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tese final Monica 20.. - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

INSTITUTO DE LETRAS<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS<br />

DOUTORADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS<br />

MÔNICA FERREIRA MAGALHÃES<br />

MAQUIAGEM E PINTURA CORPORAL: uma análise semiótica<br />

NITERÓI<br />

2010


Maquiagem e pintura corporal: uma análise semiótica<br />

por<br />

Mônica Ferreira Magalhães<br />

Tese apresentada à banca examinadora do<br />

Doutorado em Estudos Linguísticos como<br />

requisito parcial para obtenção do grau <strong>de</strong><br />

Doutor. Área <strong>de</strong> concentração: Discurso e<br />

Interação.<br />

Orientadora: Profª Drª Lucia Teixeira<br />

Niterói<br />

2010


Ficha Catalográfica elaborada pela <strong>Biblioteca</strong> Central do Gragoatá<br />

M188 Magalhães, Mônica Ferreira.<br />

Maquiagem e pintura corporal: uma análise<br />

semiótica / Mônica Ferreira Magalhães. – 2010.<br />

236 f. ; il.<br />

Orientador: Lucia Teixeira.<br />

Tese (Doutorado) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

Fluminense, Instituto <strong>de</strong> Letras, 2010.<br />

Bibliografia: f. 214-222.<br />

1. Linguagem corporal. 2. Semiótica. 3. Teatro. I.<br />

Teixeira, Lúcia. II. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />

Instituto <strong>de</strong> Letras. III. Título.<br />

1. 371.010981<br />

CDD 792


Mônica Ferreira Magalhães<br />

MAQUIAGEM E PINTURA CORPORAL: uma análise semiótica<br />

Banca Examinadora<br />

Tese apresentada à banca examinadora<br />

do Doutorado em Estudos Linguísticos<br />

como requisito parcial para obtenção do<br />

grau <strong>de</strong> Doutor. Área <strong>de</strong> concentração:<br />

Discurso e Interação.<br />

______________________________________________________________<br />

Profª. Drª Lucia Teixeira (orientadora – UFF)<br />

______________________________________________________________<br />

Profª. Drª Silvia Maria <strong>de</strong> Sousa (UFF)<br />

______________________________________________________________<br />

Profª. Drª Solange Coelho Vereza (UFF)<br />

______________________________________________________________<br />

Profª. Drª Regina Souza Gomes (UFRJ)<br />

______________________________________________________________<br />

Prof. Dr. Luciano Pires Maia (UNIRIO)<br />

______________________________________________________________<br />

Profª. Drª Lucia Helena <strong>de</strong> Freitas (UNIRIO - suplente)<br />

______________________________________________________________<br />

Prof. Dr. Guilherme Néry Atem (UFF – suplente)


Para Eduardo Maya que acompanhou letra por letra, palavra por<br />

palavra... Fiel escu<strong>de</strong>iro, gran<strong>de</strong> amor!


AGRADECIMENTOS<br />

Meus sinceros agra<strong>de</strong>cimentos a Lucia Teixeira que me permitiu frequentar as<br />

minhas primeiras aulas <strong>de</strong> semiótica, ainda como ouvinte, e, generosamente, me<br />

apresentou a teoria que fundamentou a presente <strong>tese</strong>. Agra<strong>de</strong>ço todos os<br />

empréstimos, todas as sugestões e todos os comentários que eram sempre<br />

aguardados ansiosamente.<br />

Agra<strong>de</strong>ço a Maria Augusta Babo que com toda <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e generosida<strong>de</strong><br />

incluiu a semiótica do corpo em sua palestra sobre a assinatura na UFRJ (2009), além<br />

<strong>de</strong> me oferecer uma cópia da Revista <strong>de</strong> Comunicação e Linguagem.<br />

Ao grupo Amok teatro, em especial, a Ana Teixeira que, além <strong>de</strong> ter oferecido<br />

um espetáculo sensível e primoroso, cujas maquiagens fazem parte do corpus <strong>de</strong><br />

análise neste trabalho, sempre aten<strong>de</strong>u prontamente a todas as minhas solicitações,<br />

facilitando o acesso às informações. Também agra<strong>de</strong>ço ao Marcus Pina pela<br />

colaboração à minha pesquisa. A Jadranka Andjelick pelas indicações e consultas.<br />

Às professoras Renata Mancini e Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello pela leitura<br />

atenta e pelas sugestões no exame <strong>de</strong> qualificação.<br />

Ao SEDI, grupo <strong>de</strong> pesquisa em Semiótica e Discurso, em especial, Silvia Maria<br />

<strong>de</strong> Souza que, além da sugestão <strong>de</strong> leitura, me emprestou o Razões e Sensibilida<strong>de</strong>s.<br />

Ao Ernani Maleta que ao me convidar para assistir ao belo Circo Místico do Voz<br />

& Companhia, me refrescou a memória com os poemas <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima.<br />

Aos colegas do Departamento <strong>de</strong> Interpretação e da Escola <strong>de</strong> Teatro da<br />

UNIRIO pela compreensão e incentivo. Especialmente agra<strong>de</strong>ço ao Miguel Vellinho<br />

que generosamente ministrou as aulas <strong>de</strong> caracterização para que eu pu<strong>de</strong>sse me<br />

<strong>de</strong>dicar integralmente à <strong>tese</strong>. A Natália Fiche por todos os livros <strong>de</strong> semiótica, ao Jorge<br />

<strong>de</strong> Carvalho que iluminou algumas i<strong>de</strong>ias neste trabalho e ao Luciano Maia por todas<br />

as oportunida<strong>de</strong>s.<br />

tudo.<br />

Ao Alexandre Nascimento que transpôs para DVD a fita <strong>de</strong> O Carrasco.<br />

Ao Eduardo Maya pelas leituras, pelas traduções, pelo companheirismo, por<br />

Aos meus pais, Rita e José, ao meu irmão, Marco, simplesmente por existirem<br />

em minha vida.


RESUMO<br />

Este trabalho trata a maquiagem como uma linguagem, constituída <strong>de</strong> um plano<br />

<strong>de</strong> expressão e um plano <strong>de</strong> conteúdo e concretizada em enunciados pintados sobre o<br />

rosto e/ou o corpo <strong>de</strong> um sujeito localizado historicamente num tempo e espaço<br />

<strong>de</strong>finidos. Utiliza a base teórica da semiótica discursiva e propõe uma metodologia <strong>de</strong><br />

análise que consi<strong>de</strong>ra a função semiótica do corpo e a praxis enunciativa <strong>de</strong> diferentes<br />

formas <strong>de</strong> maquiagem e pintura corporal. São analisados os exemplos da maquiagem<br />

social, da pintura corporal e da maquiagem teatral, em seus aspectos discursivos e<br />

tensivos, a partir fundamentalmente dos conceitos propostos pelo semioticista Jacques<br />

Fontanille (2004, 2007). Observa que a maquiagem, como toda linguagem, cria<br />

códigos socialmente interpretáveis pelo hábito ou produz sentidos inesperados a partir<br />

da articulação que promove entre o sensível e o inteligível.<br />

Palavras chave: Maquiagem, pintura corporal, semiótica, teatro.


ABSTRACT<br />

This work treats the technique of make-up as a language, on the level of<br />

expression and the level of content and realised in texts painted on the face and/or the<br />

body of a person, historically situated in a specific time and space. It uses the<br />

theoretical base of discourse semiotics and proposes a methodology of analysis which<br />

takes in account the semiotic function of the body and the enunciation praxis of the<br />

various forms of make-up and body painting. The examples of social make-up, body<br />

painting and stage make-up are analyzed in their aspects discursive and tensive,<br />

starting from the concepts suggested by the professor of semiotics Jacques Fontanille<br />

(2004, 2007). It is observed that the make-up, like any language, creates co<strong>de</strong>s socially<br />

interpretable by the customs or produces meanings unexpected from the expression<br />

that is created between the sensible and the intelligible.<br />

Key words: make-up, body painting, semiotics, theatre.


RÉSUMÉ<br />

Ce travail traite le maquillage comme une langage, constituée d'un plan<br />

d'expression et d‟un plan <strong>de</strong> contenu et concrétisée dans <strong>de</strong>s énoncées peinté sur le<br />

visage et/ou le corps d'un sujets localisés historiquement dans un temps et un espace<br />

définis. On utilise la base théorique <strong>de</strong> la sémiotique discursive et propose une<br />

méthodologie d'analyse qui considère la fonction sémiotique du corps et la praxis<br />

énonciatifs <strong>de</strong> différentes formes <strong>de</strong> maquillage et peinture corporelle. Sont analysés<br />

les exemples <strong>de</strong> maquillage social, la peinture corporelle et maquillage théâtral, dans<br />

leurs aspects discursives et tensives, à partir fondamentalement <strong>de</strong>s concepts<br />

proposés par le sémioticien Jacques Fontanille (2004, 2007). On observe que le<br />

maquillage, comme toute langage, crée <strong>de</strong>s co<strong>de</strong>s socialement interprétables par<br />

l'habitu<strong>de</strong> ou produit <strong>de</strong>s sens inattendus à partir <strong>de</strong> l'articulation qui promouvoir entre<br />

le sensible et <strong>de</strong> l'intelligible.<br />

Mots-clé : maquillage, peinture corporelle, sémiotique, théâtre.


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 16<br />

1 - ENUNCIADOS PINTADOS SOBRE O ROSTO OU O CORPO ................................ 32<br />

1.1- O CORPO SEMIÓTICO: DA HEXIS CORPORAL AO CORPO DO ACTANTE .. 34<br />

1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do<br />

corpo próprio ........................................................................................................... 40<br />

1.1.2- Corpo: movimento e envelope ...................................................................... 49<br />

1.1.3 - Eu-pele: um envelope corporal semiótico .................................................... 52<br />

1.2 - DE ENVELOPE CORPORAL A OBJETO SEMIÓTICO...................................... 54<br />

1.3 - ENVELOPE SEU OUTRO-PELE: SUPORTE SENSÍVEL PARA INSCRIÇÕES<br />

DE UM SUJEITO NO MUNDO ................................................................................... 56<br />

1.4 - ENTRE SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO E SUPORTE DE ENUNCIAÇÕES ....... 60<br />

1.4.1- Proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base, funções e oscilação dos modos <strong>de</strong> presença dos<br />

envelopes corporais ................................................................................................ 62<br />

1.4.1.1 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão: <strong>de</strong>formação do envelope ou pluralização do<br />

enunciado. ............................................................................................................... 66<br />

1.4.1.2 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação: o avesso do envelope corporal. .............. 73<br />

1.4.1.3 - Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filtro <strong>de</strong> seleção: projeção do próprio sobre o não<br />

próprio. .................................................................................................................... 77<br />

1.4.1.4 - Proprieda<strong>de</strong> da marca: instrumentalização das inscrições. .................... 84<br />

2 - INSCRIÇÕES EFÊMERAS ...................................................................................... 88<br />

2.1 - FASCÍNIO PERSUASIVO ................................................................................. 91<br />

2.2 - CONVOCATÓRIA MODAL E ASSOCIAÇÃO DE VALORES NA<br />

NARRATIVIDADE DA MAQUIAGEM ....................................................................... 100<br />

2.2.1 - Os valores semióticos ................................................................................ 106<br />

2.3 - PRÁXIS ENUNCIATIVA .................................................................................. 108<br />

2.3.1 - As gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência .................................................... 114<br />

2.3.2 - Maquiagem na tipologia das operações da práxis enunciativa .................. 115


2.3.3 - Objeto estético e semiótico em <strong>de</strong>vir ......................................................... 119<br />

2.3.2.1 - Revolução semiótica ............................................................................... 121<br />

2.3.2.2 - Distorção semiótica ................................................................................. 124<br />

2.3.2.3 - Remanejamento semiótico ...................................................................... 128<br />

2.3.2.4 - Flutuação semiótica ................................................................................ 131<br />

3 - NOVOS SENTIDOS PARA O CORPO: AS INSCRIÇÕES EFÊMERAS PARA OS<br />

PRIMITIVOS E PARA OS CONTEMPORÂNEOS ........................................................ 137<br />

3.1 - O CORPO ESTÉTICO, A CONSTRUÇÃO FIGURATIVA E O<br />

SEMISSIMBOLISMO DA PINTURA CORPORAL DOS NUBAS ............................. 141<br />

3.2 - PLANO DA EXPRESSÃO. ............................................................................... 148<br />

3.3 - O PONTO DE VISTA TENSIVO ....................................................................... 167<br />

4 – A MAQUIAGEM NA CENA TEATRAL .................................................................... 171<br />

4.1 - RELAÇÕES ENUNCIATIVAS ........................................................................... 176<br />

4.2 - UM EXEMPLO: O CARRASCO, ENCENAÇÃO DO GRUPO AMOK TEATRO.181<br />

4.2.1 - O espaço cênico e a percepção das presenças das personagens <strong>de</strong> O<br />

Carrasco ................................................................................................................ 182<br />

4.2.2 - Da construção figurativa do Carrasco, no romance, à maquiagem, na<br />

encenação ............................................................................................................. 189<br />

4.2.3 - As Maquiagens dos efêmeros: Jericó, Comandante, Juiz, Mulher, General e<br />

Morte ..................................................................................................................... 196<br />

4.3 - AS PROPRIEDADES VISUAIS E O PLANO DA EXPRESSÃO ....................... 203<br />

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 208<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................................. 214<br />

ANEXO ......................................................................................................................... 223


LISTA DE FIGURAS<br />

Figura 1: Maquiagem Glamourosa. ................................................................................ 34<br />

Figura 2: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba. ................................................ 59<br />

Figura 3: De Julio Larraz (Cuba). ................................................................................... 66<br />

Figura 4: De Jaime Iregui (Colombia). ........................................................................... 68<br />

Figura 5: De JOS BRANDS. ........................................................................................... 70<br />

Figura 6: Estudo <strong>de</strong> Desnudo. ........................................................................................ 70<br />

Figura 7: Ofelia Dammert (Peru) .................................................................................... 73<br />

Figura 8: Special Make-up.............................................................................................. 75<br />

Figura 9: Keiko González (Bolívia). ................................................................................ 75<br />

Figura 10: Punks. ........................................................................................................... 77<br />

Figura 11: Tom Woolley. ................................................................................................ 81<br />

Figura 12: The Player. ................................................................................................... 81<br />

Figura 13: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba. .............................................. 84<br />

Figura 14: Piercings. ...................................................................................................... 84<br />

Figura 15: Tatuagem. ..................................................................................................... 86<br />

Figura 16: Thelma Aucoin. ............................................................................................. 92<br />

Figura 17: Thelma Aucoin com maquiagem sensual.. .................................................... 92<br />

Figura 18: Thelma Aucoin com maquiagem natural.. ..................................................... 92<br />

Figura 19: Thelma Aucoin com maquiagem mo<strong>de</strong>rna.. .................................................. 92<br />

Figura 20: Thelma Aucoin como „Coco‟ Chanel.. ........................................................... 92<br />

Figura 21: Thelma Aucoin como Marlene Dietrich.. ........................................................ 92<br />

Figura 22: Thelma Aucoin coquete ................................................................................. 93<br />

Figura 23: Coco Chanel. ................................................................................................ 96<br />

Figura 24: Marlene Dietrich. ........................................................................................... 96<br />

Figura 25: Marlene Dietrich. ........................................................................................... 96<br />

Figura 26: Rita Hayworth. ............................................................................................. 109<br />

Figura 27: Camila Espinosa como Rita Hayworth.. ...................................................... 109<br />

Figura 28: Julia Roberts. .............................................................................................. 111<br />

Figura 29: Delineador branco. ...................................................................................... 117<br />

Figura 30: Desfile DKNY – Rímel ver<strong>de</strong> água.. ............................................................ 117


Figura 31: Sasha. ......................................................................................................... 121<br />

Figura 32: Christina Ricci como Edith Piaf.. ................................................................. 124<br />

Figura 33: Christina Ricci. ............................................................................................ 124<br />

Figura 34: Edith Piaf.. ................................................................................................... 124<br />

Figura 35: Skinscapes – Colinas.. ................................................................................ 126<br />

Figura 36: Flora/A Primavera. ..................................................................................... 128<br />

Figura 37: A Primavera- Sandro Botticelli – 1478/82 ................................................... 129<br />

Figura 38: Jovem <strong>de</strong> cabelo comprido. ........................................................................ 131<br />

Figura 39: Deborah Lin.. ............................................................................................... 131<br />

Figura 40: Yana. ........................................................................................................... 131<br />

Figura 41: Emma Belcher - Rosas. .............................................................................. 134<br />

Figura 42: Representação linear. ................................................................................. 145<br />

Figura 43: Desenhos representacionais do rosto ......................................................... 146<br />

Figura 44: Desenhos representacionais para os corpos. ............................................. 147<br />

Figura 45: Pintura simétrica e representativa – variação da cipalin – pássaro.. ........... 152<br />

Figura 46: Pintura simétrica e representativa – variação da cipalin – pássaro.. ........... 152<br />

Figura 47: Rosto com pintura facial semissimétrica e não-representativa – Leopardo. 154<br />

Figura 48: Rosto com pintura assimétrica e representacional – Leopardo.. ................. 154<br />

Figura 49: Rosto simétrico não representacional - Montanha. ..................................... 156<br />

Figura 50: LifeStyles. Leopardo. ................................................................................... 158<br />

Figura 51: Speed. ......................................................................................................... 160<br />

Figura 52: Sister and brother. ....................................................................................... 162<br />

Figura 53: Fallon. Fonte: .............................................................................................. 165<br />

Figura 54: Cena I: Comandante, Jericó e Carrasco. .................................................... 185<br />

Figura 55: Cena II: Juiz, Mulher e Carrasco. ................................................................ 185<br />

Figura 56: Cena III: Morte, General e Carrasco. .......................................................... 186<br />

Figura 57: Cena IV: Carrasco. ...................................................................................... 186<br />

Figura 58: Entreato ....................................................................................................... 188<br />

Figura 59: Marcus Pina se maquiando. ........................................................................ 191<br />

Figura 60: Marcus Pina se maquiando. ........................................................................ 191<br />

Figura 61: Marcus Pina. ............................................................................................... 194


Figura 62: O Carrasco. ................................................................................................. 194<br />

Figura 63: O Carrasco. ................................................................................................. 195<br />

Figura 64: Jericó e a Comandante. .............................................................................. 197<br />

Figura 65: Jericó. .......................................................................................................... 198<br />

Figura 66: A Comandante. ........................................................................................... 198<br />

Figura 67: Sequência do primeiro entreato ................................................................. 199<br />

Figura 68: A Mulher. ..................................................................................................... 200<br />

Figura 69: O Juiz. ......................................................................................................... 200<br />

Figura 70: Sequência do segundo entreato................................................................. 201<br />

Figura 71: A morte e o General. ................................................................................... 202<br />

Figura 72: A morte. ....................................................................................................... 202


A pintura <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>safiar o espectador [...] e o espectador surpreendido,<br />

<strong>de</strong>ve ir ao encontro <strong>de</strong>la como se entrasse em uma conversa. (PILES,<br />

1708)


INTRODUÇÃO<br />

Passos apressados, passos longos ou curtos, passos agitados, passos pesados<br />

ou leves pelas ruas das cida<strong>de</strong>s. Talvez os donos <strong>de</strong>sses pés nem os percebam mais,<br />

nem os seus próprios, muito menos os dos outros. São multidões <strong>de</strong> corpos <strong>de</strong> várias<br />

formas, <strong>de</strong> diversos volumes, <strong>de</strong> variadas cores e texturas, <strong>de</strong> pesos distintos, que se<br />

cruzam todo o tempo e em todo lugar. Movimentos e envelopes 1 corporais: corpos<br />

actantes.<br />

O que faz parar esses corpos voyeurs? Um corpo estático colocado em um<br />

pe<strong>de</strong>stal com sua pele, superfície <strong>de</strong> inscrição, coberta por maquiagem branca,<br />

prateada, ou por argila? Esse corpo que fascina por instantes <strong>de</strong>sacelera o ritmo<br />

urbano e faz com que o observem. É uma troca <strong>de</strong> observações: ele vê e é visto. O<br />

que dizer <strong>de</strong> um ser repleto <strong>de</strong> tatuagens e/ou piercings? Ou um corpo completamente<br />

coberto por pinturas mais elaboradas e efêmeras, quais sensações serão provocadas<br />

nos outros corpos transeuntes?<br />

Foi exatamente um <strong>de</strong>sses grupos <strong>de</strong> corpos cobertos pela efemerida<strong>de</strong> das<br />

cores e das formas que, há mais ou menos vinte e cinco anos, em Belo Horizonte,<br />

tropeçou em meu envelope corporal e me fez parar e <strong>de</strong>cidir pelos caminhos teatrais.<br />

Eu que, até então, era o alvo daquela intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas e cores que me focavam,<br />

passei a apreendê-las e, <strong>de</strong>sse modo, as cores vibrantes e as formas móveis, ambas<br />

fugazes, tornaram-se o meu alvo. Des<strong>de</strong> então, quando estou em cena, emprestando<br />

meu corpo e meu rosto a diversas personagens, virtualizando meus traços fisionômicos<br />

e minhas formas corporais para dar plenitu<strong>de</strong> à personagem em cena; ou, quando fico<br />

por trás dos bastidores, colorindo rostos ou pintando corpos que se materializam sobre<br />

os atuantes 2 , procuro compreen<strong>de</strong>r a formação do sentido <strong>de</strong>ssas transformações por<br />

1 O envelope é uma espécie <strong>de</strong> fronteira da imagem do corpo, criado a partir da energia do mundo sobre<br />

a matéria corporal (reativa e resistente). A noção <strong>de</strong> envelope corporal está <strong>de</strong>senvolvida no primeiro<br />

capítulo.<br />

2 O termo atuante é aqui utilizado para substituir a palavra ator, que, <strong>de</strong> acordo com Charau<strong>de</strong>au e<br />

Maingueneau (2006, p. 76), acabou por tomar um sentido muito mais amplo que o <strong>de</strong> um artista que<br />

representa um papel e “passou a <strong>de</strong>signar toda pessoa que toma parte ativa em uma ativida<strong>de</strong><br />

qualquer”. Para a semiótica, ator “é uma entida<strong>de</strong> do discurso que resulta da conversão dos actantes<br />

16


meio da maquiagem. Um recurso que é sempre um aliado do trabalho do atuante, que<br />

permite afastar a imagem do rosto <strong>de</strong> referência para que novos rostos se realizem,<br />

construindo, assim, novos sentidos.<br />

Maquiagens que são expressões <strong>de</strong> um conteúdo; que seguirão como “finas<br />

membranas” 3 sobre o rosto <strong>de</strong> vários atuantes. Detalhes cromáticos, topológicos e<br />

eidéticos essenciais que, sem que eu precise estar presente na cena, apenas por meio<br />

<strong>de</strong>ssas categorias expressivas, têm me levado a lugares em que eu nunca estive ou<br />

imaginaria estar. Maquiagens que, no mesmo momento em que escrevo estas linhas,<br />

po<strong>de</strong>m estar em cena sobre o rosto <strong>de</strong> algum atuante, cuja fisionomia foi<br />

minuciosamente estudada por mim, para que eu pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>scobrir em algum dos seus<br />

traços um princípio <strong>de</strong> inspiração para encontrar as cores, o semblante, as feições, o<br />

ritmo, as formas dos rostos das personagens 4 , elas que a<strong>de</strong>ntram pelo palco sob luzes<br />

intensas e olhares atentos à espera <strong>de</strong> compartilhar segredos e sensações. Tais quais<br />

as sensações que vivi ao ver o grupo <strong>de</strong> rostos e corpos coloridos, em Belo Horizonte,<br />

ou as pró<strong>tese</strong>s confeccionadas para o cinema e aplicadas sobre os rostos, aprendidas<br />

na escola americana. Essas maquiagens vibram cada vez mais <strong>de</strong>ntro mim e, a cada<br />

vez que as observo, me fazem refletir sobre elas.<br />

São essas reflexões que me obrigam a tentar compreen<strong>de</strong>r o suporte que<br />

recebe tanto a película <strong>de</strong> cores e <strong>de</strong> formas efêmeras, como também as marcas e<br />

inscrições <strong>de</strong>finitivas. Detenho-me sobre o corpo como um suporte sensível, que, além<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar um papel fundamental na emergência e na estabilização <strong>de</strong> um<br />

gênero, conforme o conceito estabelecido por Maingueneau (1998), participa<br />

diretamente da construção do sentido das mensagens pintadas sobre ele, ao ponto <strong>de</strong><br />

ser simultaneamente suporte e plano <strong>de</strong> expressão semiótico. Charau<strong>de</strong>au e<br />

Maingueneau explicam que, sob o ponto <strong>de</strong> vista cognitivo, “a diversida<strong>de</strong> dos suportes<br />

correspon<strong>de</strong> aos usos complementares e simultâneos” (2006, p. 462).<br />

narrativos, graças ao investimento semântico que recebem no discurso. O ator cumpre papéis<br />

actanciais, na narrativa, e papéis temáticos, no discurso” (BARROS, 2003, p.85). Neste trabalho, usarei<br />

ator para indicar a entida<strong>de</strong> discursiva e atuante para referência àquele que atua no palco, <strong>de</strong> acordo<br />

com o que vem sendo proposto pelos artistas e estudiosos cênicos da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />

3 Denominação dada por Patrice Pavis às maquiagens. (2003).<br />

4 Des<strong>de</strong> 1994 que <strong>de</strong>senvolvo o trabalho <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> maquiagens para alguns grupos e espetáculos<br />

teatrais.<br />

17


A corporalida<strong>de</strong> e o sentido me fizeram buscar caminhos na Semiótica, e esta<br />

me fez procurá-los também na Filosofia, na Fenomenologia, na Psicanálise, na<br />

Antropologia e nas próprias Artes. A diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caminhos é <strong>de</strong>vida à complexida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sse suporte que, <strong>de</strong> acordo com o antropólogo francês David Le Breton (2003), vem<br />

sendo colocado em oposição ao homem, pelo dualismo contemporâneo, em<br />

substituição à oposição platônica entre corpo e alma. Gilles Deleuze acredita que<br />

apenas a arte, com todos os seus recursos, seria capaz <strong>de</strong> liberar no corpo todos os<br />

<strong>de</strong>vires reais e recriar, assim, um corpo múltiplo, sensível e polivalente na<br />

contemporaneida<strong>de</strong>. E, na tentativa <strong>de</strong> reinventar o corpo contemporâneo, <strong>de</strong>ve-se<br />

reativar a sensibilida<strong>de</strong> e usá-lo como suporte da arte. O próprio Deleuze revela que os<br />

primitivos consagram a multidimensionalida<strong>de</strong> dos corpos por meio das pinturas, das<br />

tatuagens e das marcas corporais. Nessas culturas, nada passa pelo rosto, ao<br />

contrário das culturas contemporâneas, nas quais ele é supervalorizado.<br />

Para Merleau-Ponty (2006b), o corpo é simultaneamente consciência e matéria,<br />

sujeito e objeto, observador e observado. O corpo é uma base espaço-temporal no<br />

processo <strong>de</strong> percepção. Po<strong>de</strong>ríamos, então, supor que o corpo é o suporte i<strong>de</strong>al para a<br />

arte? Henri-Pierre Jeudy (2002) <strong>de</strong>fine o corpo como um objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong><br />

estereótipos, do amor, uma fonte <strong>de</strong> prazeres, um objeto <strong>de</strong> arte. Ou ainda como um<br />

objeto <strong>de</strong> tortura. Em alguns rituais <strong>de</strong> iniciação das ditas culturas primitivas, o corpo<br />

po<strong>de</strong> ser submetido a diversos tipos <strong>de</strong> torturas que são um “sofrimento obrigatório”<br />

(KEIL e TIBURI, 2004, p.19), cujas marcas <strong>de</strong>ixadas sobre a pele são enunciações <strong>de</strong><br />

um saber fundamental e <strong>de</strong> signos <strong>de</strong> pertença. Tais torturas são totalmente distintas<br />

dos sofrimentos e horrores aos quais são ou foram submetidos diversos corpos em<br />

nossas socieda<strong>de</strong>s – nos campos <strong>de</strong> concentração nazistas, nos sequestros, na prisão<br />

<strong>de</strong> Guantanamo, nas guerras, no período <strong>de</strong> ditadura brasileira etc. – com a imposição<br />

<strong>de</strong> marcas não apenas nos corpos, mas na alma.<br />

A tentativa <strong>de</strong> reaproximação do ser humano contemporâneo da natureza,<br />

assim como a tentativa <strong>de</strong> escapar da globalização, da padronização, passa pela body<br />

art 5 , pela body painting 6 e pelos mo<strong>de</strong>rn primitives 7 , que são realizações que fazem<br />

5 A Body Art (Palavra inglesa que significa arte do corpo) está associada à arte conceitual e ao<br />

minimalismo. É uma manifestação das artes visuais em que o corpo do artista é utilizado como suporte<br />

18


dos corpos humanos “um hábitat <strong>de</strong> um ser em estado <strong>de</strong> pura vertigem” (BOCCARA,<br />

2005, p. 11). No entanto, as tatuagens e as perfurações são processos <strong>de</strong>finitivos,<br />

quase sempre doloridos e que, no caso <strong>de</strong> serem removidas, <strong>de</strong>ixarão marcas<br />

<strong>de</strong>finitivas na superfície da pele. Um caminho mais efêmero e, tão ou mais estético,<br />

porém menos agressivo para o corpo, seria a pintura corporal e/ou facial. Ela “faz do<br />

corpo uma matriz <strong>de</strong> símbolos e um objeto <strong>de</strong> pensamento” (VIDAL; SILVA, 1992, p.<br />

283) e <strong>de</strong> sensações, cujos temas são mitológicos, cerimoniais e refletem também uma<br />

organização social.<br />

No teatro, a pintura corporal e/ou facial é capaz <strong>de</strong> transformar o corpo do<br />

atuante em cenário. Sobre o rosto ou o corpo, a maquiagem é um recurso produtor <strong>de</strong><br />

sentido e, ainda, <strong>de</strong> acordo com Pavis (2003), é uma arte que possui certa autonomia<br />

em relação às <strong>de</strong>mais. De livre acesso, a maquiagem permite dizer o que o enunciador<br />

<strong>de</strong>sejar. Do simples truque <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r olheiras e dar mais vivacida<strong>de</strong> ao rosto, a<br />

maquiagem po<strong>de</strong> chegar ao extremo <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r o corpo suporte. Po<strong>de</strong> se manifestar<br />

escandalosamente para alguns, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a elegância natural do seu<br />

enunciador ou po<strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar revoltas sociais, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da cultura em que se<br />

encontra. As pinturas corporais e faciais são como investimentos figurativos que<br />

manipulam e transformam conteúdos, procedimentos e motivos. Muito mais que um<br />

simples embelezamento, elas se tornam campos <strong>de</strong> condutas estratégicas que<br />

provocam conflitos e cumplicida<strong>de</strong> entre os actantes sujeitos encarnados 8 . Porém, é ao<br />

sair dos limites do rosto que a maquiagem formará, então, “um sistema estético que<br />

ou meio <strong>de</strong> expressão. Popularizou-se na década <strong>de</strong> 1960 e se espalhou pelo mundo. Há casos em que<br />

a body art assume o papel <strong>de</strong> ritual ou apresentação pública, apresentando, portanto, ligações com o<br />

Happening e a Performance. A sua comunicação com o público po<strong>de</strong> se dar por meio <strong>de</strong><br />

documentação, por meio <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os ou fotografia. Suas origens encontram referências no início do séc.<br />

XX na premissa <strong>de</strong> Marcel Duchamp <strong>de</strong> que "tudo po<strong>de</strong> ser usado como uma obra <strong>de</strong> arte", inclusive o<br />

corpo. Além <strong>de</strong> Duchamp, po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados precursores da body art o francês Yves Klein, que<br />

usava corpos femininos como "pincéis vivos", o americano Vito Acconci e o italiano Piero Manzoni.<br />

6 Body painting (palavra inglesa que significa pintura corporal) é a pintura exercida sobre um corpo nu.<br />

Lavável e efêmera, po<strong>de</strong> ser fotografada para registro documental, ou não.<br />

7 Mo<strong>de</strong>rn Primitives é um termo criado por Fakir Musafar para <strong>de</strong>nominar as pessoas que se submetem<br />

a qualquer tipo <strong>de</strong> manipulação corporal: perfurações ou jogos <strong>de</strong> penetração ( piercings, tatuagens e<br />

ritual <strong>de</strong> suspensão), jogos <strong>de</strong> constrição (espartilho, cintas, cinturões especiais), Jogos <strong>de</strong> contorção<br />

