong>de</strong>ssa tipologia vetorial dos figurinos, passo a utilizá-<br />
la para a maquiagem cênica. Assim, a maquiagem servirá como vetor acumulador<br />
quando agrupar conjuntos <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong>finidos (raça, profissão, famílias, entre<br />
outros). Quando a maquiagem possibilita ao espectador se localizar nas oposições, ou<br />
seja, ler um corpo ou um rosto maquiado em relação aos outros, captando, <strong>de</strong>sse<br />
modo, o sistema <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>, ela funciona como um vetor conector. As<br />
interrupções entre séries <strong>de</strong> cenas, com mudanças <strong>de</strong> aparência entre elas,<br />
proporcionadas pela maquiagem, a tornam um vetor secionante.<br />
Entretanto, a maquiagem cênica sempre será um vetor embreador como uma<br />
forma <strong>de</strong> estabelecer, a partir da duplicida<strong>de</strong>/ambiguida<strong>de</strong> do atuante e sua<br />
personagem, a relação com o outro que está do lado <strong>de</strong> lá, na plateia, o público. Po<strong>de</strong>-<br />
se dizer que a maquiagem no teatro também irá proce<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong> uma operação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>breagem entre a pessoa física e privada do atuante e o outro construído<br />
cenicamente, a personagem. O envelope corporal <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição<br />
do atuante, sobre o qual também se pintam enunciados efêmeros, funciona como<br />
separação e contato. Diferentemente <strong>de</strong> como acontece com o actante sujeito<br />
encarnado, conforme foi visto no primeiro capítulo, no qual o envelope corporal<br />
<strong>de</strong>breado separa e contata as fronteiras <strong>de</strong> mundos diferentes, na cena teatral ele<br />
separa o atuante e contata a personagem ao espectador (enunciatário).<br />
A maquiagem cênica, por meio das operações <strong>de</strong> pluralização, inversão ou<br />
projeção da <strong>de</strong>breagem, conforme visto no primeiro capítulo, também po<strong>de</strong>rá<br />
conservar ou não as proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, <strong>de</strong> compactação e <strong>de</strong> filtro <strong>de</strong> seleção<br />
do envelope corporal do atuante, para que a personagem consiga ser legível ao<br />
espectador/enunciatário. A preservação ou não do envelope corporal e as operações<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, conjugadas às nuances vocais e corporais do trabalho do atuante, ao<br />
texto do autor, às diretivas <strong>de</strong> atuação do encenador, às orientações e impulsos <strong>de</strong><br />
toda uma equipe <strong>de</strong> criação e à maquiagem ancoram o sujeito na encenação e o<br />
entregam ao olhar e à audição dos espectadores, acentuando e/ou reforçando traços,<br />
ocultando e/ou modificando-os completamente:
180<br />
Traços do lápis <strong>de</strong> maquiagem, mas também traços <strong>de</strong> caráter, traços<br />
do esboço global que a cena sugere. O espectador vivencia a<br />
atmosfera e a coloração emocional que emana dos rostos e corpos<br />
pintados (PAVIS, 2003, p. 174).<br />
Desse modo, no espaço cênico, durante o tempo da ação representada, o corpo<br />
e/ou rosto do atuante po<strong>de</strong>rá estar potencializado ou virtualizado, uma vez que nesse<br />
espaço é o rosto ou corpo da personagem construída que estará realizado. A<br />
potencialização acontecerá quando o rosto ou o corpo do atuante estiver disponível<br />
para ser convocado por meio do reconhecimento <strong>de</strong> sua fisionomia ou, ainda, quando<br />
for possível acessá-lo <strong>de</strong> algum modo, em algum momento da encenação. A<br />
virtualização ocorre quando não se po<strong>de</strong> reconhecer o atuante, pois os seus traços<br />
fisionômicos estarão completamente cobertos pela “fina membrana” (PAVIS, 2003), <strong>de</strong><br />
modo a fazer emergir a personagem.<br />
A maquiagem teatral po<strong>de</strong> lançar mão <strong>de</strong> todas as maquiagens sociais<br />
potencializadas pelo uso para ancorar a personagem (sujeito) na encenação naturalista<br />
e criar o sentido <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> para o espectador, situando-o no tempo da ação<br />
representada, assim como, no espaço, <strong>de</strong>finindo raças e etnias. De acordo com<br />
Fontanille, “o „tempo que passa‟ afeta o envelope; o „tempo que dura‟ concerne à<br />
„carne‟ material do objeto” 11 (FONTANILLE, 2004a, p.247). Assim, o envelope corporal<br />
do atuante <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrições também po<strong>de</strong>, por meio da<br />
maquiagem, enunciar a ida<strong>de</strong> cronológica das personagens representadas.<br />
Numa encenação que proponha um sentido <strong>de</strong> artificialida<strong>de</strong>, a maquiagem está<br />
livre da relação com as referências do mundo social representado e não precisa<br />
remeter a nenhuma maquiagem potencializada. De fato, essas maquiagens<br />
potencializadas até po<strong>de</strong>m ser utilizadas, porém aparecem estilizadas, recriadas e<br />
inovadas.<br />
A efemerida<strong>de</strong>, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> virtualizar um rosto, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
materializar e dar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> às personagens, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar a personagem<br />
do atuante e <strong>de</strong> contatá-la ao espectador, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser um vetor enunciativo e<br />
11 Le « temps qui passe » affect l‟enveloppe ; le « temps qui dure » concerne la chair matérielle même <strong>de</strong><br />
l‟objet.
<strong>de</strong> estabelecer relações enunciativas entre os elementos cênicos, são qualida<strong>de</strong>s que<br />
dão à maquiagem uma dimensão ampla e forte na encenação.<br />
4.2 Um exemplo: O Carrasco, encenação do Grupo Amok Teatro.<br />
181<br />
O grupo Amok Teatro nasceu no Brasil em 1998, sob a direção da brasileira Ana<br />
Teixeira e do francês Stéphane Brodt. A estética cênica do grupo é fundamentada<br />
numa interseção entre as teorias e práticas <strong>de</strong> Etienne Decroux 12 e Antonin Artaud. Por<br />
motivações distintas, o corpo e a linguagem física ocupam o centro do ato teatral<br />
<strong>de</strong>sses dois artistas inspiradores do grupo, que concentra as suas experimentações<br />
nesses princípios. Para completar as premissas que estabelecem o grupo, nas suas<br />
encenações são utilizadas “a metodologia <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> ator <strong>de</strong>senvolvida por Arianne<br />
Mnouchkine no Théatre du Soleil (França), assim como uma forte influência do teatro<br />
oriental” (AMOK, 2008), introduzidas por Stéphane Brodt.<br />
O espetáculo teatral O Carrasco é o segundo trabalho do grupo e estreou no<br />
ano 2000, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. É um espetáculo teatral contemporâneo, cujo texto foi<br />
elaborado <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s dos atuantes e da equipe <strong>de</strong> criação, sob o<br />
comando da direção cênica. Não se trata, contudo, conforme revela o grupo, <strong>de</strong> uma<br />
adaptação ou <strong>de</strong> uma transcrição do romance homônimo <strong>de</strong> Pär Lagerkvist. A obra foi<br />
o ponto <strong>de</strong> partida para a encenação, um percurso que levou os integrantes do grupo a<br />
diversos autores até chegarem a uma peça original. Um texto híbrido que foi sendo<br />
construído durante os ensaios, sob a inspiração do romance <strong>de</strong> Lagerkvist; da peça<br />
teatral O balcão, <strong>de</strong> Jean Genet; dos filmes: O sétimo selo, <strong>de</strong> Ingmar Bergman, e<br />
Trono manchado <strong>de</strong> sangue, <strong>de</strong> Akira Kurosawa; além <strong>de</strong> Une Saison en Enfer, <strong>de</strong><br />
Arthur Rimbaud; La Ville Parjure, L‟India<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Helène Cixous; Macbeth, <strong>de</strong> W.<br />
Skakespeare, Le diable et le bon dieu, <strong>de</strong> Jean- Paul Sartre e Oeuvres Completes <strong>de</strong><br />
12 “Etienne Decroux nasceu na França em 1898 e começou sua formação <strong>de</strong> ator em 1923 na escola do<br />
Vieux-Colombier <strong>de</strong> Jacques Copeau. Entre 1923 e 1945, foi intérprete <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> obras<br />
clássicas e mo<strong>de</strong>rnas sob a direção <strong>de</strong> Copeau, Charles Dullin, Louis Jouvet e Antonin Artaud. Ele foi<br />
um dos mestres mais influentes do teatro oci<strong>de</strong>ntal. Seu conhecimento do nível pré-expressivo do ator e<br />
das leis que fundamentam o movimento cênico permanece sem igual na história do teatro do século XX”.<br />
(AMOK, 2008.
Antonin Artaud.<br />
Do mesmo modo que o texto, todos os outros elementos da encenação foram<br />
sendo construídos a partir e em proveito do trabalho dos atuantes e da relação com os<br />
espectadores.<br />
182<br />
Nossa proposta foi a <strong>de</strong> trabalhar com o mínimo <strong>de</strong> recursos, na<br />
direção <strong>de</strong> um teatro pobre, fundado unicamente na presença do ator e<br />
na sua relação com o público. Nesse contexto, cenário, figurinos, texto<br />
e luz foram se construindo progressivamente, ao longo <strong>de</strong> meses <strong>de</strong><br />
ensaios, não como criações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> artistas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />
mas do interior da cena, como uma continuação material do trabalho do<br />
ator. (AMOK, 2008)<br />
De acordo com o grupo, o espetáculo oscila entre um passado remoto e a<br />
atualida<strong>de</strong> da personagem central e é dividido em quatro quadros in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, nos<br />
quais se evi<strong>de</strong>ncia a ambivalência entre o bem e o mal. O Carrasco, uma personagem<br />
solitária, é provocado ou exaltado pelas outras personagens e sobre ele pesa o sangue<br />
dos milênios. Perseguido por seus tormentos, sua reação se torna “um mergulho na<br />
questão central da obra <strong>de</strong> Lagerkvist: qual o sentido da vida se, quando interrogamos,<br />
Deus não respon<strong>de</strong>?” (op. Cit.)<br />
4.2.1 O espaço cênico e a percepção das presenças das personagens <strong>de</strong> O<br />
Carrasco<br />
O espetáculo O Carrasco é subdividido em quatro cenas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
conforme as seguintes sinopses:<br />
O espetáculo se divi<strong>de</strong> em quatro quadros in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes on<strong>de</strong> a<br />
presença do carrasco é constante.<br />
Quadro I : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist<br />
Na penumbra <strong>de</strong> uma taverna, dois personagens contam estórias <strong>de</strong><br />
morte, <strong>de</strong> execuções, <strong>de</strong> amor, todas se dirigindo ao Carrasco que,<br />
obstinadamente, guarda o silêncio.<br />
Quadro II : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Jean Genet<br />
Uma ladra se apresenta diante <strong>de</strong> um velho juiz para ser julgada. Como<br />
peças <strong>de</strong> um estranho jogo, o juiz enuncia as regras das relações entre<br />
ele, a ladra e o Carrasco.<br />
Quadro III : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Ingmar Bergman e Jean Genet<br />
Um General se encontra face a face com a Morte. Atiçado por esse<br />
inusitado colóquio o General po<strong>de</strong>rá, talvez, voltar.<br />
Quadro IV : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist
183<br />
Antes <strong>de</strong> ir-se para continuar seu trabalho, o Carrasco<br />
respon<strong>de</strong>rá a seus perseguidores. Ele, que carrega sobre os ombros os<br />
crimes cometidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da humanida<strong>de</strong>, procura o repouso.<br />
(AMOK, 2008)<br />
O espaço cênico é responsável pelo primeiro impacto nos espectadores e<br />
também é o organizador <strong>de</strong> todos os outros elementos cênicos. Para dar sentido <strong>de</strong><br />
aproximação entre espectadores e a encenação, a direção do espetáculo optou por um<br />
espaço completamente fechado, que agregava atuantes e espectadores, no qual havia<br />
uma única porta para a entrada e a saída do público.<br />
A estrutura cênica propõe um espaço fechado, englobando ator e<br />
público. Uma gran<strong>de</strong> mesa <strong>de</strong>fine a área do jogo. O número limitado <strong>de</strong><br />
espectadores propicia uma gran<strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre o público e os<br />
personagens, reduzindo a distância entre “ato” e “participação ao ato”.<br />
(AMOK, 2008).<br />
Vale ressaltar que nos fundamentos do Teatro da Cruelda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Artaud, o<br />
espectador <strong>de</strong>veria estar no centro da cena e o espetáculo <strong>de</strong>veria girar ao seu redor.<br />
A estreita ligação do Amok Teatro com as teorias do encenador levou-o a optar por um<br />
espaço cênico que inserisse o público na cena. Assim, a entrada dos espectadores era<br />
feita pela porta central do espaço cênico, e este era atravessado por eles. Além disso,<br />
para alcançar as arquibancadas on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam se acomodar, os espectadores<br />
passavam pelas personagens, já em suas posições. Tal situação provocava, portanto,<br />
o primeiro efeito <strong>de</strong> aproximação entre encenação e público. De acordo com Pavis o<br />
Teatro da Cruelda<strong>de</strong> é um termo inventado por Artaud para o seu projeto <strong>de</strong><br />
encenação, no qual o espectador seria submetido a um mundo <strong>de</strong> sensações, “um<br />
tratamento <strong>de</strong> choque emotivo” (PAVIS, 1999, p.377).<br />
Queremos fazer do teatro uma realida<strong>de</strong> na qual se possa acreditar, e<br />
que contenha para o coração e os sentidos esta espécie <strong>de</strong> picada<br />
concreta que comporta toda sensação verda<strong>de</strong>ira. (...)<br />
É para apanhar a sensibilida<strong>de</strong> do espectador em todas as suas<br />
facetas que preconizamos um espetáculo giratório que, em vez <strong>de</strong><br />
tornar a encenação e a platéia dois mundos fechados, sem<br />
comunicação possível, distribua seus clarões visuais e sonoros entre a<br />
massa inteira dos espectadores. (ARTAUD. 1999, pág. 97)<br />
O sentido <strong>de</strong> aproximação é ampliado quando a personagem Comandante fecha<br />
a porta, estabelecendo que todos estivessem no mesmo espaço e no mesmo tempo.<br />
Essa opção da encenação remete aos “modos <strong>de</strong> interação dos sujeitos” e aos “modos
<strong>de</strong> interação entre o sujeito e o mundo” discutidos por Landowski no livro Presenças<br />
do outro (2002), no qual são construídas “as bases <strong>de</strong> uma tipologia dos modos como<br />
o sujeito entra em contato aqui e agora com o objeto”. O sentido <strong>de</strong> O Carrasco<br />
começa a ser construído pela não separação dos atuantes e do público. Adotando o<br />
pensamento <strong>de</strong> Landowski, po<strong>de</strong>-se pensar que <strong>de</strong>sse encontro direto é que emergiria<br />
o sentido.<br />
184<br />
Na penumbra da sala percebe-se que o centro <strong>de</strong>sse espaço fechado é<br />
ocupado por uma gran<strong>de</strong> mesa, ao redor da qual se posicionam todas as personagens.<br />
As pare<strong>de</strong>s e a porta são feitas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras rústicas e pesadas que, tal qual a mesa,<br />
têm a tonalida<strong>de</strong> amarelada que proporciona a sensação <strong>de</strong> temperatura quente às<br />
cenas. Sobre a mesa encontram-se três lamparinas e seis pequenos refletores<br />
micropar que também emitem uma tonalida<strong>de</strong> amarelada. O Carrasco ocupa a<br />
extremida<strong>de</strong> direita e permanece sentado na mesma posição durante as três primeiras<br />
cenas. As outras personagens jamais se aproximam do local on<strong>de</strong> se encontra o<br />
Carrasco: na primeira cena, as personagens Comandante e Jericó ocupam a<br />
extremida<strong>de</strong> da esquerda; na segunda cena a personagem Mulher se posiciona à<br />
frente da mesa próxima ao centro e a personagem Juiz se posiciona ao fundo; na<br />
terceira cena, por meio da iluminação, as personagens General e Morte aparecem<br />
sobre a mesa. Na quarta cena, o Carrasco fica só, sai da extremida<strong>de</strong> direita e sobe na<br />
mesa, ocupando-lhe o centro. O espaço cênico e as posições das personagens po<strong>de</strong>m<br />
ser visualizados nas figuras 54, 55, 56 e 57:
Figura 54: Cena I: Comandante, Jericó e Carrasco. Fonte: DVD do<br />
espetáculo.<br />
Figura 55: Cena II: Juiz, Mulher e Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
185
Figura 56: Cena III: Morte, General e Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
Figura 57: Cena IV: Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
186
187<br />
Esse espaço cênico, do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, é um “campo <strong>de</strong> presenças” que,<br />
como pensam Fontanille e Zilberberg (2001, p. 125), é “consi<strong>de</strong>rado como o domínio<br />
espácio-temporal” em que se exerce a percepção. As presenças materializadas das<br />
personagens também se manifestam, conforme foi visto nos outros capítulos, em<br />
termos <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> extensão e <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> (FONTANILLE, 2007, p. 75). A<br />
partir das presenças materializadas po<strong>de</strong>m-se i<strong>de</strong>ntificar as suas proprieda<strong>de</strong>s visuais:<br />
o móvel e o imóvel, o visível e o invisível, o sólido e o fluido, o quente e o frio, entre<br />
outras.<br />
A personagem Carrasco, interpretada por Marcus Pina, está presente do início<br />
ao fim da representação e da ação representada. Nas três primeiras cenas ele é uma<br />
presença imóvel, sólida e quente, que permanece em silêncio e se mantém na<br />
extremida<strong>de</strong> direita da mesa, em uma penumbra, às vezes mais intensa, outras, mais<br />
mo<strong>de</strong>rada. Ele apenas ouve as provocações e as exaltações <strong>de</strong> todas as outras<br />
personagens que, ao contrário <strong>de</strong>le, entram e saem <strong>de</strong> cena à vista do público, durante<br />
os entreatos. E é apenas nos entreatos que sua presença é invisível. Só no quarto<br />
quadro é que ele ganha voz e movimento.<br />
As outras personagens, fugazes, móveis, fluidas e frias, são interpretadas pelos<br />
atuantes Renata Collaço e Stéphane Brodt: a Comandante e Jericó, personagens da<br />
primeira cena; o Juiz e a Mulher, da segunda cena; a morte e o General, da terceira<br />
cena. As quatro últimas nascem <strong>de</strong> um ritual cênico, público, no qual as personagens<br />
que terminaram as suas ações <strong>de</strong>saparecem para que as próximas possam completar<br />
o seu ciclo <strong>de</strong> vida cênico, temporário: encarnes e <strong>de</strong>sencarnes; materializações e<br />
<strong>de</strong>smaterializações. Deve-se esclarecer que as duas primeiras personagens já estão<br />
em cena quando o público entra no espaço cênico e <strong>de</strong>saparecem no ritual.<br />
O crítico <strong>de</strong> teatro Maksen Luiz, do Jornal do Brasil, <strong>de</strong>finiu esse ritual cênico<br />
como uma “liturgia <strong>de</strong> passagem”.<br />
A diretora Ana Teixeira cria tempo cênico extremamente preciso na<br />
sua sincronizada preparação - os atores se <strong>de</strong>spem <strong>de</strong> um<br />
personagem para recompor outro numa dança litúrgica <strong>de</strong> passagem -,<br />
(...) O Carrasco é um espetáculo hierático, seco e racionalista em seus<br />
fundamentos, mas que provoca tanto a reflexão quanto a vívida<br />
emoção. (LUIZ, 2001)
188<br />
Assim, nessa liturgia, o espaço permanece o mesmo, porém são os atuantes<br />
que ocupam a cena e não mais as personagens. Os dois atuantes sentam-se lado a<br />
lado, <strong>de</strong> frente para os espectadores e utilizam a mesa para colocar os objetos<br />
necessários para a troca <strong>de</strong> figurinos e maquiagem, como <strong>de</strong>monstra a figura 58:<br />
Figura 58: Entreato. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
Verifica-se que durante as três cenas a figura do Carrasco é ro<strong>de</strong>ada pelas<br />
outras personagens e seu espaço é restrito à extremida<strong>de</strong> direita da mesa, já os<br />
espectadores e as outras personagens ocupam todo o restante do espaço cênico. O<br />
público que varia todos os dias nas diversas sessões e as personagens que variam <strong>de</strong><br />
cena em cena ro<strong>de</strong>iam o Carrasco, mas estas últimas não se aproximam <strong>de</strong>le.<br />
Entretanto, durante os entreatos a personagem Carrasco <strong>de</strong>saparece da cena, por<br />
meio da iluminação, numa espécie <strong>de</strong> ausência presente e os atuantes Renata Collaço<br />
e Stéphane Brodt ocupam a parte <strong>de</strong> trás da mesa para a “liturgia da passagem”.<br />
Portanto, nos entreatos o espaço é inteiramente ocupado pelos atuantes e pelos<br />
espectadores, sem a presença materializada <strong>de</strong> personagens, uma vez que o Carrasco<br />
se torna invisível. Durante as três primeiras cenas, do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, po<strong>de</strong>-se
dizer que a exteriorida<strong>de</strong> é representada espacialmente por noventa por cento do<br />
espaço cênico. A faixa lateral baixa, média e alta da direita, ocupada pelo Carrasco,<br />
representa a interiorida<strong>de</strong>, intensa, operada pelo foco, ligado à carne e aos estados <strong>de</strong><br />
alma, como po<strong>de</strong> ser verificado no esquema tensivo nº 1 (p. 45). O efeito <strong>de</strong> presença,<br />
<strong>de</strong> acordo com o pensamento <strong>de</strong> Fontanille (2007, p. 76), <strong>de</strong>ve combinar “forças, <strong>de</strong><br />
um lado, e posições e quantida<strong>de</strong>s do outro 13 ”. Desse modo, tem-se o efeito <strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong> na força da presença do Carrasco, que aparece no espaço “interno”, e as<br />
posições e quantida<strong>de</strong>s no efeito <strong>de</strong> extensão, operado pela apreensão, dos corpos<br />
próprios e estados <strong>de</strong> coisas, como “externo”.<br />
189<br />
Os outros materiais cênicos estabelecidos pelos sistemas expressivos reiteram<br />
os sentidos espaciais, <strong>de</strong>ntre eles <strong>de</strong>staca-se a construção figurativa que caracteriza<br />
cada personagem.<br />
4.2.2 Da construção figurativa do Carrasco, no romance, à maquiagem, na<br />
encenação<br />
Com certeza, apenas um espectador totalmente insensível não teria<br />
um choque ao <strong>de</strong>parar-se, inesperadamente, com um <strong>de</strong>sses rostos<br />
que Antonin Artaud projetou, no <strong>final</strong> <strong>de</strong> sua vida, no espaço <strong>de</strong><br />
simples folhas <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho. Rostos separados do resto do<br />
corpo, pescoços cortados, cicatrizes expostas, marcadas na carne por<br />
uma vida passada ou ainda por vir, e <strong>de</strong> olhares tão intensos que vão<br />
muito além das pessoas que se encontram paradas diante <strong>de</strong>les.<br />
Haverá alguém que, atravessado por um <strong>de</strong>sses olhares, tenha<br />
permanecido intacto? (THÉVENIN, 1999, p.101).<br />
Apesar da encenação <strong>de</strong> O Carrasco ter se baseado em diversos textos e filmes<br />
cinematográficos, a caracterização cênica da personagem principal segue os traços<br />
físicos construídos por Pär Lagerkvist:<br />
13 Grifos do autor.<br />
Alto e forte na sua roupa vermelha cor <strong>de</strong> sangue, apoiando sobre<br />
as mãos seu rosto marcado pelo ferro vermelho 14 (...)<br />
O carrasco não o via. Ele não fazia nenhum movimento. A luz da vela<br />
cintilando, o gran<strong>de</strong> rosto inexpressivo mal era visível sob a sombra da<br />
14 grand et fort dans son costume rouge sang, appuyant sur sa main son front marqué par le fer rouge.<br />
[As traduções do romance O Carrasco aqui utilizadas foram feitas por Eduardo Maya.]