(técnicas <strong>de</strong> alongamento), Jogos <strong>de</strong> impedimento (acessórios, adornos e vestimentas que restringem<br />

os movimentos) (PIRES, 2005).<br />

8 Os actantes sujeitos encarnados além <strong>de</strong> serem forças e papéis necessários ao processo, passam a<br />

ser concebidos como posição corporal com uma carne e uma forma corporal. Essas <strong>de</strong>finições são<br />

aprofundadas no primeiro capítulo.<br />

19


obe<strong>de</strong>ce apenas às suas próprias regras”, correndo o risco <strong>de</strong> “abandonar a fe<strong>de</strong>ração<br />

das artes que constitui representação para fundar sua própria república”, chamando<br />

atenção para “sua própria prática autônoma” (PAVIS, 2003, p. 172).<br />

A pintura corporal vem explorando a diversida<strong>de</strong> e transformando a anatomia<br />

humana em palco para a expressão artística. Talvez seja a arte do momento e venha<br />

ganhando espaço em exposições, matérias jornalísticas, internet etc., confirmando,<br />

<strong>de</strong>ssa maneira, o pensamento <strong>de</strong> Patrice Pavis. A exposição Corpos Pintados<br />

instalada entre os meses <strong>de</strong> maio e julho <strong>de</strong> 2005, na OCA do Parque Ibirapuera, em<br />

São Paulo, é um exemplo <strong>de</strong> como o interesse pela arte da pintura corporal vem<br />

crescendo. Esse projeto teve início nos anos 80, por Roberto Edwards, que, ao ver as<br />

fotos que a cineasta alemã Leni Riefenstahl tinha feito dos indivíduos da tribo Nuba, no<br />

Sudão, se encantou com as pinturas corporais <strong>de</strong>sse grupo. A partir daí, convidou<br />

artistas para pintarem corpos e o resultado foi a mostra que estava em sua segunda<br />

edição, tendo já percorrido 32 museus da Europa e das Américas.<br />

Além da própria exposição, o projeto “Corpos pintados” lançou em 2005 cerca<br />

<strong>de</strong> 100 publicações sobre essa temática. Ampliando esse rol, outra artista, Joanne<br />

Gair, assim como Riefenstahl e Edwards, se inspirou nos primitivos e publicou um livro<br />

em que celebra os vinte anos <strong>de</strong> sua carreira. Nascida e criada na Nova Zelândia, ela<br />

teve acesso aos Maori, cujas tatuagens faciais, os mokos, foram as fontes <strong>de</strong><br />

inspiração <strong>de</strong> suas obras artísticas, nas quais mostra a diversida<strong>de</strong> do seu trabalho e<br />

dos corpos pintados. Segundo a artista (2006, p. 12), o corpo suporte é que dá vida à<br />

pintura, que, por ser <strong>de</strong> fácil remoção, precisa que um fotógrafo a registre para<br />

ultrapassar os limites do tempo e do espaço, do aqui e do agora.<br />

Em 2006, o artista plástico americano Craig Tracy inaugurou a primeira galeria<br />

especializada em body painting. Na Painted Alive Galeria, em New Orleans,<br />

encontram-se fotografias, gravuras em papel e tela, além <strong>de</strong> livros e ví<strong>de</strong>os sobre o<br />

processo <strong>de</strong> pintura corporal. Para Tracy é por meio da galeria que as pessoas têm a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem apresentadas à mais antiga e, ao mesmo tempo,<br />

contemporânea e sedutora forma <strong>de</strong> arte.<br />

É meu <strong>de</strong>sejo que o trabalho que eu criei torne-se parte da vida das<br />

pessoas. Eu o quero pendurado na sala e no espaço <strong>de</strong> trabalho,<br />

assim, as pessoas vão sentir e vivenciar a energia dinâmica, a paixão e<br />

20


o mistério <strong>de</strong> cada peça e, por sua vez, a minha energia 9 . (TRACY,<br />

2006)<br />

A partir disso, eu po<strong>de</strong>ria utilizar o pensamento da semioticista Lucia Teixeira<br />

(2004d, p. 231) a respeito das colagens dos cubistas, tomadas como pintura, para<br />

estendê-lo ao conceito <strong>de</strong> maquiagem, acrescentando apenas algumas palavras: “A<br />

pintura [e a maquiagem] tem [têm] qualida<strong>de</strong>s próprias que operam sobre uma<br />

materialida<strong>de</strong> específica e singular, caracterizada pelos modos <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong> um<br />

espaço plano [ou tridimensional] por meio <strong>de</strong> cores e formas. [...] a pintura [e a<br />

maquiagem] se afirma[m] como unida<strong>de</strong> formal e íntegra, submetida[s] a um código<br />

próprio <strong>de</strong> ocupação do espaço da tela [e/ou do corpo humano]”.<br />

Temos, então, um suporte sensível, que, <strong>de</strong> acordo com os conceitos <strong>de</strong><br />

Merleau-Ponty (2006b, 1980), possui a característica da reflexibilida<strong>de</strong>: toca e é<br />

tocado, é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Assim, a maquiagem aplicada sobre esse<br />

corpo, vista como um meio <strong>de</strong> expressão artística, que se utiliza das mesmas técnicas<br />

da pintura tradicional, apenas mudando o suporte e materiais apropriados para o corpo<br />

humano, po<strong>de</strong>ria ser analisada semioticamente. Algirdas Julien Greimas, fundador da<br />

semiótica francesa, no artigo Semiótica figurativa e semiótica plástica (2004, p. 75),<br />

argumenta que “uma das razões <strong>de</strong> ser da semiótica é chamar à existência novos<br />

domínios <strong>de</strong> interrogação do mundo e ajudá-los a se constituir como disciplinas<br />

autônomas”. O fazer semiótico, segundo Greimas (1975), é uma prática científica, ou<br />

melhor, um diálogo entre o que é formado e o que é analisável.<br />

É na correlação entre os fundamentos greimasianos e os textos verbais,<br />

visuais, sonoros ou sincréticos que tal edificação se viabiliza, uma vez<br />

que a semiótica discursiva tem como objeto investigável toda e<br />

qualquer linguagem textual e possibilita a transitivida<strong>de</strong> contínua entre a<br />

teoria e a prática. (CURADO, 2004, p.57)<br />

Portanto, um rosto ou um corpo utilizado como suporte <strong>de</strong> uma arte que gera<br />

uma imagem efêmera, que po<strong>de</strong> ser imortalizada pela fotografia ou reaplicada dia após<br />

dia no cotidiano, ou a maquiagem como uma linguagem artística que é um elemento <strong>de</strong><br />

um espetáculo teatral, <strong>de</strong> performances individuais ou <strong>de</strong> um ritual nas culturas<br />

9 As traduções do Inglês foram feitas por Mônica Ferreira Magalhães. Em rodapé será transcrito o trecho<br />

original: It is my wish that the work that I create becomes a part of peoples lives. I want it to hang in their<br />

living and working spaces so that they will feel and experience the dynamic energy, passion, and mystery<br />

of each piece and in turn, my energy.<br />

21


primitivas, po<strong>de</strong>m ser submetidos à análise semiótica plástica, como também à<br />

perspectiva tensiva <strong>de</strong> análise. A semiótica plástica, <strong>de</strong> acordo com Greimas e<br />

Courtés, “é uma linguagem segunda elaborada a partir da dimensão figurativa <strong>de</strong> uma<br />

primeira linguagem, visual ou não, ou a partir do significante visual da semiótica do<br />

mundo natural” (1986, p. 169) e procura analisar a materialida<strong>de</strong> do significante das<br />

imagens e dos espaços construídos, além <strong>de</strong> verificar os modos <strong>de</strong> existência<br />

semiótica do que, Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss <strong>de</strong>nomina “lógica do sensível”. Contudo, o<br />

corpo como espaço <strong>de</strong> inscrição <strong>de</strong> signos e códigos, como se refere Maria Augusta<br />

Babo (2001) a partir da antropologia <strong>de</strong> Mauss, acolhe-os e, em seguida, recebe o<br />

estatuto <strong>de</strong> significante flutuante. O corpo, sob esse ponto <strong>de</strong> vista, é plural: capta os<br />

signos e se torna um envelope corporal-superfície <strong>de</strong> inscrição, submetido a códigos<br />

sociais e ao espaço-tempo. Além disso, ele é capaz <strong>de</strong> produzir significados <strong>de</strong>vido a<br />

sua condição <strong>de</strong> corpo vivo.<br />

A maquiagem, inscrição sobre um corpo, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada um texto plástico<br />

significante, que forma um todo <strong>de</strong> sentido. As análises da semiótica discursiva<br />

procuram examinar o que é próprio <strong>de</strong> cada texto, assim como suas estratégias<br />

enunciativas. Greimas parte dos fundamentos estabelecidos por Hjelmeslev, nos quais<br />

a significação, função semiótica, acontece a partir da relação entre o plano do<br />

conteúdo (significado) e o plano da expressão (que suporta ou expressa o conteúdo)<br />

das linguagens. Na busca da compreensão dos mecanismos da produção <strong>de</strong> sentido<br />

dos textos, ou seja, como explica Diana <strong>de</strong> Barros (2001), do que o texto diz e <strong>de</strong> como<br />

faz para dizer o que diz, a teoria semiótica <strong>de</strong>senvolveu uma metodologia para a<br />

observação da produção da significação: a organização textual e os mecanismos<br />

enunciativos <strong>de</strong> sua produção e <strong>de</strong> sua recepção. Para isso, foi <strong>de</strong>senvolvido o<br />

percurso gerativo <strong>de</strong> sentido, importante para a teoria semiótica, que vai do mais<br />

simples e abstrato ao mais complexo e concreto nível <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> sentido. Esse<br />

percurso tem três etapas constituídas por gramáticas autônomas, cujos níveis –<br />

fundamental, narrativo e discursivo - se relacionam.<br />

Os estudos voltados para a dimensão sensível e afetiva do sentido tomaram<br />

impulso a partir da publicação do último livro <strong>de</strong> Greimas, Da Imperfeição. Com a<br />

tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a estesia e a investigação da semiose na experiência<br />

22


sensível, o corpo voltou a fazer parte dos estudos semióticos. O corpo, tão próximo e<br />

tão distante ao mesmo tempo, tinha sido excluído da teoria semiótica, <strong>de</strong> acordo com<br />

Fontanille (2004a, p. 13), pelo formalismo, pela lógica da linguística estrutural dos anos<br />

60, e pela teoria da ação. Seu retorno se <strong>de</strong>u pelo fato <strong>de</strong> o corpo proporcionar uma<br />

alternativa às soluções logicistas:<br />

em vez <strong>de</strong> tratar dos problemas teóricos e metodológicos como<br />

problemas lógicos, ficamos convidados a tratá-los pelo ângulo<br />

fenomenológico, e para isso é preciso contar com o corpo do operador.<br />

Comprometer-se a tratar uma relação, uma operação ou uma<br />

proprieda<strong>de</strong> como um fenômeno, é comprometer-se a examinar a<br />

formação das diferenças significativas e das posições axiológicas a<br />

partir da percepção e da presença sensível <strong>de</strong>sses fenômenos 10 .<br />

(FONTANILLE, 2004a, p.15)<br />

A semiótica corporal, conforme explica Fontanille, tem a consciência da<br />

ambivalência que vem do duplo estatuto do corpo na produção <strong>de</strong> significações. O<br />

corpo é um substrato da semiose, que participa da modalida<strong>de</strong> semiótica,<br />

proporcionando um dos seus aspectos. Além disso, ele é consi<strong>de</strong>rado uma figura<br />

semiótica entre outras, apto a adotar a forma das figuras do discurso, da expressão ou<br />

do conteúdo, provenientes do processo <strong>de</strong> semiotização e da formação do corpo dos<br />

atores semióticos.<br />

Como figura discursiva, o corpo tem movimentos e envelopes, que darão acesso<br />

às representações profundas da semiose em ato, que formam campos sensíveis e<br />

perceptivos, fundadores do campo enunciativo do discurso. No campo fenomenológico,<br />

a noção <strong>de</strong> corpo estabelecida por Merleau-Ponty (2006b), <strong>de</strong> acordo com o<br />

semioticista Luiz Tatit (1996, p. 201), não é muito diferente do “sincretismo actancial<br />

que suspen<strong>de</strong> a oposição sujeito/objeto e convoca os mecanismos <strong>de</strong> sensibilização”.<br />

Sendo assim, quando se trata do corpo, a ação das qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção e do<br />

vigor <strong>de</strong> sensibilização aparece antes do sentido cognitivo. Desse modo, como em<br />

10 As traduções do francês foram feitas por Eduardo Ewald Maya. Em rodapé será transcrito o trecho<br />

original : Au lieu <strong>de</strong> traiter les problèmes théoriques et méthodologiques comme <strong>de</strong>s problèmes<br />

logiques, on est désormais invité à les traiter sous l‟angle phénoménal, et, pour cela, le corps <strong>de</strong><br />

l‟opérateur est requis. S‟engager à traiter une relation, une opération ou une proptiété comme un<br />

phénomène, c‟est s‟engager à examiner la formation <strong>de</strong>s différences significatives et <strong>de</strong>s positions<br />

axiologiques à partir <strong>de</strong> la perception et <strong>de</strong> la présence sensible <strong>de</strong> ce phénomène.<br />

23


qualquer texto há lugar para o arrepio, o susto, o inusitado e o êxtase, o que caberá ao<br />

texto pintado no suporte corporal? O estado <strong>de</strong> pura vertigem atribuído aos mo<strong>de</strong>rn<br />

primitives também atinge os admiradores das maquiagens artísticas e teatrais, pelo<br />

menos é o que afirma Pavis:<br />

O travestimento <strong>de</strong> roupa e <strong>de</strong> rosto redobra a vertigem e a<br />

ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, seja um travestimento do<br />

sexo, da ida<strong>de</strong> ou da natureza humana... Muitas vezes a maquiagem se<br />

torna uma encenação contemporânea muito mais que um disfarce ou<br />

uma acentuação dos traços existentes: é uma vertigem que bloqueia<br />

toda interpretação segura e toda metamorfose <strong>de</strong>finitiva. (...) Difícil<br />

analisar uma vertigem! (PAVIS, 2003, p.172)<br />

E o que é uma vertigem senão a perturbação da razão ou da serenida<strong>de</strong> do<br />

espírito? Na busca por compreen<strong>de</strong>r a semiose vertiginosa da maquiagem e da pintura<br />

corporal, do sentido “sentido” provocador <strong>de</strong> vertigens, estabeleço como corpus <strong>de</strong><br />

análise da manifestação sensorial, diferentes tipos <strong>de</strong> maquiagem:<br />

1 - algumas maquiagens corporais expostas na mostra Corpos Pintados - 2005,<br />

São Paulo e alguns trabalhos <strong>de</strong> Joanne Gair, <strong>de</strong> Joe Brands, <strong>de</strong> Kevin Aucoin, <strong>de</strong><br />

Duda Molinos e da Los Angeles Makeup school, que ilustram os conceitos <strong>de</strong><br />

envelope corporal e as <strong>de</strong>formações sofridas a partir das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />

(projeção dos actantes e das coor<strong>de</strong>nadas espácio-temporais), uma estratégia<br />

enunciativa que ocorre no nível discursivo. Em um segundo momento, essas pinturas<br />

corporais, objetos estéticos e semióticos em <strong>de</strong>vir, <strong>de</strong>monstram os procedimentos da<br />

práxis enunciativa;<br />

2 - as maquiagens dos ritos corporais dos habitantes das montanhas Nuba, do<br />

sul do Sudão, África, juntamente com as pinturas <strong>de</strong> Craig Tracy, cujas pinturas<br />

corporais artísticas são analisadas em relação às respectivas culturas e em relação à<br />

articulação entre os planos <strong>de</strong> conteúdo e da expressão, no qual se <strong>de</strong>staca o grau <strong>de</strong><br />

figurativida<strong>de</strong>;<br />

3- as maquiagens da peça teatral O Carrasco, espetáculo realizado pelo grupo<br />

Amok <strong>de</strong> teatro, que servem <strong>de</strong> base para retomar as estratégias enunciativas, a<br />

práxis, o <strong>de</strong>senvolvimento do plano da expressão e as articulações tensivas, agora no<br />

simulacro teatral.<br />

Esta pesquisa tem por objetivo geral investigar as estratégias enunciativas<br />

24


mobilizadas na práxis da maquiagem. Para isso, verificará a articulação entre os<br />

planos do conteúdo e da expressão, além <strong>de</strong> observar as categorias tensivas<br />

aplicáveis à manifestação sensorial expressa nas maquiagens sociais, artísticas<br />

corporais, rituais primitivas e teatrais. Pretendo buscar, nas diferentes formas <strong>de</strong><br />

manifestação, recorrências que indiquem um uso próprio do corpo como suporte, bem<br />

como uma função estética e funcional da pintura sobre o corpo. Da mesma maneira,<br />

serão i<strong>de</strong>ntificadas também as particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses modos <strong>de</strong><br />

apropriação do corpo.<br />

No primeiro capítulo, faço uma reflexão acerca da maquiagem como enunciado<br />

pintado sobre o corpo, tomada como uma expressivida<strong>de</strong> que alimenta o corpo na<br />

necessida<strong>de</strong> da integração linguístico-cultural. Para isso, a compreensão do conceito<br />

<strong>de</strong> corpo se faz indispensável, uma vez que ele é o suporte das maquiagens e pinturas<br />

corporais. Mais que suporte, o corpo é visto como pertencente a um actante, não mais<br />

como uma posição formal, conforme explica Fontanille (2004a), mas um actante<br />

encarnado que possui uma carne e uma forma corporal, responsável pelos impulsos e<br />

pelas resistências que levam à ação transformadora dos estados <strong>de</strong> coisas.<br />

A elaboração das bases teóricas da semiótica do ponto <strong>de</strong> vista tensivo foi feita<br />

conjuntamente por Clau<strong>de</strong> Zilberberg e por Jacques Fontanille, no livro Tensão e<br />

significação (2001). A partir <strong>de</strong>ssa publicação, o primeiro autor, <strong>de</strong> acordo com<br />

Desidério Blanco (2008), centrou-se na elaboração da tensivida<strong>de</strong> fórica, iniciada no<br />

livro Semiótica das paixões, <strong>de</strong> Greimas e <strong>de</strong> Fontanille (1991). Já Fontanille<br />

<strong>de</strong>senvolveu as pesquisas pela encarnação da tensivida<strong>de</strong> no corpo sensível. O<br />

esquema tensivo coloca em relação a intensida<strong>de</strong> (sensível) e a extensida<strong>de</strong><br />

(inteligível), que formam o espaço tensivo, do qual emergem os valores, a re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

entradas e <strong>de</strong> saídas, e as valências intensivas e extensivas que se correlacionam<br />

diferentemente em cada caso.<br />

As teorias <strong>de</strong> Fontanille sobre o actante encarnado, dividido em carne e corpo<br />

próprio, são exploradas no sentido <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a relação que o corpo mantém<br />

com a alterida<strong>de</strong>, com o mundo, com cada meio cultural, como também a sua função<br />

<strong>de</strong> vetor da socieda<strong>de</strong>. O campo <strong>de</strong> presença, um espaço tensivo, é organizado pela<br />

tomada <strong>de</strong> posição da carne, <strong>de</strong>finida como referência. Nesse espaço se exerce a<br />

25


percepção a partir da gradação da relação entre sujeito e objeto, articulada pelas<br />

operações do foco e da apreensão. O foco correspon<strong>de</strong> ao eixo da intensida<strong>de</strong> que<br />

me<strong>de</strong> a potência da tensão entre sujeito e objeto; a apreensão traça os limites da<br />

dimensão do campo <strong>de</strong> percepção do sujeito, correlativo ao eixo da extensida<strong>de</strong>. O<br />

corpo próprio seria a mediação entre os planos do conteúdo e da expressão, uma<br />

fronteira que permite que o actante encarnado se relacione com o mundo. Ele é uma<br />

espécie <strong>de</strong> invólucro sobre o qual se inscrevem expressões, entre as quais <strong>de</strong>staco a<br />

maquiagem e a pintura corporal. No entanto, a carne, um Eu <strong>de</strong> referência e o corpo<br />

próprio e o Seu Outro são inseparáveis, como o anverso e o reverso <strong>de</strong> uma mesma<br />

entida<strong>de</strong>.<br />

A visão do sociólogo Pierre Bourdieu (2008) e o conceito <strong>de</strong> hexis corporal,<br />

assim como os conceitos <strong>de</strong> actancialida<strong>de</strong> e intencionalida<strong>de</strong>, norteiam o caminho que<br />

leva à aproximação com o corpo fenomenológico: o corpo sentiente, <strong>de</strong> Merleau-Ponty<br />

(2006b, 1980). Os movimentos intencionais do corpo são as forças que interagem com<br />

as substâncias e formas do corpo próprio. O conceito <strong>de</strong> envelope corporal, oriundo da<br />

psicanálise, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das posturas (movimento e sensoriomotricida<strong>de</strong>) e das<br />

superfícies (fronteiras e envelopes). De acordo com Fontanille, o envelope corporal se<br />

converte em um actante do mundo sensível, um filtro protetor dos estímulos<br />

exteriores, conforme <strong>de</strong>fine o psicanalista Didier Anzieu (1989). Esse envelope torna-<br />

se um Eu-pele, em que, entre outras funções, <strong>de</strong>staca-se a <strong>de</strong> superfície <strong>de</strong> inscrição.<br />

A transformação do envelope corporal em superfície <strong>de</strong> inscrição é feita a partir da<br />

operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, uma estratégia enunciativa que provoca a transição <strong>de</strong> uma<br />

realida<strong>de</strong> indizível para um discurso realizado.<br />

Se, na psicanálise, para Anzieu, o Eu-pele <strong>de</strong>termina o limite do corpo com o<br />

meio externo, para a semiótica essa interface é um Seu-outro-pele, que comunica e<br />

torna significativa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> preservada, como uma superfície que,<br />

simultaneamente, separa e coloca em contato as fronteiras <strong>de</strong> mundos distintos. Como<br />

espaço topológico, o envelope corporal po<strong>de</strong> ter suas proprieda<strong>de</strong>s conservadas ou<br />

alteradas pela operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Por meio <strong>de</strong>ssa operação, o envelope corporal<br />

po<strong>de</strong> ser percebido como um suporte visível ou como virtualmente distanciado. A<br />

maquiagem, como inscrição, atua, por meio da <strong>de</strong>breagem, nas proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

26


conexão, <strong>de</strong> compactação, <strong>de</strong> interface <strong>de</strong> triagem do envelope corporal. As pinturas<br />

corporais contemporâneas, exibidas na exposição Corpos Pintados ou nas páginas dos<br />

livros <strong>de</strong> Gair e <strong>de</strong> Joe Brands, ou ainda, as pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex<br />

confeccionadas na Los Angeles School of Makeup, e as maquiagens dos Punks e as<br />

realizadas por Kevin Aucoin, ilustram a preservação e a <strong>de</strong>formação dos envelopes<br />

corporais. A maquiagem como marca, instrumentalização das inscrições que<br />

evi<strong>de</strong>nciam o substrato material e o gesto que inscreve, também é examinada, porém<br />

esse conceito é mais evi<strong>de</strong>nte nas tatuagens, cicatrizes e piercings, enunciados<br />

<strong>de</strong>finitivos.<br />

O segundo capítulo é <strong>de</strong>dicado às inscrições efêmeras, características que<br />

colaboram diretamente no <strong>de</strong>vir figurativo do corpo próprio, permitindo, <strong>de</strong>sse modo, o<br />

acesso <strong>de</strong> um actante encarnado em diversos meios sociais. Fazer-se outro ou<br />

mostrar-se com veemência por meio <strong>de</strong> uma arte que, <strong>de</strong> acordo com o filosófo francês<br />

Michel Serres (2001), correspon<strong>de</strong> ao mesmo tempo à or<strong>de</strong>m e ao ornamento, i<strong>de</strong>ia<br />

corroborada por Bourdieu. Por mais inocentes que pareçam, as maquiagens fascinam<br />

e proporcionam um jogo <strong>de</strong> persuasão. Bau<strong>de</strong>laire (1988) acreditava que, apesar da<br />

notorieda<strong>de</strong> da astúcia e do artifício, a maquiagem não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser irresistível. O<br />

fazer persuasivo da maquiagem também convoca as modalida<strong>de</strong>s para fazer com que<br />

o enunciatário aceite o contrato enunciativo proposto pelo enunciador. Contudo, o /ser/<br />

e o /parecer/, modalida<strong>de</strong>s veridictórias, têm papel fundamental no julgamento <strong>de</strong> uma<br />

manifestação ou da imanência.<br />

Ao fazer uma maquiagem, o enunciador convoca modalida<strong>de</strong>s, principalmente<br />

as modalida<strong>de</strong>s do ser que se relacionam diretamente com os envelopes corporais. As<br />

modalida<strong>de</strong>s, os modos <strong>de</strong> existência e os valores são verificados nas tensões que<br />

<strong>de</strong>marcam o percurso da motivação <strong>de</strong> fazer uma maquiagem até a sua realização, ou<br />

seja, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o querer, motivações virtualizadas, do actante encarnado, que passa pelo<br />

saber e po<strong>de</strong>r (competências modais) até que o sujeito possa entrar em conjunção<br />

com os valores do meio social <strong>de</strong>sejado e realizar a si mesmo e ao próprio objeto <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

27


A plenitu<strong>de</strong>, a vivacida<strong>de</strong> e os usos da maquiagem <strong>de</strong>monstram a articulação<br />

das formas discursivas <strong>de</strong> um enunciador individual com os significados construídos<br />

culturalmente. O discurso <strong>de</strong> formas e cores efêmeras faz parte <strong>de</strong> uma práxis<br />

enunciativa que administra a presença das gran<strong>de</strong>zas discursivas em um campo <strong>de</strong><br />

discurso. Nesse campo, po<strong>de</strong> acontecer a recuperação <strong>de</strong> maquiagens<br />

esquematizadas pelo uso por meio <strong>de</strong> uma simples reprodução ou uma <strong>de</strong>svirtuação<br />

que promove novas significações. A práxis da maquiagem é <strong>de</strong>monstrada por meio das<br />

maquiagens sensuais glamourosas da década <strong>de</strong> 40, época em que se <strong>de</strong>staca a atriz<br />

norte-americana Rita Hayworth.<br />

As maquiagens que transformam o envelope corporal em objetos estéticos e<br />

semióticos são observadas por meio dos atos da práxis enunciativa. A combinação dos<br />

modos <strong>de</strong> existência e das gran<strong>de</strong>zas em competição po<strong>de</strong> promover revoluções,<br />

distorções, remanejamento e flutuações semióticas. Os trabalhos <strong>de</strong> Gair, <strong>de</strong> Duda<br />

Molinos e Aucoin exemplicam prontamente todos os efeitos <strong>de</strong> sentido da práxis<br />

enunciativa da maquiagem.<br />

No capítulo 3, parto da observação das fotografias do povo Nuba realizadas por<br />

Leni Riefenstahl, uma das mais notáveis diretoras <strong>de</strong> cinema documental e fotógrafa<br />

da década <strong>de</strong> 60. Vale ressaltar que essas pinturas corporais não são feitas para<br />

serem registradas fotograficamente, mas sim fazem parte do ritual <strong>de</strong>ssa tribo africana.<br />

No entanto, para ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise, é necessário recorrer a esse tipo <strong>de</strong><br />

registro. Tanto as maquiagens sociais, verda<strong>de</strong>iros autorretratos ambulantes, quanto<br />

as maquiagens teatrais também não têm o objetivo <strong>de</strong> serem fotografadas ou filmadas.<br />

Porém, da mesma maneira que as pinturas dos Nubas, foi preciso recorrer aos<br />

eventuais registros <strong>de</strong>vido à efemerida<strong>de</strong> das pinturas corporais e faciais. Apenas as<br />

maquiagens da exposição Corpos Pintados e do livro Arte en el cuerpo, <strong>de</strong> Gair e<br />

Painted Alive Gallery, <strong>de</strong> Craig Tracy, são observadas em seu próprio fim: a fotografia.<br />

Em 1975, Leni Riefenstahl (1976, 2005) passou 4 meses entre os habitantes<br />

dos remotos vales dos Montes Nuba, nas vilas do Kau, Nyaro e Fungor, no sul da<br />

província sudanesa <strong>de</strong> Kordofan, África. A fotógrafa consi<strong>de</strong>rava que os Nubas eram<br />

um povo gentil e amável, apesar <strong>de</strong> viverem praticamente isolados nas montanhas e<br />

28


sem muito contato com outras socieda<strong>de</strong>s. Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o modo <strong>de</strong><br />

vida <strong>de</strong>sse povo, a fotógrafa buscou informações no único trabalho acadêmico sobre<br />

eles, escrito pelo professor e antropólogo americano James C. Faris (1972), que havia<br />

passado os períodos secos entre 1966 e 1969 no Kau. Faris havia feito um estudo<br />

minucioso sobre a arte da pintura corporal local, no qual <strong>de</strong>stacava a relação social e<br />

cultural dos Nubas com o corpo. Para Riefenstahl, a princípio, suas fotos seriam<br />

apenas um registro pessoal <strong>de</strong> suas experiências memoráveis, mas elas acabaram<br />

sendo publicadas em revistas, jornais e livros, <strong>de</strong>vido ao gran<strong>de</strong> interesse pela cultura<br />

dos Nubas, até então <strong>de</strong>sconhecida.<br />

Os estudos <strong>de</strong> Faris e as fotografias <strong>de</strong> Riefenstahl foram fundamentais para as<br />

análises das pinturas corporais dos Nubas. A importância estética que eles dão ao<br />

corpo, assim como às pinturas corporais, diferentemente dos outros povos pré-<br />

letrados, serviu como contraponto com o corpo contemporâneo. As pinturas corporais<br />

Nubas e algumas contemporâneas, formam um sistema semissimbólico, no qual uma<br />

categoria do plano da expressão se correlaciona com uma categoria do plano do<br />

conteúdo. A semiótica plástica, apropriada para analisar tais sistemas, é constituída<br />

pelos formantes pictóricos que, <strong>de</strong> acordo com Oliveira (2004, p. 119) estão na<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma pintura, “possuem uma natureza composta por certas dimensões”:<br />

as cores constituem a dimensão cromática e a forma compõe a dimensão eidética. É a<br />

partir das matérias, dos materiais, das técnicas e dos procedimentos que essas duas<br />

dimensões irão se organizar e ganhar uma corporeida<strong>de</strong> “que, quando é apreendida<br />

por sua fisicalida<strong>de</strong> própria, constitui-se por si mesma uma dimensão distinta das<br />

<strong>de</strong>mais, a matérica” (OLIVEIRA, 2004, p. 119). A combinação <strong>de</strong>ssas três dimensões<br />

concretiza a dimensão topológica, que é a distribuição e a ocupação espacial em um<br />

suporte.<br />

Assim, o caminho <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> uma pintura tradicional também servirá para<br />

falar do objeto maquiagem:<br />

analisar a distribuição <strong>de</strong> formas no espaço, o uso das cores, a textura<br />

das pinceladas, os recursos <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong> e sombreamento, as<br />

iterações e contrastes plásticos como recursos capazes <strong>de</strong> construir<br />

categorias significantes associadas a significados e, nas relações<br />

entre signos assim constituídos, a organização sêmio-narrativa e<br />

discursiva que faz um quadro existir como texto, como um “todo <strong>de</strong><br />

sentido”. (TEIXEIRA, 2004e, p. 233)<br />

29


Além disso, nas análises das maquiagens e/ou pinturas corporais primitivas e<br />

contemporâneas foram observadas as figuras, os temas e o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> por<br />

meio dos elementos visuais. O tema, elemento da semântica narrativa “não remete a<br />

elementos do mundo natural, e sim às categorias „lingüísticas‟ ou „semióticas‟ que o<br />

organizam” (BARROS, 2003, p.90). Já a figura “é um elemento da semântica<br />

discursiva que se relaciona com um elemento do mundo natural, o que cria, no<br />

discurso, o efeito <strong>de</strong> sentido ou a ilusão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>” (BARROS, 2003, p. 87).<br />