190<br />
sua mão 15 (...)<br />
Dizem que nem faca nem espada mor<strong>de</strong>m o carrasco, disse o velho, e<br />
novamente ele olhou furtivamente a gran<strong>de</strong> figura silenciosa 16 .(...)<br />
Sólido e resistente, com um rosto cheio <strong>de</strong> cicatrizes no qual projetava<br />
lábios grossos enrugados, tinha uma expressão brutal e selvagem e os<br />
seus olhos avermelhados, com um olhar pesado 17 . (...)<br />
O carrasco po<strong>de</strong> ser bom também. Ouvimos dizer que ele salvou os<br />
doentes e infelizes, as pessoas na maior angústia, e que toda a arte<br />
médica era impotente para aliviar 18 . (...)<br />
Há uma força <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. Há uma força do mal, isto é certo e<br />
<strong>de</strong>terminado.<br />
Mas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem esta força? Do diabo, eu digo! 19 (LARGERKVIST,<br />
1988, p. 7, 11, 13, 33, 40, 42)<br />
Em cena, a presença do Carrasco é imóvel, silenciosa, sólida e resistente,<br />
<strong>de</strong>sse modo a materialização da personagem, seguindo o pensamento <strong>de</strong> Ubersfeld<br />
(2005, p. 75), torna-se a intersecção dos conjuntos semióticos, textuais e cênico.<br />
Cenicamente a equipe <strong>de</strong> criação, por meio da maquiagem, segue alguns traços<br />
<strong>de</strong>scritos pelo autor: imprimindo sobre a testa uma cicatriz gran<strong>de</strong> e profunda,<br />
fabricando-lhe uma expressão brutal e selvagem, avermelhando os olhos e também<br />
lhes dando peso com as grossas sobrancelhas. As marcas do tempo que passou são<br />
expressas pelas rugas, pela longa barba. Tais características provocam um efeito <strong>de</strong><br />
choque intenso parecido com os dos rostos projetados por Artaud, conforme <strong>de</strong>screve<br />
Thévenin, em epígrafe.<br />
O figurino também segue a <strong>de</strong>terminação cromática <strong>de</strong>scrita por Lagerkvist:<br />
roupa vermelha cor <strong>de</strong> sangue. Em cena ele usa uma longa saia vermelha e blusa<br />
preta, que só são reveladas no último quadro. O véu rústico num tom marrom<br />
avermelhado é a única peça do figurino que é vista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da encenação. As<br />
15<br />
Le bourreau ne le voyait pas. Il ne faisait aucun mouvement. A la lueur vacillante <strong>de</strong> la chan<strong>de</strong>lle, son<br />
grand visage sans expression était à peine visible sous l‟ombre <strong>de</strong> sa main.<br />
16<br />
On raconte que ni couteau ni épée ne mor<strong>de</strong>nt sur le bourreau, dit le vieux, et <strong>de</strong> nouveau il regarda<br />
furtivement la gran<strong>de</strong> figure silencieuse.<br />
17<br />
Massif et vigoureux, avec une figure pleine <strong>de</strong> cicatrices où faisaient saillie <strong>de</strong> grosses lèvres plissées,<br />
il avait une expression brutale et sauvage et ses yeux injectés <strong>de</strong> sang, au regard lourd, étaient<br />
complètement jaunâtres.<br />
18<br />
En effet, le bourreau peut être bon, lui aussi. On a entendu dire qu‟il a sauvé <strong>de</strong>s mala<strong>de</strong>s et <strong>de</strong>s<br />
malheureux, <strong>de</strong>s gens dans la plus gran<strong>de</strong> détresse, que tout l‟art médical avait été impuissant à<br />
soulager.<br />
19<br />
Il y a une force en lui. Il y a une force dans le mal, sûr et certain.<br />
Mais d‟où le mal tient-il cette force? Du diable, te dis-je!
figuras 57 (p. 186), 59 e 60 mostram o figurino e <strong>de</strong>talhes da aplicação da maquiagem.<br />
Figura 59: Marcus Pina se maquiando. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
Figura 60: Marcus Pina se maquiando. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
191
192<br />
De acordo com o pensamento <strong>de</strong> Fontanille (2007, p. 76), as proprieda<strong>de</strong>s<br />
visuais po<strong>de</strong>m ser avaliadas em termos <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, extensão e quantida<strong>de</strong>. Essas<br />
proprieda<strong>de</strong>s visuais são percebidas antes mesmo <strong>de</strong> se saber <strong>de</strong> quem se trata, e é<br />
exatamente o que acontecia no momento em que os espectadores atravessavam o<br />
espaço cênico. A personagem Carrasco era percebida pelas suas características<br />
visuais, ou seja, antes mesmo <strong>de</strong> saber quem ele era, seu rosto arrebatava o público,<br />
ainda que sob a forma <strong>de</strong> um fazer informativo neutro, utilizando a nomenclatura<br />
proposta por Greimas e Courtés (2008, p.491). O momento <strong>de</strong>sse primeiro contato<br />
seria uma espécie <strong>de</strong> atestado <strong>de</strong> existência, um fazer informativo emissivo (GREIMAS<br />
E COURTÉS, i<strong>de</strong>m, p. 162), sem mobilizar as modalida<strong>de</strong>s veridictórias. Como o<br />
espectador ainda não compreen<strong>de</strong>u o estatuto veridictório <strong>de</strong>ssa presença intensa, ele<br />
é acometido por uma inquietação, uma suspensão epistemológica. A presença do<br />
Carrasco irrompe inesperadamente, uma diferença que começa a fazê-la significar. É<br />
por essa percepção inicial que o espectador teatral começa a sentir quem está em<br />
cena.<br />
Na encenação em análise, a parte visual dada a perceber do Carrasco, do<br />
momento da entrada do público até o fim da terceira cena, era apenas o seu rosto<br />
emoldurado por um véu cor marrom avermelhada. Essa mesma cor se confundia na<br />
sua face, on<strong>de</strong> se encontravam também outras tonalida<strong>de</strong>s quentes. O restante da sua<br />
figura ficava escondido atrás da mesa. Assim sendo, recorro às teorias <strong>de</strong> Merleau-<br />
Ponty (2006b), nas quais ele afirma que “o corpo não tem uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> posição,<br />
mas <strong>de</strong> situação”, ou seja, a concentração está toda no rosto do Carrasco e o seu<br />
corpo o segue “como a cauda <strong>de</strong> um cometa”. A concentração é então a primeira<br />
qualida<strong>de</strong> visual <strong>de</strong>ssa personagem. A predominância da cor vermelha na maquiagem<br />
e figurino lhe dá outra qualida<strong>de</strong>, a da temperatura quente da cor (categoria cromática).<br />
As outras proprieda<strong>de</strong>s foram sendo percebidas no <strong>de</strong>correr da apresentação (espaço-<br />
temporal): a imobilida<strong>de</strong>, a soli<strong>de</strong>z, a visibilida<strong>de</strong> e a perpetuida<strong>de</strong>. Esse conjunto <strong>de</strong><br />
características, estabelecidas na articulação entre as categorias cromáticas e<br />
topológicas, conce<strong>de</strong> ao Carrasco um alto grau <strong>de</strong> energia (intensida<strong>de</strong>) e baixo grau<br />
<strong>de</strong> labilida<strong>de</strong> no espaço temporal (extensão): energia da concentração, da temperatura<br />
da cor, o pouco espaço percorrido pela imobilida<strong>de</strong> e pela soli<strong>de</strong>z.
193<br />
A maquiagem forma um todo único e contínuo e preserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
conexão do envelope corporal do atuante pluralizando, por meio da <strong>de</strong>breagem, os<br />
sentidos do Carrasco. Ao mesmo tempo em que preserva a conexão, a maquiagem<br />
também se compacta ao rosto por meio das sobrancelhas postiças. Desse modo, ela<br />
se ajusta ao corpo assumindo, portanto, a compactação. São essas sobrancelhas<br />
postiças que aumentam o peso do olhar, conforme a <strong>de</strong>scrição do autor. Na verda<strong>de</strong>,<br />
há uma ambiguida<strong>de</strong> na proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> compactação, uma vez que as lágrimas <strong>de</strong><br />
sangue que escorrem pelo rosto promovem a i<strong>de</strong>ntificação distintiva do conteúdo<br />
emocional da personagem, invertendo o fora e o <strong>de</strong>ntro. Essas lágrimas figurativizam<br />
toda a dor interna da personagem.<br />
Marcus Pina, que carrega impressionante máscara <strong>de</strong> sangue, revela<br />
na imobilida<strong>de</strong> com que permanece em dois terços do espetáculo o<br />
grau <strong>de</strong> segurança técnica e domínio da emoção que transfere, <strong>de</strong><br />
maneira irretocável, quando, <strong>final</strong>mente, o carrasco ganha voz para se<br />
''justificar''. (LUIZ, op. cit)<br />
A veemência do Carrasco é sentida, principalmente, pela sua “máscara <strong>de</strong><br />
sangue” (Figs. 62 e 63). A intensida<strong>de</strong> da maquiagem promove a virtualização do rosto<br />
<strong>de</strong> Marcus Pina (Fig. 61), que se mantém como um suporte recuado durante toda a<br />
encenação. Portanto, há uma competição das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong> existência<br />
entre a maquiagem e o suporte facial do atuante, numa operação intensiva da práxis<br />
enunciativa: a ascensão (atualizado → realizado) na qual aparece o rosto do Carrasco<br />
e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência (potencializado → virtualizado) do rosto <strong>de</strong> Marcus Pina o que<br />
caracteriza uma revolução semiótica. No teatro não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> closes, mas se<br />
po<strong>de</strong> dizer que a sensação provocada pelo rosto <strong>de</strong>ssa personagem é como a <strong>de</strong> um<br />
close-up no cinema, <strong>de</strong>vido à intensida<strong>de</strong> e à força promovida pela maquiagem.
Figura 61: Marcus Pina. Fonte: Marcus Pina.<br />
Figura 62: O Carrasco. Fonte: AMOK.<br />
194
Figura 63: O Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
195<br />
A práxis enunciativa da maquiagem do Carrasco cujo enunciado é forte, intenso<br />
e pesado, parte do modo virtual (a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Lagerkvist). As cores, os marrons que<br />
dão um tom encardido à pele e a tonalida<strong>de</strong> bege pele que reproduz as rugas e a<br />
cicatriz ainda viva, promovem o jogo <strong>de</strong> claro e escuro que, além <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar o rosto,<br />
cria os efeitos <strong>de</strong> aspecto ru<strong>de</strong> e fisionomia forte; o esmalte nicotina que escurece os<br />
<strong>de</strong>ntes, a cor vermelha que circunda a cicatriz e escorre dos olhos como lágrimas <strong>de</strong><br />
dor, <strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> sofrimento e que também aparece respingada sobre o capuz; os<br />
postiços que <strong>de</strong>ixam as sobrancelhas mais grossas e espessas, pesando o semblante;<br />
e a barba cheia e irregular que completam a fisionomia sofrida do Carrasco, atualizam<br />
o seu discurso visual, que se realiza ao encontrar com as outras personagens e com<br />
os espectadores. Portanto, do mesmo modo como ocorre com os actantes<br />
encarnados, como foi visto no segundo capítulo, o ato produtor do discurso <strong>de</strong><br />
significação é, a princípio, uma tensão entre o virtual, ainda fora do campo <strong>de</strong> discurso,<br />
e o realizado, centro do campo do discurso, intermediado pelo modo atualizado.
4.2.3 As Maquiagens dos efêmeros: Jericó, Comandante, Juiz, Mulher, General e<br />
Morte<br />
196<br />
As outras personagens do espetáculo O Carrasco fazem parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />
presenças que aparecem em cenas distintas e sempre em duplas: Jericó e a<br />
Comandante que já estão prontos quando os espectadores (enunciatários) entram no<br />
espaço cênico, mas <strong>de</strong>saparecem diante do público durante a primeira “liturgia <strong>de</strong><br />
passagem”; o Juiz e a Mulher aparecem e <strong>de</strong>saparecem no <strong>de</strong>correr da primeira<br />
liturgia; o General e a Morte nascem no segundo entreato e <strong>de</strong>saparecem ao fim da<br />
terceira cena. As proprieda<strong>de</strong>s visuais <strong>de</strong>sse grupo são: a dispersão (vários corpos,<br />
várias situações corporais); a predominância das cores branca e preta nos figurinos<br />
(categoria cromática), maquiagens com as tonalida<strong>de</strong>s mais claras e brancas, sem<br />
pontos <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> cores ou formas, todos recursos que atribuem aos rostos<br />
temperatura fria. Assim como acontece com o Carrasco, as proprieda<strong>de</strong>s da categoria<br />
cromática são as primeiras a serem percebidas, as outras proprieda<strong>de</strong>s foram sendo<br />
absorvidas no <strong>de</strong>senvolvimento das cenas: a mobilida<strong>de</strong>, a flui<strong>de</strong>z e a efemerida<strong>de</strong>.<br />
Nesse conjunto <strong>de</strong> características visuais temos um baixo grau <strong>de</strong> força (intensida<strong>de</strong>) e<br />
um alto grau <strong>de</strong> labilida<strong>de</strong> no espaço temporal (extensão).<br />
As maquiagens que <strong>de</strong>finem os rostos <strong>de</strong>sse grupo <strong>de</strong> personagens não são tão<br />
intensas nem complexas quanto a do Carrasco e não chegam a promover o recuo total<br />
do rosto dos atuantes. Porém, estes são completamente revelados nos entreatos e, a<br />
partir <strong>de</strong>ssa revelação, po<strong>de</strong>-se dizer que eles ficam potencializados durante o resto da<br />
encenação. As maquiagens <strong>de</strong>sse grupo são bem mais simples e preservam a<br />
conexida<strong>de</strong> dos envelopes corporais.<br />
Nessa encenação a maquiagem faz uso <strong>de</strong> todos os vetores <strong>de</strong> significação<br />
visual: como vetor acumulador, por agrupar personagens; como vetor conector, por<br />
possibilitar a comparação do grupo <strong>de</strong> personagens com o Carrasco; como vetor<br />
secionante, por promover mudanças nas aparências na interrupção feita pela “liturgia<br />
<strong>de</strong> passagem”, que ocorre entre as séries <strong>de</strong> cenas. Além <strong>de</strong>sses vetores mais<br />
específicos, todas as maquiagens do espetáculo são vetores embreadores e “fazem<br />
passar <strong>de</strong> um nível <strong>de</strong> sentido a outro ou da situação <strong>de</strong> enunciação aos enunciados”
(PAVIS, 2003, p.58), por meio da <strong>de</strong>breagem entre a pessoa física e privada do<br />
atuante e o outro construído cenicamente, a personagem.<br />
197<br />
A práxis enunciativa da maquiagem da primeira dupla, Jericó (Figs. 64 e 65) e<br />
Comandante (Figs. 64 e 66), é semelhante à do Carrasco: parte do modo virtual e as<br />
cores marrom e bege claro mo<strong>de</strong>lam o rosto, dando volume às bochechas da<br />
Comandante e rugas a Jericó; o esmalte <strong>de</strong>ntário nicotina e preto proporciona o<br />
<strong>de</strong>sgaste aos <strong>de</strong>ntes dos dois; a peruca grisalha <strong>de</strong>monstra a ida<strong>de</strong> madura da<br />
Comandante; tudo isso atualiza os discursos visuais, que também se realizam quando<br />
ambos se encontram, diante um do outro e diante do Carrasco, ou quando se<br />
encontram com os espectadores.<br />
Figura 64: Jericó e a Comandante. Fonte: AMOK.