O capítulo 4 é <strong>de</strong>dicado às maquiagens da peça teatral O Carrasco, espetáculo<br />

realizado pelo grupo Amok Teatro, sobre textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist, Ingmar Bergman,<br />

Jean Genet e Amok Teatro. A peça, que teve sua estréia em 2000, foi inspirada no<br />

romance O Carrasco, do sueco Pär Lagerkvist e se divi<strong>de</strong> em quatro quadros<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e dois entreatos em que a presença do carrasco incorpora a barbárie<br />

humana. A escolha <strong>de</strong>sse espetáculo se <strong>de</strong>ve à suspensão epistêmica, que abandona<br />

numa inquietação o enunciatário, que ignora “o estatuto veridictório do saber recebido”<br />

(GREIMAS, 2008, p. 491). Essa suspensão é proporcionada pela maquiagem do<br />

personagem Carrasco, interpretado pelo ator Marcus Pina, e pela troca das<br />

maquiagens à vista do público, durante os entreatos, realizada no palco pelos atores<br />

Stéphane Brod e Renata Collaço. No <strong>de</strong>correr da análise são observadas as<br />

estratégias enunciativas que organizam os elementos numa manifestação sincrética e<br />

que estabelecem a interação entre o enunciador e o enunciatário (<strong>de</strong>sdobramentos do<br />

sujeito da enunciação), além das relações entre o sujeito atuante e a personagem<br />

construída e os modos como a maquiagem ancora o sujeito (personagem) na<br />

encenação.<br />

Também foram examinados os mecanismos <strong>de</strong> articulação entre os planos <strong>de</strong><br />

conteúdo e <strong>de</strong> expressão, planos da linguagem <strong>de</strong>finidos por Louis Hjelmslev. O<br />

primeiro, <strong>de</strong> acordo com as teorias <strong>de</strong> Ferdinand <strong>de</strong> Saussure, é o plano do significado,<br />

“veiculado pelo plano da expressão” (BARROS, 2003, p. 85). O segundo, é o plano do<br />

significante, “que suporta ou expressa o conteúdo”. Ambos os planos “mantêm relação<br />

<strong>de</strong> pressuposição recíproca”.<br />

As formas <strong>de</strong> incidência das categorias tensivas também foram examinadas. O<br />

espaço tensivo, nas palavras <strong>de</strong> Teixeira (2004d, p. 233) é <strong>de</strong>finido pela junção do par:<br />

30


intensida<strong>de</strong> (estado <strong>de</strong> alma) versus extensida<strong>de</strong> (os estados <strong>de</strong> coisas). O ponto <strong>de</strong><br />

vista tensivo é observado tanto na composição espacial quanto na relação entre as<br />

maquiagens. Apesar da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> maquiagem, todos eles, em grau maior<br />

ou menor, provocam estesia e a cognição. A partir disso po<strong>de</strong>-se dizer que a<br />

maquiagem assume a função <strong>de</strong> vetor, tanto na socieda<strong>de</strong> quanto na encenação,<br />

papel fundamental em todas as socieda<strong>de</strong>s e, muito especialmente, na encenação<br />

teatral.<br />

A pouca literatura <strong>de</strong> reflexão sobre a arte da maquiagem é uma contradição em<br />

relação à <strong>de</strong>manda artística e acadêmica na área. Acredito que a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong>va ser<br />

um local propício ao procedimento <strong>de</strong> reflexões e estudos críticos facilitadores <strong>de</strong><br />

construções e revisões epistemológicas. No caso específico da maquiagem para o<br />

teatro, linguagem artística ainda bem pouco afeita às sistematizações, as lacunas são<br />

gran<strong>de</strong>s. Apesar <strong>de</strong> um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> publicações acerca das maquiagens<br />

sociais e corporais, essas publicações visam mais a um conteúdo técnico ou a<br />

coletâneas com a documentação fotográfica das obras dos artistas. As reflexões sobre<br />

as novas <strong>de</strong>mandas estéticas conceituais, no âmbito da caracterização como um todo<br />

e em particular sobre a maquiagem para o teatro, ou a maquiagem corporal utilizada<br />

em performances, ou mesmo em exposições, po<strong>de</strong>m efetivamente trazer uma<br />

contribuição bem-vinda ao ainda incipiente campo <strong>de</strong> estudo da maquiagem social,<br />

teatral e corporal, como também contribuir para os estudos <strong>de</strong> semiótica.<br />

31


1 - ENUNCIADOS PINTADOS SOBRE O ROSTO OU O CORPO<br />

Meu rosto está maquiado, limpo <strong>de</strong><br />

Toda singularida<strong>de</strong>, tornado vazio, para refletir<br />

Os pensamentos, agora mutáveis (...) (BRECHT, 2000, p.247)<br />

Um espelho na frente, em seus reflexos percebe-se um rosto, aliás, esta é a<br />

única maneira <strong>de</strong> ver os próprios traços do rosto 1 . Base e corretivo são como borracha<br />

para apagar alguns in<strong>de</strong>sejáveis traços <strong>de</strong> uma história, cansaços, abatimentos,<br />

espinhas e inchaços. Pronto! Aí está uma tela preparada para enunciar novos textos,<br />

novas histórias, novas personagens. Bastam pincéis, pós, sombras, blushes e batons<br />

para darem novas cores, outras texturas, diferentes brilhos, aumentar ou diminuir<br />

profundida<strong>de</strong>s e volumes e, assim, <strong>de</strong>scobrir ou inventar rostos. O que quero dizer<br />

hoje? Quem eu quero mostrar? Quero me ocultar no meio da massa urbana ou quero<br />

que os outros olhos me percebam?<br />

Mais que técnicas <strong>de</strong> aplicação, mais que correções <strong>de</strong> formato <strong>de</strong> rosto, <strong>de</strong><br />

nariz, <strong>de</strong> olhos e <strong>de</strong> bochechas, a maquiagem é um acontecimento <strong>de</strong>finido no tempo e<br />

no espaço, ou seja, é uma enunciação. Ao pensar a maquiagem como um enunciado<br />

que ocorre em contextos sociais cuja apreensão se dá na multiplicida<strong>de</strong> das<br />

dimensões sociais e psicológicas, ela é, então, operada na dimensão do discurso, ou<br />

seja, <strong>de</strong> fato, po<strong>de</strong>-se afirmar que a maquiagem é um discurso em ato proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

uma presença. O conjunto das operações, dos operadores e dos parâmetros que<br />

orientam o discurso, antes mesmo da exposição do sujeito, é resultado <strong>de</strong> “um ato <strong>de</strong><br />

enunciação que produz a função semiótica” (FONTANILLE, 2007, p.97).<br />

Além do mais, a maquiagem é uma conversão <strong>de</strong> um envelope corporal em<br />

superfície <strong>de</strong> inscrição semiótica e efêmera, na medida em que se po<strong>de</strong>m inscrever<br />

1 Merleau-Ponty observa a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um segundo corpo para observar o próprio corpo,<br />

principalmente a cabeça: “Minha cabeça só é dada à minha visão pela extremida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu nariz e pelo<br />

contorno <strong>de</strong> minhas órbitas. Posso ver meus olhos em um espelho com três faces, mas eles são os<br />

olhos <strong>de</strong> alguém que observa, e mal posso surpreen<strong>de</strong>r meu olhar vivo quando, na rua, um espelho me<br />

envia inopinadamente minha imagem. (...) Meu corpo visual é objeto nas partes distanciadas <strong>de</strong> minha<br />

cabeça, mas, à medida que se aproxima dos olhos, ele separa dos objetos, arranja no meio <strong>de</strong>les um<br />

quase-espaço ao qual eles não têm acesso, e, quando quero preencher este vazio recorrendo à imagem<br />

do espelho, ela ainda me remete a um original do corpo que não está ali, entre as coisas, mas do meu<br />

lado, aquém <strong>de</strong> qualquer visão. (2006b, p.135)<br />

32


diversos textos sobre a pele, algo parecido com o palimpsesto 2 , que permitia que um<br />

mesmo pergaminho, um suporte <strong>de</strong> inscrição escasso nos tempos remotos da<br />

civilização, fosse utilizado até mais <strong>de</strong> duas vezes. Desse modo, o texto era raspado e<br />

um novo texto escrito sobre a superfície do pergaminho. Entretanto, no âmbito do<br />

corpo, para que a conversão ocorra, é necessário existir uma <strong>de</strong>breagem que converta<br />

o envelope corporal em objeto semiótico. A partir disso, po<strong>de</strong>-se dizer que o corpo,<br />

mais que um simples suporte para as maquiagens, <strong>de</strong>ve pertencer a um actante que<br />

sofrerá ou realizará um ato, por meio da operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Contudo, esse<br />

actante, além do envelope corporal, <strong>de</strong>ve estar dotado da intencionalida<strong>de</strong> para<br />

realizar a enunciação e ser, efetivamente, um corpo sensível que se exprime.<br />

2 Exemplo utilizado por Didier Anzieu na <strong>de</strong>finição do Eu-pele, que será visto no tópico 1.1.3.<br />

33


1.1- O CORPO SEMIÓTICO: DA HEXIS CORPORAL AO CORPO DO ACTANTE<br />

O corpo é uma espécie <strong>de</strong> escrita viva no qual as forças imprimem<br />

“vibrações”, ressonâncias e cavam “caminhos”. O sentido nele se<br />

<strong>de</strong>sdobra e nele se per<strong>de</strong> como num labirinto on<strong>de</strong> o próprio corpo traça<br />

os caminhos. (LINS, 2003, p. 11)<br />

Mas a partir do momento em que alguém se pergunta pela operação<br />

que reúne os dois planos <strong>de</strong> uma linguagem, o corpo se faz<br />

indispensável 3 . (FONTANILLE, 2004a, p.13)<br />

Figura 1: Maquiagem Glamourosa. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 59.<br />

Na figura acima, Shinya e Masako Mori (Fig. 1) enunciam que são glamourosas:<br />

usam os clássicos lábios vermelhos, porém se diferenciam nos olhos: Shinya, à<br />

esquerda, <strong>de</strong> olhos proeminentes, usa sombras escuras para dar-lhes profundida<strong>de</strong>; e<br />

Masako os tem mais leves, iluminados com sombra dourada e enfatizados pela linha<br />

3 Mais, dès qu‟on s‟interroge sur l´opération qui réunite les <strong>de</strong>ux plans d‟un langage, le corps <strong>de</strong>vient<br />

indispensable.<br />

34


dos cílios ressaltada com <strong>de</strong>lineador preto. Além disso, usa as sobrancelhas finas<br />

estilo anos 30. “Cada visual tem o seu próprio recurso, enquanto ambos são<br />

<strong>de</strong>cididamente glamourosos” 4 (AUCOIN, 1995, p. 60). Neste exemplo, percebe-se que,<br />

para ser consi<strong>de</strong>rada glamourosa, a maquiagem <strong>de</strong>ve conter alguns requisitos<br />

<strong>de</strong>terminados pelo grupo <strong>de</strong> referência, ou seja, <strong>de</strong>ve ter cores brilhantes, batons<br />

vermelhos, entre outros elementos. Contudo, sob a camada da maquiagem, encontra-<br />

se um corpo que garante a presença do ser no mundo e que significa em ato, isto é, no<br />

mesmo momento em que é feita a enunciação. Há uma “relação <strong>de</strong> copresença em<br />

que os efeitos <strong>de</strong> sentido só po<strong>de</strong>m surgir e ser vividos hic et nunc, mediante uma<br />

experiência recíproca, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estésica, entre participantes” (LANDOWSKI, 2001,<br />

p.285).<br />

Da origem etimológica (corpus, -õris), que opõe a “materialida<strong>de</strong>” ou a<br />

“carnalida<strong>de</strong>” do corpo à espiritualida<strong>de</strong> da alma, às abordagens da semiótica ou da<br />

antropologia, que preenchem o corpo <strong>de</strong> sentidos culturalizados, chega-se ao corpo<br />

que nos interessa, aquele que, sendo suporte da maquiagem, oferece sua superfície já<br />

preenchida <strong>de</strong> sentidos. É assim que a semiótica compreen<strong>de</strong>:<br />

O corpo é simultaneamente um dos vetores da socieda<strong>de</strong> e da relação<br />

com o outro, o objeto e o suporte <strong>de</strong> práticas terapêuticas, rituais e<br />

simbólicas, a ancoragem principal das „lógicas do sensível‟ e das<br />

formas <strong>de</strong> relações semióticas com o mundo que o ro<strong>de</strong>ia,<br />

características <strong>de</strong> cada cultura 5 . (FONTANILLE, 2004a, p.12)<br />

Para Bourdieu, há um corpo característico em cada círculo <strong>de</strong> convívio, ou seja,<br />

nas profissões tradicionais ou não, nos círculos <strong>de</strong> capital social, nos círculos culturais,<br />

entre outros. A formação familiar, escolar e extra escolar é que conce<strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado corpo a um indivíduo por meio <strong>de</strong> tendências duradouras que são<br />

características <strong>de</strong> uma hexis corporal, conforme explica o autor :<br />

Tudo se passa como se os condicionamentos sociais vinculados a uma<br />

condição social ten<strong>de</strong>ssem a inscrever a relação com o mundo social<br />

em uma relação duradoura e generalizada com o próprio corpo, uma<br />

4 Each look has its own appeal, while both are <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>dly glamorous.<br />

5 Le corps est tout cela à la fois: un <strong>de</strong>s vecteurs <strong>de</strong> la socialité et <strong>de</strong> la relation à autrui, l‟objet et le<br />

support <strong>de</strong> pratiques thérapeutiques, rituelles et symboliques, l‟ancrage principal <strong>de</strong>s “logiques du<br />

sensible” et <strong>de</strong>s formes <strong>de</strong> relations sémiotiques avec le mon<strong>de</strong> environnant, caractéristique <strong>de</strong> chaque<br />

culture.<br />

35


maneira <strong>de</strong> posicionar o corpo, <strong>de</strong> apresentá-lo aos outros, <strong>de</strong><br />

movimentá-lo, <strong>de</strong> reservar-lhe um lugar, que lhe dá sua fisionomia<br />

social. (BOURDIEU, 2008, p. 439)<br />

Para Fiorin (2008a, p.144), a hexis corporal seria a maneira como o indivíduo<br />

mantém o corpo, um modo <strong>de</strong> apresentação aos outros indivíduos, a maneira como se<br />

move e como ocupa um espaço. A hexis corporal “é a manifestação <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong><br />

vida por meio do corpo” (FIORIN, 2008a, p. 144). Assim como Shinya e Masako (Fig.1)<br />

que se apresentam glamourosas ao se maquiarem daquele modo, revelando, além dos<br />

seus estilos <strong>de</strong> vida, o grupo social ao qual pertencem. O corpo é, portanto,<br />

consi<strong>de</strong>rado um produto social, uma imagem da socieda<strong>de</strong>, contudo, é necessário que<br />

os sinais que o compõem pareçam naturais ao grupo <strong>de</strong> referência. De modo geral, os<br />

indivíduos procuram se camuflar no grupo, se adaptam e se conformam com as<br />

imposições do meio social e adotam a hexis corporal característica do seu grupo. A<br />

manifestação estética do vestir, que é também um componente da hexis corporal, é<br />

abordada por Greimas no artigo Uma estética exaurida, do livro Da imperfeição (2002).<br />

Nele, o autor discrimina os parâmetros para as escolhas das roupas. Em primeiro lugar<br />

estaria a funcionalida<strong>de</strong> das vestimentas em relação às condições atmosféricas, <strong>de</strong>pois<br />

a referência passa a ser o meio social:<br />

As pressões sociais em segundo lugar: a mulher se vestirá em função<br />

do meio ao qual ela pertence, da previsão do ambiente – ou dos<br />

ambientes e das circunstâncias – que ela <strong>de</strong>verá afrontar. As<br />

exigências da “natureza”- e sobretudo <strong>de</strong> sua representação social –<br />

conjugam-se assim com as da “cultura” (GREIMAS, 2002, p. 76).<br />

Desse modo, o corpo é submetido às forças e aos valores que a socieda<strong>de</strong> lhe<br />

impõe e, a partir disso, ele po<strong>de</strong> reagir contra essas tensões ou po<strong>de</strong> se submeter a<br />

elas. O corpo, assim, po<strong>de</strong> ser visto como objeto ou como sujeito. O corpo, tanto para<br />

Jeudy (2002, p. 14) quanto para Merleau-Ponty (2006b, p. 110), po<strong>de</strong> ser sujeito do<br />

objeto que ele representa, das sensações que o excitam.<br />

Não querendo prejulgar nada, tomamos ao pé da letra o pensamento<br />

objetivo e não lhe colocaremos questões que ele próprio não se coloca.<br />

Se somos conduzidos a reencontrar a experiência atrás <strong>de</strong>le, essa<br />

passagem só será motivada por seus próprios embaraços. Vamos<br />

então consi<strong>de</strong>rá-lo operando na constituição <strong>de</strong> nosso corpo como<br />

objeto, já que este é um momento <strong>de</strong>cisivo na gênese do mundo<br />

36


objetivo. Ver-se-á que o corpo próprio se furta, na própria ciência, ao<br />

tratamento que a ele se quer impor. E, como a gênese do corpo objetivo<br />

é apenas um momento na constituição do objeto, o corpo, retirando-se<br />

do mundo objetivo, arrastará os fios intencionais que o ligam ao seu<br />

ambiente e <strong>final</strong>mente nos revelará o sujeito que percebe assim como o<br />

mundo percebido. (MERLEAU- PONTY, 2006b, p. 110)<br />

O corpo fenomenológico é, por conseguinte, um corpo visível e reflexivo, com<br />

formas físicas constituintes <strong>de</strong> um indivíduo, fruto das interrogações que Merleau-Ponty<br />

(1989) fez à Ciência e à Filosofia. Um corpo concreto e sensível, exposto a forças e<br />

tensões, internas e externas. Um corpo que é um “sincretismo <strong>de</strong> sujeito e objeto”,<br />

parafraseando Luiz Tatit (1996), actantes das categorias funcionais, termos que<br />

possuem a mesma extensão, todavia, sem redução <strong>de</strong> um diante do outro:<br />

“O corpo, como objeto entre outros, é também sujeito, com o ato <strong>de</strong><br />

ver implicando que a corporeida<strong>de</strong> das coisas se impõe a ele no<br />

momento mesmo em que – como objeto – ele crê <strong>de</strong>cidir por uma boa<br />

parte do que está vendo” (JEUDY, 2002, p.150).<br />

Na semiótica, Luiz Tatit explica que as marcas <strong>de</strong> percepção e sensibilização do<br />

corpo têm um tratamento mais técnico:<br />

Tudo ocorre como se houvesse a supressão do núcleo sintáxico que<br />

distingue os actantes sujeito e objeto por meio <strong>de</strong> uma superposição<br />

(que, por vezes, dá origem a uma certa confusão) <strong>de</strong>ssas funções, <strong>de</strong><br />

tal maneira que po<strong>de</strong>ríamos falar <strong>de</strong> „sincretismo actancial‟. A<br />

manifestação figurativa mais freqüente <strong>de</strong>sse estado indiferenciado –<br />

ou mesmo invertido – das funções é a do sujeito tornando-se objeto das<br />

emoções produzidas pelo objeto estético. (TATIT, 1996, p. 201)<br />

Shinya e Masako, ao se maquiarem daquela maneira, estão realizando um ato<br />

enunciativo, estão em junção com o objeto hexis corporal do grupo <strong>de</strong> referência<br />

glamouroso. Por outro lado, <strong>de</strong>vido à complexida<strong>de</strong> do corpo visível, elas po<strong>de</strong>m se<br />

tornar o objeto <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> várias outras mulheres que <strong>de</strong>sejam se a<strong>de</strong>quar àquele<br />

grupo, e, por conseguinte, as duas são actantes <strong>de</strong> um processo narrativo. Assim, o<br />

actante, gerador do “sincretismo actancial” ao qual se refere Tatit, é “uma entida<strong>de</strong><br />

sintática da narrativa que se <strong>de</strong>fine como termo resultante da relação transitiva, seja<br />

ela uma relação <strong>de</strong> junção ou <strong>de</strong> transformação” (BARROS, 2003, p.84). Greimas e<br />

Courtés (2008, p.20) explicam que ele “po<strong>de</strong> ser concebido como aquele que realiza ou<br />

que sofre o ato in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer outra <strong>de</strong>terminação”. Desse modo, o<br />

37


“sincretismo actancial” ao suspen<strong>de</strong>r a oposição sujeito/objeto e convocar os<br />

mecanismos <strong>de</strong> sensibilização se aproxima da noção da “coisa senciente”, como<br />

explica Merleau-Ponty em O olho e o espírito:<br />

O enigma resi<strong>de</strong> nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vi<strong>de</strong>nte e visível.<br />

Ele, que olha todas as coisas, também po<strong>de</strong> olhar a si e reconhecer no<br />

que está vendo então o “outro lado” do seu po<strong>de</strong>r vi<strong>de</strong>nte. Ele se vê<br />

vi<strong>de</strong>nte, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si,<br />

não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer<br />

que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em<br />

pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência<br />

daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele<br />

toca, do senciente no sentido -, um si, portanto, que é tomado entre<br />

coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um<br />

futuro...(MERLEAU-PONTY, 1980, p. 88)<br />

Além <strong>de</strong> realizarem ou sofrerem o ato, os actantes são “forças e papéis<br />

necessários à realização <strong>de</strong> um processo” (FONTANILLE, 2007, p. 147). Porém, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista corporal, o actante <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser concebido como uma pura posição<br />

formal presumida para ser uma posição corporal, ou melhor, o actante passa a possuir<br />

uma carne e uma forma corporal, “se<strong>de</strong> primordial dos impulsos e das resistências que<br />

sustentam a ação transformadora dos estados <strong>de</strong> coisas” 6 (FONTANILLE, 2004a,<br />

p.22). Tal fato é vivenciado por Shinya e Masako, actantes que possuem corpos, que<br />

po<strong>de</strong>m se manifestar ou serem percebidas como forma, já que possuem um envelope<br />

corporal, e/ou como força, ou seja, energia e movimento. O actante encarnado,<br />

portanto, se lança à orientação e à assimetria da relação humana com o mundo. 7<br />

O corpo é veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo,<br />

juntar-se a um meio <strong>de</strong>finido, confundir-se com certos projetos e<br />

empenhar-se continuamente nele.(...) pois se é verda<strong>de</strong> pela mesma<br />

razão que meu corpo é pivô do mundo: sei que os objetos tem várias<br />

faces porque eu po<strong>de</strong>ria fazer a volta em torno <strong>de</strong>les, e neste sentido<br />

tenho consciência do mundo por meio do meu corpo. (MERLEAU-<br />

PONTY, 2006b, p.122)<br />

Só posso compreen<strong>de</strong>r a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo<br />

e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao<br />

mundo (MERLEAU-PONTY, 2006b, p.114).<br />

6<br />

Premier siège <strong>de</strong>s impulsions et <strong>de</strong>s résistances qui sous-ten<strong>de</strong>nt l‟action transformatrice <strong>de</strong>s états <strong>de</strong><br />

choses.<br />

7<br />

As questões sobre o corpo do actante serão aprofundadas no tópico 1.1.1.<br />

38


Em suma, é com o corpo que o ser humano apreen<strong>de</strong> as coisas ao seu redor, à<br />

medida que vai vivenciando diversas situações. A presença do ser no mundo é uma<br />

presença corporal. Shinya e Masako são percebidas, naquele momento eternizado<br />

pela fotografia, em uma festa, em um evento <strong>de</strong> moda ou apenas num estúdio<br />

fotográfico; ou seja, assim como todos nós, possuidores <strong>de</strong> um corpo, somos, então,<br />

percebidos no tempo e no espaço. Como corpos, somos “uma ancoragem espaço-<br />

temporal que serve <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> referência central ao processo perceptivo”, como<br />

afirma Merleau-Ponty (2006b). A zona <strong>de</strong> corporeida<strong>de</strong> é o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivenciamos<br />

o mundo: é ao habitar o espaço e o tempo que as ações humanas vão adquirindo um<br />

sentido que é imputado pela corporeida<strong>de</strong>; pensamento este que é corroborado por<br />

Bourdieu:<br />

Dimensão fundamental do sentido da orientação social, a hexis corporal<br />

é uma maneira prática <strong>de</strong> experimentar e exprimir o sentido que se tem,<br />

como se diz, <strong>de</strong> seu próprio valor social: a relação que se mantém com<br />

o mundo social e o lugar que a pessoa se atribui nesse mundo nunca<br />

se <strong>de</strong>clara tão bem quanto através do espaço e do tempo que ela se<br />

sente no direito <strong>de</strong> tomar aos outros, e, mais precisamente, o lugar que<br />

ocupa com seu corpo no espaço físico, por uma postura e por gestos<br />

firmes ou reservados, amplos ou acanhados (<strong>de</strong> alguém que pretenda<br />

parecer importante diz-se, <strong>de</strong> forma bem clara, que é “espaçoso”) e<br />

com sua fala no tempo, pela parte do tempo <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> que se<br />

apropria e pela maneira, segura ou agressiva, <strong>de</strong>senvolta ou<br />

inconsciente, <strong>de</strong> se apropriar <strong>de</strong>sse tempo. (BOURDIEU, 2008, 439-<br />

440)<br />

A relação espaço-temporal do corpo com o mundo social se intensifica quando<br />

diz respeito à cosmética, em especial, à maquiagem como marca social, que atuará<br />

nas partes modificáveis do corpo para dar novos sentidos e fazer o sujeito adquirir<br />

outros valores no mundo. A capacida<strong>de</strong> que o corpo possui <strong>de</strong> colocar o indivíduo em<br />

contato com o mundo, <strong>de</strong> fazer com que ele se mova até a significação, se <strong>de</strong>ve a<br />

diversas proprieda<strong>de</strong>s: ao movimento, ao foco, à sensoriomotricida<strong>de</strong> e à<br />

intencionalida<strong>de</strong>. O corpo fenomenológico é um ser indissociável e polissensorial, no<br />

qual há a junção <strong>de</strong> uma forma e uma experiência. O corpo é assim, para além <strong>de</strong><br />

veículo ou suporte, “o princípio mesmo da actancialida<strong>de</strong> e da intencionalida<strong>de</strong>” 8<br />

(FONTANILLE, 2004a, p. 124).<br />

8 Au principe même <strong>de</strong> l‟actantialité et <strong>de</strong> l‟intentionnalité.<br />

39


A intencionalida<strong>de</strong> é um traço <strong>de</strong>finidor da narrativida<strong>de</strong>, função do actante<br />

sujeito, que, ao ser concebida em um nível mais abstrato, “permite uma generalização<br />

crescente e facilita a tarefa <strong>de</strong> análise narrativa” (BARROS, 2001, p. 45) <strong>de</strong> um gesto,<br />

<strong>de</strong> um movimento corporal ou <strong>de</strong> uma maquiagem. Greimas explica que prefere o<br />

conceito <strong>de</strong> intencionalida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong> intenção, já que o primeiro, oriundo da<br />

fenomenologia, acolhe a motivação e a <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>, permitindo “conceber o ato como<br />

uma tensão que se inscreve entre dois modos <strong>de</strong> existência: a virtualida<strong>de</strong> e a<br />

realização” (GREIMAS, 2008, p. 267). Tal conceito <strong>de</strong> intencionalida<strong>de</strong> está<br />

relacionado ao <strong>de</strong> competência modal.<br />

Se a narrativa recobre uma relação <strong>de</strong> junção entre sujeito e objeto, a<br />

competência modal é a dotação <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> um saber ao sujeito que<br />

concretizará a performance, ou o fazer transformador do homem no mundo, em<br />

constante <strong>de</strong>vir na busca <strong>de</strong> sentido. Tanto Shinya quanto Masako, por meio da<br />

maquiagem, pu<strong>de</strong>ram e souberam enunciar a sua posição no meio social. Desse<br />

modo, um indivíduo, ao se apresentar maquiado <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada maneira aos<br />

outros indivíduos, ao adotar <strong>de</strong>terminados movimentos e ocupar <strong>de</strong>terminados espaços<br />

com uma <strong>de</strong>terminada “fisionomia corporal”, vai construindo sua hexis corporal, para se<br />

inserir em uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong>, ou negá-la. Para Fontanille, “a<br />

intencionalida<strong>de</strong> é significante porque é movimento até as coisas” (2004a, p.131) 9 , e o<br />

movimento é intencional, orientado.<br />

1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do<br />

corpo próprio<br />

Por mais frustrante que seja, essa hipó<strong>tese</strong> apresenta, a nosso ver, o<br />

interesse <strong>de</strong> introduzir uma distinção não insuperável, certamente, mas<br />

pelo menos heuristicamente (e, portanto, provisoriamente) útil entre<br />

dois níveis: em profundida<strong>de</strong>, um mínimo <strong>de</strong> permanência, um núcleo<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cujo caráter relativamente estável se postula; e ao<br />

contrário, na superfície, um jogo <strong>de</strong> substituições entre formas<br />

passageiras que <strong>de</strong>terminam outros tantos estados transitórios, frutos<br />

<strong>de</strong> transformações bruscas ou <strong>de</strong> mutações mais lentas, mas que tanto<br />

umas como outras só adquirem sentido em referência à existência<br />

pressuposta (ao nível „profundo‟) <strong>de</strong> um ser que perdura „tal como em si<br />

9 L‟intentionnalité est signifiante parce qu‟elle est mouvement vers les choses.<br />

40


mesmo‟ através <strong>de</strong> todos os seus avatares. Efetivamente, para que<br />

alguma coisa possa se transformar <strong>de</strong> maneira significativa, é preciso<br />

que esse algo exista e, <strong>de</strong> certa forma, se mantenha. (LANDOWSKI<br />

2002, p. 101-102)<br />

A relação entre Shinya e Masako e o meio social <strong>de</strong> referência, no caso, o<br />

glamouroso, servirá também como exemplo <strong>de</strong> como um actante encarnado po<strong>de</strong> ser<br />

analisado. Desse modo, para dar um sentido <strong>de</strong> glamour a suas maquiagens,<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas, Shinya e Masako precisam da alterida<strong>de</strong> dos glamourosos.<br />

Portanto, ativos ou passivos, os actantes sujeitos encarnados vão construindo as suas<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, incluindo as figurativas, durante a realização <strong>de</strong> um processo semiótico<br />

por meio da intencionalida<strong>de</strong>, ou seja, a partir da orientação que vão seguindo em<br />

relação ao grupo social <strong>de</strong> referência. Em outras palavras, o actante sujeito encarnado,<br />

individual ou coletivo, eu ou nós, para constituir sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, conforme explica<br />

Landowski, tem a “necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ele – dos „outros‟ (eles) para chegar à existência<br />

semiótica” (2002, p.4), uma vez que o si próprio se organiza na relação com a<br />

alterida<strong>de</strong>.<br />

Fontanille (2004a, p.23), ao conceber o actante do ponto <strong>de</strong> vista corporal,<br />

primeiramente, o divi<strong>de</strong> em duas instâncias, uma dupla i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: a carne e o corpo<br />

próprio. A primeira instância, a carne, seria um eu <strong>de</strong> referência, que resistirá ou<br />

participará da ação <strong>de</strong> transformação dos estados <strong>de</strong> coisas. É a instância que toma<br />

posição e organiza o campo <strong>de</strong> presença. Por ser a se<strong>de</strong> do núcleo sensoriomotor,<br />

pura sensibilida<strong>de</strong>, a carne é também a matéria submetida a pressões e tensões<br />

oriundas do campo perceptivo. A carne seria, então, como consta em epígrafe, nas<br />

palavras <strong>de</strong> Landowski: o nível “em profundida<strong>de</strong>, um mínimo <strong>de</strong> permanência, um<br />

núcleo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cujo caráter relativamente estável se postula”. Como exemplo da<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> carne, po<strong>de</strong>-se utilizar o da materialida<strong>de</strong>, ainda sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

Shinya e Masako. Materialida<strong>de</strong> esta que participa da transformação em estado <strong>de</strong><br />

glamourosas.<br />

Quanto aos avatares <strong>de</strong> Shinya e Masako com maquiagens glamourosas, po<strong>de</strong>-<br />

se dizer que são exemplos da segunda instância do actante encarnado, ou seja, o<br />

corpo próprio que é constituído na semiose, uma vez que é consi<strong>de</strong>rado a única<br />

entida<strong>de</strong> comum entre o eu e o mundo. Desse modo, a materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong><br />