Figura 65: Jericó. Fonte: AMOK.<br />
Figura 66: A Comandante. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
198<br />
Porém, durante o primeiro entreato, “liturgia <strong>de</strong> passagem”, a práxis é outra,<br />
conforme po<strong>de</strong> ser verificado na figura 67: parte-se do discurso realizado das
maquiagens que constroem o rosto <strong>de</strong> Jericó e o rosto da Comandante, já<br />
reconhecidos pelos espectadores, que retiveram as feições <strong>de</strong>les na memória. Desse<br />
modo, os rostos construídos já po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados como potencializados. Quando<br />
a construção visual dos rostos das personagens é <strong>de</strong>sfeita em cena, eles são<br />
remetidos ao modo virtualizado, cujas gran<strong>de</strong>zas servirão “<strong>de</strong> segundo plano ao<br />
funcionamento das figuras do discurso” (FONTANILLE, 2007, p. 276). Os rostos dos<br />
atuantes, Renata Collaço e Stéphane Brodt (fig. 67 D e E), que, até então, se<br />
encontravam recuados, tornam-se, momentaneamente, realizados. Em seguida, são<br />
potencializados, ou seja, têm suas presenças transferidas para a memória do<br />
enunciatário e ficam disponíveis para outras convocações, o que acontecerá no<br />
segundo entreato.<br />
199<br />
Figura 67: Sequência do primeiro entreato. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
A – Comandante e Jericó colocando objetos sobre a mesa;<br />
B – Retirada <strong>de</strong> perucas e figurinos da Comandante e <strong>de</strong> Jericó;<br />
C – Colocação dos figurinos da Mulher e do Juiz;<br />
D e E – Retirada da maquiagem, momento em que os rostos dos<br />
atuantes são revelados;<br />
F – Nova maquiagem, perucas e esmaltação dos <strong>de</strong>ntes;<br />
G – Mulher e Juiz
200<br />
Os rostos da Mulher (Fig. 68) e do Juiz (Fig. 69) são construídos com poucos<br />
recursos <strong>de</strong> maquiagem, apenas pela coloração dos <strong>de</strong>ntes do juiz e com perucas para<br />
ambos. A Mulher permanece <strong>de</strong> costas para os espectadores e Stéphane Brodt utiliza<br />
expressões faciais específicas para compor o Juiz, como os olhos espremidos sob os<br />
óculos. A práxis enunciativa <strong>de</strong>ssas maquiagens, inicialmente, segue o mesmo<br />
caminho do primeiro entreato: modo Realizado (maquiagens da Mulher e do Juiz -<br />
Figs. 68, 69, 70 a e b) passando pelo modo potencializado e atingindo o modo<br />
virtualizado. Porém, os rostos dos atuantes agora são reconvocados (Fig. 67 B e C),<br />
sendo novamente realizados e, logo em seguida, retornam à potencialização. Durante<br />
esse processo um novo movimento começa, a aplicação da maquiagem para a<br />
construção dos rostos das personagens do terceiro quadro que ainda estavam no<br />
modo virtual (sob a inspiração <strong>de</strong> Bergson) e são realizados durante o segundo<br />
entreato (rostos da Morte e do General – Figs. 70 F e G).<br />
Figura 68: A Mulher. Fonte: DVD do espetáculo.<br />
Figura 69: O Juiz. Fonte: AMOK.
201<br />
A transformação aos olhos do público, durante a segunda “liturgia <strong>de</strong><br />
passagem”, virtualiza o Juiz e a Mulher e, em um <strong>de</strong>terminado momento, reconvoca o<br />
rosto dos atuantes, para que estes “<strong>de</strong>em vida” à próxima dupla <strong>de</strong> personagens: a<br />
Morte e o General, conforme é <strong>de</strong>monstrado na figura 70.<br />
Figura 70: Sequência do segundo entreato. Fonte:<br />
DVD do espetáculo.<br />
A – Retirada do figurino da Mulher;<br />
B – Retirada do figurino do Juiz;<br />
C- Rostos <strong>de</strong> Renata Collaço e Stéphane Brodt;<br />
D – Aplicação da maquiagem da Morte;<br />
E – Aplicação da maquiagem do General;<br />
F – A Morte<br />
G – O General
202<br />
Do mesmo modo que as praxes das maquiagens que materializam as outras<br />
personagens, o rosto da morte é atualizado pela base branca aplicada sobre todo o<br />
rosto da atuante; pela aquacolor branca aplicada sobre os cabelos, como também pelo<br />
aumento do volume <strong>de</strong>stes. Para o general as sobrancelhas são escurecidas, os olhos<br />
ganham contorno marrom e adquirem profundida<strong>de</strong> com a aplicação <strong>de</strong> uma base <strong>de</strong><br />
mesmo tom. A plenitu<strong>de</strong> acontece quando ocupam o centro da mesa e se encontram<br />
em cena, diante do Carrasco e dos espectadores que voltam a perceber as tensões. A<br />
correlação é direta entre as dimensões intensivas e extensivas, à medida que aumenta<br />
a extensão da Morte (Figs. 71 e 72) e do General (Fig. 71), aumenta a intensida<strong>de</strong> do<br />
carrasco, que volta a ser visível por meio da iluminação.<br />
Figura 71: A morte e o General. Fonte: AMOK.<br />
Figura 72: A morte. Fonte: AMOK.
203<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que no início do espetáculo estão em cena as personagens em<br />
toda plenitu<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>m ser percebidos como uma forma i<strong>de</strong>ntificável. Porém, durante<br />
os entreatos as relações são outras: no primeiro entreato a Comandante e Jericó (Figs.<br />
66, 65 e 64) têm o modo <strong>de</strong> manifestação figurativa potencializada, já são ícones<br />
estáveis e reconhecíveis, com seus envelopes próprios marcados com inscrições que<br />
lhes conce<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Contudo, quando as maquiagens são retiradas em cena,<br />
os atuantes são consi<strong>de</strong>rados sem forma e sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para aquele mundo<br />
representado, são simples manifestações da presença, uma ocupação da extensão.<br />
Apenas quando começam a aplicar as novas maquiagens é que vão atualizando as<br />
novas figuras até que as outras personagens das próximas cenas alcancem a<br />
plenitu<strong>de</strong> cênica. Esse ciclo é repetido no segundo entreato. Nas “liturgias <strong>de</strong><br />
passagem” acontecem flutuações semióticas, nas quais as gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong><br />
existência entram em combinação entre o aparecimento dos rostos das personagens<br />
em ascendência (atualizado → realizado) e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência dos rostos dos<br />
atuantes (realizado → potencializado). Apenas o Carrasco é que se mantém como um<br />
ator semiótico pleno, com corpo e rosto próprios, durante toda a encenação.<br />
4.3 As proprieda<strong>de</strong>s visuais e o plano da expressão<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que na encenação <strong>de</strong> O carrasco, os enca<strong>de</strong>amentos e as<br />
sobreposições <strong>de</strong> cenas, ou seja, sua sintaxe discursiva, conjuga a dimensão da<br />
intensida<strong>de</strong> (sensível) e a dimensão da extensida<strong>de</strong> (inteligível) da seguinte maneira:<br />
nas quatros cenas há uma correlação conversa entre os eixos da intensida<strong>de</strong> e da<br />
extensida<strong>de</strong>, um esquema <strong>de</strong> amplificação, no qual o aumento da intensida<strong>de</strong> é<br />
combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da extensão. O sensível e o inteligível crescem<br />
conjuntamente. Parte-se da intensida<strong>de</strong>, do choque da visão da figura do Carrasco e<br />
segue-se para a compreensão que vai sendo adquirida no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> cada cena, com<br />
o aumento da extensão e das múltiplas presenças (o grupo <strong>de</strong> personagens). Há a<br />
captação do olhar e da atenção dos espectadores, a força do Carrasco versus muitas<br />
personagens, produzindo, <strong>de</strong>sse modo uma “tensão afetiva e cognitiva” (FONTANILLE,<br />
2007, pág. 112), conforme po<strong>de</strong> ser visualizado no esquema tensivo 19:
+<br />
Eixo da<br />
intensida<strong>de</strong><br />
Estado <strong>de</strong> alma<br />
Sensível<br />
Operação:<br />
Foco<br />
Força do<br />
Carrasco<br />
-<br />
204<br />
Por outro lado, na “liturgia <strong>de</strong> passagem” o gradiente da extensão diminui, do<br />
mesmo modo que o da intensida<strong>de</strong>. Não há presenças <strong>de</strong> personagens, mas <strong>de</strong><br />
atuantes, e o Carrasco está invisível. Portanto há o <strong>de</strong>clínio geral das tensões e dos<br />
<strong>de</strong>sdobramentos, como uma espécie <strong>de</strong> reavaliação. Seria como uma zona <strong>de</strong><br />
valências intensivas e extensivas mais fracas, como <strong>de</strong>fine Fontanille (2007, p. 116),<br />
uma zona virtual, na qual se apagam as personagens e <strong>de</strong>saparecem as figuras e da<br />
qual emergem novas formas semióticas. Acontece, portanto, uma correlação<br />
conversa, num esquema <strong>de</strong> atenuação que produz um relaxamento cognitivo. Os<br />
entreatos, nessa encenação, funcionam como uma quebra rítmica, sonora e visual. O<br />
esquema tensivo 20 <strong>de</strong>monstra esse movimento:<br />
+<br />
Eixo da<br />
intensida<strong>de</strong><br />
Estado <strong>de</strong> alma<br />
Sensível<br />
Operação:<br />
Foco<br />
Força do<br />
Carrasco<br />
-<br />
- Eixo da extensida<strong>de</strong> +<br />
Estado <strong>de</strong> coisas,<br />
Inteligível<br />
Labilida<strong>de</strong> espaço-temporal do grupo das<br />
personagens efêmeras<br />
- Eixo da extensida<strong>de</strong> +<br />
Estado <strong>de</strong> coisas,<br />
Inteligível<br />
Labilida<strong>de</strong> espaço-temporal do grupo das<br />
personagens efêmeras
205<br />
O ritmo das cenas é lento, acompanhado pela sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um vento<br />
constante. Com a entrada da liturgia é estabelecido ritmo mais acelerado que é<br />
embalado por uma música suave. O efeito <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> que gerava sensações,<br />
afetos e tensões é <strong>de</strong>smanchado. Ao aparecer em cena o espelho, lenços<br />
<strong>de</strong>maquilantes, pincéis, lápis, perucas, todo o aparato para executar uma maquiagem,<br />
o espectador é <strong>de</strong>spertado das tensões provocadas pelas cenas antece<strong>de</strong>ntes, num<br />
momento que produz efeito <strong>de</strong> distanciamento.<br />
A proximida<strong>de</strong> do público com as personagens, a imobilida<strong>de</strong> da personagem<br />
central e a aplicação da maquiagem durante as liturgias permitem a observação<br />
<strong>de</strong>talhada do rostos <strong>de</strong> cada personagem. Seria por meio dos fundadores dos sentidos,<br />
conforme <strong>de</strong>screve Pavis (2003, p.174), ou seja, do distanciamento e da proximida<strong>de</strong>,<br />
que se tenta avaliar uma maquiagem cênica. O espetáculo não tem uma estética<br />
realista e/ou naturalista, <strong>de</strong>sse modo, nem os figurinos nem a maquiagem <strong>de</strong>terminam<br />
uma época ou local específico. Não há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação do<br />
espectador com as personagens, nem <strong>de</strong> provocar ilusões, mas, conforme revela<br />