41


Masako tem em comum com o mundo do glamour os seus avatares glamourosos. O<br />

corpo próprio é, por conseguinte, o mediador da relação <strong>de</strong> um plano da expressão e<br />

<strong>de</strong> um plano do conteúdo 10 no discurso em ato. De acordo com Hjelmslev (1975,<br />

p.215), a função semiótica (semiose), é a reunião completa do plano do conteúdo e do<br />

plano da expressão e pressupõe uma homogeneização da existência semiótica.<br />

Homogeneização esta que é o resultado da articulação da exteroceptivida<strong>de</strong> - os<br />

produtos da percepção das figuras do mundo natural provenientes do mundo exterior -<br />

e a interoceptivida<strong>de</strong> 11 - os produtos da percepção do mundo interior, cognitivo e<br />

emocional. Para Fontanille (2007), trata-se <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>nominação favorável ao<br />

perceptivo que reconfigura os planos da expressão (associado ao exteroceptivo) e do<br />

conteúdo (ligado ao interoceptivo).<br />

A instância do corpo próprio é, portanto, uma fronteira, o meio com o qual o<br />

actante sujeito encarnado se relaciona com o mundo. É um invólucro sensível<br />

<strong>de</strong>limitador <strong>de</strong> um domínio interior (conteúdo) e <strong>de</strong> um domínio exterior (expressão),<br />

portanto, uma percepção proprioceptiva da posição do corpo próprio. Por conseguinte,<br />

o corpo-próprio traz consigo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em construção e em <strong>de</strong>vir, submetido a um<br />

princípio <strong>de</strong> força diretriz. Assim, ele é consi<strong>de</strong>rado como o suporte do Seu Outro.<br />

Seria, no nível da superfície, um jogo <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> aparências fugazes que motivam<br />

diversos estados momentâneos cujas transformações, lentas ou bruscas, apenas<br />

alcançarão sentido em relação com o eu <strong>de</strong> referência que permanece, como afirma<br />

Landowski, “„tal como em si mesmo‟ através <strong>de</strong> todos os seus avatares”. A carne é,<br />

então, matéria visível; o corpo próprio é a fronteira, o invólucro, como também as<br />

diferentes formas e as diversas cores, tais quais as carnes matérias <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong><br />

Masako e seus invólucros lapidados em glamour.<br />

10 Vale lembrar que os elementos do plano do conteúdo são aqueles ligados à sintaxe e à semântica das<br />

etapas do percurso gerativo, já os elementos materiais, como o som na linguagem verbal, ou a cor e a<br />

topologia, em textos visuais, pertencem ao plano da expressão.<br />

11 Merleau-Ponty explica que quando um corpo segue em direção ao mundo, “a extereoceptivida<strong>de</strong> exige<br />

uma enformação dos estímulos, a consciência do corpo inva<strong>de</strong> o corpo, a alma se espalha em todas as<br />

suas partes, o comportamento extravasa seu setor central (...)” (2006b, p.114). Assim, as noções <strong>de</strong><br />

esquema corporal “são primeiramente empregadas então em um sentido que não é seu sentido pleno, e<br />

é seu <strong>de</strong>senvolvimento imanente que <strong>de</strong>mole os métodos antigos. Primeiramente, entendia-se por<br />

„esquema corporal‟ um resumo <strong>de</strong> nossa experiência corporal capaz <strong>de</strong> oferecer um comentário e uma<br />

significação à interoceptivida<strong>de</strong> e à proprioceptivida<strong>de</strong> do momento. Ele <strong>de</strong>via fornecer-me a mudança<br />

<strong>de</strong> posições das partes <strong>de</strong> meu corpo para cada movimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las (...)” (MERLEAU-PONTY,<br />

2006b, p.144).<br />

42


É a carne como tangibilida<strong>de</strong> e também como visibilida<strong>de</strong> que atravessa<br />

o corpo próprio, num movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>ssubjectivação. Outro nome para<br />

<strong>de</strong>signar o „ser bruto‟, a carne é uma instância <strong>de</strong> anonimização do<br />

corpo, enquanto este é uma figuração da carne. (BABO, 2001, p. 257)<br />

Assim, conforme explica Fontanille (2004a, p. 36), o corpo do actante po<strong>de</strong> ser<br />

analisado a partir das duas instâncias: pela carne, um eu <strong>de</strong> referência, e pelo corpo<br />

próprio, Seu Outro em <strong>de</strong>vir. Desse modo, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

actancial do sujeito encarnado se constrói no ato semiótico que emerge do estímulo<br />

sensoriomotriz do actante, cujo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção semiótica se apoiará na<br />

interrelação entre a carne e o corpo próprio, entre o Eu e o Seu Outro.<br />

O ato será então o resultado da correlação (conversa ou diversa) entre<br />

as pressões exercidas sobre o moi-carne (<strong>de</strong> tipo sensoriomotor) e as<br />

pressões exercidas sobre o soi-corpo-próprio: permanecer o mesmo,<br />

transformar-se e apropriar-se etc. Toda figura <strong>de</strong> ato po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida,<br />

nesse sentido, como o resultado <strong>de</strong> uma dupla <strong>de</strong>terminação, <strong>de</strong> um<br />

equilíbrio ou <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sequilíbrio entre esses dois tipos <strong>de</strong> pressões. 12<br />

(FONTANILLE, 2004a, p. 36)<br />

O corpo como ancoragem da presença no mundo é o primeiro modo <strong>de</strong><br />

existência da significação, <strong>de</strong> acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p.123). Sendo<br />

assim, cada efeito <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>ve reunir um grau <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> (energia, força,<br />

intensida<strong>de</strong> sensível, resistência), que “torna a percepção mais viva ou menos viva”<br />

(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.19), e <strong>de</strong>terminada posição ou quantida<strong>de</strong> na<br />

extensida<strong>de</strong> (duração, espaço, número <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>s integradas etc.), que guia ou<br />

condiciona “o fluxo da atenção do sujeito da percepção” (FONTANILLE e<br />

ZILBERBERG, 2001, p. 19).<br />

As correlações conversas e diversas das dimensões intensivas e extensivas são<br />

responsáveis pela formação e estabilização das figuras semióticas. Desse modo, “a<br />

presença conjuga, em suma, forças (internas) <strong>de</strong> um lado, e posições e quantida<strong>de</strong>s<br />

(externas), do outro” (FONTANILLE, 2007, p. 76), domínios internos e externos em um<br />

mundo sensível. Portanto, o corpo próprio se constitui na força da relação semiótica,<br />

em cujo fenômeno do ato possuirá uma competência interna (energia) e uma<br />

12 L‟acte résultera alors <strong>de</strong> la corrélation (convergente ou divergente) entre les pressions exercées sur le<br />

Moi-chair (<strong>de</strong> type sensori-moteur) et les pressions exercées sur le Soi-corps prope: rester Le même,<br />

<strong>de</strong>venir et tenir, etc. Toute figure d‟acte peut alors être définie comme résultant d‟une double<br />

détermination, d‟un équilibre ou d‟un déséquilibre entre ces <strong>de</strong>ux types <strong>de</strong> pressions.<br />

43


competência externa (posições). No caso do actante encarnado, a competência<br />

interior, a energia, está no domínio da carne (Eu) e a competência exterior está no<br />

domínio do corpo próprio (Seu Outro).<br />

De volta à materialida<strong>de</strong> da carne <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong> Masako, po<strong>de</strong>-se<br />

compreen<strong>de</strong>r como se organiza o campo <strong>de</strong> presença que é constituído a partir da<br />

percepção da presença da matéria corporal das duas moças. Esse campo seria, assim,<br />

uma espécie <strong>de</strong> equivalência das relações juntivas entre sujeito e objeto, uma área na<br />

qual se exerce a percepção e na qual o sujeito se constitui no percurso (entradas,<br />

estadas, saídas e retornos) para alcançar um objeto. No caso <strong>de</strong> Shinya e Masako,<br />

em um primeiro momento, percebe-se a presença da materialida<strong>de</strong> dos dois corpos<br />

numa <strong>de</strong>terminada intensida<strong>de</strong>, nesse instante forma-se o campo <strong>de</strong> presença; no<br />

instante seguinte, passa-se a perceber Shinya e Masako maquiadas<br />

glamourosamente, em junção com o glamour 13 (objeto <strong>de</strong> valor) do meio social <strong>de</strong><br />

referência. O percurso é, portanto, circunscrito pela própria percepção do sujeito. As<br />

gradações da relação entre sujeito e objeto são <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da tensivida<strong>de</strong>,<br />

que é “a pressuposição recíproca entre dois gradientes orientados, representados nos<br />

gráficos tensivos por um eixo da intensida<strong>de</strong> – relacionado aos estados <strong>de</strong> alma, ao<br />

sensível –, e um eixo da extensida<strong>de</strong> – relacionado aos estados <strong>de</strong> coisas, ao<br />

inteligível” (MANCINI, TROTTA e SOUSA, 2007, p.296).<br />

No instante em que a presença das materialida<strong>de</strong>s dos corpos <strong>de</strong> Shinya e<br />

Masako, ainda sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, é percebida, é estabelecido um foco; no momento<br />

seguinte, ocorre a apreensão cognitiva da tomada <strong>de</strong> posição das moças glamourosas.<br />

Portanto, o eixo da intensida<strong>de</strong> está relacionado à potência da tensão entre sujeito e<br />

objeto, à tonicida<strong>de</strong> da percepção, já o outro eixo, da extensida<strong>de</strong>, irá circunscrever a<br />

dimensão do campo <strong>de</strong> percepção do sujeito. Na função percepção, as duas<br />

operações necessárias para uma representação da significação em ato são assim<br />

<strong>de</strong>nominadas: foco (intensida<strong>de</strong>) e apreensão (extensida<strong>de</strong>). Desse modo, os graus <strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> extensão, controlados pelas operações do foco e da apreensão,<br />

13 Além <strong>de</strong> magnetismo e charme pessoal, glamour é consi<strong>de</strong>rado um objeto <strong>de</strong> valor do mundo luxuoso:<br />

muitas festas, grifes caras, maquiagens e cabelos <strong>de</strong> acordo com o estilo <strong>de</strong> vida luxuoso e<br />

contemporâneo.<br />

44


convertem-se em graus <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> perceptiva 14 .<br />

Os eixos da intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong> e a área <strong>de</strong> correlação po<strong>de</strong>m ser<br />

representados conforme o esquema tensivo número 1:<br />

Eixo da<br />

Intensida<strong>de</strong><br />

Domínio Interno,<br />

Interoceptivo,<br />

Plano do<br />

conteúdo.<br />

Estado <strong>de</strong> alma,<br />

sensível.<br />

Operação: Foco<br />

Carne<br />

+<br />

-<br />

Área <strong>de</strong> correlação<br />

Resulta da tomada <strong>de</strong><br />

posição.<br />

Presença Sensível<br />

Proprioceptiva<br />

- Eixo da Extensida<strong>de</strong><br />

Domínio Externo, exteroceptivo.<br />

Plano da Expressão.<br />

Estado <strong>de</strong> coisas, inteligível.<br />

Operação: apreensão<br />

Corpo-próprio<br />

+<br />

A figura do ato semiótico dos actantes sujeitos encarnados Shinya e Masako<br />

correspon<strong>de</strong> a um equilíbrio entre as pressões exercidas sobre a carne e as pressões<br />

exercidas sobre o corpo próprio que, neste caso, entra em <strong>de</strong>vir e se apropria do<br />

glamour do meio <strong>de</strong> referência, representado no esquema tensivo número 2:<br />

14 “A profundida<strong>de</strong> é justamente a distância (sensível, percebida) entre o centro e os horizontes (...). É<br />

um movimento entre o centro e os horizontes, uma variação da tensão entre a intensida<strong>de</strong> e a<br />

extensão” (Fontanille, 2007, p. 102).<br />

45


Assim, as moças glamourosas, presentes num meio social glamouroso, partem<br />

<strong>de</strong> uma presença da materialida<strong>de</strong> dos seus corpos que se manterá quando ocorrer a<br />

apreensão do glamour dos seus invólucros maquiados. Por estarem em conjunção<br />

com o seu meio <strong>de</strong> referência, ou seja, <strong>de</strong> acordo com a hexis corporal glamourosa,<br />

trata-se <strong>de</strong> uma correlação conversa, isto é, se o meio pe<strong>de</strong> glamour então as moças<br />

se apresentam maquiadas apropriadamente a ele, conforme o esperado. As duas<br />

dimensões evoluem na mesma direção, ou seja, quanto mais Shynia e Masako são<br />

focadas, maior será a extensão da apreensão, e a estabilização das presenças das<br />

duas moças.<br />

Eixo da<br />

Intensida<strong>de</strong><br />

Operação:<br />

Foco<br />

Carne Shinya e<br />

Masako<br />

Desse modo, “o aumento da intensida<strong>de</strong> combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da<br />

extensão produz uma tensão afetiva e cognitiva” (FONTANILLE, 2007, p.112),<br />

gerando, assim, um esquema <strong>de</strong> amplificação 15 .<br />

+<br />

-<br />

-<br />

Eixo da Extensida<strong>de</strong><br />

Operação: apreensão<br />

Corpo-próprio Shynia e Masako<br />

Glamourosas<br />

15 De acordo com Fontanille, “os esquemas tensivos serão esquemas discursivos elementares, que<br />

regulam a interação do sensível e do inteligível, as tensões e os relaxamentos que modulam essa<br />

interação” (2007, p.109). O princípio que organiza a estrutura tensiva possibilita quatro tipos <strong>de</strong><br />

esquemas: <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, <strong>de</strong> ascendência, da amplificação (exemplificado acima) e da atenuação.<br />

(FONTANILLE, 2007, p.110 - 112)<br />

+<br />

46


Fontanille explica que o Eu e o Seu Outro (carne e corpo próprio) são<br />

inseparáveis, é como se fossem o anverso e o reverso <strong>de</strong> uma mesma entida<strong>de</strong>. As<br />

duas instâncias do actante encarnado se pressupõem e se <strong>de</strong>terminam<br />

reciprocamente, ou seja:<br />

o Soi [Seu Outro] é essa parte <strong>de</strong>le mesmo que o Moi [Eu] projeta para<br />

fora <strong>de</strong> si para po<strong>de</strong>r construir-se atuando; o Moi [Eu] proporciona ao<br />

Soi [Seu Outro] o impulso e a resistência que lhe permitem colocar-se<br />

em marcha até seu <strong>de</strong>vir; o Soi [Seu Outro] proporciona ao Moi [Eu] a<br />

reflexibilida<strong>de</strong> que necessita para medir-se a si mesmo durante a troca.<br />

O Moi [Eu] estabelece ao Soi [Seu Outro] um problema que tem que ser<br />

resolvido permanentemente: o Moi [Eu] se <strong>de</strong>sloca, se <strong>de</strong>forma, resiste,<br />

e obriga o Soi [Seu Outro] a afrontar sua própria alterida<strong>de</strong>, problema<br />

que o Soi [Seu Outro] se esforça em resolver, seja por repetição e<br />

semelhança, seja por foco 16 constante e mantido. (FONTANILLE,<br />

2004a, p.24) 17<br />

Percebe-se, portanto, que são várias estratégias a que um sujeito encarnado<br />

po<strong>de</strong> recorrer para representar e <strong>de</strong>senvolver sua própria “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” ante a figura<br />

complementar que ele se dá como representante do “outro”. Nesse caso, o plano das<br />

práticas sociais em questão é o da problemática das relações intersubjetivas<br />

16 Quando Fontanille explica que o corpo-próprio Seu Outro ao afrontar a alterida<strong>de</strong> procura fazê-lo<br />

por repetição e semelhança ou por foco constante e mantido, ele se baseia nas teorias <strong>de</strong> Paul Ricoeur<br />

sobre os modos <strong>de</strong> construção do Seu Outro: Soi-i<strong>de</strong>m, por repetição e semelhança (apreensão) e soiipse<br />

por manutenção e permanência (foco). Paul Ricoeur explica que a sua <strong>tese</strong> é “que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na<br />

acepção <strong>de</strong> ipse não implica nenhuma afirmação relativa a um pretendido núcleo não variável da<br />

personalida<strong>de</strong>. É aquilo, quando bem mesmo a ipseida<strong>de</strong> traria modalida<strong>de</strong>s claras <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Como a análise da promessa atesta. Ora o equivoco da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> refere-se ao nosso título por meio do<br />

sinônimo parcial em francês entre “mesmo” e “idêntico”. Nas suas acepções variadas, “mesmo” é<br />

empregado no âmbito <strong>de</strong> uma comparação: tem por contrários: outro, contrário, distinto, diversos,<br />

<strong>de</strong>sigual, oposto. O peso <strong>de</strong>sse uso comparativo do termo “mesmo” me pareceu tão gran<strong>de</strong> que eu teria<br />

doravante que adotar mesmice para sinônimo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>-i<strong>de</strong>m e que eu oporia a ipseida<strong>de</strong> por<br />

referência a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>-ipse (1990, p.13). Notre thèse será que l‟i<strong>de</strong>ntité au sens d‟ipse n‟implique<br />

aucune assertion concernant um prétendu noyau non changeant <strong>de</strong> la personalité. Et cela, quand bien<br />

même l‟ipséité apporterait <strong>de</strong>s modalités propres d‟i<strong>de</strong>ntité. Comme l‟analyse <strong>de</strong> La promesse l‟attestera.<br />

Or l‟équivocité <strong>de</strong> l‟i<strong>de</strong>ntité concerne motre titre à travers La synonymie partielle, en français du moins,<br />

entre “même” et “i<strong>de</strong>ntique”. Dans ses acceptions variées , “même” est employé dans le cadre d‟une<br />

comparaison: il a pour contraires: autre, contraire, distinct, divers, inégal, inverse. Le poids <strong>de</strong> cet usage<br />

comparatif du terme “même” m‟a paru si grand que je tiendrai désormais la mêmeté pour synonyme <strong>de</strong><br />

l‟i<strong>de</strong>ntité-i<strong>de</strong>m et que je lui opposerai l‟ipséité par référence à l‟i<strong>de</strong>ntité-ipsé.<br />

17 Le Soi est cette part <strong>de</strong> lui-même que le Moi projette hors <strong>de</strong> lui pour pouvoir se construire en<br />

agissant; le Moi est cette part <strong>de</strong> lui-même auquel le Soi se réfère en se construisant. Le Moi procure au<br />

Soi l‟impulsion et la résistance qui lui permettent <strong>de</strong> se mettre en <strong>de</strong>venir; le Soi procure au Moi cette<br />

réflexivité dont Il a besoin pour se mesurer à lui-même dans le changement. Le Moi pose au Soi un<br />

problème qu‟il n‟a <strong>de</strong> cesse <strong>de</strong> résoudre: le Moi se déplace, se déforme et résiste, et contraint le Soi à<br />

affronter sa propre altérité, problème que le Soi s‟efforce <strong>de</strong> résoudre soit par répétition et similitu<strong>de</strong>, soit<br />

par visée constante et maintenue.<br />

47


vivenciadas, tais como se manifestam em um conjunto <strong>de</strong> discursos e <strong>de</strong> práticas<br />

empiricamente observáveis. São “os sujeitos em situação” (LANDOWSKI, 2002, p.31).<br />

Landowski (2002) esclarece que, ao dar forma à própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, não seria<br />

apenas pela maneira reflexiva que o sujeito tenta se <strong>de</strong>finir, isto é, como o outro o vê,<br />

mas também pela maneira por meio da qual o sujeito percebe o outro e lhe atribui um<br />

conteúdo próprio à diversida<strong>de</strong> que os separa. Isso significa que seja no plano da<br />

vivência individual, seja no da coletiva, “a emergência do sentimento <strong>de</strong> „i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>‟<br />

parece passar necessariamente pela intermediação <strong>de</strong> uma „alterida<strong>de</strong>‟ a ser<br />

construída” (LANDOWSKI, 2002, p.4). Contudo, conforme observam Fontanille e<br />

Zilberberg (2001, p.153), do ponto <strong>de</strong> vista fenomenológico, o mundo sensível, quando<br />

é observado por um sujeito, passa a ser um eterno <strong>de</strong>vir. Po<strong>de</strong>-se reter ou esten<strong>de</strong>r “os<br />

esboços que constituem o ser sensível”, suce<strong>de</strong>ndo-se ou superpondo-se<br />

in<strong>de</strong>terminadamente.<br />

Em primeiro lugar, ela [a percepção] não se apresenta como um<br />

acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a<br />

categoria da causalida<strong>de</strong>, mas a cada momento como uma re-criação<br />

ou uma re-constituição do mundo. Se acreditamos em um passado do<br />

mundo, no mundo físico, nos „estímulos‟, no organismo tal como nossos<br />

livros o representam, é primeiramente porque temos um campo<br />

perceptivo presente e atual, uma superfície <strong>de</strong> contato com o mundo ou<br />

perpetuamente enraizada nele, é porque sem cessar ele vem assaltar e<br />

investir a subjetivida<strong>de</strong>, assim como as ondas envolvem um <strong>de</strong>stroço na<br />

praia. (MERLEAU-PONTY, 2006b, p.279-280)<br />

Da mesma forma, o glamour envolve as materialida<strong>de</strong>s tanto <strong>de</strong> Shinya quanto<br />

<strong>de</strong> Masako fazendo-as utilizar cores e brilhos específicos na realização <strong>de</strong> suas<br />

maquiagens glamourosas.<br />

48


1.1.2- Corpo: movimento e envelope<br />

O movimento do corpo só po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar um papel na percepção<br />

do mundo se ele próprio é uma intencionalida<strong>de</strong> original, uma maneira<br />

<strong>de</strong> se relacionar ao objeto distinta do conhecimento. É preciso que o<br />

mundo esteja, em torno <strong>de</strong> nós, não como um sistema <strong>de</strong> objetos dos<br />

quais fazemos a sín<strong>tese</strong>, mas como um conjunto aberto <strong>de</strong> coisas em<br />

direção às quais nós nos projetamos. (MERLEAU-PONTY, 2006b,<br />

p.518)<br />

O movimento e o envelope têm o sentido <strong>de</strong> “uma interação entre forças e<br />

substâncias, entre uma energia e uma matéria” 18 (FONTANILLE, 2004a, p.127), cujo<br />

encontro produz um caso particular dos equilíbrios energéticos que dão lugar à<br />

conversão eidética. A partir das sensações provocadas pelos encontros <strong>de</strong> corpos,<br />

próximos ou distantes no espaço-tempo, são atualizadas zonas críticas e limites, ou<br />

seja, o movimento corporal que esbarra com o envelope do mundo ou vice-versa. O<br />

princípio semiótico continua inalterado, trocando-se apenas as posições dos corpos<br />

actanciais posicionais: fonte ou alvo. Assim, partindo do campo <strong>de</strong> presença do mundo<br />

glamouroso, no qual ele é o centro do campo, no modo da intensida<strong>de</strong>, ele sente a<br />

presença das materialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Shinya e <strong>de</strong> Masako, então, o mundo glamouroso<br />

procura focá-las para reconhecê-las como a origem da intensida<strong>de</strong>. Contudo, ele é a<br />

fonte do foco, mas também o alvo da intensida<strong>de</strong> das moças, uma vez que elas<br />

<strong>de</strong>sejam se inserir naquele mundo. O mundo, porém, permanecerá a fonte do foco até<br />

que a presença <strong>de</strong> ambas seja percebida como intencional. Assim, a partir <strong>de</strong>sse<br />

momento, o mundo do glamour, que até então era o centro do discurso, per<strong>de</strong> a<br />

iniciativa do foco e passa a ser ele próprio focado pela intensida<strong>de</strong> que sente das<br />

presenças das moças, ou seja, a alterida<strong>de</strong> intencional (das moças maquiadas <strong>de</strong><br />

glamour) toma a forma no interior do campo glamouroso.<br />

Inversamente, no modo da extensão, no qual se pratica a apreensão, o mundo<br />

do glamour é o centro do campo e também o ponto <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> todas as<br />

avaliações <strong>de</strong> distância espaço-temporal e <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> glamour. Portanto, ele é,<br />

simultaneamente, a fonte da apreensão e das medidas da extensão, ele é quem avalia.<br />

18 D‟une interaction entre <strong>de</strong>s forces et <strong>de</strong>s substances, entre une énergie et une matière,<br />

49


Porém, no momento em que a presença das duas moças é percebida como<br />

intencional, é o lugar do actante mundo glamouroso, centro do discurso, que passa a<br />

ser apreendido e avaliado por Shinya e por Masako. Agora, o mundo do glamour é que<br />

é o alvo da comparação e da quantificação. Essa é uma relação centrífuga, na qual<br />

Shinya e Masako focam o mundo sensível, elas saem da sua materialida<strong>de</strong> (centro <strong>de</strong><br />

referência) e adotam a hexis corporal glamourosa (seu outro).<br />

Nos preceitos da tradição psicológica, as concepções <strong>de</strong> esquema corporal<br />

(gestalt-teoria, Shil<strong>de</strong>r), esquema postural (Head), divi<strong>de</strong>m-se em duas tendências:<br />

esquema postural, que aprecia a posição do corpo em movimento, e os esquemas <strong>de</strong><br />

superfície, que remetem a uma percepção dos limites corporais, observados do interior<br />

e do exterior, que proporcionam uma forma e uma imagem ao corpo. Fontanille (2004a,<br />

p.125) alerta para as duas representações distintas do corpo: o movimento e o<br />

envelope, “as forças e a forma”. A primeira é Kinestésica e a segunda, sinestésica e<br />

holística. Desse modo, o gestual comunicativo e a energia libidinal, o fluxo perceptivo e<br />

a sensoriomotricida<strong>de</strong> dizem respeito à carne móvel. O envelope, mais ligado às<br />

semióticas <strong>de</strong>senvolvidas pela psicanálise, também faz referência aos gestos<br />

comunicativos, entretanto, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> tanto das posturas (movimento e<br />

sensoriomotricida<strong>de</strong>) quanto das superfícies (fronteiras e envelope).<br />

Finalmente, a distinção fenomenológica entre carne e corpo faz eco<br />

também, indiretamente e em um nível mais fundamental, a essa<br />

distinção figurativa: <strong>de</strong> fato, a unida<strong>de</strong> da carne e do Moi [Eu] se baseia<br />

em uma sín<strong>tese</strong> Kinestésica, enquanto que a do corpo, como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

do Soi [Seu Outro] em <strong>de</strong>vir, se apoia em uma sín<strong>tese</strong> sinestésica e<br />

holística. A carne husserliana é hilética e sensoriomotriz , enquanto o<br />

corpo próprio é eidético. 19 (FONTANILLE, 2004a, p. 126)<br />

O caminho que se apresenta a partir do movimento e dos envelopes é<br />

apropriado para a compreensão <strong>de</strong> como um indivíduo chega a uma <strong>de</strong>terminada<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa, ou mais especificamente, como chega a utilizar <strong>de</strong>terminado tipo<br />

<strong>de</strong> maquiagem num meio social. Desse modo, <strong>de</strong>ve estar claro que o movimento<br />

19 Enfin, la distinction phénoménologique entre chair et corps fait elle aussi echo, indirectement et à un<br />

niveau plus fundamental, à cette distinction figurative: en effet, l‟unité <strong>de</strong> la chair et du Moi repose sur<br />

une synthèse Kinesthésique, alors que celle du corps, comme i<strong>de</strong>ntité du Soi en <strong>de</strong>venir, repose sur une<br />

synthèse coenesthésique et holistique; la chair husserlienne est hylétique et sensori-motrice, alors que le<br />

corps propre est eidétique.<br />

50


semiótico permanece constante entre o movimento corporal que esbarra com o<br />

envelope do mundo e entre o movimento do mundo que esbarra com o envelope<br />

corporal, e o que se modifica é a distribuição dos papéis actanciais posicionais: fonte<br />

e alvo.<br />

Segundo Fontanille (2007, p.104), não há priorida<strong>de</strong> entre os actantes<br />

posicionais ou entre os focos e as apreensões, assim como os papéis que recobrirão<br />

os actantes serão <strong>de</strong>finidos pela orientação do discurso. Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer<br />

que quando o actante-fonte – movimento (matéria corporal <strong>de</strong> Shinya e Masako) entra<br />

em relação intensa e afetiva com o actante-alvo - envelope do mundo (seu outro<br />

glamouroso), está em um campo posicional aberto, no eixo da intensida<strong>de</strong> (foco).<br />

Como também, em um outro momento, po<strong>de</strong>rá ocorrer uma mudança <strong>de</strong> posição e <strong>de</strong><br />

registro: o actante fonte - envelope do mundo (seu outro glamouroso) – entrará em<br />

relação cognitiva e extensiva ou quantitativa com o actante alvo- movimento (matéria<br />

corporal <strong>de</strong> Shinya e Masako), em um campo posicional fechado, no eixo da<br />

extensida<strong>de</strong> (apreensão). Desse modo, o foco atualizará e abrirá as estruturas <strong>de</strong><br />

campo. Em outra situação, a apreensão as realizaria e as fecharia (2007, p.159).<br />

O movimento é, então, uma energia (sensoriomotriz) que se <strong>de</strong>stina às<br />

substâncias do mundo sobre as quais serão <strong>de</strong>senhadas ou reveladas formas<br />

(envelopes das coisas do mundo glamouroso e do corpo glamouroso). O envelope<br />

corporal é constituído a partir da energia do mundo (glamouroso) ou do corpo-carne<br />

sobre a matéria corporal, estabelecida como reativa e resistente. O corpo, portanto, é<br />

<strong>de</strong>finido como movimento e como envelope, por causa do <strong>de</strong>slocamento do ponto <strong>de</strong><br />

vista, que, <strong>de</strong>vido à inversão dos papéis actanciais, po<strong>de</strong> ser fonte da energia<br />

(movimento) ou alvo (envelope), como explica Fontanille (2004a, p. 128). Merleau-<br />

Ponty, no livro A estrutura do comportamento, também aborda esse princípio:<br />

Já que o próprio corpo não é apreendido como uma massa material e<br />

inerte ou como um instrumento exterior, mas como o invólucro vivo <strong>de</strong><br />

nossas ações, o princípio <strong>de</strong>stas não precisa ser uma força quase<br />

física. Nossas intenções encontram nos movimentos sua vestimenta<br />

natural ou sua encarnação e exprimem-se neles como a coisa se<br />

exprime em seus aspectos perspectivos. (MERLEAU-PONTY, 2006a, p.<br />

292)<br />

51


Desse modo, o que <strong>de</strong>ve ficar claro é que o movimento corporal é intencional e<br />

o envelope, individualizante, e ambos constituem o actante encarnado. A partir <strong>de</strong> uma<br />

lei semiótica geral, as figuras são formadas a partir da interação da matéria e da<br />

energia, e, mais adiante, <strong>de</strong> um diálogo entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>, no campo<br />

da presença, como po<strong>de</strong> ser visto no esquema tensivo número 2. A carne e o corpo<br />

próprio se distinguem dos outros sistemas físicos pela orientação e pela assimetria das<br />

relações com o mundo, característica, <strong>de</strong> acordo com Fontanille (2004a, p. 130-131),<br />

do encarnado. Também colaboram nessa distinção a natureza tímica das tensões<br />

<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes das condições anteriores e, ainda, os dois ícones actanciais: a forma do<br />

envelope e a carne movimento.<br />

1.1.3 - Eu-pele: um envelope corporal semiótico<br />

Por Eu-pele <strong>de</strong>signo uma representação <strong>de</strong> que se serve o Eu da<br />

criança durante as fases precoces <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento para se<br />

representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a<br />

partir <strong>de</strong> sua experiência da superfície do corpo (ANZIEU, 1989, p. 44).<br />

O psicanalista francês Didier Anzieu explica que “Envelope é uma noção<br />

abstrata que exprime o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um observador minucioso, mas <strong>de</strong> fora”<br />

(1989, p.67). Na semiótica, <strong>de</strong> acordo com Fontanille, o sujeito, a partir da experiência<br />

sensorial, passa a perceber seu próprio envelope, tanto no campo transitivo quanto no<br />

recursivo. Desse modo, todos os objetos palpáveis, odoríficos, auditivos ou visíveis são<br />

dotados <strong>de</strong> envelopes e po<strong>de</strong>m envolver qualquer coisa com suas capas englobantes.<br />