Pavis a respeito das teorias <strong>de</strong> Artaud, o espetáculo <strong>de</strong>veria provocar “uma catarse e<br />
uma experiência estética e ética original” (1999, p. 377), como acontece com O<br />
Carrasco. A encenação constrói um “antigamente” e uma taverna situada em algum<br />
lugar in<strong>de</strong>finido. A maquiagem revela a ida<strong>de</strong> e o meio social pobre do grupo das<br />
personagens efêmeras, com exceção da Morte, que é uma personagem sobrenatural.<br />
A maquiagem do Carrasco agiganta a sua figura, provocando um forte impacto<br />
visual, que reforça a concentração da presença e a sensação da sua perpetuida<strong>de</strong>. É<br />
a maquiagem que revela os seus tormentos, conforme as seguintes palavras proferidas<br />
por ele próprio na encenação:<br />
Eu sou o carrasco!...Des<strong>de</strong> o início dos tempos exerço o meu ofício e<br />
não parece que meu tempo já tenha acabado. Homens nascem e<br />
<strong>de</strong>saparecem mas eu permaneço e, coberto <strong>de</strong> sangue, vejo-os passar.<br />
Eu, o único que nunca envelhece. (...)<br />
Entendi por que vocês me chamavam! Eu sou o Cristo dos homens,<br />
com a marca do carrasco na fronte! Eu sigo meu caminho <strong>de</strong> guerra<br />
através do mundo e todo dia eu os salvo no sangue! E eu, ninguém<br />
crucifica! Aspiro ao sacrifício da morte. Mas sei que esse momento
206<br />
nunca virá. Enquanto vocês existirem, minha cruz jamais será erguida<br />
(Texto cênico <strong>de</strong> O Carrasco) 20 .<br />
A oposição cromática: tonalida<strong>de</strong>s frias dos efêmeros vs tonalida<strong>de</strong>s quentes do<br />
Carrasco, correspon<strong>de</strong> à oposição semântica fundamental mortalida<strong>de</strong> vs<br />
imortalida<strong>de</strong>, caracterizando, <strong>de</strong>sse modo, uma relação semissimbólica, conforme foi<br />
visto no terceiro capítulo.<br />
O tempo que passa é representado pelas personagens: Jericó e Comandante,<br />
Juiz e Mulher, Morte e General e também aparece nas rugas profundas construídas<br />
pela “fina membrana” que materializa o envelope corporal do Carrasco. O tempo que<br />
dura está figurativizado na carne do Carrasco que transparece pelas lágrimas <strong>de</strong><br />
sangue que impregnam o seu rosto único. No grupo <strong>de</strong> personagens, as trocas das<br />
maquiagens durante a liturgia e a escolha <strong>de</strong> uma coloração mais próxima dos tons <strong>de</strong><br />
pele natural, ou ainda esbranquiçada, reiteram as proprieda<strong>de</strong>s visuais <strong>de</strong> dispersão e<br />
<strong>de</strong> efemerida<strong>de</strong>.<br />
O quadro abaixo resume as oposições nas maquiagens do espetáculo e a<br />
relação entre os planos <strong>de</strong> conteúdo e <strong>de</strong> expressão:<br />
20 O texto do espetáculo está reproduzido no anexo.
Maquiagens das personagens <strong>de</strong> O Carrasco<br />
Perpetuida<strong>de</strong><br />
Imortalida<strong>de</strong><br />
Efemerida<strong>de</strong><br />
Mortalida<strong>de</strong><br />
Carrasco Comandante, Jericó,<br />
Juiz, Mulher, Morte e<br />
General<br />
Traços intensos Traços mo<strong>de</strong>rados<br />
Predominância do<br />
vermelho<br />
Predominância <strong>de</strong><br />
claros e tons <strong>de</strong> pele<br />
Constante Mutável<br />
Unida<strong>de</strong> Varieda<strong>de</strong><br />
Inversa à anatomia<br />
do rosto<br />
Direta na anatomia do<br />
rosto<br />
Mais Teatral Mais Realista<br />
207
CONCLUSÃO<br />
208<br />
Des<strong>de</strong> o momento em que a maquiagem, há quase vinte e cinco anos, me<br />
tomou <strong>de</strong> assalto e me conquistou, eu percebi que havia muito mais do que pós, cores<br />
e brilhos. Não que pós, cores e brilhos aplicados a rostos e corpos sejam pouco, mas<br />
são sempre tomados como acessórios e auxiliares. Ao contrário disso, penso que a<br />
maquiagem é uma linguagem tanto em suas motivações mais convencionais quanto<br />
em suas múltiplas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fraturar o sentido cotidiano. Dotada <strong>de</strong> plano da<br />
expressão visual, em que categorias cromáticas, eidéticas, topológicas e matéricas se<br />
mesclam para, sobre o suporte corporal, criar códigos socialmente interpretáveis pelo<br />
hábito ou produzir sentidos inesperados, a maquiagem correspon<strong>de</strong>rá a conteúdos que<br />
oscilarão, em correspondência com o plano da expressão, entre a habitualida<strong>de</strong> e a<br />
surpresa. As “finas membranas” que se ajustam sobre a pele, móveis e efemeramente<br />
coloridas, po<strong>de</strong>m provocar nos observadores atração ou repulsa, sensualida<strong>de</strong> ou<br />
susto, choque ou cumplicida<strong>de</strong>. Manipulados pelo sensível, em primeiro lugar, e em<br />
seguida pelo inteligível, os enunciatários das mensagens produzidas pela maquiagem<br />
completam o ciclo da comunicação por meio do qual se reafirma o caráter <strong>de</strong><br />
linguagem da maquiagem.<br />
Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os sentidos produzidos pela maquiagem e pela<br />
pintura corporal, adotei os princípios teóricos da semiótica discursiva para enten<strong>de</strong>r a<br />
maquiagem como um enunciado pintado sobre o rosto e/ou o corpo, <strong>de</strong>finido no tempo<br />
e no espaço e operado na dimensão do discurso em ato. Até mesmo em uma<br />
encenação teatral, a maquiagem acontece no aqui e no agora do tempo da<br />
representação, ainda que ela seja um vetor acumulador (família, profissão, época) para<br />
a ação representada. A maquiagem faz do envelope corporal, um Seu-outro pele, uma<br />
superfície <strong>de</strong> inscrições temporárias que permitem ao sujeito actante encarnado<br />
adquirir diversas hexei corporais e entrar em junção com valores estéticos <strong>de</strong> diversos<br />
grupos socais. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se aproxima <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>terminado grupo, o indivíduo maquiado automaticamente se afasta <strong>de</strong> diversos<br />
outros. Como um palimpsesto a maquiagem permite às pessoas terem diversos
avatares, mostrarem-se ou escon<strong>de</strong>rem-se e provocar efeitos comuns e/ou<br />
surpreen<strong>de</strong>ntes.<br />
209<br />
Esse enunciado fugaz está diretamente ligado ao suporte que recebe as<br />
inscrições. Um suporte complexo, tridimensional, sensível, fenomenológico: um corpo<br />
visível e reflexivo que está exposto a forças e tensões internas e externas. Esse corpo<br />
é um sincretismo actancial: sujeito e objeto, necessários para a realização <strong>de</strong> um<br />
processo semiótico. Esse actante encarnado possui uma carne <strong>de</strong> referência e um<br />
corpo-próprio invólucro/fronteira em constante <strong>de</strong>vir e assume aparências fugazes.<br />
Esse corpo-próprio, como um anverso do Eu, recebe a “fina membrana” que,<br />
simultaneamente, separará e colocará em comunicação o Eu e o mundo social. Se os<br />
avatares do corpo evi<strong>de</strong>nciam as qualida<strong>de</strong>s da função semiótica, como afirma<br />
Fontanille (2004a, p. 124), a maquiagem é um dos principais meios <strong>de</strong> enunciá-los.<br />
O sujeito encarnado a partir do envelope corporal e da intencionalida<strong>de</strong> do<br />
movimento po<strong>de</strong> ser a fonte <strong>de</strong> uma intensida<strong>de</strong> e seguir para o alvo <strong>de</strong>sejado, ou<br />
po<strong>de</strong> inverter a posição e passar a ser o alvo <strong>de</strong> outros meios sociais. Ao tomarem<br />
uma posição, os actantes sujeitos encarnados abrem o campo <strong>de</strong> presença,<br />
constituído a partir da percepção <strong>de</strong> suas matérias corporais, no qual será estabelecido<br />
o percurso das relações juntivas com o objeto <strong>de</strong> valor. O estar maquiado é uma<br />
posição tomada e os valores são os estéticos, o status, o glamour, entre outros. Nesse<br />
campo há uma pressuposição recíproca entre os eixos da intensida<strong>de</strong> e da<br />
extensida<strong>de</strong>, uma forma <strong>de</strong> averiguar as variações tensivas da presença: harmoniosas<br />
e esperadas ou <strong>de</strong>sproporcionais, surpreen<strong>de</strong>ntes e inesperadas ou habituais,<br />
próximas e familiares ou extraordinárias, distantes e estranhas.<br />
Ao <strong>de</strong>formar ou inverter o envelope corporal do sujeito encarnado, ou ainda, ao<br />
projetar o próprio sobre o não próprio, é que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem instala as<br />
condições para a realização do discurso <strong>de</strong> cores e formas do sujeito. Tais operações<br />
po<strong>de</strong>m fazer com que o envelope corporal seja recuado ou visível por meio do reforço<br />
dos seus traços, em prol da enunciação. Po<strong>de</strong> acontecer também uma combinação<br />
entre o recuo e a visibilida<strong>de</strong> do envelope corporal, como é o caso dos Nubas, que<br />
preservam a conexão do envelope e valorizam a presença do corpo por meio das<br />
maquiagens, contudo, quase sempre o rosto está recuado. Essas operações da
<strong>de</strong>breagem conservarão ou comprometerão as proprieda<strong>de</strong>s do envelope.<br />
210<br />
Nas maquiagens sociais a operação mais comum é a <strong>de</strong> projeção do próprio<br />
sobre o não próprio, que po<strong>de</strong> produzir discursos esperados ou provocar surpresas,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> como um indivíduo se apresenta diante <strong>de</strong> hexei corporais distintas,<br />
provocando <strong>de</strong>sse modo tensões afetivas familiares ou tensões afetivas do estranho,<br />
conforme foi visto no capítulo 1.<br />
As operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>formação ou inversão dos envelopes corporais são mais<br />
frequentes nas pinturas artísticas e teatrais, que provocam vertigens ao produzirem<br />
efeitos <strong>de</strong> sentidos estéticos inusitados. É a partir das relações entre os planos da<br />
expressão (cromático, eidético, matérico e topológico) e as estratégias enunciativas<br />
como as <strong>de</strong>breagens que esses efeitos vão sendo elaborados. A sensação ou ilusão<br />
<strong>de</strong> ótica <strong>de</strong> um corpo ausente, nessas pinturas artísticas, libera esse corpo dos<br />
sentidos sociais culturalmente arraigados sobre a pele, <strong>de</strong>ixando-o livre para provocar<br />
outros sentidos.<br />
É preciso também ter consciência das “astúcias da enunciação”, parafraseando<br />
Fiorin (2001), <strong>de</strong> uma maquiagem. Não basta simplesmente caprichar na maquiagem,<br />
o sujeito encarnado po<strong>de</strong> ser o enunciador da própria imagem, mas <strong>de</strong>ve saber se o<br />
que está “dizendo” é realmente o que está querendo “dizer”. E, mesmo que “diga”<br />
exatamente o que quer “dizer”, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá do fazer interpretativo do enunciatário para<br />
avaliar se o que “diz” é verda<strong>de</strong>iro, falso, mentiroso ou secreto. O enunciado do<br />
“enfeite preparado para a noite”, como diz Serres (2001), é entendido como um fazer<br />
persuasivo e interpretativo entre um enunciador e um enunciatário. Ao se maquiar o<br />
sujeito encarnado, além <strong>de</strong> se tornar um ator semiótico com forma i<strong>de</strong>ntificável,<br />
convoca as modalida<strong>de</strong>s veridictórias para que o sujeito encarnado, na sua narrativa,<br />
possa se transformar no que <strong>de</strong>sejar. Essa convocação é importante tanto no cotidiano<br />
quanto nos palcos. De todo modo, caberá aos observadores o julgamento pelo estatuto<br />
veridictório do parecer.<br />
Compreen<strong>de</strong>r que a maquiagem faz parte da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa<br />
<strong>de</strong> um sujeito actante encarnado, do fazer persuasivo que se estabelece entre<br />
enunciador e enunciatário, construído <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma práxis enunciativa, torna-se<br />
fundamental para a “leitura” dos rostos e dos corpos constantemente mutáveis. Kevin
Aucoin mostra isso com as transformações <strong>de</strong> Thelma Aucoin, <strong>de</strong> acordo com as<br />
análises realizadas no segundo capítulo. A práxis é responsável pelo movimento <strong>de</strong><br />
ascensão <strong>de</strong> um discurso figurativo, original ou não, da sua permanência ou não na<br />
memória individual ou coletiva, e que, a qualquer momento, po<strong>de</strong>rá ser resgatado ou<br />
estilizado, conforme foi visto por meio das maquiagens <strong>de</strong> Rita Hayworth (Fig. 26), da<br />
reconvocação por Duda Molinos sobre o rosto suporte <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), e<br />
da atualização do discurso por Aucoin sobre o rosto suporte <strong>de</strong> Julia Roberts (Fig. 28).<br />
O sentimento da falta do novo e do <strong>de</strong>sgaste do antigo, cada vez mais avassalador nos<br />
tempos atuais, diminui o tempo <strong>de</strong> maquiagens com alto grau <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong><br />
aumentar a quantida<strong>de</strong> do uso dos discursos figurativos, coloridos e efêmeros, que se<br />
tornam corriqueiros e antigos rapidamente. Na outra extremida<strong>de</strong>, alguns discursos<br />
“estéreis” não chegam a alcançar longas distâncias.<br />
211<br />
Como objetos estéticos e semióticos, o corpo e a pintura, constantemente em<br />
<strong>de</strong>vir, são apreendidos na competição das gran<strong>de</strong>zas e nas articulações dos modos <strong>de</strong><br />
existência. Desse modo, po<strong>de</strong>m ocorrer revoluções, distorções, remanejamentos e<br />
flutuações semióticas, em cujos movimentos o corpo po<strong>de</strong> estar <strong>de</strong>saparecido,<br />
ofuscado ou entrar em <strong>de</strong>clínio, para que o enunciado pintado apareça, emerja. Ao<br />
apreen<strong>de</strong>r essas obras, os olhos do observador hesitam, ascen<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>scem, vão e<br />
voltam em movimentos lentos, ou sinuosos, ou rápidos, ou retilíneos.<br />
Se os indivíduos contemporâneos lançam ou resgatam maquiagens sociais,<br />
articulando <strong>de</strong> diversos modos a práxis enunciativa da maquiagem, os povos pré-<br />
letrados como os Nuba, ao se pintarem, atualizam a enunciação tradicional <strong>de</strong> seu<br />
grupo. Outra diferença está nos valores das maquiagens: as contemporâneas têm<br />
valor <strong>de</strong> absoluto, sob um regime <strong>de</strong> exclusão e concentração. Em oposição, as<br />
pinturas corporais dos Nubas têm valor <strong>de</strong> universo, uma vez que há a participação <strong>de</strong><br />
muitos indivíduos que entram em conjunção com a beleza estética do corpo. Além das<br />
diferenças entre as práxis e os valores das pinturas contemporâneas e as chamadas<br />
primitivas, é possível compreen<strong>de</strong>r a diferença entre o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong>. Para os<br />
observadores contemporâneos, as pinturas corporais dos Nubas têm um grau <strong>de</strong><br />
figurativida<strong>de</strong> baixo, já as contemporâneas trabalham com todos os níveis <strong>de</strong><br />
figurativida<strong>de</strong>, do abstrato ao ícone. As maquiagens dos Nubas também <strong>de</strong>monstram a
semiótica semissimbólica, a partir das correlações parciais entre os dois planos da<br />
linguagem: conteúdo (faixa etária) vs expressão (categoria cromática).<br />
212<br />
Contudo, é na construção figurativa das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos atores teatrais que a<br />
maquiagem <strong>de</strong>monstra ser fundamental. Do mesmo modo que na vida, a maquiagem<br />
teatral tem importância estratégica, como pensa Pavis (2003). Na vida cotidiana, a<br />
maquiagem é um vetor social, no palco, ele é diversificado: acumulador (raça,<br />
profissão, famílias); conector (oposições <strong>de</strong> rostos); secionante (mudanças <strong>de</strong><br />
aparência). O ponto em comum entre as maquiagens sociais cotidianas e a teatral é<br />
que são ambas vetores embreantes, ao estabelecerem a relação com o outro, seja<br />
esse outro o grupo social e suas hexei corporais ou os apreciadores dos espetáculos<br />
teatrais.<br />
No dia a dia é por meio da <strong>de</strong>breagem que a maquiagem inscrita na superfície<br />
da pele (envelope corporal <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição) coloca em contato ou<br />
separa os atores semióticos dos grupos sociais. No teatro, ela também funciona como<br />
fronteira, contudo, separa o atuante e contata a personagem com o público. A<br />
maquiagem teatral possui maior autonomia e po<strong>de</strong> utilizar <strong>de</strong> todos os recursos e<br />
resgatar discursos coloridos potencializados pelo uso; po<strong>de</strong> criar enunciados originais;<br />
po<strong>de</strong> virtualizar o rosto do atuante e/ou potencializá-lo no mesmo espaço-tempo da<br />
encenação, como ocorre no espetáculo O Carrasco. Nesse espetáculo o rosto do<br />
atuante Marcus Pina permanece virtualizado, o que gera uma revolução semiótica: o<br />
aparecimento do rosto do Carrasco (atualizado → realizado) e o <strong>de</strong>saparecimento do<br />
rosto <strong>de</strong> Marcus Pina (potencializado → virtualizado). Os rostos dos outros atuantes<br />
são potencializados durante os entreatos, nos quais acontece uma flutuação semiótica<br />
entre os rostos enunciados das personagens Jericó, Comandante, Juiz, Mulher,<br />
General e Morte (atualizado → realizado) e os rostos dos atuantes Renata Collaço e<br />
Stéphane Brodt (realizado → potencializado).<br />
O semissimbolismo também está presente nas maquiagens <strong>de</strong>sse espetáculo,<br />
uma vez que as cores quentes (vermelhos) do plano da expressão da maquiagem do<br />
Carrasco estão em oposição às cores frias (brancos, pele clara) do grupo <strong>de</strong><br />
personagens, e correspon<strong>de</strong>m à perpetuida<strong>de</strong> do Carrasco em oposição à efemerida<strong>de</strong><br />
do grupo <strong>de</strong> personagens, no plano do conteúdo. Essas características enunciativas
estabelecem relações com as outras linguagens que formam o espetáculo teatral,<br />
para constituir a semiótica sincrética da encenação.<br />
213<br />
Ao sentido estético da maquiagem, seja ela artística, social ou teatral, se<br />
sobrepõem ou acrescentam diversos outros efeitos <strong>de</strong> sentido. Efeitos que só po<strong>de</strong>m<br />
surgir ou serem vividos hic et nunc, numa experiência <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> entre<br />
participantes (enunciadores e enunciatários), principalmente pela característica<br />
efêmera e pela relação com o seu suporte sensível: o corpo humano, ancoradouro da<br />
presença humana no mundo. Por essas características do corpo, a maquiagem<br />
ressalta a emergência do sentido que é apreendido simultaneamente como<br />
configuração inteligível e sensível. Por meio das pinturas fugazes o ser humano po<strong>de</strong><br />
estar em eterno <strong>de</strong>vir em busca <strong>de</strong> sentidos, seja no espetáculo do homem no mundo,<br />
seja nos simulacros dos espetáculos teatrais. Ao término dos aplausos, diante dos<br />
espelhos nos camarins, aos poucos, os atuantes reassumem a imagem ícone dos<br />
atores sociais.<br />
Acabou a peça. Cometeu-se o espetáculo. Lentamente<br />
Esvazia-se o teatro, (...). Nos camarins<br />
Os ágeis ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> mímica improvisada (...)<br />
Lavam suor e maquiagem (BRECHT 2000, p. 253).
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__________. Razão e poética do sentido. São Paulo: EDUSP, 2006.<br />
222
ANEXO<br />
O CARRASCO<br />
Adaptação <strong>de</strong> Ana Teixeira<br />
Quadro 1<br />
223<br />
Sentado na penumbra da taverna, com seus trajes vermelhos, o Carrasco está<br />
imóvel e silencioso. No outro lado da mesa, Jericó, o ladrão e a velha Comandante.<br />
A Comandante: Veja, o Carrasco está aqui.<br />
Jericó: Provavelmente teremos uma execução amanhã.<br />
A Comandante: O machado e o vinho sempre foram bons parceiros. - Ao<br />
carrasco - Salve, Mão Destra da Providência!<br />
Jericó: Ao carrasco, provocativo - A bebida aqui é boa, não é, executor <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s obras? Você <strong>de</strong>ve saber que o patrão foi buscar um <strong>de</strong>do <strong>de</strong> ladrão na forca<br />
para pendurar em seu tonel... Nada <strong>de</strong>ixa o vinho com um gosto tão bom quanto um<br />
<strong>de</strong>do <strong>de</strong> enforcado!<br />
A Comandante: Cuidado Jericó, tudo o que vem do cadafalso tem um estranho<br />
po<strong>de</strong>r... um po<strong>de</strong>r extraordinário.<br />
Jericó: É claro que o cadafalso tem po<strong>de</strong>res... e, sem dúvida, o machado do
carrasco e coisas do gênero tem proprieda<strong>de</strong>s particulares. É por isso que ninguém<br />
ousa tocar nos objetos que ele segurou. Mas isso não é razão para se falar baixo cada<br />
vez que se trata <strong>de</strong>le! - um tempo - Sabe que ele po<strong>de</strong> mesmo ser amigo daquele que<br />
executa?<br />
A Comandante: Um amigo? Impossível!<br />
224<br />
Jericó: Sim, isso eu já pu<strong>de</strong> constatar com meus próprios olhos. Vi quando<br />
chegaram abraçados. Eles estavam bêbados, tão bêbados que mal podiam andar em<br />
direção ao lugar do suplício. Embora não houvesse muita diferença entre os dois o<br />
carrasco parecia mais embriagado. “Vlam!” ele fez cortando a cabeça do outro.<br />
A Comandante: A Comandante: O diabo <strong>de</strong>ve estar zombando <strong>de</strong> você por<br />
contar essas besteiras! Quando digo que existe ali um po<strong>de</strong>r, é a mais pura verda<strong>de</strong>,<br />
tão verda<strong>de</strong>iro quanto o fato <strong>de</strong> estarmos aqui falando. Lembra-se <strong>de</strong> Kristen?<br />