Além disso, “o envelope converte-se em uma parte característica <strong>de</strong> algo transformado<br />

em actante do mundo sensível 20 ” (2004a, p. 109). O envelope corporal seria “o<br />

resultado da energia do mundo ou do corpo-carne, aplicada à matéria corporal, tratada<br />

como forma reativa e resistente 21 ” (FONTANILLE, 2004a, p.128).<br />

Anzieu parte da noção <strong>de</strong> barreiras <strong>de</strong> contato, <strong>de</strong>senvolvida por Freud, para<br />

20 L‟enveloppe <strong>de</strong>vient une partie caractéristique d‟une chose transformée en actant du mon<strong>de</strong> sensible.<br />

21 Le résultat <strong>de</strong> l‟énergie du mon<strong>de</strong> ou du corps-chair lui-même, appliquée à la matière corporelle, traitée<br />

alors comme forme réactive et résistante.<br />

52


ampliar o conceito <strong>de</strong> envelope corporal, no qual há um duplo sentido: o primeiro <strong>de</strong><br />

para-excitação, uma espécie <strong>de</strong> filtro protetor dos estímulos exteriores, e, o segundo<br />

sentido, <strong>de</strong> membrana resistente e impermeável que abarca as forças interiores. Esses<br />

dois sentidos fazem das barreiras <strong>de</strong> contato uma espécie <strong>de</strong> operadoras <strong>de</strong> triagem<br />

que atuam sobre a quantida<strong>de</strong> (extensida<strong>de</strong>) e a intensida<strong>de</strong> das solicitações e agem a<br />

partir <strong>de</strong> um acordo modal e axiológico. Fontanille, então, enten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

envelope corporal como “uma re<strong>de</strong> polissensorial e superficial que põe em contato o<br />

Eu e o mundo, ou mais precisamente, que recebe, <strong>de</strong> um lado, solicitações do mundo<br />

e, do outro, solicitações do Eu 22 (2004a, p. 141). Portanto, po<strong>de</strong>-se dizer que o<br />

envelope é uma superfície protetora, uma membrana, “que po<strong>de</strong>ria ser relacionada<br />

com a percepção das fronteiras da imagem do corpo” (ANZIEU, 1989, p. 35), mais<br />

precisamente do corpo próprio.<br />

A partir <strong>de</strong> duas premissas, a primeira freudiana e a segunda Jacksoniana, nas<br />

quais a função psíquica se <strong>de</strong>senvolve apoiada na função corporal e na do córtex que<br />

ten<strong>de</strong> a comandar o sistema nervoso, Anzieu <strong>de</strong>senvolve a teoria do Eu-pele que<br />

combina as proprieda<strong>de</strong>s fenomenológicas do corpo – próprio, unitário e <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong><br />

uma forma global, e as proprieda<strong>de</strong>s da topologia energética oriundas da psicanálise,<br />

fundando, <strong>de</strong>ssa maneira, uma tipologia figurativa do corpo: “a experiência específica<br />

do corpo-próprio como envelope sensorial e psíquico, como película, fronteira e<br />

membrana que separa e coloca em comunicação o eu e o mundo para mim”<br />

(FONTANILLE, 2004b, p. 100).<br />

Para o psicanalista, a pele tem uma importância capital: ela fornece ao<br />

aparelho psíquico as representações constitutivas do Eu e <strong>de</strong> suas<br />

principais funções. Esta constatação está presente no quadro da teoria<br />

geral da evolução. (ANZIEU, 1989, p. 109)<br />

Ao Eu-pele Anzieu atribui algumas funções: sustentação, continente, para-<br />

excitação, individuação (filtro qualitativo), conector intersensorial, receptor do prazer e<br />

da dor, barreira <strong>de</strong> recarga e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga energética, superfície <strong>de</strong> inscrição dos<br />

<strong>de</strong>senhos exteriores significantes (ANZIEU, 1989, p. 111-120). E essas funções, como<br />

pensa Fontanille, “fazem dos avatares do corpo o verda<strong>de</strong>iro crisol da função semiótica<br />

22 Le réseau polysensoriel et superficiel qui met en contact le moi et le mon<strong>de</strong> ou, plus précisément qui<br />

reçoit d‟un côté <strong>de</strong>s sollicitations du mon<strong>de</strong> et, <strong>de</strong> l‟autre, celles du moi.<br />

53


e a manifestação concreta da formação das instâncias enunciantes” 23 (2004a, p. 124).<br />

Assim, “o corpo transformado em um Eu-pele é um corpo cinestésico, um invólucro<br />

suscetível <strong>de</strong> funcionar como „superfície <strong>de</strong> inscrição‟, e <strong>de</strong> engendrar por <strong>de</strong>breagem o<br />

conjunto dos suportes semióticos, os substratos materiais do „plano da expressão‟”<br />

(FONTANILLE, 2001, p.235).<br />

A pele é um envelope corporal semiótico especial para este trabalho, uma vez<br />

que “Anzieu transforma o Eu-pele em uma superfície na qual se po<strong>de</strong>m gravar signos”<br />

(FONTANILLE, 2004a, p. 233). Uma tela que recebe as projeções psíquicas, sobre a<br />

qual os jogos <strong>de</strong> sombra (masoquismos, auto torturas, narcisismo etc.) po<strong>de</strong>m<br />

significar os estados interiores do sujeito. A partir disso, <strong>de</strong> uma maneira mais geral, o<br />

envelope corporal semiótico seria, assim, “uma „superfície <strong>de</strong> inscrição‟, uma interface<br />

entre os „conteúdos‟ <strong>de</strong> sentido e suas „expressões‟ 24 (FONTANILLE, 2004a, p.233).<br />

1.2 DE ENVELOPE CORPORAL A OBJETO SEMIÓTICO<br />

(...)também se muda <strong>de</strong> roupa sem trocar <strong>de</strong> pele. (ASSIS, 1994, p.79)<br />

Deixo, momentaneamente, Shinya e Masako usufruindo toda glamourosida<strong>de</strong><br />

para apresentar um outro corpo actante: Margarete, agora figurativizada nas linhas do<br />

poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, O gran<strong>de</strong> circo místico:<br />

(...) A filha <strong>de</strong> Lily Braun – a tatuada no ventre<br />

quis entrar para um convento,<br />

mas Oto Fre<strong>de</strong>rico Knieps não aten<strong>de</strong>u,<br />

e Margarete continuou a dinastia do circo<br />

<strong>de</strong> que tanto se tem ocupado a imprensa.<br />

Então, Margarete tatuou 25 o corpo<br />

sofrendo muito por amor <strong>de</strong> Deus,<br />

23 Font <strong>de</strong>s avatars du corps, en outre, le véritable creuset <strong>de</strong> la fonction sémiotique, et la manifestation<br />

concrète <strong>de</strong> la formation <strong>de</strong>s instances énonçantes.<br />

24 Anzieu, convertit le Moi-peau en une surface où <strong>de</strong>s signes peuvent être gravés, en un écran ou <strong>de</strong>s<br />

jeux d‟ombres peuvent être projetés, et signifier ainsi les états intérieurs du sujeit. C‟est, plus<br />

généralement, dans une perspective sémiotique, ce qui fait <strong>de</strong> l‟‟enveloppe‟ corporelle une véritable<br />

„surface d‟inscription‟, une interface entre les „contenus‟ <strong>de</strong> sens et les „expressions‟ dont elle a recueilli<br />

les traces.<br />

25 Utilizo este exemplo da tatuagem, porque, mesmo ela não sendo efêmera, o efeito é praticamente o<br />

mesmo que daria a surpresa <strong>de</strong> um corpo totalmente maquiado. A tatuagem, no caso, tem um efeito<br />

mais dramático e duradouro, mas isso não tira o fator didático para a compreensão da <strong>de</strong>finição<br />

<strong>de</strong>sejada.<br />

54


pois gravou em sua pele rósea<br />

a Via-Sacra do Senhor dos Passos.<br />

E nenhum tigre a ofen<strong>de</strong>u jamais;<br />

e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,<br />

quando ela entrava nua pela jaula a<strong>de</strong>ntro,<br />

chorava como um recém-nascido.<br />

Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pô<strong>de</strong> amar,<br />

pois as gravuras sagradas afastavam<br />

a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le (LIMA, 2006, p. 133).<br />

Apesar <strong>de</strong> o exemplo partir <strong>de</strong> um enunciado escrito, com a concepção formal<br />

<strong>de</strong> actantes que ocupam posições formais presumidas e explícitas, diferentemente do<br />

discurso em ato, ele <strong>de</strong>ixa claro como se dá a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que possibilita<br />

transformar a pele - envelope corporal - em superfície <strong>de</strong> inscrição semiótica sobre a<br />

qual se po<strong>de</strong>m pintar enunciados. A enunciação é concebida por Greimas (2008), a<br />

partir <strong>de</strong> três operações: a <strong>de</strong>breagem, a embreagem e a convocação 26 . Vale lembrar<br />

que o primeiro ato semiótico é o da tomada <strong>de</strong> posição, e assim, ao enunciar uma<br />

posição, ela é dotada <strong>de</strong> uma presença (a materialida<strong>de</strong> corporal- carne <strong>de</strong><br />

Margarete). Quem opera o ato <strong>de</strong> enunciação é o corpo próprio (seu outro- Margarete<br />

tatuada), primeira forma assumida pelo actante da enunciação. Desse modo,<br />

Margarete, ao tatuar a sua própria “pele rósea”, a torna uma superfície <strong>de</strong> inscrição<br />

sobre a qual figura a “Via-Sacra do Senhor dos Passos”, o mundo sagrado com o qual<br />

ela quer entrar em conjunção. A <strong>de</strong>breagem, segundo ato fundador da instância do<br />

discurso, instala as condições para a realização do discurso <strong>de</strong> Margarete ao provocar<br />

a transição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> indizível, ou seja, virtual, a um discurso realizado: a<br />

passagem do <strong>de</strong>sejo proibido <strong>de</strong> Margarete <strong>de</strong> “querer entrar para um convento” ao ato<br />

enunciativo operado pela <strong>de</strong>breagem que permite gravar “em sua pele rósea a Via-<br />

Sacra do Senhor dos Passos”, proporcionando, assim, a projeção do que era próprio a<br />

Margarete, ou seja, o mundo sagrado. As gravuras inscritas sobre o corpo-próprio,<br />

envelope corporal, provocaram um confronto direto com o mundo do circo cujas<br />

reações foram: o eterno respeito do tigre, o choro do feroz leão Nero ao ver Margarete<br />

“nua pela jaula a<strong>de</strong>ntro” e a impossibilida<strong>de</strong> do seu esposo – o trapezista Ludwig -<br />

26 O conceito das operações <strong>de</strong> embreagem e <strong>de</strong> convocação não será utilizado neste trabalho. Verificar<br />

GREIMAS e COURTÉS, Dicionário <strong>de</strong> semiótica, 2008, p. 159 e FONTANILLE e ZILBERBERG, Tensão<br />

e significação, 2001, p. 200.<br />

55


po<strong>de</strong>r amá-la, já que “as gravuras sagradas afastavam a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le”.<br />

Margarete, por suposição, nesse momento, separava-se do mundo do circo e este se<br />

distanciava <strong>de</strong> Margarete 27 .<br />

A <strong>de</strong>breagem separa a simples presença da materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Margarete do<br />

discurso realizado <strong>de</strong> Margarete tatuada. Desse modo, Margarete tatuada po<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>sdobrar em extensão e pluralizar o seu discurso que foi aberto, admitindo mais<br />

espaços e mais momentos, proporcionando, <strong>de</strong>sse modo, <strong>de</strong>slocamentos dos pontos<br />

<strong>de</strong> vista, dos jogos <strong>de</strong> memória. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, portanto, oferece ao<br />

envelope corporal a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter vários sentidos e assim ser um objeto<br />

semiótico.<br />

1.3 ENVELOPE SEU OUTRO-PELE: SUPORTE SENSÍVEL PARA INSCRIÇÕES DE<br />

UM SUJEITO NO MUNDO<br />

O que há <strong>de</strong> mais profundo no homem é a pele. Depois medula,<br />

cérebro, tudo o que é necessário para sentir, sofrer, pensar... ser<br />

profundo (...), são as invenções da pele!... Nós nos esforçamos em vão<br />

<strong>de</strong> nos aprofundar, doutor, nós somos... ecto<strong>de</strong>rma. (VALÉRY, 1960, p.<br />

215-216)<br />

O Eu pele seria, assim, o protótipo <strong>de</strong> todas as superfícies <strong>de</strong><br />

inscrição 28 (FONTANILLE, 2004a, p. 150).<br />

Quando Margarete “gravou em sua pele rósea a Via-Sacra do Senhor dos<br />

Passos”, ela projetou as sensações do seu encontro corporal com o mundo do circo e<br />

enunciou a sua dor e o seu mal-estar em relação ao meio circense e, ao mesmo<br />

tempo, revelou o seu prazer e bem-estar perante Deus. Essas eram as solicitações do<br />

mundo circense e as solicitações do eu <strong>de</strong> referência (carne) <strong>de</strong> Margarete<br />

intermediadas pela re<strong>de</strong> polissensorial e superficial do seu envelope corporal.<br />

27 Digo que é uma suposição para o recorte feito do poema. Na verda<strong>de</strong>, o autor do poema não permitiu<br />

que Margarete se afastasse do circo, pois nos versos seguintes escreve:<br />

Então, o boxeur Rudolf que era ateu<br />

e era homem fera <strong>de</strong>rrubou Margarete e a violou.<br />

Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.<br />

Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Gran<strong>de</strong> Circo Knieps. (LIMA, 2006, p. 134)<br />

28 Le Moi-peau serait donc le prototype <strong>de</strong> toutes les surfaces d‟inscription.<br />

56


O afeto negativo, <strong>de</strong>nso e obscuro <strong>de</strong> Margarete em relação ao meio circense<br />

tornava o seu envelope corporal também opaco, assim, ela inscreve os efeitos do<br />

sentir nos estados <strong>de</strong> coisas, viabilizado pela operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem. Fontanille<br />

(2008, p.174), baseado nas teorias <strong>de</strong> Marc Richir, explica que a opacida<strong>de</strong> corporal<br />

causada pelos acontecimentos afetivos propicia ao corpo uma existência atual e<br />

autônoma, resistente e cheia <strong>de</strong> obstáculos. O envelope corporal, então, tem a<br />

opacida<strong>de</strong> como proprieda<strong>de</strong> que o torna impermeável sob a forma <strong>de</strong> uma película<br />

resistente e visível. Apesar do limite imposto por ele às emoções e aos afetos, estes<br />

ainda são forças capazes <strong>de</strong> modificá-lo. A modificação dos envelopes das coisas e<br />

do mundo só po<strong>de</strong> ser realizada pelo envelope corporal la<strong>de</strong>ado pela carne<br />

movimento; ele repleto <strong>de</strong> afetos e energia e ela possuidora da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> projeção<br />

sobre os estados <strong>de</strong> coisas.<br />

Contudo, vale ressaltar que, diante da característica do envelope corporal <strong>de</strong><br />

interface entre o Eu <strong>de</strong> referência e o outro, Fontanille modifica, para o envelope<br />

semiótico, a nomenclatura Eu-pele, adotada por Anzieu, na psicanálise.<br />

“O envelope possui, literalmente, o estatuto <strong>de</strong> um “eu-mesmo como<br />

outro”, quer dizer, segundo Ricoeur, <strong>de</strong> um Soi. Não seguiremos, pois,<br />

os psicanalistas, que i<strong>de</strong>ntificam o „envelope‟ com o Eu: o eu-pele será<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> já para nós o Soi-pele” 29 (FONTANILLE, 2004a, p. 143) .<br />

A pele, maior órgão do corpo humano, é o que <strong>de</strong>termina o limite do corpo com<br />

o meio externo (Eu e o Seu Outro). É formada por três camadas: uma, mais externa e<br />

responsável pela proteção da camada sensível (nervos e tato), é chamada <strong>de</strong><br />

epi<strong>de</strong>rme; <strong>de</strong>pois a <strong>de</strong>rme e a parte mais profunda, a hipo<strong>de</strong>rme. É na pele que se<br />

observam as seguintes funções orgânicas: 1- sustentação do esqueleto e dos<br />

músculos; 2- cobertura total da superfície do corpo no qual se inserem os sentidos<br />

externos; 3- proteção da camada sensível e do organismo; 4 – proteção da<br />

individualida<strong>de</strong> celular; 5- hospedagem dos órgãos <strong>de</strong> sentido (exceto o tato, que está<br />

na epi<strong>de</strong>rme); 6- Investimento libidinal; 7- estimulação do tônus sensório-motor; 8-<br />

fornecimento <strong>de</strong> informações sobre o mundo exterior (calor, frio, pressão, dor e tato); 9-<br />

auto<strong>de</strong>struição. A essas funções orgânicas, Anzieu faz uma correspondência às<br />

29 L‟enveloppe a donc, littéralement, le statut d‟un „moi-même comme un autre‟, c‟est-à-dire, selon<br />

Ricoeur, un „Soi‟. Nous ne suivrons donc pas les psychanalystes,qui i<strong>de</strong>ntifient l‟‟enveloppe‟ au „Moi‟: le<br />

moi-peau sera désormais pour nous un Soi-peau.<br />

57


funções do Eu-Pele: 1- Manutenção do psiquismo; 2– continente; 3– Para-excitação;<br />

4– Individuação do self; 5- inter-sensorialida<strong>de</strong>; 6- sustentação da excitação sexual; 7-<br />

recarga libidinal; 8- inscrição dos traços sensoriais; 9- auto<strong>de</strong>struição.<br />

As funções orgânicas do Eu-pele reafirmam a relação fronteiriça do Eu e o<br />

mundo. Seria por meio dos orifícios da pele, entre eles, os poros, que ela segue por<br />

<strong>de</strong>ntro do corpo, ligando as suas áreas externa e interna. E é na parte interna do corpo<br />

que o ser humano é semelhante, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando, obviamente, o funcionamento<br />

metabólico e o código genético (PIRES, 2005, p. 106). Externamente, é na pele que<br />

estão estampadas a pluralida<strong>de</strong> cultural e étnica, as misturas, a miscigenação <strong>de</strong><br />

raças, além <strong>de</strong> ser superfície para novas inscrições: “peles são preciosas máscaras<br />

contadoras <strong>de</strong> histórias” (CAMPELO, 1996, p. 96). O corpo, na parte interna, é uma<br />

estrutura com matérias e funções, e, na externa, um envelope por meio do qual se<br />

comunica com o entorno, com o mundo. O entorno, o tempo e a socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />

modificar esse envelope corporal, a película <strong>de</strong> superfície.<br />

Essa modificação, como pensa Fontanille (2004a, p. 246), ten<strong>de</strong> a proteger a<br />

estrutura interior contra as tensões, agressões, pressões do exterior. Além da função<br />

<strong>de</strong> recepção dos estímulos e excitações exteriores, o envelope corporal (físico ou<br />

psíquico) cumpre também os papéis <strong>de</strong> adaptação e modificação da superfície e <strong>de</strong><br />

proteção. Indo mais adiante, Fontanille (2004a, p.246) explica que é com o intuito <strong>de</strong><br />

um efeito persuasivo 30 e emblemático do corpo, centralizado pelo envelope, que ele<br />

comunica e torna significativa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> preservada, em harmonia ou em<br />

dissonância com um <strong>de</strong>terminado meio social.<br />

Michel Serres (2001, p. 66), assim como Anzieu, acredita que a pele é como se<br />

fosse um mapa; é história <strong>de</strong> cicatrizes, <strong>de</strong> marcas, <strong>de</strong> pistas lançadas em sua<br />

superfície que alguns tentam escon<strong>de</strong>r e outros exibem como se fossem livros abertos.<br />

As cicatrizes e as marcas na pele, como pensa Jeudy, são como sinais in<strong>de</strong>strutíveis<br />

<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>gradação física e natural que se quer escon<strong>de</strong>r. Já as escarificações 31 (Fig.<br />

2) e as tatuagens realizadas artificialmente são expostas aos olhos <strong>de</strong> todos. Ao<br />

30<br />

As questões sobre o efeito persuasivo serão aprofundadas no capítulo 3, tópico 3.1 O FASCÍNIO<br />

PERSUASIVO.<br />

31<br />

Escarificações: “produção <strong>de</strong> pequenas incisões simultâneas e superficiais na pele“. (FERREIRA,<br />

1999, p. 794)<br />

58


pensar nas marcas corporais como uma forma <strong>de</strong><br />

expressão do indivíduo em relação ao mundo,<br />

vemos que isso somente po<strong>de</strong>ria acontecer sobre<br />

o envelope corporal que <strong>de</strong>limita esses dois<br />

espaços.<br />

A sensibilida<strong>de</strong>, alerta aberta a<br />

todas as mensagens, ocupa<br />

mais a pele que o olho, a boca<br />

ou a orelha...Os órgãos dos<br />

sentidos acontecem aí quando<br />

ela se faz doce e fina, ultrareceptiva.<br />

Em alguns lugares,<br />

em locais <strong>de</strong>terminados, ela se<br />

rarefaz até a transparência,<br />

abre-se, esten<strong>de</strong>-se até a<br />

vibração, torna-se olhar, ouvido,<br />

olfato, paladar... Os órgãos dos<br />

sentidos variam estranhamente<br />

a pele, ela própria variável<br />

fundamental, sensorium<br />

commune: sentido comum a<br />

todos os sentidos, que serve <strong>de</strong><br />

elo, ponte, passagem entre Figura 2: Escarificações em uma mulher da<br />

eles, plano banal, pare<strong>de</strong>-meia, tribo Nuba. Fonte: GRÖNING, 1998, p. 135.<br />

coletiva, partilhada(...)<br />

A pele irradia seu feixe, revela sua <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sabrocha, expõe<br />

as coisas que os sentidos põem em um lugar centralizado, dilui e<br />

dissolve. A planície é feita das areias que rolam <strong>de</strong> cada montanha, o<br />

leito dos rios, como o rosto, é feito da erosão das lágrimas e das rugas<br />

do riso. Nosso amplo e longo invólucro variável ouve muito, vê pouco,<br />

aspira secretamente os perfumes, estremece sempre, ao ruído, à<br />

luminosida<strong>de</strong> forte, ao fedor, recua <strong>de</strong> pavor, retrai-se ou exulta. Freme<br />

diante do branco e das notas altas, <strong>de</strong>sliza suave, a qualquer carícia.<br />

As coisas nos banham dos pés à cabeça, a luz, a escuridão, os<br />

clamores, o silêncio, as fragrâncias, toda sorte <strong>de</strong> ondas impregnam,<br />

inundam a pele. Não estamos embarcados a <strong>de</strong>z pés <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>,<br />

mas mergulhados. (SERRES, 2001, p. 66)<br />

E é exatamente do encontro sensível entre o corpo e o mundo, como está<br />

relatado no texto <strong>de</strong> Serres, que nascem as sensações. As lágrimas e os risos, o<br />

pavor e as carícias, os prazeres e as dores, o bem-estar e o mal-estar, como os <strong>de</strong><br />

Margarete, que po<strong>de</strong>m ser afetos (positivos ou negativos) que se acumulam, que<br />

inva<strong>de</strong>m e enchem o corpo e que Fontanille tem a impressão “<strong>de</strong> que só po<strong>de</strong>m ser<br />

sentidos e pensados a partir da metáfora do continente: tudo ocorre como se os afetos<br />

59


atualizassem um envelope que contivesse um conteúdo mais ou menos saturado” 32<br />

(2004a, p.128).<br />

Assim como Margarete, no poema <strong>de</strong> Lima, ou como Shinya e Masako, na<br />

fotografia <strong>de</strong> Kei Ogata, ou, ainda, como qualquer um <strong>de</strong> nós, sujeitos corpos actantes,<br />

que, ao aplicar uma base, um corretivo, sombras, opacas ou cintilantes, ao utilizar as<br />

cores e brilhos, fazemos do nosso corpo e dos envelopes corporais superfícies <strong>de</strong><br />

inscrição para enunciar o mundo, ou os mundos, que nos afetam e aos quais afetamos.<br />

Ou ainda, o mundo com seus movimentos e variados envelopes que acabam por<br />

capturar e seduzir corpos actantes que procuram a<strong>de</strong>quar seus envelopes corporais,<br />

dando-lhes novas cores para conquistar <strong>de</strong>finitivamente o meio que os envolveu. Mais<br />

ainda, corpos actantes que, no intuito <strong>de</strong> preservar o que lhes é próprio, reagem e<br />

utilizam a superfície <strong>de</strong> inscrição para aplicar cores chocantes, formas escandalosas e,<br />

<strong>de</strong>sse modo, mostrar o mal-estar que lhes causam <strong>de</strong>terminados meios sociais.<br />

Fontanille (2004a, p. 129) afirma que o diálogo semiótico ininterrupto, as trocas<br />

tensivas e tímicas entre o sujeito e o mundo são traduzidos corporalmente e<br />

figurativamente pela tensão e pela dialética entre os movimentos da carne e o<br />

envelope corporal. O que faz, sem dúvida alguma, do envelope corporal Seu Outro-<br />

pele/superfície <strong>de</strong> inscrição um suporte sensível no qual se projetam em figuras o estar<br />

no mundo <strong>de</strong> um sujeito corpo actante.<br />

1.4 ENTRE SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO E SUPORTE DE ENUNCIAÇÕES<br />

O Eu-pele exerce uma função <strong>de</strong> inscrição dos traços sensoriais táteis,<br />

função <strong>de</strong> pictograma (...), <strong>de</strong> escudo <strong>de</strong> Perseu enviando(...) uma<br />

imagem da realida<strong>de</strong> em espelho. O Eu-pele é o pergaminho originário<br />

que conserva à maneira <strong>de</strong> um palimpsesto, os rascunhos rasurados,<br />

riscados, reescritos <strong>de</strong> uma escrita „originária‟ pré-verbal feita <strong>de</strong> traços<br />

cutâneos (ANZIEU, 1989, p. 120)<br />

Por meio da superfície <strong>de</strong> inscrição, Margarete entra em contato com o sagrado<br />

e, ao mesmo tempo, separa-se do mundo circense. “As gravuras sagradas afastavam<br />

32 Elles semblent ne pouvoir être senties et pensées qu‟à partir <strong>de</strong> la métaphore du „contenant‟: tout se<br />

passe comme si les „affections‟ actualisaient une „enveloppe‟ qui contiendrait un contenu plus ou moins<br />

saturé.<br />

60


a pele <strong>de</strong>la e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le”. Assim, acontece o <strong>de</strong>frontamento direto do envelope do<br />

mundo circense com o envelope do Eu <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> Margarete. A superfície <strong>de</strong><br />

inscrição é, portanto, capaz <strong>de</strong> separar e <strong>de</strong> contatar as fronteiras <strong>de</strong> mundos<br />

diferentes, conforme revela Anzieu:<br />

A tela do pintor, a página branca do poeta, as folhas pautadas do<br />

compositor, o cenário ou o terreno <strong>de</strong> que dispõem o dançarino ou o<br />

arquiteto, e evi<strong>de</strong>ntemente o rolo <strong>de</strong> filme, a tela cinematográfica,<br />

materializam, simbolizam e reavivam essa experiência da fronteira entre<br />

dois corpos em simbiose como superfícies <strong>de</strong> inscrição, com seu<br />

caráter paradoxal - que volta a se encontrar na obra <strong>de</strong> arte, <strong>de</strong> ser ao<br />

mesmo tempo uma superfície <strong>de</strong> separação e uma superfície <strong>de</strong><br />

contatos (ANZIEU, 1993, p. 82) 33<br />

O enigma do envelope corporal está em ter, simultaneamente, um dorso, que<br />

abriga um conteúdo, e uma face, na qual se inscrevem expressões. Se Margarete<br />

estivesse em conjunção com o mundo do circo, ela inscreveria em sua face cores vivas<br />

e luminosas, ainda assim a superfície <strong>de</strong> inscrição a separaria dos outros mundos que<br />

não lhe fossem próprios. Contudo, ela projeta sobre a superfície o seu eu <strong>de</strong><br />

referência, fazendo com que a superfície <strong>de</strong> inscrição a separe do circo. A superfície,<br />

para Anzieu (1993, p. 82), constitui uma barreira protetora da autonomia interna e da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e, pelo outro lado, ela filtra seletivamente os intercâmbios entre o<br />

interior e o exterior, sobre a qual são inscritas as excitações. Fontanille, então, atribui<br />

ao envelope o caráter <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira interface semiótica, uma vez que “<strong>de</strong> um lado, o<br />

envelope “contém” os conteúdos, <strong>de</strong> outro „inscreve‟ as expressões” (2004b, p.107).<br />

Seria pela mediação do envelope e das inscrições que a semiose po<strong>de</strong> ser efetuada<br />

<strong>de</strong> maneira não formal, ou seja: o Seu Outro -envelope “é o operador corporal da<br />

reunião do plano do conteúdo e do plano da expressão e, <strong>de</strong>ssa vez, o contato entre<br />

os corpos, a contigüida<strong>de</strong> entre a carne e seu envelope basta à operação”<br />

(FONTANILLE, 2004b, p. 107).<br />

33 As traduções do espanhol foram feitas por Mônica Ferreira Magalhães. Em rodapé será transcrito o<br />

trecho original: La tela <strong>de</strong>l pintor, la página blanca <strong>de</strong>l poeta, las hojas pautadas <strong>de</strong>l compositor, el<br />

escenario o el terreno <strong>de</strong>l que disponen el bailarín o el arquitecto, y evi<strong>de</strong>ntemente el rollo <strong>de</strong> película, la<br />

pantalla cinematográfica, materializan, simbolizan y reavivan esa experiencia <strong>de</strong> la frontera entre los dos<br />

cuerpos en simbiosis como superficie <strong>de</strong> inscripciones, con su carácter paradójico – que vuelve a<br />

encontrarse en la obra <strong>de</strong> arte – <strong>de</strong> ser a la vez una superficie <strong>de</strong> separación y una superficie <strong>de</strong><br />

contactos.<br />

61


A função <strong>de</strong> inscrição permite abraçar o princípio da constituição do Eu e do Seu<br />

Outro e o princípio da produção semiótica, em especial a artística. E é exatamente por<br />

isso que Fontanille consi<strong>de</strong>ra o Eu-pele como o protótipo carnal <strong>de</strong> todas as superfícies<br />

<strong>de</strong> inscrição (2004a, p. 149-150). Cabe lembrar, então, conforme observa Fontanille,<br />

que:<br />

A dissociação do protoactante <strong>de</strong> substrato em um Eu <strong>de</strong> referência e<br />

em um Soi [Seu Outro] em construção permite dar um conteúdo não<br />

formal à noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, e compreen<strong>de</strong>r ao mesmo tempo porque<br />

a <strong>de</strong>breagem induz automaticamente a efeitos <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

coerência e <strong>de</strong> incoerência: o Soi <strong>de</strong>breado está feito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

múltiplas, transitórias e sucessivas, cuja reunião em uma só i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

actancial, em forma <strong>de</strong> papéis, por exemplo, é precisamente a questão<br />

a ser tratada no <strong>de</strong>vir narrativo do actante 34 . (2004a, p.27- 28).<br />

Desacelerar, inverter e modificar são as operações aptas para transformar o<br />

envelope: o recurso da relação <strong>de</strong> englobamento apoia a <strong>de</strong>saceleração; o interno e o<br />

externo são passíveis <strong>de</strong> inversão; a natureza e a forma da superfície po<strong>de</strong>m ser<br />

modificadas.<br />

1.4.1 Proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base, funções e oscilação dos modos <strong>de</strong> presença dos<br />

envelopes corporais<br />

O envelope corporal <strong>de</strong> um actante encarnado é um espaço topológico contínuo<br />

e maciço, contudo, ao enunciar suas novas posições por meio da operação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>breagem, essas proprieda<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser mantidas e ressaltadas ou po<strong>de</strong>m ser<br />

alteradas, invertidas ou <strong>de</strong>formadas, proporcionando, <strong>de</strong>sse modo, a atuação do<br />

envelope corporal como superfície <strong>de</strong> inscrição e suporte e, às vezes, visível ou<br />

virtualmente distanciado em uma enunciação. Essas transformações dos envelopes<br />

corporais fazem com que a percepção das suas presenças em um campo perceptivo<br />

oscile entre os dois gradientes da tonicida<strong>de</strong> perceptiva: o foco e a apreensão nos<br />