Jericó: Aquele menino que caía no chão babando e tremendo...<br />
A Comandante: Porque estava possuído! Pois escute bem o que vou te dizer,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sua mãe o levou a uma execução e lhe <strong>de</strong>u um pouco do sangue do morto<br />
para beber, ele ficou curado e nunca mais caiu. Mas precisa ser sangue <strong>de</strong><br />
assassino... e raspado da espada do carrasco, senão, não serve para nada. - ao<br />
Carrasco - Não é assim, mestre?... Por minha fé, o carrasco tem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cura, ele<br />
que está tão próximo do Demônio! Quando passo diante da colina da forca à noite,<br />
escuto barulhos <strong>de</strong> matar <strong>de</strong> medo. Sei muito bem <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os boticários e outros<br />
feiticeiros pagãos vão buscar as abominações que lhes servem para preparar as suas<br />
poções. Alguns cadáveres, dissecados até os ossos, até per<strong>de</strong>m a forma humana...<br />
Não é só os ratos e os abutres que vivem <strong>de</strong> carcaças, nós fazemos o mesmo!...<br />
Jericó: Pois é.... não sei. Po<strong>de</strong> ser que no cadafalso aconteçam coisas<br />
estranhas. Mas para mim, o carrasco é um homem como os outros. Vi um que nem
conseguiu executar a vítima, pois se apaixonou por ela bem no lugar do suplício.<br />
A Comandante: Como assim?<br />
Jericó: Ninguém conhecia a acusada. Ela não era da cida<strong>de</strong>, mas era linda <strong>de</strong><br />
se ver. Olhos doces, cheios <strong>de</strong> um terror mortal e úmidos como os <strong>de</strong> uma gazela.<br />
Eram realmente perigosos. Não era <strong>de</strong> se espantar que ele se apaixonasse aquele<br />
ponto. Estava lívido e suas mãos tremiam. Ele abandonou o machado, aproximou-se<br />
da vítima e esten<strong>de</strong>u-lhe a mão. Então, os olhos da mulher se encheram <strong>de</strong> lágrimas...<br />
A Comandante: Mas por Deus, como tudo isso acabou?<br />
225<br />
Jericó: Ele avançou em direção aos juizes, <strong>de</strong>clarando que se oferecia a casar-<br />
se com ela. Ora, vocês sabem muito bem que nesse caso é permitido perdoar. Eles se<br />
casaram e a mulher foi marcada a ferro quente, como o marido, pois assim é a lei.<br />
Viveram como as pessoas normais. Várias vezes os vi juntos quando ela<br />
esperava um filho. Continuava sedutora, embora, como esposa do Carrasco, trouxesse<br />
na fronte aquela marca maldita. No fim da gravi<strong>de</strong>z, tentaram encontrar uma parteira.<br />
Mas ninguém queria fazer o parto da mulher do carrasco. É bem provável que tenha<br />
sido forçada a parir sozinha, pois o marido não estava lá no momento necessário. Foi<br />
muito triste, ninguém sabe exatamente o que aconteceu, mas ela confessou diante do<br />
tribunal que tivera <strong>de</strong> estrangular o filho. Contou que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> recobrar forças para<br />
cuidar da criança e enxugar o sangue do seu rosto, viu que trazia na fronte o sinal do<br />
carrasco. Disse ainda que amava <strong>de</strong>mais o filho para se resignar a vê-lo viver nesse<br />
mundo com aquela marca. Então, ela foi con<strong>de</strong>nada a ser enterrada viva.<br />
O próprio marido teve <strong>de</strong> sepultá-la. Eu assisti a execução. Ele olhava o corpo<br />
da mulher <strong>de</strong>saparecer sob a terra e <strong>de</strong>morou o quanto pô<strong>de</strong> para cobrir a cabeça. Ela<br />
não pronunciou uma palavra e olhava o tempo todo para ele. Quando, enfim, chegou a<br />
hora <strong>de</strong> cobrir o rosto, ele <strong>de</strong>sviou o olhar.<br />
Contaram que na mesma noite ele voltou para tentar <strong>de</strong>senterrá-la, esperando<br />
que ainda estivesse viva... Partiu pouco tempo <strong>de</strong>pois e ninguém mais soube <strong>de</strong> seu
<strong>de</strong>stino.<br />
(um tempo)<br />
Mas agora, vamos beber e não falemos mais nessas coisas! Por aqui o vinho!<br />
Mais vinho! Mas que seja bem forte! É melhor aproveitar a vida enquanto ainda há<br />
tempo! Este é um lugar <strong>de</strong> Satã, mas se encontra aqui a melhor bebida. Vamos<br />
taberneiro, me faz jorrar o vinho da pare<strong>de</strong>!<br />
226<br />
A Comandante: Mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> contar tudo isso, você ainda afirma que o<br />
carrasco é um homem como os outros?<br />
Jericó : Afirmo! Com sangue nas veias e coração no peito.<br />
A Comandante: Então, porque não vai se sentar perto <strong>de</strong>le?<br />
Jericó : Nunca sabemos o que o diabo nos reserva...<br />
A Comandante: Conheço um homem que não tinha medo <strong>de</strong> se aproximar do<br />
carrasco! Lembra-se <strong>de</strong> Lasse, o ladrão...<br />
Jericó: Naturalmente, ele também é um filho <strong>de</strong> Satã. Rouba no jogo, aquele<br />
abominável maneta que não consegue segurar nada nas mãos.<br />
A Comandante: Roubar? Ele não precisa trapacear para embolsar seus<br />
miseráveis níqueis.<br />
Jericó: Você não sabe <strong>de</strong> nada!<br />
A Comandante: Ah não!?<br />
Jericó: Ele usa os mesmos truques que os outros ladrões, e quando o pegarem,<br />
o carrasco o pren<strong>de</strong>rá e ele irá para a forca!
227<br />
A Comandante: Nenhuma forca o pegará, em nome do Diabo! Lembro quando<br />
arrancaram seus <strong>de</strong>dos e os pregaram um a um no pelourinho. Ele ria olhando a<br />
multidão...<br />
Jericó: Ah é? Mas quando eles começaram a arrancar as mãos, aí a coisa<br />
mudou, não foi? Ele começou a rir menos!<br />
A Comandante: É verda<strong>de</strong> mas ele conta com forças po<strong>de</strong>rorsas para ter<br />
sobrevivido tanto tempo assim... Você sabe que ele tem uma Mandrágora?<br />
Jericó : Não vê que são só histórias?<br />
A Comandante: Garanto que não são só histórias! Ele a carrega no peito e a<br />
coisa tem uma forma humana.<br />
Jericó: Como pô<strong>de</strong> consegui-la?!<br />
A Comandante: Na colina do cadafalso, on<strong>de</strong> enterram os con<strong>de</strong>nados quando o<br />
vento os <strong>de</strong>rruba ... Eu mesma o vi quando foi arrancá-la! Foi horrível, os mortos<br />
choravam e se <strong>de</strong>batiam como os loucos. Eles se jogaram sobre Lasse enquanto<br />
procurava. Nesse momento ele viu a flor da Mandrágora no pé da forca, on<strong>de</strong> ainda<br />
estava pendurado um corpo. Lasse tirou com seus cotos um pouco <strong>de</strong> terra ali ao<br />
redor, <strong>de</strong>itou <strong>de</strong> bruços e pôs-se a arrancá-la com os <strong>de</strong>ntes! Mas a coisa começou a<br />
gritar até gelar o sangue... E quando conseguiu arrancá-la ouviam-se, ali <strong>de</strong>baixo da<br />
terra, uivos e mugidos! Era como se o inferno tivesse vazado sobre a terra! “Ela é<br />
minha! É minha! Agora tenho bens a legar, em nome do <strong>de</strong>mônio!”<br />
Quadro 2<br />
Um velho juiz está sentado, adormecido, numa ca<strong>de</strong>ira. Ele segura um gran<strong>de</strong><br />
livro, aberto sobre seus joelhos. O carrasco está na mesma posição que no primeiro<br />
quadro, imóvel e silencioso. Sentada no público, uma mulher espera.
228<br />
Juiz: - Acordando, retoma a leitura. – A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cultura é uma falsida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>monstrada pela ciência e conseguintemente fora <strong>de</strong> discussão. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
costumes, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritura, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>...i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>...<br />
sempre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>... – Um tempo. Olhando para o Carrasco – Respon<strong>de</strong> meu<br />
Carrasco, respon<strong>de</strong>. Será que estou aqui para <strong>de</strong>scobrir o mal o a inocência? Quem<br />
sou eu? Que Deus seja testemunha sempre <strong>de</strong>sejei tornar-me juiz... E para exercer<br />
minha função, foi preciso que me obstinasse, às custas <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> vícios. Mas o<br />
que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>finir um juiz é a mais rigorosa inteligência. O coração nos leva à<br />
perdição, nos <strong>de</strong>ixa escravos <strong>de</strong> uma serena langui<strong>de</strong>z. Na verda<strong>de</strong> não se trata só <strong>de</strong><br />
inteligência, mas também <strong>de</strong> – hesita – cruelda<strong>de</strong>, e além <strong>de</strong>ssa cruelda<strong>de</strong>, um<br />
caminhar hábil e vigoroso em direção à ausência. Em direção à morte... Deus? Estou<br />
morto, rígido. Rigi<strong>de</strong>z solene! Imobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva. On<strong>de</strong> estão minhas pernas? On<strong>de</strong><br />
estão meus braços? O que fazem minhas mãos <strong>de</strong>baixo das pregas frias <strong>de</strong> meus<br />
trajes? Elas se tornaram membros enfermos, asas cortadas, capazes somente <strong>de</strong><br />
esboçar gestos patéticos.. Mas ainda tenho você Carrasco! Magistral amontoado <strong>de</strong><br />
carne! Espelho que me glorifica! Nunca teria tua força nem tua habilida<strong>de</strong>. Aliás, o que<br />
eu faria com tanta força e habilida<strong>de</strong>? Meu braço... meu enorme braço, pesado <strong>de</strong>mais<br />
para meus ombros. Tu és meu corpo caminhando a meu lado... Sem ti eu não seria<br />
nada. - percebendo a presença <strong>de</strong> alguém na sala - Quem está ai?<br />
Mulher: Marta, Marta Lagerlöff.<br />
Juiz: Já chegou... Des<strong>de</strong> quando está aqui?<br />
Mulher: Cheguei agora, senhor.<br />
Juiz: Trate-me <strong>de</strong> senhor Juiz. Aproxime-se. – a mulher se aproxima - Você<br />
parece bem jovem. Não é menor?<br />
Mulher: Não, não senhor Juiz.<br />
Juiz: Bem, o que você fez?
Mulher: Roubei, senhor Juiz..<br />
Juiz: Então, você é uma ladra?!<br />
Mulher: Sim, senhor Juiz.<br />
Juiz: Não!<br />
Mulher: Não?<br />
Juiz: Isso é para <strong>de</strong>pois. A confissão <strong>de</strong>ve chegar na hora certa. Negue!<br />
Mulher: Para seu espancada?<br />
229<br />
Juiz: Justamente, para ser espancada! Primeiro você <strong>de</strong>ve negar, <strong>de</strong>pois<br />
confessar e se arrepen<strong>de</strong>r. Escute, não é con<strong>de</strong>nar o que mais <strong>de</strong>sejo, é julgar. É<br />
preciso que você seja uma ladra exemplar se quiser que eu seja um juiz exemplar.<br />
Estou sendo claro?<br />
Mulher: Sim , senhor Juiz.<br />
Juiz: Bom, quanto aos golpes, reconheço que o Carrasco bate com força.... mas<br />
ele também está fazendo o seu trabalho. Estamos ligados: você, ele e eu. Se ele não<br />
batesse como eu po<strong>de</strong>ria impedi-lo <strong>de</strong> bater? Portanto ele <strong>de</strong>ve bater para que eu<br />
intervenha e comprove minha autorida<strong>de</strong>. E você <strong>de</strong>ve negar para que ele bata! Ainda<br />
estou sendo claro?<br />
Mulher: Sim, senhor Juiz.<br />
Juiz: Muito bem. Então, vamos retomar: Você roubou?