34 La dissociation du proto-actant substrat en un Moi <strong>de</strong> référence et un Soi en construction permet <strong>de</strong><br />

donner un contenu non-formel à la notion <strong>de</strong> débrayage, et en même temps <strong>de</strong> compren<strong>de</strong> pourquoi le<br />

débrayage induit automatiquement <strong>de</strong>s effets <strong>de</strong> pluralité, <strong>de</strong> cohérence et d‟incohérence: le Soi débrayé<br />

est fait d‟i<strong>de</strong>ntités multiples, transitoires et successives, dont la réunion en une seule i<strong>de</strong>ntité actantielle,<br />

sous forme <strong>de</strong> „rôles‟, par exemple, est justement la question à traiter dans le <strong>de</strong>venir narratif <strong>de</strong> l‟actant.<br />

62


eixos da intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong>, respectivamente.<br />

O campo <strong>de</strong> presença perceptivo fenomenológico se baseia na “interpretação<br />

do par presença/ausência em termos <strong>de</strong> operações (aparecimento/<strong>de</strong>saparecimento)”<br />

(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.123). Tanto para a fenomenologia quanto para<br />

a semiótica, a presença, além <strong>de</strong> ser o primeiro modo <strong>de</strong> existência da significação,<br />

<strong>de</strong>ve sempre conquistar a plenitu<strong>de</strong>.<br />

O esquema do campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> um envelope corporal como superfície <strong>de</strong><br />

inscrição ou como suporte, avançado ou recuado, irá variar conforme o grau <strong>de</strong> recuo<br />

(ausência virtualizada) ou avanço (presença) do corpo durante o ato enunciativo. De<br />

todo modo, há uma correlação divergente 35 na interação entre o sensível (a intensida<strong>de</strong>,<br />

o afeto) e o inteligível (o <strong>de</strong>sdobramento na extensão, o mensurável, a compreensão)<br />

no campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> um envelope corporal <strong>de</strong>formado, cujos esquemas tensivos<br />

po<strong>de</strong>rão ser <strong>de</strong> ascendência ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência (Fontanille, 2007, p.109). Desse modo,<br />

os enca<strong>de</strong>amentos e as sobreposições <strong>de</strong> atos conjugam as oscilações entre as<br />

dimensões da intensida<strong>de</strong> (sensível) e da extensão (inteligível), conforme esquema<br />

tensivo número 3.<br />

Eixo da<br />

Intensida<strong>de</strong><br />

Operação:<br />

Foco<br />

Avanço/Presença do<br />

Envelope Corporal<br />

Força<br />

+<br />

-<br />

-<br />

Eixo da Extensida<strong>de</strong> +<br />

Operação: apreensão<br />

Recuo/Ausência Virtualizada do Envelope<br />

Corporal<br />

Formas<br />

35 Ver tópico 1.1.1 Presença do corpo do actante: a intensida<strong>de</strong> da carne e as extensões do corpo<br />

próprio. Utilizo as nomenclaturas para as correlações e para os esquemas propostas por Fontanille nos<br />

livros Soma et Séma; figures du corps, 2004a, p.36 e Semiótica do Discurso, 2007, p. 111-112.<br />

63


A partir das explicações <strong>de</strong> Fontanille (2007, p.111), po<strong>de</strong>-se dizer que no<br />

esquema <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência ocorre uma diminuição da intensida<strong>de</strong> da presença do<br />

envelope corporal, isto é, a ausência virtual ou recuo do suporte corporal, que, ao ser<br />

combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da extensão (compreensão do enunciado pintado),<br />

produz um relaxamento cognitivo. Já no esquema <strong>de</strong> ascendência, há o aumento da<br />

intensida<strong>de</strong> da presença do envelope corporal, que, combinado com a redução da<br />

extensão (inteligível), produz uma tensão afetiva. Essa classificação dos esquemas<br />

<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes e ascen<strong>de</strong>ntes, uma oscilação entre a força e as formas, se torna nesta<br />

investigação uma maneira <strong>de</strong> representar como se dá a percepção <strong>de</strong> um corpo<br />

maquiado.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que Fontanille (2004a), ao <strong>de</strong>senvolver as proprieda<strong>de</strong>s do<br />

envelope corporal e as subsequentes transformações operadas pela <strong>de</strong>breagem, se<br />

baseou nos modos <strong>de</strong> presença do actante e nas proprieda<strong>de</strong>s do envelope psíquico<br />

<strong>de</strong>senvolvidas por Anzieu. Desse modo, tomando por base um mo<strong>de</strong>lo referente às<br />

roupas, sugerido por Fontanille, penso, então, em relação a uma inscrição efêmera<br />

sobre a superfície da pele: a maquiagem, seja ela uma simples técnica ou uma arte<br />

complexa e autônoma, por meio da qual é possível realizar diversas inscrições sobre<br />

um mesmo envelope corporal e, por conseguinte, enunciar diferentes Seus Outros. Ela<br />

consente que um sujeito actante encarnado se insira, ativamente ou passivamente, em<br />

diversos mundos, pois ela é a responsável pela preparação da superfície <strong>de</strong> inscrição<br />

<strong>de</strong> acordo com a hexis corporal <strong>de</strong>sejada ou imposta ao indivíduo. Além do mais, a<br />

maquiagem permite expressar os afetos, positivos ou negativos, em relação ao meio<br />

social, enunciando, <strong>de</strong>sse modo, o que é próprio e o que não é próprio a um sujeito.<br />

Fontanille (2004a, p. 150) relaciona as ações e transformações que<br />

caracterizam concretamente a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem e que se referem precisamente<br />

às proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base do envelope corporal e seguem aqui adaptadas para a<br />

maquiagem:<br />

- Conexão: a maquiagem aplicada sobre a superfície <strong>de</strong> inscrição po<strong>de</strong> reforçar e<br />

realçar a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal, <strong>de</strong>ixando-o como um todo<br />

único e contínuo; a maquiagem também po<strong>de</strong> ser uma inscrição segmentada, dividindo<br />

coor<strong>de</strong>nadamente ou disjuntamente o envelope corporal que aparentaria estar<br />

64


segmentado. Portanto, a maquiagem, durante o ato enunciativo, ao reforçar a<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal estaria confortando-o, do contrário,<br />

quando aparece segmentada, estaria comprometendo a conexão <strong>de</strong> um envelope<br />

corporal.<br />

- Compactação: a maquiagem, por meio <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s, elemento supérfluo<br />

e inesperado, se ajusta ao corpo assumindo, <strong>de</strong>sse modo, a característica <strong>de</strong><br />

compactação do envelope corporal; no entanto, quando provoca espaços vazios, por<br />

meio <strong>de</strong> cores intensas, <strong>de</strong>spreza essa proprieda<strong>de</strong> corporal, provocando a ilusão <strong>de</strong><br />

um envelope corporal oco. Ao criar espaços vazios, a pintura corporal, então, não<br />

mostraria mais que uma cara, ocultaria o corpo, revelando, <strong>de</strong>sse modo, a cara interior<br />

do envelope corporal.<br />

- Interface <strong>de</strong> triagem: por meio da maquiagem po<strong>de</strong>-se regularizar e polarizar os<br />

intercâmbios entre o que é próprio e não próprio ao sujeito, ou o que é próprio e não<br />

próprio ao meio social <strong>de</strong> referência, <strong>de</strong>sse modo ela funciona como uma separação<br />

entre próprio e não próprio.<br />

- marca: por instrumentalização das inscrições que, nesta investigação, se adéqua<br />

melhor às marcas <strong>de</strong>finitivas, como tatuagens, escarificações e aplicação <strong>de</strong> piercings.<br />

Cabe ressaltar que, conforme explicam Zilberberg e Fontanille (2001, p. 200), a<br />

proprieda<strong>de</strong> pluralizante da <strong>de</strong>breagem é uma espécie <strong>de</strong> dissociação da pessoa e da<br />

não pessoa, ou do Eu e dos Seus Outros, ou seja, a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não pessoas, <strong>de</strong><br />

Seus Outros. Os autores lembram que a pessoa subjetiva po<strong>de</strong> ser singular ou<br />

massiva (nós) e coletiva. A <strong>de</strong>breagem, então, adquire forma ao modificar as<br />

proprieda<strong>de</strong>s figurativas do envelope. Como a inscrição é <strong>de</strong> suma importância para o<br />

princípio <strong>de</strong> produção semiótica, em especial da artística, exemplificarei, as ações e<br />

transformações do envelope corporal, operadas pela <strong>de</strong>breagem e as oscilações no<br />

modo <strong>de</strong> presença, em sua maioria, a partir da pintura corporal artística.<br />

65


1.4.1.1 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão: <strong>de</strong>formação do envelope ou pluralização do<br />

enunciado.<br />

Figura 3: De Julio Larraz (Cuba) – Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo.<br />

Neste exemplo (Fig. 3), vemos o simulacro <strong>de</strong> uma paisagem montanhosa<br />

constituída por partes <strong>de</strong> corpos humanos pintados, que, ao primeiro olhar, são<br />

imperceptíveis e talvez nem fossem percebidos como tal se a fotografia não fizesse<br />

parte <strong>de</strong> uma exposição relacionada a corpos pintados. Esse tipo <strong>de</strong> figuração realista<br />

<strong>de</strong> uma paisagem aérea é uma característica do autor da obra, Júlio Larraz.<br />

66


No plano da expressão <strong>de</strong>stacam-se quatro planos cromáticos. No primeiro<br />

plano revela-se a cor ver<strong>de</strong> texturizada com argila, que se sobressai sobre o dorso e<br />

parte do quadril <strong>de</strong> um envelope corporal na posição horizontal, dando a sensação <strong>de</strong><br />

proximida<strong>de</strong> com o observador. O segundo plano cromático é composto por dois<br />

corpos justapostos na posição horizontal, dos quais são mostrados apenas a região<br />

glútea do primeiro e o glúteo e dorso do segundo. A aplicação da cor ver<strong>de</strong> é mesclada<br />

com tons amarelos. A iluminação interfere diretamente ao <strong>de</strong>stacar os pontos mais<br />

elevados, da mesma maneira como a luz natural do sol ilumina os topos das<br />

montanhas naturais. Sobre os três primeiros corpos, coor<strong>de</strong>nados nesses dois planos,<br />

são distribuídos irregularmente pontos escuros que remetem a pequenos aci<strong>de</strong>ntes<br />

geográficos ou arbustos e vegetação.<br />

O terceiro plano cromático é composto por um único envelope corporal cuja<br />

parte <strong>de</strong>stacada parece ser um ventre volumoso. A tonalida<strong>de</strong> ver<strong>de</strong> já é mais<br />

dissipada, ce<strong>de</strong> lugar a uma tonalida<strong>de</strong> mais ocre, com menos niti<strong>de</strong>z. O quarto e<br />

último plano cromático é escuro, o infinito.<br />

Os envelopes corporais fracionados funcionam <strong>de</strong> modo articulado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

uma totalida<strong>de</strong> que é a paisagem montanhosa, mas a noção da unida<strong>de</strong> corporal se<br />

afasta, comprometendo a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal. A <strong>de</strong>formação<br />

do envelope provocada pelo processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem promove um recuo do corpo, que<br />

se torna um suporte invisível. Não há a mínima presença da carne humana <strong>de</strong><br />

referência, e o que sobressai é o corpo-próprio montanhoso. Mais que superfície <strong>de</strong><br />

inscrição, o envelope corporal é, neste exemplo, uma presença virtualizada, a fim <strong>de</strong><br />

que possa criar uma ilusão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> da paisagem. Ao ser <strong>de</strong>formado, o envelope<br />

corporal, diminui a sua participação em ato e pluraliza partes autônomas que se<br />

ajustam harmonicamente em novos enunciados e novos espaços topológicos.<br />

O campo <strong>de</strong> presença dos envelopes corporais montanhosos <strong>de</strong>sses actantes<br />

encarnados se movimenta em uma correlação divergente num esquema <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cadência: como a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal está comprometida<br />

pela inscrição, <strong>de</strong>formando o corpo, então a sua presença passa a ser distribuída, no<br />

eixo da intensida<strong>de</strong>, e dividida, no eixo da extensida<strong>de</strong>. Ocorre uma distensão<br />

provocada pelo recuo (ausência virtual) do envelope corporal, <strong>de</strong>ixando, <strong>de</strong>sse modo, o<br />

67


foco distribuído no eixo da intensida<strong>de</strong>, o que gera a pluralização e a divisão no<br />

gradiente da extensão. Há, portanto, uma “diminuição das tensões a seu<br />

fracionamento, e a morfologia associada é a que resulta da cisão, geradora do dividido”<br />

(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.137). Ao refutar a conexão, a articulação que<br />

a pintura corporal e o corte fotográfico provocam no envelope corporal ajuda na<br />

distensão que leva à virtualização da intensida<strong>de</strong> corporal.<br />

A imagem que Iregui (Fig. 4) produz também ameaça a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão<br />

do envelope corporal. Há somente<br />

um plano cromático e o corpo<br />

aparece irregularmente dividido<br />

pela única cor uniforme que se<br />

mistura ao fundo. O corpo é uma<br />

superfície <strong>de</strong> inscrição da<br />

figuração, enquanto o fundo é uma<br />

realida<strong>de</strong>. O movimento perceptível<br />

do corpo parece tentar inutilmente<br />

<strong>de</strong>scolá-lo <strong>de</strong>sse fundo branco.<br />

Aqui também há uma<br />

fragmentação do corpo que, como<br />

suporte, não está tão recuado<br />

quanto os corpos do exemplo<br />

anterior (Fig. 3), entretanto,<br />

também não se percebe um<br />

envelope corporal contínuo, e, sim,<br />

pedaços <strong>de</strong> um envelope corporal<br />

repartido. Há pontos em que não<br />

existe nenhuma separação com o<br />

fundo e esses pontos <strong>de</strong><br />

invisibilida<strong>de</strong> do envelope corporal<br />

é que dão a sensação da<br />

fragmentação total da unida<strong>de</strong><br />

Figura 4: De Jaime Iregui (Colombia).<br />

68<br />

Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo


corporal. A opacida<strong>de</strong> da cor que fragmenta o envelope e se mescla ao fundo,<br />

também, tenta fazer com que se esqueça da presença do suporte que ainda resiste,<br />

assim como a carne <strong>de</strong> referência sensoriomotriz que tentar resistir às pressões e<br />

tensões do mundo, tal qual Margarete, do poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, que se atira em<br />

direção ao mundo sagrado na tentativa <strong>de</strong> se libertar do mundo circense que não lhe<br />

era próprio. No entanto, apesar da resistência do envelope suporte <strong>de</strong> inscrição, sua<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão está ameaçada, uma vez que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />

modifica a envoltura por <strong>de</strong>formação, já que o corpo aparece disperso e a enunciação<br />

não mantém a unida<strong>de</strong> corporal.<br />

Do mesmo modo que o exemplo anterior (Fig.3), o campo <strong>de</strong> presença do<br />

envelope corporal <strong>de</strong>ste exemplo (Fig.4) se <strong>de</strong>sloca em uma correlação divergente<br />

num esquema <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência. Apesar da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope<br />

corporal da figura 4 não estar tão comprometida pela inscrição como no primeiro<br />

exemplo, ainda assim há uma <strong>de</strong>sfiguração corporal. Por esse motivo, a sua presença<br />

também é distribuída, mesmo que em um grau menor que no exemplo anterior (Fig. 3),<br />

no eixo da intensida<strong>de</strong>, e dividida, no eixo da extensida<strong>de</strong>. A maneira como a pintura<br />

se pronuncia sobre o envelope corporal promove um certo afastamento do seu suporte<br />

e, portanto, o foco fica também distribuído no eixo da intensida<strong>de</strong> causando a divisão<br />

no gradiente da extensão. O esquema tensivo é o mesmo para os dois exemplos (Figs.<br />

3 e 4), como é <strong>de</strong>monstrado no esquema número 4:<br />

Concentrado<br />

INT<br />

Distribuído<br />

EXT<br />

Massivo Dividido<br />

69


Figura 5: De JOS BRANDS. Fonte: BRANDS, Jos - Airbrush and makeup, 2000.<br />

Figura 6: Estudo <strong>de</strong> Desnudo.Fonte: GAIR, Joanne. Arte en el Cuerpo, 2006.<br />

Nos dois exemplos acima aparecem o conforto da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do<br />

envelope corporal. No exemplo à esquerda, uma pintura <strong>de</strong> Brands (Fig. 5) feita com<br />

airbrush 36 , a unida<strong>de</strong> da superfície <strong>de</strong> inscrição está envolta pela cor azul, contudo, não<br />

há planos cromáticos, mas um perfeito jogo <strong>de</strong> luzes e sombras em uma fusão <strong>de</strong> tons<br />

que ressalta a musculatura do corpo do rapaz, preservando, <strong>de</strong>sse modo, a unida<strong>de</strong> do<br />

36 O airbrush (aerógrafo) é uma pequena pistola operada por ar que pulveriza vários tipos <strong>de</strong> tintas e<br />

corantes por um processo <strong>de</strong> atomização. Esse aparelho foi inventado por Charles Burdick, em 1893,<br />

para pintar aquarelas na intenção <strong>de</strong> ser um meio mais rápido e eficiente para aplicar a tinta sobre<br />

diversas superfícies. A aplicação <strong>de</strong> maquiagem com o airbrush vem sendo utilizada nos últimos anos<br />

em todos os tipos <strong>de</strong> maquiagem (beleza, efeitos especiais, cinema, pintura corporal, cobertura <strong>de</strong><br />

tatuagens e, principalmente, na HDTV) <strong>de</strong>vido ao seu acabamento impecável sobre a pele.<br />

70


envelope corporal. O suporte corporal está presente e tem volumes e <strong>de</strong>pressões<br />

valorizados, permitindo um acúmulo da função <strong>de</strong> inscrição e <strong>de</strong> figuração. Esse corpo<br />

sobre o qual são aplicadas cores também é mais um grafite da pare<strong>de</strong>.<br />

A obra <strong>de</strong> Gair (Fig. 6), exemplo da direita, preserva a conexão do envelope<br />

corporal que é apresentado completamente envolto por uma calda <strong>de</strong> chocolate, que<br />

começa a invadir também o rosto da mo<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong>ixando-se supor que ele também será<br />

todo coberto. A unida<strong>de</strong> corporal, nesse momento, está completamente resguardada,<br />

contudo, o enunciado leva a crer que o envelope corporal po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>rreter como o<br />

chocolate, já que a calda escorre em longos fios pelos braços. Os volumes e as<br />

<strong>de</strong>pressões do corpo não são ressaltados como na pintura <strong>de</strong> Brands (Fig. 5), o que<br />

favorece a ligação do envelope, porém percebem-se todos os contornos do esbelto<br />

corpo da mo<strong>de</strong>lo por causa do contraste com o fundo claro. Da mesma forma que nos<br />

dois primeiros exemplos (Figs. 3 e 4), nos quais a fragmentação dos envelopes<br />

corporais apresenta graus diferenciados, a conexão <strong>de</strong>stes dois envelopes (Figs. 5 e<br />

6) também exibe graus distintos, uma vez que os músculos ressaltados do rapaz (Fig.<br />

5) po<strong>de</strong>m remeter a uma divisão se comparados com a envoltura criada pela calda <strong>de</strong><br />

chocolate que envolve todo o corpo da moça (Fig. 6). A <strong>de</strong>breagem, <strong>de</strong>sse modo,<br />

conserva intacta a conexida<strong>de</strong> do envelope corporal que se transforma em uma<br />

superfície <strong>de</strong> inscrição cuja enunciação mantém a unida<strong>de</strong> do corpo.<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>-se verificar que, quando o papel <strong>de</strong> unificação da<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal do actante é preservado pela inscrição,<br />

a presença no eixo da intensida<strong>de</strong> se torna concentrada, ou seja, o foco é mantido a<br />

partir uma reunião em um mesmo ponto, sem chance para <strong>de</strong>svios e, no eixo da<br />

extensida<strong>de</strong>, a apreensão se dá como uma totalida<strong>de</strong> indivisível, ou seja, como<br />

“massas pouco articuladas porém individualizadas” (FONTANILLE e ZILBERBERG,<br />

2001, p.137). A reconstituição da intensida<strong>de</strong> da presença promove uma<br />

correspondência <strong>de</strong> forma massiva na extensida<strong>de</strong>, tal qual acontece na dissolução<br />

dos contornos e dos limites na arte barroca, como foi observado por Wölfflin (1989).<br />

A oscilação no campo <strong>de</strong> presença dos envelopes corporais dos dois exemplos<br />

(Figs. 5 e 6) também acontece numa correlação divergente, como os exemplos<br />

anteriores (Figs. 3 e 4), contudo, num esquema <strong>de</strong> ascendência, por causa da unida<strong>de</strong><br />

71


corporal. A preservação da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão <strong>de</strong>sses envelopes corporais pela<br />

inscrição provoca o aumento da dilatação da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> existencial, provocada pelo<br />

aumento do foco no gradiente da intensida<strong>de</strong>, seguido pela redução da extensão. A<br />

preservação da conexão dos envelopes corporais torna a percepção <strong>de</strong>ssas presenças<br />

mais sensível, como po<strong>de</strong> ser observado no esquema abaixo:<br />

Concentrado<br />

INT<br />

Distribuído<br />

EXT<br />

Massivo Dividido<br />

72


1.4.1.2 – Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação: o avesso e as espessuras do envelope<br />

corporal.<br />

Figura 7: Ofelia Dammert (Peru)<br />

Fonte: Exposição Corpos Pintados. (2005) OCA – São Paulo.<br />

A pintura corporal acima (Fig. 7) é uma obra da peruana Dammert e apresenta<br />

dois contrastes cromáticos: o lado esquerdo é uniformizado por uma cor rosa muito<br />

clara, que contrasta com o fundo preto, efeito oposto ao que acontece no lado direito,<br />

no qual o fundo preto da fotografia se mescla com a base preta aplicada sobre o<br />

73


envelope corporal, promovendo, assim, o recuo do suporte e revelando os ossos que<br />

estruturam o corpo humano, <strong>de</strong>talhadamente pintados com colorações que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o branco amarelado até o marrom claro. A <strong>de</strong>limitação regular da ossatura pintada<br />

suscita no observador uma sensação <strong>de</strong> segurança que o leva a acreditar na<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocá-los. A pintura promove, <strong>de</strong>sse modo, o aumento <strong>de</strong> vazios entre<br />

os ossos pintados cujas formas são mantidas inabaláveis, virtualizando, assim, o<br />

suporte envelope corporal no lado direito. Há, portanto, uma cisão e a distinção do<br />

<strong>de</strong>ntro em relação ao fora, sendo este um exemplo <strong>de</strong> como a <strong>de</strong>breagem modifica por<br />

inversão que compromete a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> compactação corporal.<br />

Esse comprometimento da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compactação faz com que o foco se<br />

espalhe no eixo da intensida<strong>de</strong>, tornando a presença difusa e, como correlato,<br />

acontece o aumento da apreensão cognitiva, há mais <strong>de</strong>talhes a serem percebidos. A<br />

movimentação no campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>sse envelope corporal se dá numa correlação<br />

divergente cujo esquema é <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência. A difusão do foco e o aumento do número<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes a observar no lado direito da figura 7 estimulam um relaxamento cognitivo.<br />

De acordo com Fontanille e Zilberberg, “com o difuso, do ponto <strong>de</strong> vista da intensida<strong>de</strong>,<br />

e o numeroso do ponto <strong>de</strong> vista da extensida<strong>de</strong>, a distensão se manifesta pela<br />

distância estabelecida e mantida entre o sujeito e o objeto, ainda quando benéfico”<br />

(2001, p. 137). Os autores ainda observam que essa “distensão era a categoria diretriz<br />

do estilo do Renascimento” que provocava uma sensação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, como é<br />

<strong>de</strong>monstrado no esquema tensivo número 6:<br />

Compacto<br />

INT<br />

Difuso<br />

Uno EXT Numeroso<br />

74


Figura 8: Special Make-up. Fonte: Catálogo Make-up Designory from the Los Angeles Campus, 2009.<br />

Figura 9: Keiko González (Bolívia). Fonte: Exposição Corpos Pintados.<br />

No exemplo da esquerda (Fig. 8) temos uma maquiagem <strong>de</strong> efeito especial com<br />

(2005) OCA – São Paulo.<br />

aplicação <strong>de</strong> uma pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex colada ao rosto <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo. Desse<br />

modo, a maquiagem aumenta a espessura do envelope corporal com elementos<br />

supérfluos e surpreen<strong>de</strong>ntes. Devido à qualida<strong>de</strong> da textura da pró<strong>tese</strong> e ao<br />

acabamento <strong>de</strong>licado <strong>de</strong> sua aplicação não se nota a emenda, isto é, on<strong>de</strong> começa a<br />

pró<strong>tese</strong> e on<strong>de</strong> termina o envelope corporal, o que não permite espaços vazios entre<br />

eles. O próprio movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que partiu do corpo engendrou objetos<br />

significantes para ele. A pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> látex guarda a memória da sua origem corporal,<br />

75


isto é, fora do rosto, ela antecipa o regresso ao corpo, como também o contato entre os<br />

dois, no momento da aplicação. Por ser ergonômica, a pró<strong>tese</strong> <strong>de</strong> látex guarda a<br />

impressão (forma) do invólucro corporal, é o seu novo sentido <strong>de</strong>breado a partir do<br />

corpo e, logo, o completará. Neste exemplo, também acontece uma oscilação dos<br />

modos <strong>de</strong> presença, isto é, a primeira face <strong>de</strong>saparece para que a segunda possa<br />

aparecer. A pró<strong>tese</strong> é, então, um meio <strong>de</strong> multiplicação das espessuras dos envelopes<br />

corporais que permite a percepção <strong>de</strong> um corpo em diálogo com outro corpo.<br />

O exemplo da direita (Fig. 9), a pintura <strong>de</strong> González, também utiliza pró<strong>tese</strong>s,<br />

agora <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, que prolongam as pernas e um braço do mo<strong>de</strong>lo. Além da<br />

multiplicação das espessuras, temos um complexo variado <strong>de</strong> cores que formam<br />

texturas e estas impe<strong>de</strong>m a visão dos espaços vazios da divisão entre a pró<strong>tese</strong> e as<br />

pernas. É claro que as pernas <strong>de</strong> pau não chegam a ser tão ergonômicas quanto as<br />

pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> látex e também não acontece uma variação tão nítida entre os modos <strong>de</strong><br />

presença. Ocorre uma virtualização do envelope corporal, principalmente o do rosto,<br />

por meio apenas da pintura e não por meio da pró<strong>tese</strong> que é indispensável ao<br />

enunciado. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, assim como no outro exemplo (Fig. 8), também<br />

proporciona ao envelope corporal novos sentidos por meio do aumento da sua<br />

compactação.<br />

Essa proprieda<strong>de</strong> do envelope corporal, a Compactação, cuja <strong>de</strong>breagem<br />

ocorre por meio <strong>de</strong> excrescências, como nos dois exemplos (Figs. 8 e 9), seja por meio<br />

<strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s <strong>de</strong> espuma <strong>de</strong> látex ou pernas e braço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, faz com que aconteça<br />

o ajuste da superfície envelope <strong>de</strong> inscrição ao envelope corporal. A preservação da<br />

compactação entre o corpo e as pró<strong>tese</strong>s está assegurada. A percepção <strong>de</strong>sses<br />

actantes encarnados atinge a compacida<strong>de</strong>, no eixo da intensida<strong>de</strong> e, permanece a<br />

unida<strong>de</strong> no eixo da extensida<strong>de</strong>, uma vez que o corpo e o envelope <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s são<br />

singulares, indivisíveis.<br />

A presença <strong>de</strong>sses actantes encarnados se <strong>de</strong>senvolve numa correlação<br />

divergente em um esquema <strong>de</strong> ascendência: a compactação entre o envelope corporal<br />

do actante e a pró<strong>tese</strong> também provoca o recuo do rosto, já que é impossível<br />

reconhecer a verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>lo sob a maquiagem, contudo, há uma<br />

tensão afetiva, pois a presença é viva, o gradiente da intensida<strong>de</strong> está no ápice e o<br />

76


gradiente da extensão se mantém no uno, conforme é <strong>de</strong>monstrado no esquema<br />

tensivo número 7:<br />

Compacto<br />

INT<br />

Difuso<br />

Uno EXT Numeroso<br />

1.4.1.3 Proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filtro <strong>de</strong> seleção: projeção do próprio sobre o não próprio.<br />

Figura 10: Punks.Fonte: GRÖNING, 1998, p. 235.<br />

77


Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> padronizada a partir dos princípios<br />

clássicos, <strong>de</strong>ntro dos quais a maioria dos seres humanos se enquadra, acontece, no<br />

exemplo acima (Fig. 10), uma <strong>de</strong>breagem que regulariza os intercâmbios entre o<br />

próprio e o não próprio. As duas pessoas caracterizam a hexis corporal dos punks em<br />

distinção da hexis corporal clássica. Os estilos <strong>de</strong> cabelo moicano com cores exóticas,<br />

entre outros penteados fantasiosamente ilimitados, assim como as sobrancelhas<br />

modificadas e os piercings, são alguns dos elementos que, em conjunto com a<br />

maquiagem exagerada, com formas e cores não convencionais, caracterizam uma<br />

contra-cultura e não são visuais esperados em uma socieda<strong>de</strong> padronizada, causando,<br />

<strong>de</strong>sse modo tensões e provocações.<br />

“Os punks, que surgiram na década <strong>de</strong> 70 na Grã-Bretanha <strong>de</strong> Margaret<br />

Thatcher, estabelecem seus próprios padrões” (...) As perfurações e<br />

mutilações são uma forma <strong>de</strong> expressão da dor emocional que está<br />

associada ao significado da palavra punk: lixo.” 37 (GRÖNING, 1998, p.<br />

235).<br />

Desse modo, os punks modificam o seus envelopes corporais ao projetar sobre<br />

eles o que lhes é próprio, enunciando, portanto, os afetos negativos em relação à<br />

socieda<strong>de</strong> padrão, ou seja, é a projeção sobre o envelope das outras entida<strong>de</strong>s<br />

distintas do Eu-carne. Neste exemplo, po<strong>de</strong>-se dizer que o suporte envelope corporal<br />

está visível e se mantem presente durante a enunciação, possibilitando o<br />

reconhecimento das feições do sujeito após a retirada da maquiagem. Por outro lado,<br />

também fica claro o caráter paradoxal da superfície <strong>de</strong> inscrição que é,<br />

simultaneamente, uma superfície <strong>de</strong> separação e uma superfície <strong>de</strong> contatos, ou seja,<br />

ao mesmo tempo em que separa os punks da socieda<strong>de</strong> padronizada, os coloca em<br />

contato com o seu eu <strong>de</strong> referência e com o meio social que lhes é familiar.<br />

Como toda enunciação, a maquiagem é realizada em um tempo e em um<br />

espaço <strong>de</strong>terminados. Assim, quando os punks estão próximos do seu meio social <strong>de</strong><br />

referência, há uma tensão afetiva familiar, entretanto, quando eles se distanciam do<br />

seu meio e se aproximam <strong>de</strong> um meio social executivo, cuja hexis corporal exige<br />

maquiagens suaves e neutras, a tensão afetiva será do estranho. Zilberberg e<br />

37 The punks, who emerged at the end of the 1970s in Mrs Thatcher‟s Britain, set their own standards.<br />

(…) In piercing their skin and mutilating (…) themselves, the punks are giving visible expression to the<br />

emotional pain that is associated with the meaning of the word punk: trash.<br />

78


Fontanille explicam que “no que tange à espacialida<strong>de</strong>, a distância métrica <strong>de</strong>ve se<br />

entrosar com uma distância afetiva” (2001, p. 140). Assim, quando os punks se<br />

aproximam <strong>de</strong> um meio social não-próprio a eles, a correlação tensiva será divergente<br />

e o esquema ascen<strong>de</strong>nte, ou seja, com a aproximação dos punks em um meio social<br />

clássico, reduz-se a distância métrica e aumenta-se a intensida<strong>de</strong> afetiva da<br />

estranheza, produzindo, <strong>de</strong>ssa maneira, uma tensão afetiva, como é <strong>de</strong>monstrado no<br />

esquema tensivo número 8:<br />

Estranho<br />

Por outro lado, quando os punks se afastam <strong>de</strong>sse meio, reduz-se a intensida<strong>de</strong><br />

afetiva e aumenta-se a distância métrica, produzindo ainda uma correlação divergente,<br />

porém, um esquema tensivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, pois há um relaxamento cognitivo <strong>de</strong><br />

tensões, <strong>de</strong>vido ao afastamento do ser estranho ao meio executivo, como po<strong>de</strong> ser<br />

visto no esquema número 9:<br />

INT<br />

Familiar<br />

Estranho<br />

INT<br />

Familiar<br />

Próximo EXT Distante<br />

Próximo EXT Distante<br />

79


Caso os punks se mantenham em seus espaços próprios, a tensão se mantém<br />

afetiva familiar e cognitiva, isto é, a distância métrica é próxima da distância afetiva em<br />

uma correlação conversa, num esquema tensivo da amplificação, em outras palavras,<br />

distantes do mundo clássico (estranho) e próximo do meio punk (familiar), ou seja, isso<br />

retrata a separação e o contato paradoxal característicos da superfície <strong>de</strong> inscrição,<br />

como po<strong>de</strong> ser observado no esquema tensivo número 10:<br />

No caso dos punks, assim como <strong>de</strong> qualquer grupo <strong>de</strong> actantes sujeitos<br />

encarnados que se utilizam das maquiagens efêmeras, existe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas<br />

<strong>de</strong>breagens e novos enunciados; assim, se eles <strong>de</strong>sejarem, po<strong>de</strong>m se inserir em um<br />

novo meio social e adotar a respectiva hexis corporal 38 , sem <strong>de</strong>ixar marcas e pistas<br />

sobre a pele.<br />

Estranho<br />

INT<br />

Familiar<br />

38 A tatuagem também po<strong>de</strong> ser escondida ou até mesmo retirada, contudo requer um longo, caro e<br />

dolorido processo para o <strong>de</strong>saparecimento.<br />

Próximo EXT Distante<br />

80


Figura 11: Tom Woolley. Fonte: AUCOIN, Kevyn, 1997, p.145.<br />

Figura 12: The Player. Fonte: AUCOIN, Kevyn, 1997, p.144.<br />

Sem querer entrar em questões <strong>de</strong> opções sexuais ou psicológicas, mas apenas<br />

analisar as transformações <strong>de</strong> um envelope corporal e seus sentidos semióticos, po<strong>de</strong>-<br />

se verificar que, neste exemplo, aparece o travestimento <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 11) que<br />

se enuncia uma mulher como na Figura 12: um eu-carne próprio que se projeta sobre<br />

as entida<strong>de</strong>s distintas, não próprias, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>breagem. Do mesmo modo<br />

que Shinya e Masako (Fig. 1), Tom Woolley, além <strong>de</strong> se enunciar uma mulher, se<br />

enuncia uma mulher glamourosa: olhos proeminentes com sombreado escuro e com<br />

os lábios cobertos pelo clássico batom vermelho. Neste caso, é difícil reconhecer o<br />

verda<strong>de</strong>iro rosto <strong>de</strong> Tom, que se mantém recuado sob a base clara que cobre o seu<br />

rosto e seu colo durante o ato <strong>de</strong> enunciação.<br />

As correlações e os esquemas tensivos são iguais aos produzidos pelo campo<br />

<strong>de</strong> presença dos punks (Fig. 10). O mais importante neste exemplo, em comparação<br />

ao anterior, é a questão da presença ou recuo do suporte corporal que na figura 10 se<br />

mantém em um grau mais presente do que na figura 11. Ou seja, observando a figura<br />

81


12 é mais difícil reconhecer a real fisionomia <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 11) do que<br />

reconhecer os punks (Fig. 10) sem as suas maquiagens. Em suma, o engendramento<br />

das “operações <strong>de</strong> inscrição” a partir das “proprieda<strong>de</strong>s” do envelope corporal fica<br />

resumido no seguinte quadro proposto por Fontanille (2004a, p. 151):<br />

Quadro 1: proprieda<strong>de</strong> do envelope e efeito da <strong>de</strong>breagem:<br />

Proprieda<strong>de</strong> Papel Operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />

Conexão Formação e unificação do Pluralização e<br />

envelope<br />

<strong>de</strong>formação do envelope<br />

Compactação Coesão e i<strong>de</strong>ntificação Inversão do conteúdo e<br />

distintiva do conteúdo do continente (fora e<br />

<strong>de</strong>ntro)<br />

Filtro <strong>de</strong> seleção Regulagem dos Projeção do “próprio”<br />

intercâmbios entre<br />

“próprio” e “não próprio”<br />

sobre o “não próprio”<br />

Ao pensar nas alterações do envelope corporal provocadas pelas operações <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>breagem, percebe-se o avanço ou o recuo do corpo no enunciado pintado sobre a<br />

superfície <strong>de</strong> inscrição, ou seja, sobre a presença ou ausência virtual do envelope<br />

corporal como suporte <strong>de</strong>ssas inscrições, como segue no quadro abaixo:<br />

Quadro 2: avanço e recuo do envelope corporal:<br />

Relação corpo/inscrição Presença (avanço) do Ausência virtualizada<br />

corpo<br />

(recuo) do corpo<br />

Conexão Todo único e contínuo Divisão em partes-<br />

Compactação Mais compactação – Menos compactação –<br />

Direito – Mostra o Induz ao avesso -<br />

Filtro <strong>de</strong> triagem<br />

envelope corporal.<br />

Uso <strong>de</strong> pró<strong>tese</strong>s<br />

Mostra mais a pele natural Mostra menos a pele<br />

Maquiagens mais leves, natural.<br />

sem muitos contrastes e Maquiagens mais intensas<br />

intensida<strong>de</strong>s.<br />

e contrastadas.<br />

A partir das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, das relações do envelope corporal com<br />

as inscrições, com os planos cromáticos, eidéticos e topológicos, percebe-se que<br />

82


quando a <strong>de</strong>breagem projeta o próprio sobre o não próprio como nos casos dos punks<br />

(Fig. 10) ou do travestimento <strong>de</strong> Tom Woolley (Fig. 12), assim como <strong>de</strong> Margarete, do<br />

poema <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, e <strong>de</strong> Shinya e Masako (Fig.1) criam-se efeitos estéticos aos<br />

quais se sobrepõem ou acrescentam efeitos <strong>de</strong> aproximação e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com os<br />

grupos <strong>de</strong> referência: punks, travestis, sagrado e glamouroso. Contudo, ao mesmo<br />

tempo em que essas relações produzem o sentido <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> elas também<br />

produzem o sentido <strong>de</strong> estranhamento e afastamento dos outros grupos sociais.<br />

Como “o sentido não é algo isolado”, conforme explica Fiorin (1999), mas surge<br />

<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> relações, po<strong>de</strong>-se dizer que ao formar, unificar, ligar e i<strong>de</strong>ntificar os<br />

envelopes corporais, pluralizando-os, <strong>de</strong>formando-os e invertendo-os, as operações <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>breagem relacionadas aos planos cromáticos, eidéticos e topológicos nas figuras 3,<br />

4, 5, 6, 7, 8 e 9 criam efeitos <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> verossimilhança, <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

inverossimilhança, além <strong>de</strong> sentidos estéticos e poéticos. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />

<strong>de</strong>forma os envelopes corporais que, relacionados às disposições topológicas e ao<br />

cromatismo, provocam, na pintura <strong>de</strong> Julio Larraz (Fig. 1), um efeito <strong>de</strong> verossimilhança<br />

na relação com as figuras das montanhas do mundo natural. Já no trabalho <strong>de</strong> Iregui<br />

(Fig. 4) a topologia e o cromatismo relacionados à <strong>de</strong>sconexão do envelope corporal têm<br />

valor <strong>de</strong> ornamento, que a<strong>de</strong>nsa o efeitos <strong>de</strong> sentido estético da pintura corporal.<br />

Tanto na pintura corporal <strong>de</strong> Brands (Fig. 5) quanto na <strong>de</strong> Gair (Fig. 6) a<br />

conexão do envelope corporal relacionada à materialida<strong>de</strong> das pinturas assim como ao<br />

cromatismo produzem um efeito sensorial tátil, na fig 5, em que o volume do corpo se<br />

<strong>de</strong>staca do fundo colorido geometrizado e um efeito gustativo na figura 6, coberta <strong>de</strong><br />

calda <strong>de</strong> chocolate. Por outro lado, o recuo do envelope corporal promovido pela<br />

<strong>de</strong>breagem, que inverte o fora e o <strong>de</strong>ntro, relacionado ao alto grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> 39<br />

provoca sensorialmente o espectador, que pensa ver, na pintura <strong>de</strong> Dammert (Fig. 7), o<br />

próprio “interior” do corpo. O apagamento das características humanas, nas figuras 8 e<br />

9, por meio das pró<strong>tese</strong>s que constituem os mecanismos coesivos do envelope corporal,<br />

constrói, com verossimilhança, as imagens monstruosas.<br />

39 As questões sobre os graus <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> serão discutidas no capítulo 3.<br />

83


1.4.1.4- Proprieda<strong>de</strong> da marca: instrumentalização das inscrições.<br />

Fontanille esclarece que a quarta modificação das proprieda<strong>de</strong>s figurativas do<br />

envelope é a marca que modificaria o envelope por instrumentalização das inscrições,<br />

ou seja, a marca é que fornece o princípio <strong>de</strong> pertinência. Esse princípio refere-se “à<br />

maneira como as figuras da expressão tomam forma a partir do substrato material das<br />

inscrições e do gesto que as inscreveu” (2004b, p. 110), po<strong>de</strong>-se, <strong>de</strong>sse modo, afirmar<br />

que a maquiagem é uma forma <strong>de</strong> marca, uma impressão, contudo, ela é efêmera. Os<br />

gestos que a inscreveram e as formas adquiridas po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>vidamente percebidos,<br />

porém, em um curto espaço <strong>de</strong> tempo. E é na tentativa <strong>de</strong> apagar as marcas <strong>de</strong>sses<br />

gestos da aplicação que a utilização da maquiagem feita com airbrush dominou o<br />

espaço nestes tempos da televisão digital.<br />

Desse modo, acredito que as tatuagens, os piercings, as cicatrizes, as<br />

escarificações e outras formas <strong>de</strong> inscrições duráveis sejam um caso especial da<br />

semiótica da marca, pois o tempo <strong>de</strong> duração, após a aplicação, é o mesmo da<br />

envoltura corporal e, mesmo após ocorrerem as suas remoções, efetivamente <strong>de</strong>ixam<br />

marcas e pistas, tornando-se, assim, testemunhas visíveis <strong>de</strong> um enunciado realizado<br />

no passado.<br />

Figura 13: Escarificações em uma mulher da tribo Nuba.<br />

Fonte: GRÖNING, 1998, p. 146.<br />

Figura 14: Piercings. Fonte: FUNNY PHOTOS, 2009.<br />

84


No exemplo à esquerda (Fig. 13), aparece uma das mulheres da tribo Nuba 40 .<br />

Conforme a tradição <strong>de</strong>sse povo, as mulheres utilizam o envelope corporal para<br />

enunciar a história <strong>de</strong> suas vidas, transformado-o em superfície <strong>de</strong> inscrição e, por<br />

meio <strong>de</strong> espinhos, facas e navalhas, têm os seus corpos escarificados a partir da ida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos. Nessa ida<strong>de</strong>, as escarificações são feitas na parte frontal do tronco.<br />

Depois, após a primeira menstruação, essa área é ampliada. Somente após o<br />

nascimento do primeiro filho é que as escarificações são feitas nas costas.<br />

O exemplo da direita (Fig. 14) é <strong>de</strong> um rapaz que faz parte dos mo<strong>de</strong>rn<br />

primitives, que se submetem a diversas manipulações corporais, neste caso, nos<br />

“jogos <strong>de</strong> penetração”, e utiliza piercings basicamente como um modo <strong>de</strong> se tornar<br />

diferente das outras pessoas. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma projeção do próprio sobre o não<br />

próprio, mas também é uma modificação do envelope corporal por instrumentalização<br />

das inscrições. De todo modo, as marcas que ficam após a retirada <strong>de</strong> um piercing<br />

(como po<strong>de</strong>m ser observadas nas laterais da cabeça) servem <strong>de</strong> testemunhas <strong>de</strong> uma<br />

enunciação passada 41 .<br />

40 As pinturas corporais Nuba serão analisadas em <strong>de</strong>talhe no capítulo 3.<br />

41 Fontanille explica que “o testemunho implica, pois, uma origem, que é já inacessível à percepção<br />

direta, cujo <strong>de</strong>senho só po<strong>de</strong>ria ser testemunhado e encontrado nos corpos. No caso em que o corpotestemunha<br />

não é o corpo sensível original, não po<strong>de</strong> haver testemunho se não se po<strong>de</strong> garantir um<br />

relevo contínuo do contato entre esse corpo original e os corpos intermediários, graças às impressões<br />

<strong>de</strong>ixadas pelos contatos sucessivos” (2004a, p. 226). Le témoignage implique donc une origine, <strong>de</strong>venue<br />

inaccessible à la perception directe, dont on ne pourrait attester et retrouver la trace que sur <strong>de</strong>s corps.<br />

Dans le cas où le corps-témoin n‟est pas le corps sensible originel, il ne peut y avoir témoignage que si<br />

on peut garantir un relais continu du contact entre ce corps originel et les corps intermédiaires, grace aux<br />

empreintes laissées par les contacts successifs.<br />

85


Na figura 15 po<strong>de</strong>-se observar um processo <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> tatuagens, outro<br />

tipo <strong>de</strong> marca em um envelope corporal que funciona tal e qual os exemplos <strong>de</strong><br />

escarificação e <strong>de</strong> piercings.<br />

As superfícies <strong>de</strong> inscrição, variadas maneiras <strong>de</strong> expressão semiótica “são<br />

“duplas” projetadas a partir do envelope do Seu Outro (projeção)”: po<strong>de</strong>m ter a forma e<br />

a matéria que geram uma pluralização; po<strong>de</strong>m também gerar uma inversão na qual o<br />

conteúdo do envelope passaria a ser um conjunto <strong>de</strong> signos e <strong>de</strong> figuras observáveis<br />

no mundo exterior. Desse modo, as inscrições das enunciações semióticas “seriam<br />

avatares projetados e invertidos do envelope do Seu outro” 42 (FONTANILLE, 2004a, p.<br />

151).<br />

Figura 15: Tatuagem. Fonte: GRÖNING, 1998, p. 221.<br />

Fontanille afirma, então, que os três primeiros tipos <strong>de</strong> operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem<br />

citados anteriormente produzem os “significantes formais” do envelope e são<br />

suficientes para, com o suporte do envelope seu-outro, gerar as superfícies <strong>de</strong><br />

inscrição semiótica. Todo envelope corporal é, então, fruto das funções genéricas <strong>de</strong><br />

continente e <strong>de</strong> superfície <strong>de</strong> inscrição que se <strong>de</strong>senvolvem em forma <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s<br />

42 Seraient <strong>de</strong>s avatars projetés et inversés <strong>de</strong> l‟enveloppe du Soi.<br />

86


(Conexida<strong>de</strong>, Compacticida<strong>de</strong> e Seleção) e em forma <strong>de</strong> operações (Projeção,<br />

Pluralização e Inversão).<br />

A maquiagem e a pintura corporal são, sem dúvida alguma, um ato <strong>de</strong><br />

significação, e, sendo um enunciado em ato, acontece a partir <strong>de</strong> uma presença<br />

efetiva, mesmo que o suporte corporal esteja virtualmente afastado. Conforme explica<br />

Fontanille (2001, p.242), para que a impressão funcione como signo e consequente<br />

processo interpretativo e persuasivo, “é necessário que uma das “faces” seja atual e a<br />

outra potencial”(guardada na memória). O campo <strong>de</strong> presença perceptivo originado a<br />

partir da carne sensível <strong>de</strong> um actante sujeito encarnado e <strong>de</strong> sua tomada <strong>de</strong> posição<br />

no mundo é colocado em comunicação com o espaço tensivo criado pelo corpo-próprio<br />

– envelope corporal – <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição por meio do exercício <strong>de</strong><br />

enunciação (domínio da práxis enunciativa). A maquiagem, portanto, promove a<br />

transição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> indizível (por isso virtual) a um discurso persuasivo<br />

realizado, ou seja, movimento entre modos <strong>de</strong> existência, por isso torna-se necessário<br />

verificar a inscrição efêmera, maquiagem, como uma práxis enunciativa.<br />

87


2. INSCRIÇÕES EFÊMERAS<br />

Na pintura corporal, a tela é lavável. A maquiagem é aplicada, a mo<strong>de</strong>lo<br />

dá vida à tela e o fotógrafo a captura (GAIR 2006, p.5). 1<br />

A cumplicida<strong>de</strong> entre a tela <strong>de</strong> pintura e a pele humana também é revelada nas<br />

palavras <strong>de</strong> Serres (2001, p.27): “Ela [a mulher] maquia a sua pele, base e ruge <strong>de</strong><br />

superfície, como o pintor prepara uma tela. A pele se i<strong>de</strong>ntifica à tela como a tela há<br />

pouco se i<strong>de</strong>ntificava à pele” (SERRES, 2001, p. 27). Des<strong>de</strong> os primórdios o ser<br />

humano utiliza a pele como suporte <strong>de</strong> uma expressão plástica (pinturas,<br />

escarificações, tatuagens, piercings) e, no caso da maquiagem, com produtos<br />

apropriados que, além <strong>de</strong> evoluírem quantitativa e qualitativamente durante os séculos,<br />

permitem a sua remoção por meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>maquilantes e/ou <strong>de</strong> um banho mais<br />

caprichado. As inscrições transitórias têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modificar completamente o<br />

envelope corporal, po<strong>de</strong>m camuflá-lo, levando-o à ausência virtualizada, como também<br />

po<strong>de</strong>m ressaltá-lo, fortalecendo a sua presença. Esse diferencial da tela lavável<br />

permite que a superfície <strong>de</strong> inscrição <strong>de</strong> um mesmo envelope receba diversos<br />

enunciados.<br />

Nas pinturas corporais dos povos pré-letrados e até nas mais simples<br />

maquiagens sociais, verda<strong>de</strong>iros autorretratos, verifica-se a autonomia dos seus<br />

códigos, das suas regras e seus valores. Seja aplicada por um artista da maquiagem<br />

ou, simplesmente, uma auto-aplicação, a pele torna-se o que o artista, amador ou<br />

profissional, faz <strong>de</strong>la, ou melhor, é uma tomada <strong>de</strong> posição da instância corpo próprio<br />

(envelope corporal) <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição. Por ser efêmera, a<br />

maquiagem, então, facilita as diversas tomadas <strong>de</strong> posição que darão uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

figurativa ao indivíduo, sujeito actante encarnado, assegurando, <strong>de</strong>ssa maneira, o<br />

constante <strong>de</strong>vir da instância corpo próprio.<br />

Duda Molinos, famoso maquiador brasileiro, afirma que a maquiagem não é<br />

apenas para embelezar, ela “é um po<strong>de</strong>roso acessório que reforça seu estilo, a<br />

personalida<strong>de</strong> ou a atitu<strong>de</strong> que você quer ter num <strong>de</strong>terminado dia, num certo lugar”<br />

1 En la pintura corporal, el lienzo es lavable. El maquillaje se aplica, la mo<strong>de</strong>lo da vida al lienzo y el<br />

fotógrafo lo captura.<br />

88


(2000, p.15). Aucoin, maquiador americano (1995, p.1), pergunta: quem você quer ser<br />

hoje? Seja no dia a dia ou em ocasiões especiais, o mo<strong>de</strong>lo e o artista ou o mo<strong>de</strong>lo<br />

artista “têm em comum a virtuosida<strong>de</strong> dos efeitos ópticos” (SERRES, 2001, p. 27) e<br />

trabalham com suportes comuns, porém com uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores, formas,<br />

texturas: são “mãos enluvadas <strong>de</strong> pele (que) passeiam por uma pele” (SERRES, 2001,<br />

p. 27), dando-lhe máscaras sociais transitórias e que, algumas vezes, acabam<br />

tornando-se <strong>de</strong>finitivas, a partir do encontro sensível e afetivo entre o sujeito e o objeto<br />

<strong>de</strong> valor.<br />

Na etimologia do verbo maquiar encontra-se a sua origem francesa e revela-se<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, o uso da maquiagem/máscara está diretamente ligado ao<br />

significado <strong>de</strong> fazer-se outro na aparência, mostrar-se outro por meio <strong>de</strong> uma máscara<br />

ou simplesmente mostrar-se com mais veemência.<br />

A etimologia do vocábulo não é fácil. A forma recente <strong>de</strong>ste transitivo<br />

direto remonta a 1450, ao francês „„maquiller‟‟, <strong>de</strong> significado<br />

„„trabalhar‟‟. Passou pelo teatro do séc. XVIII, já com o sentido <strong>de</strong><br />

„„pintar o rosto‟‟, proveniente do picardo antigo „„maquier‟‟ (fazer), e,<br />

este, do holandês „„maken id‟‟, a resultar nos comparativos inglês e<br />

português. O vocábulo „„máscara‟‟, proveniente do italiano „„maschera‟‟<br />

(1348-1353) a abrigar a acepção <strong>de</strong> „„pessoa disfarçada‟‟, tem como<br />

base „„masca‟‟, do baixo-latim, com diversos significados ao longo dos<br />

séculos. O italiano „„maschera‟‟ ainda é tido como <strong>de</strong>rivado do árabe<br />

„„mashara‟‟ („„bufão, ridículo‟‟), que sofreu outras influências na Europa,<br />

mas que redundaram em muitos cognatos <strong>de</strong> língua portuguesa, como<br />

por exemplo: máscara, mascaração, mascaramento e<br />

maquilhado/maquiado/maquilado. (PEREIRA, 2006, p.2 )<br />

Serres ainda explica que nos referimos à “cosmética ou a arte da maquiagem”<br />

<strong>de</strong> uma maneira equivalente. Esse mérito ele atribui à sabedoria dos gregos que<br />

fundiram “numa mesma palavra a or<strong>de</strong>m e o ornamento, a arte <strong>de</strong> ornar com a <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>nar” (2001, p.27).<br />

O cosmo <strong>de</strong>signa a arrumação, a harmonia, a lei, a conveniência: eis o<br />

mundo, terra e céu, mas também a <strong>de</strong>coração, o embelezamento ou o<br />

arranjo. Nada é tão profundo como o enfeite, nada é tão abrangente<br />

como a pele, o ornato e as dimensões do mundo. Cósmico e<br />

cosmética, a aparência e a essência saem <strong>de</strong> uma mesma fonte. A<br />

maquiagem iguala a or<strong>de</strong>m, e o embelezamento equivale à lei, o<br />

mundo surge or<strong>de</strong>nado, em qualquer nível em que se consi<strong>de</strong>rem os<br />

fenômenos. Todo véu sempre se apresenta magnificamente historiado.<br />

(SERRES, 2001, p. 27)<br />

89


O ato <strong>de</strong> maquiar associado à or<strong>de</strong>m do mundo é corroborado pelo pensamento<br />

<strong>de</strong> Bourdieu (2008), para quem a maquiagem, além <strong>de</strong> ser uma das marcas sociais<br />

que caracterizam um <strong>de</strong>terminado grupo (sujeito coletivo), revela também alguns<br />

valores sociais:<br />

As diferenças <strong>de</strong> pura conformação são reduplicadas e,<br />

simbolicamente, acentuadas pelas diferenças <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, diferenças na<br />

maneira <strong>de</strong> portar o corpo, <strong>de</strong> apresentar-se, <strong>de</strong> comportar-se em que<br />

se exprime a relação com o mundo social. A esses itens, acrescentamse<br />

todas as correções intencionalmente introduzidas no aspecto<br />

modificável do corpo, em particular, pelo conjunto das marcas relativas<br />

à cosmética – penteado, maquiagem, barba, bigo<strong>de</strong>, suíças etc – ou ao<br />

vestuário que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo dos meios econômicos e culturais<br />

suscetíveis <strong>de</strong> serem investidos aí, são outras tantas marcas sociais<br />

que recebem seu sentido e seu valor <strong>de</strong> sua posição no sistema <strong>de</strong><br />

sinais distintivos que elas constituem, além <strong>de</strong> que ele próprio é<br />

homólogo do sistema <strong>de</strong> posições sociais. (BOURDIEU, 2008, p. 183)<br />

Essa distinção social do corpo é um dos apoios para o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

função do Eu-pele exposta por Anzieu. O primeiro apoio é o biológico, que fornece um<br />

primeiro <strong>de</strong>senho da realida<strong>de</strong> que se imprime na pele. A base social é a da pertença<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo, estabelecido por incisões, escarificações, pinturas,<br />

tatuagens, maquiagens, penteados e os dublês da pele, as roupas (ANZIEU, 1989, p.<br />

119). A efemerida<strong>de</strong> característica da maquiagem sobre uma tela corpo/rosto lavável<br />

permite, <strong>de</strong>sse modo, infinitas modificações, verda<strong>de</strong>iros disfarces, diversos <strong>de</strong>vires.<br />

Com o auxílio da maquiagem, um indivíduo po<strong>de</strong> se inserir em qualquer grupo social,<br />

adotar as hexei corporais das diversas classes e grupos sociais. Tais transformações<br />

po<strong>de</strong>m ser impostas pela socieda<strong>de</strong> ou po<strong>de</strong>m ser reações contra essas<br />

<strong>de</strong>terminações. Transformações visíveis não somente na face <strong>de</strong> um indivíduo, mas<br />

também na própria socieda<strong>de</strong> que, atualmente, <strong>de</strong> estação em estação, varia as<br />

tonalida<strong>de</strong>s e os produtos para a criação dos rostos sociais, tal qual a moda das<br />

roupas. Landowski (2002, p. 99) observa que a socieda<strong>de</strong> em movimento exige do<br />

sujeito individual que ele consiga “mudar em cadência” para que não corra o risco “<strong>de</strong><br />

talvez não se reconhecer inteiramente a si mesmo”.<br />

Além do mais, a maquiagem é um nítido momento em que a reflexibilida<strong>de</strong> e a<br />

visibilida<strong>de</strong> do corpo se encontram. Essa relação reflexiva diante das transformações<br />

visuais e as relações <strong>de</strong> transição com os outros sujeitos se referem à constituição,<br />

90


“<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> através do reconhecimento, sob uma forma ou outra, <strong>de</strong> uma<br />

alterida<strong>de</strong>” (LANDOWSKI, 2002, p. 101). Por outro lado, a relação do indivíduo com o<br />

Seu Outro salienta o sincretismo actancial do corpo, uma vez que o sujeito faz do seu<br />

corpo um objeto <strong>de</strong> arte capaz <strong>de</strong> se modificar constantemente. É o momento <strong>de</strong> fusão<br />

<strong>de</strong> papéis, o próprio encontro entre sujeito e objeto. Serres (2001, p. 28) explica que ao<br />

pintar a pele do rosto se “pinta uma máscara sobre uma máscara”. É como se a “fina<br />

membrana”, como <strong>de</strong>screve Patrice Pavis (2003, p. 172), recebesse a impressão da<br />

face. O rosto singular imprime sob a película seu relevo in<strong>de</strong>strutível, contudo, passível<br />

<strong>de</strong> ausências virtuais para privilegiar um enunciado. É como se o enfeite fosse tão<br />

perfeito que se pu<strong>de</strong>sse arrancá-lo e, diante <strong>de</strong>ssa impossibilida<strong>de</strong>, resta à fotografia<br />

eternizá-lo. A maquiagem é, portanto, um objeto inconstante e volante (SERRES,<br />

2001, p. 28). Ao ser maquiada, “a pele do sujeito se objetiva, po<strong>de</strong>ria ser exposta no<br />

museu” (SERRES, 2001, p.28). Além <strong>de</strong> ela ser um arranjo estético que po<strong>de</strong><br />

transgredir os clichês e <strong>de</strong>rrubar simulacros preestabelecidos e persuadir os seus<br />

enunciatários.<br />

2.1 FASCÍNIO PERSUASIVO<br />

Entremos nas festas galantes on<strong>de</strong> rodopiam e dançam tantas<br />

máscaras e disfarces fantásticos: mostram-se, exibem-se, escon<strong>de</strong>mse,<br />

caem, mudam, em dado momento a pele se per<strong>de</strong>, a pessoa se<br />

afasta, as metamorfoses voam pelo ar. Nas quermesses amorosas, os<br />

dançarinos mudam <strong>de</strong> pele. Os <strong>de</strong>spojos que passam, vivos, lestos,<br />

<strong>de</strong>licados, no ar tênue, como espíritos, só são visíveis no instantâneo;<br />

Watteau, Verlaine os perceberam. Pequena explosão <strong>de</strong> alegria<br />

perigosa, on<strong>de</strong> a cosmética, enfeite preparado para a noite, apenas,<br />

<strong>de</strong>staca-se sobre a beleza, para a eternida<strong>de</strong>. (SERRES, 2001, p.28)<br />

Thelma Aucoin (Figs. 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22), na época da publicação do<br />

livro Making Faces (1995), era uma mulher sexagenária <strong>de</strong> origem simples que havia<br />

trabalhado durante toda a sua vida, com <strong>de</strong>staque para o trabalho social entre grupos<br />

<strong>de</strong> gays e lésbicas. Kevin Aucoin, seu filho e autor do livro acima referido, a<br />

consi<strong>de</strong>rava uma das melhores mo<strong>de</strong>los para as suas criações por causa da sua<br />

mente aberta e sem preconceitos. Desse modo, Aucoin, por meio da maquiagem, lhe<br />

construiu diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas ou diversas máscaras sociais: maquiagem<br />

91


natural (Fig. 18), clássica sensual (Fig.17 ), mo<strong>de</strong>rna (Fig. 19), coquete (Fig. 22), e<br />

sensualmente glamourosa estilo Marlene Dietrich (Fig. 21) ou estilo Coco Chanel (Fig.<br />

20). Aucoin fez <strong>de</strong> sua mo<strong>de</strong>lo uma mulher <strong>de</strong> mil faces efêmeras, que, assim como<br />

Serres <strong>de</strong>screve no texto em epígrafe, são diversos enfeites, nada inocentes,<br />

preparados para fascinar, admirar e persuadir.<br />

Figura 16: Thelma Aucoin. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 91.<br />

Figura 17: Thelma Aucoin com maquiagem sensual. Fonte: AUCOIN, 1995, p. 90.<br />

Figura 18: Thelma Aucoin com maquiagem natural. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 41.<br />

Figura 19: Thelma Aucoin com maquiagem mo<strong>de</strong>rna. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 152.<br />

Figura 20: Thelma Aucoin como „Coco‟ Chanel. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 174.<br />

Figura 21: Thelma Aucoin como Marlene Dietrich. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 104.<br />

92


Figura 22: Thelma Aucoin coquete. Fonte: AUCOIN, 2000, p. 40.<br />

Aucoin, além <strong>de</strong> materializar as palavras <strong>de</strong> Serres, parece comandado pela<br />

teoria <strong>de</strong> Charles Bau<strong>de</strong>laire (1988), uma vez que o maquiador escon<strong>de</strong> as manchas e<br />

rugas que a natureza semeou no rosto <strong>de</strong> sua mãe; <strong>de</strong>ixa a pele <strong>de</strong> Thelma uniforme,<br />

aproximando-a <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte, dando a ela, um ser humano comum, um ar divino<br />

e superior. Desse modo, Thelma causa fascínio e admiração por meio das maquiagens<br />

que são culturalmente um atributo tipicamente feminino 2 que o poeta elogiava,<br />

<strong>de</strong>fendia e incentivava no século XIX:<br />

A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma<br />

espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é<br />

2 Em alguns povos antigos ou grupos atuais, praticamente todos os primitivos, os Babilônios, os Assírios,<br />

os Egípcios, e em algumas épocas, <strong>de</strong>staque para o séc. XVII, na França, sob o comando do Rei-Sol,<br />