Mulher: Não, senhor Juiz, jamais...<br />
230<br />
Juiz: Jamais? Foi surpreendida! Você esquece que uma re<strong>de</strong> sutil e sólida,<br />
meus tiras <strong>de</strong> aço, controlam todos os seus gestos? Insetos <strong>de</strong> olhos vivos, eles te<br />
espreitam e prisioneira te trazem aqui para que eu seja o juiz <strong>de</strong> seus atos! Ofício<br />
sublime! É <strong>de</strong> mim que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> o equilíbrio. O mundo é uma maçã, eu a corto em<br />
duas meta<strong>de</strong>s: os bons e os maus. E você está do lado dos maus. Sob o olhar do<br />
mundo, limparei a podridão. Reis dos Infernos, os que peso estão mortos, como eu.<br />
Você está morta e vou te fazer confessar.<br />
Mulher: O senhor me dá medo senhor Juiz.<br />
Juiz: Cale-se! Ladra, ca<strong>de</strong>la, Minos te fala! Minos te pesa! Nas profun<strong>de</strong>zas do<br />
Inferno, separo os humanos que por lá se aventuram, uma parte nas chamas, outra no<br />
tédio. Eu abarroto os Infernos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados, eu abarroto as prisões. Prisões,<br />
calabouços, lugares abençoados on<strong>de</strong> o mal é impossível pois são a encruzilhada <strong>de</strong><br />
toda a maldição do mundo. E não se po<strong>de</strong> cometer o mal no mal. E vocês vivem no<br />
mal, na ausência <strong>de</strong> remorsos. É o Diabo que brinca! É assim que o reconhecemos. É<br />
o gran<strong>de</strong> ator.. Há perigos por todos os lados. Todos correm perigo. Mas estamos<br />
prontos. Tenho encontro com vários magistrados, estamos preparando novas leis, uma<br />
revisão do código... On<strong>de</strong> está meu Código? Ele me esclarece, me mantém acordado.<br />
– Ele tosse. Se pare. Cuspe - On<strong>de</strong> eu estava mesmo? Ah, já me lembro. Ia ser Minos,<br />
meu cão latia. Cérbero? Cérbero? Você se lembra? Como você era cruel, mau! Bom! E<br />
eu, impiedoso. Enchíamos os infernos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados, enchíamos as prisões... És<br />
assustador Carrasco! E a visão <strong>de</strong> novas vitimas te faz parecer mais assustador ainda.<br />
Mostra tuas presas... Terríveis! Você é meu complemento perfeito. – Ele comece a<br />
adormecer. A luz vai diminuindo. Um tempo. tocando sua peruca – E você também,<br />
minha coroa. Saiba que se meus olhos se fecharem pela última vez, o que verei por<br />
<strong>de</strong>trás <strong>de</strong> minhas pálpebras, é tu, minha linda juba branca. – A luz continua abaixando.<br />
um tempo – A or<strong>de</strong>m do mundo está tão tumultuada que tudo é permitido... - ele
adormece -<br />
Uma função e uma função. Não é uma maneira <strong>de</strong> ser. Juiz é uma maneira <strong>de</strong><br />
ser. É um encargo, um fardo... A função vai à merda..<br />
Quadro 3<br />
231<br />
O General está <strong>de</strong> pé sobre a mesa. O carrasco continua na mesma posição,<br />
imóvel e silencioso. Ouve-se o canto da Morte. O General cai bruscamente no chão,<br />
fuzilado.<br />
A Morte: Todos os homens são mortais... e a vida é uma breve prisão on<strong>de</strong> eles<br />
se exaltam e se afligem. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>saparecem, só para mostrar como são frágeis os<br />
mortais. Nem o santo nem o guerreiro são poupados. A salubre e <strong>de</strong>sprezível carne<br />
consagra a promessa: o sumiço no meio do nada.<br />
General - Quem é você?<br />
A Morte: Sou a Morte.<br />
General: Finalmente chegou. Com tanto tempo <strong>de</strong> atraso. – um tempo - Você<br />
veio me buscar?<br />
A Morte: Tenho andado com você há muito tempo...<br />
General : Eu sei.<br />
A Morte: Você está com medo ?<br />
General : Minha carne está com medo, mas eu não... – um tempo - Os ventos...
os ventos se irritam... On<strong>de</strong> estamos ?<br />
A Morte : Você chegou. Você está em meu continente infinito.<br />
General: Ninguém te escapa?<br />
A Morte: Nada me escapa. Ninguém me escapa.<br />
General: Mas por que agora?<br />
A Morte: Você não terá a resposta.<br />
232<br />
General: Está tudo silencioso... mas parece que tudo se move. A calma é tão<br />
gran<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos dizer que tudo se move à uma velocida<strong>de</strong> terrível... Aon<strong>de</strong> está a<br />
legião <strong>de</strong> anjos que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>rrotar meus inimigos? – um tempo - A revolta acabou?<br />
Eles continuam? O que está acontecendo?<br />
A Morte: A cida<strong>de</strong> está cheia <strong>de</strong> cadáveres. As mulheres são as mais exaltadas.<br />
Elas cantam a matança e a pilhagem. Os seus soldados morrem beijando a ban<strong>de</strong>ira.<br />
General: A guerra era meu Deus. Deitei-me na lama e sequei-me ao ar do crime.<br />
Eu amava a or<strong>de</strong>m, era o meu sonho. Um mundo on<strong>de</strong> tudo seria silencioso e imóvel e<br />
cada coisa em seu lugar. - um tempo – Agora estou no fundo do mundo.<br />
A Morte: Em pouco tempo você estará <strong>de</strong> volta.<br />
General : Como??...<br />
A Morte: Em pouco tempo você estará <strong>de</strong> volta.<br />
General : Você me <strong>de</strong>ixaria voltar...
233<br />
A Morte: Todos pe<strong>de</strong>m isso, mas eu não faço concessões. No seu caso não<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim... Você é como um lago on<strong>de</strong> o povo vem sempre se mirar.<br />
General: E quando eles se <strong>de</strong>bruçam <strong>de</strong>mais, caem e se afogam...<br />
A Morte: Nunca existirá movimento bastante po<strong>de</strong>roso para <strong>de</strong>struir a sua<br />
imagem. O povo é capaz <strong>de</strong> sacrificá-lo, mas graças ao vício e a miséria você retomará<br />
o seu lugar.<br />
General: Impossível, estou morto.<br />
A Morte: Você é mais verda<strong>de</strong>iro que quando vivo... É <strong>de</strong> você que se dizia “Ele<br />
é forte como a Morte”. Escute!...Sua imagem, como o seu nome, já se repercute ao<br />
infinito.<br />
General: Minha imagem?...<br />
A Morte: Está inscrita, gravada, imposta pelo medo.<br />
General: Em todos os lugares?<br />
A Morte: Você está nos selos, nas cédulas, nos carimbos dos comissariados.<br />
General: Estou na guerra? Nos <strong>de</strong>ntes dos soldados?<br />
A Morte: Em toda parte.<br />
General: Na mão dos estivadores? Nas brinca<strong>de</strong>iras das crianças?<br />
A Morte: Sim...
General: Estou nas prisões? Nas rugas dos velhos?<br />
234<br />
A Morte: Para você tudo está escrito com letras maiúsculas. Os homens<br />
tremeram tanto que sua imagem começa a fazê-los duvidar <strong>de</strong>les mesmos. A sua<br />
imagem está inundando o mundo.<br />
General: Agora eu entendo... General! Homem <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> parada, eis-me<br />
aqui em minha pura aparência. Se atravessei guerras sem morrer, se atravessei as<br />
misérias sem morrer, se atravessei todos esses anos, foi por essa <strong>de</strong>scida ao encontro<br />
da glória. Estou morto e isso serve à minha glória.<br />
A Morte: O senhor é um general morto, mas eloqüente.<br />
General: Porque morto! Sou somente a imagem daquele que fui. Agora estou<br />
nos braços da nação! Construi um império para que, em troca, o império...<br />
A Morte: Construa-te um sepulcro.<br />
General: E por que não? Tenho meu sepulcro on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rei velar toda a minha<br />
morte. O povo abaixará a cabeça e escon<strong>de</strong>rá os olhos, pois serei general para a<br />
eternida<strong>de</strong>! Não é por min, mas pela minha imagem, e a minha imagem pela sua<br />
imagem, e assim por diante, ate o infinito!<br />
Estou aqui, face a face com a morte, mas não tenho medo porque sei que<br />
voltarei. Voltarei cem vezes se for preciso. Mas voltarei sempre. Sangrarei luz. Sou um<br />
carvão ar<strong>de</strong>nte. Queimo vivo. Escutem, rebel<strong>de</strong>s!! Cavalgarei sobre minha ira. Voarei<br />
sobre cada cida<strong>de</strong>, cada vilarejo, ninguém escapara ao meu olhar! Eu me jogarei sobre<br />
seus ombros como um lobo e rasgarei suas nucas! A po<strong>de</strong>rosa silhueta do Carrasco<br />
me guiará! Salve Carrasco! O sangue é a cor do homem. Vida longa a nós dois que<br />
poremos or<strong>de</strong>m neste mundo! Esfolaremos todos os traidores! Seremos sempre<br />
vitoriosos... O banho <strong>de</strong> aço da guerra é indispensável. E se não encontrarmos crimes
oubaremos os crimes do céu! Arrancaremos os crimes dos Deuses, seus estupros,<br />
seus incêndios, seus incestos, suas mentiras, suas matanças! A guerra é uma orgia do<br />
trovão!<br />
235<br />
Meus soldados avançarão, aparecerão como <strong>de</strong>uses! Seus fuzis, encerados e<br />
lustrados, com a impiedosa baioneta <strong>de</strong> aço.... Soldados! Os inimigos nos esperam e<br />
são homens que vocês <strong>de</strong>verão <strong>de</strong>sventrar, não ratos. E num lapso <strong>de</strong> tempo, no<br />
corpo a corpo olhem bem para eles e <strong>de</strong>scubram a humanida<strong>de</strong> que existe neles. Se<br />
não vocês matarão ratos e só terão feito o amor e a guerra com ratos. Quero a guerra,<br />
o amor e as tripas ao sol! Quero, costurados nos seus forros <strong>de</strong> suas fardas, imagens<br />
<strong>de</strong> garotas peladas e <strong>de</strong> Virgens Marias. Quero que enviem às suas famílias medalhas<br />
e relógios manchados <strong>de</strong> sangue coagulado e mesmo <strong>de</strong> esperma. Degolem meus<br />
filhos! Que eles babem sangue! Que eles sangrem escarro! Que eles suem por todos<br />
os buracos! A morte está nas suas costas. Sua foice brilha quando ela a levanta por<br />
cima <strong>de</strong> suas cabeças. Estão prontos? Todos para o cemitério!<br />
Quadro 4<br />
O carrasco: Eu sou o carrasco!...Des<strong>de</strong> o início dos tempos exerço o meu ofício<br />
e não parece que meu tempo já tenha acabado. Homens nascem e <strong>de</strong>saparecem mas<br />
eu permaneço e, coberto <strong>de</strong> sangue, vejo-os passar. Eu, o único que nunca envelhece.<br />
Quando, pela primeira vez, vocês dirigiram os olhos ao céu em busca <strong>de</strong> Deus,<br />
dilacerei um <strong>de</strong> seus irmãos e o ofereci em sacrifício. A partir <strong>de</strong>sse momento, vários<br />
foram aqueles que sacrifiquei aos <strong>de</strong>uses e aos diabos, ao céu e ao abismo, culpados e<br />
inocentes em legiões incalculáveis.<br />
Exterminei da terra povos inteiros, saqueei e <strong>de</strong>vastei reinos, flagelei até o<br />
sangue torrentes <strong>de</strong> homens, mergulhando a vida humana nas sombras da noite. A<br />
marca do crime incrustrou-se em minha fronte. Estou con<strong>de</strong>nado a lhes servir. Tudo o<br />
que vocês me pediram, eu fiz e fico à espera <strong>de</strong> que novas gerações me chamem com
sua voz jovem e impaciente. Pesa sobre mim o sangue dos milênios. Gritam em mim<br />
vozes que ninguém po<strong>de</strong> imaginar. Por que minha alma maldita <strong>de</strong>ve sofrer tudo isso?<br />
Por que se <strong>de</strong>scarrega sobre mim a soma <strong>de</strong> todos os pecados? Quem me dará o<br />
repouso da morte?<br />
Na época em que ainda havia um Deus, <strong>de</strong>cidi um dia seguir em sua direção.<br />
Lembro que era o dia em que eu velava um con<strong>de</strong>nado que dizia ser o Cristo dos<br />
Homens. Deixei a terra e caminhei nem sei por quanto tempo. Achei Deus, gran<strong>de</strong> e<br />
po<strong>de</strong>roso na imensidão celeste.<br />
espaço.<br />
236<br />
Mas ele não me via, estava imóvel e como que petrificado, o olhar perdido no<br />
Eu falava e falava sem parar, mas seu rosto duro e impassível não esboçou um<br />
traço sequer. Parecia talhado em pedra. Seus olhos inchados, vazios como o <strong>de</strong>serto,<br />
fixavam sempre o espaço. Fui tomado <strong>de</strong> assombro e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sespero acima <strong>de</strong><br />
minhas forças. Sozinho no silêncio, sentia o vento da eternida<strong>de</strong> me congelar... Não<br />
havia nada a fazer, ninguém com quem falar. Nada.<br />
O Deus <strong>de</strong> vocês, vocês o petrificaram! Está morto há muito tempo! Vocês não<br />
escutam seu silêncio entre nossos gritos? Loucos que se massacram ao infinito!<br />
Como ele po<strong>de</strong>ria ter <strong>de</strong>sejado tudo o que está acontecendo agora? Ele se<br />
<strong>de</strong>compõe como um leproso em seu trono e o vento sinistro da eternida<strong>de</strong> dissemina<br />
seu pó nos <strong>de</strong>sertos celestes.<br />
Entendi por que vocês me chamavam! Eu sou o Cristo dos homens, com a<br />
marca do carrasco na fronte! Eu sigo meu caminho <strong>de</strong> guerra através do mundo e todo<br />
dia eu os salvo no sangue! E eu, ninguém crucifica! Aspiro ao sacrifício da morte. Mas<br />
sei que esse momento nunca virá. Enquanto vocês existirem, minha cruz jamais será<br />
erguida<br />
A Morte: Você sabe que eu te espero! Te espero quando você volta abatido e<br />
manchado <strong>de</strong> sangue. Você <strong>de</strong>ita a cabeça em meus joelhos, beijo tua fronte ar<strong>de</strong>nte e<br />
enxugo o sangue da tua mão. Você sabe que sempre te espero!