Luís XIV, a maquiagem era utilizada também pelos homens. (CORSON, 1972)<br />

93


preciso que <strong>de</strong>sperte admiração e que fascine; ídolo, <strong>de</strong>ve dourar-se<br />

para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para<br />

elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os corações e<br />

surpreen<strong>de</strong>r os espíritos. Pouco importa que a astúcia e o artifício<br />

sejam conhecidos <strong>de</strong> todos, se o sucesso está assegurado e o efeito é<br />

sempre irresistível. (BAUDELAIRE, 1988, p.202-203)<br />

Com certeza Bau<strong>de</strong>laire não se enganou ao afirmar que o conhecimento do<br />

artifício da maquiagem não impe<strong>de</strong> que o fascínio aconteça. Pelo contrário, favorece a<br />

enunciação e o fazer persuasivo entre os actantes encarnados. O impacto <strong>de</strong> uma<br />

maquiagem influi profundamente na aceitação <strong>de</strong> um indivíduo em um grupo social, em<br />

uma hexis corporal. Por ser um enunciado, a maquiagem po<strong>de</strong> ser entendida como um<br />

fazer persuasivo, uma vez que, para a semiótica, enten<strong>de</strong>-se que a enunciação prevê<br />

um fazer persuasivo e interpretativo entre um enunciador e um enunciatário. Assim, ao<br />

maquiar o rosto ou o corpo, ao adotar as mesmas marcas <strong>de</strong> um sujeito coletivo, um<br />

actante sujeito encarnado tenta conseguir a<strong>de</strong>são do enunciatário, que se condiciona<br />

pelo fazer interpretativo. Aucoin, enunciador, ao maquiar Thelma faz do seu rosto um<br />

enunciado que constrói um simulacro <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, tarefa que liga os universos<br />

axiológicos tanto do enunciador quanto do enunciatário.<br />

O fazer persuasivo ocorre porque “não se imagina que o enunciador produza<br />

discursos verda<strong>de</strong>iros, mas discursos que produzem um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”<br />

(GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.531). Assim, por mais fascinantes e vertiginosas que<br />

possam ser as pinturas <strong>de</strong> Thelma, po<strong>de</strong>-se perguntar: qual é a Thelma verda<strong>de</strong>ira?<br />

O crer verda<strong>de</strong>iro do enunciador não basta para transmitir uma verda<strong>de</strong>. Assim, do<br />

mesmo modo como Thelma adquire e mostra diversas máscaras sociais, um outro<br />

enunciador po<strong>de</strong> “dizer” o quanto quiser. Thelma se mostra segura e parece ser<br />

evi<strong>de</strong>nte que ela seja mo<strong>de</strong>rna, coquete, clássica ... Mas isto não significa que o<br />

enunciatário acredite em seus avatares. O crer verda<strong>de</strong>iro tem que estar estabelecido<br />

na outra ponta da comunicação. Greimas e Courtés (2008, p. 530) afirmam que é a<br />

partir do entendimento subentendido entre os dois cúmplices com certa consciência<br />

que se estabelece o contrato <strong>de</strong> veridicção.<br />

94


Aucoin propõe diversas maquiagens enunciados sobre o rosto <strong>de</strong> Thelma 3 , que<br />

é apresentado <strong>de</strong> maneiras diferentes e a cada novo avatar é criado um novo contrato<br />

<strong>de</strong> veridicção: Thelma com uma base numa tonalida<strong>de</strong> mais bronzeada que a sua pele<br />

natural; com um sombreado marrom esfumado sobre as pálpebras superiores; com<br />

lápis preto contornando os olhos; com cílios curvados e alongados com máscara preta;<br />

com sobrancelhas reforçadas pelo lápis marrom; com os lábios contornados por lápis<br />

cor <strong>de</strong> pele e cobertos por batom e gloss <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> rosa e caramelo que<br />

simulam a coloração natural e com blush <strong>de</strong> cor rosa aplicado sobre a região dos<br />

ossos da face, apresenta um visual mo<strong>de</strong>rno (Fig. 19). Aucoin segue à risca os<br />

conselhos <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire e “doura” sua mo<strong>de</strong>lo para que ela seja mo<strong>de</strong>rna. Desse<br />

modo, o rosto maquiado se torna um enunciado produtor <strong>de</strong> um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>, neste caso com um visual mo<strong>de</strong>rno, no intuito <strong>de</strong> conseguir a a<strong>de</strong>são do<br />

enunciatário, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do grupo social a que ambos pertençam. Os outros<br />

actantes encarnados, então, passam a interpretá-lo, são subjugados, surpreendidos<br />

até que consi<strong>de</strong>rem que aquele enunciado seja verda<strong>de</strong>iro ou falso, mentiroso ou<br />

secreto. Cabe lembrar que a enunciação acontece num tempo e num espaço e estes<br />

influirão no julgamento das aparências <strong>de</strong> Thelma. O mesmo processo acontece com<br />

todos os outros avatares apresentados por Thelma: Thelma clássica sensual (Fig.17 ),<br />

Thelma coquete (Fig. 22), e Thelma simulacro <strong>de</strong> “Coco” Chanel (Fig. 20) ou Marlene<br />

Dietrich (Fig. 21). A “Coco” Chanel e a Marlene Dietrich originais po<strong>de</strong>m ser<br />

observadas nas figuras. 23, 24 e 25:<br />

3 No caso da automaquiagem o sujeito actante encarnado é o próprio enunciador.<br />

95


Figura 23: Coco Chanel. Fonte: MUSEU DEL PERFUM, 2009.<br />

Figura 24: Marlene Dietrich. Fonte: BELAS ATRIZES DO MUNDO, 2009.<br />

Figura 25: Marlene Dietrich. Fontes: DEVIANTART, 2009.<br />

Assim, o fazer persuasivo, conforme <strong>de</strong>finem Greimas e Courtés (2008, p.368),<br />

seria a convocação <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s, pelo enunciador, para que o<br />

enunciatário aceite o contrato enunciativo proposto, tornando, assim, a comunicação<br />

eficaz. O fazer persuasivo po<strong>de</strong>, então, ser concebido sob dois aspectos da<br />

modalida<strong>de</strong> factitiva, que garante, <strong>de</strong>sse modo, o fazer persuasivo (enunciador) e o<br />

fazer interpretativo (enunciatário): visar ao ser do sujeito a modalizar, ou ao seu fazer<br />

eventual. No caso da maquiagem, refere-se ao primeiro, ou seja, é uma proposta feita<br />

ao ser do sujeito, fazendo uso das modalida<strong>de</strong>s veridictórias, uma vez que o fazer<br />

persuasivo é :<br />

como um fazer cognitivo que visa levar o enunciatário a atribuir ao<br />

processo semiótico ou a qualquer um <strong>de</strong> seus segmentos – que só<br />

po<strong>de</strong> ser por ele recebido como uma manifestação [representação] - o<br />

estatuto da imanência [referente ao verda<strong>de</strong>iro], a fazê-lo inferir do<br />

fenomenal [parecer] o numenal [ser]” (GREIMAS E COURTÉS, 2008, p.<br />

368).<br />

É a partir da colocação dos esquemas parecer/não-parecer (manifestação) e<br />

ser/não ser (imanência) que a categoria <strong>de</strong> veridicção é construída, como po<strong>de</strong> ser<br />

visto no quadrado semiótico abaixo (GREIMAS E COURTÉS, 2008, p. 532):<br />

96


segredo<br />

ser<br />

As modalida<strong>de</strong>s veridictórias, portanto, <strong>de</strong>terminam a relação do sujeito com o<br />

objeto e articulam-se, como categoria modal, em /ser/ vs. /parecer/. Ser é o estatuto<br />

veridictório exposto pela narrativa do sujeito, e parecer é o estatuto veridictório<br />

imputado a um estado por um observador, como um julgamento. Assim, a<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Thelma po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma verda<strong>de</strong>, ela parece e é mo<strong>de</strong>rna,<br />

contudo, sua manifestação como “diva”, por mais eficiente que seja, é mentira: ela<br />

parece, mas não é Marlene Dietrich ou Coco Chanel; ou ainda, o seu classicismo po<strong>de</strong><br />

ser consi<strong>de</strong>rado como uma falsida<strong>de</strong>, nem parecer e nem ser clássica, ou um segredo,<br />

não-parecer e ser completamente clássica. Do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, o campo <strong>de</strong><br />

veridicção teria o seguinte resultado, conforme <strong>de</strong>monstra Desi<strong>de</strong>rio Blanco (2008, p.<br />

14), no esquema tensivo 11 :<br />

verda<strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong><br />

parecer<br />

não-parecer não-ser<br />

falsida<strong>de</strong><br />

mentira<br />

97


Ser +<br />

INT<br />

Não Ser -<br />

Segredo<br />

Falsida<strong>de</strong><br />

Verda<strong>de</strong><br />

Ilusão/<br />

Mentira<br />

- Não Parecer EXT Parecer +<br />

Com esse esquema, <strong>de</strong>monstra-se que, na correlação divergente entre<br />

intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>, quanto mais se é, menos se parece (Segredo), ou quanto<br />

mais parece, menos é (Mentira). Na correlação conversa, quanto mais se é, mais se<br />

parece (Verda<strong>de</strong>), ou quanto menos se é, menos se parece (Falsida<strong>de</strong>). Portanto, um<br />

enunciatário, no seu fazer interpretativo, ao perceber Thelma Aucoin como simulacro<br />

<strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20) ou Marlene Dietrich (Fig. 21) a julga como uma mentira, pois<br />

há a diminuição da intensida<strong>de</strong> da referência do Eu-Thelma (imanência) e aumenta-se<br />

a extensida<strong>de</strong> da manifestação (parecer): quanto mais se parece com Coco Chanel<br />

(Fig. 20) ou Marlene Dietrich (Fig. 21) menos se é Thelma Aucoin.<br />

É a partir da <strong>de</strong>cisão do enunciatário sobre o ser ou não ser do actante sujeito<br />

encarnado que aparece o conhecimento coletivo, proporcionado culturalmente, relativo<br />

às interpretações veridictórias, tais como as que <strong>de</strong>terminam as hexei corporais. A<br />

modalização do ser é que dá existência modal ao sujeito do estado e modifica a<br />

relação do sujeito com os valores (BARROS, 2003, p.88). Desse modo, a partir do<br />

esquema da manifestação (parecer/não parecer), Thelma Aucoin, a cada avatar<br />

apresentado, constrói suas máscaras transitórias, <strong>de</strong> acordo com os valores <strong>de</strong> cada<br />

grupo social, sem, contudo, per<strong>de</strong>r o seu Eu <strong>de</strong> referência, com exceção dos<br />

simulacros <strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20) e Marlene Dietrich (Fig. 21). Com base no<br />

pensamento <strong>de</strong> Landowski, po<strong>de</strong>-se dizer que a “evanescência das formas que<br />

98


passam 4 ” (2002, p.101) não prejudica a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da pessoa em cada maquiagem<br />

informada continuamente. Tanto para os grupos sociais quanto para os sujeitos<br />

individuais, as metamorfoses físicas, intelectuais e afetivas não proíbem a<br />

permanência, nem que seja para si mesmo, <strong>de</strong> serem eles mesmos, uma vez que<br />

existe em cada segmento social algo <strong>de</strong> inalterável, que supera as metamorfoses dos<br />

modos <strong>de</strong> ser. Assim, Thelma segue pelos percursos do parecer capaz <strong>de</strong> conduzi-la<br />

ao esquema <strong>de</strong> imanência (ser/não ser), como <strong>de</strong>terminam Greimas e Courtés (2008,<br />

p. 368):<br />

Partindo do parecer, Thelma (Fig. 16) recebe sobre a pele uma base <strong>de</strong><br />

tonalida<strong>de</strong> clara, pó facial translúcido; tem as sobrancelhas preenchidas sutilmente<br />

com traçados tipo pena na cor marrom claro, usa sombras <strong>de</strong> cor pêssego e marrom<br />

claro esfumadas sobre as pálpebras, tem os cílios cobertos por várias camadas <strong>de</strong><br />

máscara preta, as maçãs do rosto, a testa, a ponta do queijo e as têmporas coloridas<br />

com blush rosa claro; recebe sobre os lábios o batom na cor vermelho cereja e, <strong>de</strong>sse<br />

modo, <strong>de</strong>monstra ser coquete (Fig. 22), como também po<strong>de</strong>ria receber outras cores e<br />

tonalida<strong>de</strong>s em outros pontos <strong>de</strong> sombreado e contornos, como é feito nos <strong>de</strong>mais<br />

avatares, e não ser coquete.<br />

É no interior <strong>de</strong>sses percursos que, conforme explicam Greimas e Courtés, além<br />

<strong>de</strong> procurar transformar o semiótico em ontológico, são construídos os programas<br />

modais <strong>de</strong> persuasão. Assim, a construção visual, por meio das maquiagens fugazes<br />

ou das tatuagens e piercings permanentes, figurativizam as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s do corpo<br />

próprio (Seu Outro), e também <strong>de</strong>signam as hexei corporais dos grupos sociais.<br />

Percebe-se, portanto, que a maquiagem impressa sobre a superfície <strong>de</strong><br />

inscrição, um enunciado efêmero, seria o plano <strong>de</strong> expressão do <strong>de</strong>vir do actante<br />

sujeito enunciador encarnado. Os valores dos objetos também mudam <strong>de</strong> acordo com<br />

cada época, com cada classe social, com cada estética, assim como os materiais para<br />

expressar um conteúdo: cores e texturas dos batons (opacos, tonalida<strong>de</strong>s, brilho), dos<br />

blushes (tonalida<strong>de</strong>s, posicionamentos topológicos, opacida<strong>de</strong> ou brilho), das sombras,<br />

entre outros, como po<strong>de</strong> ser verificado em cada enunciação manifestada no rosto <strong>de</strong><br />

Thelma Aucoin.<br />

4 Landowski refere-se ao pensamento <strong>de</strong> Michel <strong>de</strong> Certeau (2002, p.101).<br />

99


100<br />

O que se observa a partir <strong>de</strong> Thelma e Seus Outros maquiados é que a<br />

maquiagem é um sinal constitutivo <strong>de</strong> um corpo percebido, da construção <strong>de</strong> uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa, é produto <strong>de</strong> um engendramento cultural. O efeito <strong>de</strong>ssa<br />

construção baseia-se na distinção feita pelos grupos sociais. Apesar da distância entre<br />

essa concepção social e a natureza, tais hexei corporais se tornam naturais para o<br />

grupo <strong>de</strong> origem, isto é, Thelma clássica (Fig. 17) é natural em relação ao grupo <strong>de</strong><br />

referência clássico. Desse modo, como explica Bourdieu (2008, p. 183), a maneira<br />

como o sujeito apresenta o seu corpo “é espontaneamente percebida como índice <strong>de</strong><br />

conduta moral” e, se, ao contrário do esperado, o corpo tiver a “aparência „natural‟”<br />

será tido como “índice <strong>de</strong> displicência, <strong>de</strong> abandono culpável à facilida<strong>de</strong>” (BOURDIEU,<br />

2008, p. 183).<br />

Produto social, o corpo - única manifestação sensível da “pessoa” – é<br />

comumente percebido como a expressão mais natural da natureza<br />

profunda: não há sinais propriamente “físicos”; <strong>de</strong>ste modo, a cor e a<br />

espessura do batom ou a configuração <strong>de</strong> uma mímica, assim como a<br />

forma do rosto ou da boca, são imediatamente lidas como índices <strong>de</strong><br />

uma fisionomia “moral”, socialmente caracterizada, ou seja, estados <strong>de</strong><br />

ânimo “vulgares” ou “distintos”, naturalmente “naturais” ou naturalmente<br />

“cultivados”. (BOURDIEU, 2008, p. 183)<br />

Para Bau<strong>de</strong>laire, o sucesso <strong>de</strong> uma maquiagem é certo e o seu efeito é sempre<br />

irresistível, por mais que se conheçam a astúcia e o artifício, <strong>de</strong> certo modo o poeta<br />

está certo. Sem dúvida alguma, as maquiagens <strong>de</strong> Thelma possuem um fascínio<br />

persuasivo, mas a eficácia 5 <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá dos enunciatários que a julgarão.<br />

2.2 CONVOCATÓRIA MODAL E ASSOCIAÇÃO DE VALORES NA<br />

NARRATIVIDADE DA MAQUIAGEM<br />

Conheço muito bem vossas pinturas; Deus vos <strong>de</strong>u um rosto e arrumais<br />

outro [...] (SHAKESPEARE 2009, p.34);<br />

Na epígrafe está a fala <strong>de</strong> Hamlet a Ofélia, no ato III, cena I, no momento em<br />

que os antigos namorados se reencontram. Contudo, po<strong>de</strong>ria ser dito a Thelma Aucoin,<br />

assim como para qualquer um <strong>de</strong> nós que se arrisca a corrigir as olheiras, valorizar os<br />

5 De acordo com Greimas e Courtés, o conceito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> vem sendo “substituído pelo <strong>de</strong> eficácia na<br />

reflexão epistemológica” (2008, p. 531).


lábios com diferentes cores e brilhos, aumentar ou diminuir os olhos, alterar a<br />

tonalida<strong>de</strong> da pele na tentativa <strong>de</strong> fascinar, seduzir e persuadir alguém para obter nem<br />

que seja um simples elogio.<br />

101<br />

Kevin Aucoin, maquiador enunciador, é efetivamente um sujeito competente na<br />

realização <strong>de</strong> sua performance, como po<strong>de</strong> ser observado nas transformações<br />

figurativas <strong>de</strong> Thelma. A narrativida<strong>de</strong> em semiótica é exatamente essa “transformação<br />

entre dois estados sucessivos e diferentes” (FIORIN, 2008b, p. 27). Desse modo, o<br />

maquiador possibilita a Thelma sair do seu Eu <strong>de</strong> referência, sem maquiagem,<br />

culturalmente recebido como displicência, e partir para manifestar as suas máscaras<br />

sociais. Para isso, além <strong>de</strong> todos os cosméticos que utiliza nas transformações do<br />

envelope corporal/superfície <strong>de</strong> inscrição, ele também convoca modalida<strong>de</strong>s para o<br />

jogo persuasivo das maquiagens para, assim, entrar em conjunção com o objeto <strong>de</strong><br />

valor (mo<strong>de</strong>rno, clássico sensual, natural, coquete, glamour à Marlene Dietrich ou à<br />

Coco Chanel).<br />

De acordo com Fontanille (2004a, p.142), o movimento intencional do actante<br />

relaciona-se com as modalida<strong>de</strong>s do fazer, já o envelope corporal, com as<br />

modalida<strong>de</strong>s do ser. Portanto, para transformar o envelope corporal em superfície <strong>de</strong><br />

inscrição, Thelma, por meio <strong>de</strong> uma automaquiagem, precisaria querer modificá-lo,<br />

como também <strong>de</strong>veria saber como modificá-lo para que pu<strong>de</strong>sse realizar sua<br />

transformação e entrar em conjunção com os valores <strong>de</strong> um meio social. Contudo,<br />

Thelma, nas páginas do livro <strong>de</strong> seu filho maquiador, é manipulada por ele: é o<br />

maquiador que faz com que Thelma queira, possa e seja clássica, mo<strong>de</strong>rna, coquete<br />

etc. Essas modalida<strong>de</strong>s (querer, po<strong>de</strong>r, ser) estão implícitas no processo <strong>de</strong><br />

transformação visual da mo<strong>de</strong>lo.<br />

Desse modo, Thelma, manipulada pelo maquiador, por uma vonta<strong>de</strong> própria<br />

(querer) ou por imposição (<strong>de</strong>ver) <strong>de</strong> um meio, permite que seja feita a maquiagem. O<br />

maquiador é dotado do conhecimento técnico e artístico do seu ofício: conhece (saber)<br />

as regras <strong>de</strong> uma maquiagem <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada hexis corporal, domina os métodos<br />

<strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> uma maquiagem e, portanto, é capaz (po<strong>de</strong>r) <strong>de</strong> realizar o seu<br />

objetivo, ou seja, fazer com que Thelma seja clássica, sensual, mo<strong>de</strong>rna, entre outras.<br />

Greimas e Courtés explicam que “os valores modais querer, <strong>de</strong>ver, po<strong>de</strong>r e saber,” são


capazes <strong>de</strong> modalizar tanto o ser quanto o fazer” (2008, p.315). A partir das<br />

exposições acima relacionadas, po<strong>de</strong>-se concluir que a maquiagem faz parte da<br />

construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa <strong>de</strong> um sujeito actante encarnado.<br />

Figurativida<strong>de</strong> esta que está a serviço <strong>de</strong> um fazer persuasivo que se estabelece entre<br />

o enunciador e enunciatário e se constrói <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma práxis enunciativa.<br />

102<br />

Nessa práxis, Thelma se motiva a modificar o seu envelope corporal por meio da<br />

maquiagem, e, até que isso efetivamente se realize, passa por tensões que<br />

<strong>de</strong>marcam esse percurso, isto é, a modalização no espaço tensivo assume o “aspecto<br />

<strong>de</strong> modulações <strong>de</strong> um continuum tensivo” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.<br />

229). As instâncias que balizam o percurso são constituídas pelos modos e níveis <strong>de</strong><br />

existência, que segundo Fontanille (2007, p. 175) se configuram a partir da categoria<br />

da presença e se distinguem segundo a lógica dos lugares. Veja-se o quadro 3<br />

(ZILBERBERG e FONTANILLE, 2001, p.231):<br />

Sujeito/objeto<br />

Endógena<br />

Sujeito/terceiro<br />

Exógena<br />

Modo<br />

Virtualizado<br />

Modo<br />

Potencializado<br />

Modo<br />

Atualizado<br />

Modo<br />

Realizado<br />

Motivações Crenças Aptidões Efetuações<br />

Querer Crer Saber Ser<br />

Dever A<strong>de</strong>rir Po<strong>de</strong>r Fazer<br />

Os modos existenciais são como estatutos dos objetos que a teoria da<br />

linguagem manipula, são também o meio pelo qual o campo perceptivo da presença é<br />

organizado. Logo, vale lembrar que as modulações da presença e ausência “fornecem<br />

a primeira modalização das relações entre o sujeito e o objeto tensivos, a modalização<br />

existencial” (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.131). Assim, os autores propõem<br />

a seguinte homologação:


103<br />

Greimas e Courtés (2008, p. 195) explicam que a <strong>de</strong>finição da existência<br />

semiótica dos sujeitos e dos objetos no discurso é <strong>de</strong> suma importância. Po<strong>de</strong>-se dizer,<br />

então, que quando Thelma (actante sujeito encarnado) vislumbra qualquer uma das<br />

hexei corporais dos grupos sociais, elas se tornam objetos-valor.<br />

(...) o valor que se investe no objeto visado semantiza, <strong>de</strong> algum modo,<br />

todo o enunciado, tornando-se no mesmo ato o valor <strong>de</strong> sujeito, que o<br />

encontra ao visar o objeto, e o sujeito se vê <strong>de</strong>terminado em sua<br />

existência semântica pela sua relação com o valor. Bastará, portanto,<br />

numa etapa posterior, dotar o sujeito <strong>de</strong> um querer-ser, para que o valor<br />

do sujeito, no sentido semiótico, transforme-se em valor para o sujeito,<br />

no sentido axiológico do termo 6 . (GREIMAS, 1989, p, 27)<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer que Thelma e as hexei corporais são,<br />

respectivamente, sujeito e objetos semióticos, pois estão em relação, já que os sujeitos<br />

atribuem um valor aos objetos e estes são visados pelos sujeitos. Ambos, sujeito e<br />

objeto, são entida<strong>de</strong>s que comportam as transformações que as afetam e procuram<br />

lhes dar um sentido: “uma direção e, por isso, primeiro, uma significação e um valor”<br />

(LANDOWSKI, 2002, p.103).<br />

PLENITUDE VACUIDADE<br />

Realizante virtualizante<br />

FALTA INANIDADE<br />

Atualizante potencializante<br />

Portanto, somente quando houver a junção <strong>de</strong> Thelma com o glamour, com o<br />

clássico sensual, com o mo<strong>de</strong>rno, entre outras, é que eles existirão semioticamente.<br />

Assim, tanto Thelma (sujeito) quanto os mundos (objetos valores) antes da junção são<br />

6 Grifo do autor. (...) el valor que se vierte en el objeto enfocado semantiza en cierto modo el enunciado<br />

entero, y se convierte <strong>de</strong> golpe en el valor <strong>de</strong>l sujeto que se encuentra con él al enfocar el objeto, y el<br />

sujeto se ve <strong>de</strong>terminado en su existencia semántica por su relación con el valor. Bastará por tanto, en<br />

una etapa ulterior, con dotar al sujeto <strong>de</strong> un querer-ser para que el valor <strong>de</strong>l sujeto, en el sentido<br />

semiótico, se transforme en valor para el sujeto, en el sentido axiológico <strong>de</strong> este término.


virtuais e apenas serão atualizados a partir da função semiótica (relação entre forma<br />

da expressão e forma do conteúdo). Enquanto o sujeito negar a disjunção com o<br />

objeto, ambos continuarão atualizados, somente após a conjunção [Thelma<br />

glamourosa] ou [Thelma mo<strong>de</strong>rna] é que todos serão realizados. Somente quando<br />

Thelma (sujeito) tornar real o que era visado (os mundos glamourosos, mo<strong>de</strong>rnos,<br />

clássicos, entre outros), é que, consequentemente, estes se realizam também.<br />

Thelma e os objetos <strong>de</strong> valor passam por dois percursos com entradas e saídas<br />

no campo <strong>de</strong> presença. Thelma, para preencher a lacuna social <strong>de</strong> sua carne, ainda<br />

“adormecida” no campo <strong>de</strong> presença, precisa atingir a plenitu<strong>de</strong> com seus envelopes<br />

sociais. Então, parte <strong>de</strong>ssa vacuida<strong>de</strong>, com uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> presença mínima, para<br />

o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> uma falta que a mobiliza em um campo aberto, cujo foco é firmado na<br />

intensida<strong>de</strong> da tensão instaurada entre o sujeito e o objeto, até alcançar a plenitu<strong>de</strong>,<br />

um sujeito realizado, com foco e apreensão tônicos. Thelma, <strong>de</strong>sse modo, segue pelo<br />

primeiro caminho no campo <strong>de</strong> presença: do virtual, atualizante e realizante, um<br />

percurso <strong>de</strong> ascendência em uma correlação conversa, como é <strong>de</strong>monstrado no<br />

esquema tensivo 12:<br />

Tônico<br />

INT<br />

Átono<br />

Falta<br />

Atualizante<br />

Vacuida<strong>de</strong><br />

Virtualizante<br />

Átono EXT Tônico<br />

Plenitu<strong>de</strong><br />

Realizante<br />

104<br />

Inanida<strong>de</strong><br />

Potencializante


105<br />

Após a realização <strong>de</strong> qualquer uma das máscaras sociais, acontece um<br />

fechamento do campo <strong>de</strong> presença, já que a apreensão <strong>de</strong>marca o domínio e<br />

circunscreve o objeto, consequentemente o foco se torna átono, <strong>de</strong>vido ao costume do<br />

observador com a presença <strong>de</strong> Thelma maquiada. Sua presença, porém, continua a<br />

tomar espaço no eixo da extensida<strong>de</strong>, e Thelma po<strong>de</strong> ser mais bem apreendida. Desse<br />

modo,Thelma maquiada se torna um sujeito sem tensões (distendido), isto é, um<br />

sujeito potencializado, após a saturação do uso <strong>de</strong> sua maquiagem. Quando Thelma<br />

retirar a maquiagem, ela voltará ao vazio social da matéria carnal, entretanto, com uma<br />

máscara social já memorizada. O percurso passa a ser do realizante, potencializante e<br />

virtualizante, um percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência em uma correlação conversa que segue do<br />

realizado ao virtualizado, passando pela potencialização, conforme o esquema tensivo<br />

13:<br />

Tônico<br />

INT<br />

Átono<br />

Falta<br />

Atualizante<br />

Vacuida<strong>de</strong><br />

Virtualizante<br />

Átono EXT Tônico<br />

Plenitu<strong>de</strong><br />

Realizante<br />

Inanida<strong>de</strong><br />

Potencializante


2.2.1 Os valores semióticos<br />

106<br />

Quantas mulheres po<strong>de</strong>m ser vistas diariamente pelas ruas harmonicamente<br />

maquiadas, com olhos suntuosos, com a pele fresca e uniforme e os lábios<br />

perfeitamente <strong>de</strong>lineados e estonteantemente coloridos e vibrantes? Em um dia <strong>de</strong><br />

semana, em horário comercial, raríssimas. Em uma festa à noite em um evento<br />

fechado, algumas. Harmonia <strong>de</strong> cores, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fixação, acabamento impecável e<br />

<strong>de</strong>licado, pele clara, uniforme e opaca, pós-faciais finos, batons com espessura fina<br />

que hidratam e cobrem os lábios com cores elegantes, do opaco <strong>de</strong>nso ao brilho<br />

imponente, estes são valores <strong>de</strong> uma maquiagem sensual glamourosa como a <strong>de</strong><br />

Thelma. O acesso aos produtos apropriados para uma maquiagem com esse efeito é<br />

para poucos, já que a alta qualida<strong>de</strong> equivale ao preço.<br />

O valor semiótico do objeto também é orientado pelas duas dimensões<br />

(intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>) que se tornam valências. A maquiagem glamourosa<br />

possui, por conseguinte, valores <strong>de</strong> absoluto: é <strong>de</strong>slumbrante em intensida<strong>de</strong> e<br />

concentrada em extensida<strong>de</strong>, tal qual seu mundo <strong>de</strong> referência. Isto significa que há<br />

muita técnica e muitos produtos dispendiosos concentrados sobre os rostos <strong>de</strong> poucas<br />

pessoas.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, como explica Zilberberg (2008), a distinção entre os<br />

valores <strong>de</strong> absoluto e <strong>de</strong> universo <strong>de</strong>senvolveu-se a partir das seguintes<br />

consi<strong>de</strong>rações:<br />

I – os valores são por continuida<strong>de</strong> complexos, a tensivida<strong>de</strong> é o lugar<br />

<strong>de</strong> reencontro e ajustamento entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong> entre<br />

o sensível e o inteligível, se bem que dizer <strong>de</strong> um valor que ele é<br />

tensivo volta a dizer que ele é complexo;<br />

II – a complexida<strong>de</strong> é o pressuposto para qualquer análise, é uma<br />

função canônica ou uma coincidência.<br />

III – a distinção entre os valores absolutos e <strong>de</strong> universo é sustentada<br />

por uma correlação divergente entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>,<br />

assim cada tipo <strong>de</strong> valor conjuga um i<strong>de</strong>al, um superlativo e uma<br />

nulida<strong>de</strong>,como sugere o diagrama seguinte 7 :<br />

7 (i) les valeurs sont par continuité complexes, puisque la tensivité n‟est rien d‟autre que le lieu <strong>de</strong><br />

rencontre et d‟ajustement entre l‟intensité et l‟extensité, entre le sensible et l‟intelligible, si bien que dire<br />

d‟une valeur qu‟elle est tensive revient à dire qu‟elle est complexe ; (ii) la complexité est le présupposé


Esquema tensivo 14<br />

Impacto<br />

INT<br />

Fraqueza<br />

Concentração EXT Difuso<br />

107<br />

De acordo com Zilberberg (2008), “os valores <strong>de</strong> absoluto são impactantes em<br />

intensida<strong>de</strong> e concentrado em extensida<strong>de</strong>, enquanto os valores <strong>de</strong> universo são fracos em<br />

intensida<strong>de</strong> e difuso em extensida<strong>de</strong>” 8 . Po<strong>de</strong>-se dizer que a maquiagem glamourosa,<br />

estilo <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> absoluto, tem um regime axiológico <strong>de</strong> exclusão-concentração,<br />

operado pela triagem, que resulta da correlação divergente entre as valências<br />

intensivas e extensivas, regida pela disjunção. Isso po<strong>de</strong> significar que uma<br />

maquiagem com um visual mais natural, com um olho contornado por lápis, sem<br />

cobertura total da pele e apenas com correção <strong>de</strong> olheiras, com aplicação <strong>de</strong> batons<br />

sem contorno dos lábios, tem um valor <strong>de</strong> universo: menos produtos, menos técnica<br />

sobre o rosto <strong>de</strong> várias mulheres, no cotidiano. Trata-se <strong>de</strong> um regime <strong>de</strong> participação<br />

e expansão, cujo operador é a mistura. A correlação é estabelecida pela convergência<br />

entre a intensida<strong>de</strong> e a extensida<strong>de</strong>, na qual há participação <strong>de</strong> mais pessoas regidas<br />

pela conjunção. Cabe observar que uma mesma maquiagem realizada com produtos<br />

qualitativamente diferentes possuem valores também distintos.<br />

Valores <strong>de</strong> absoluto<br />

Valores <strong>de</strong> universo<br />

<strong>de</strong> toute analyse, qu‟elle porte sur une fonction canonique ou sur une coïnci<strong>de</strong>nce ; (iii) la distinction<br />

entre les valeurs d‟absolu et les valeurs d‟univers est soutenue par une corrélation inverse entre<br />

l‟intensité et l‟extensité, si bien que chaque type <strong>de</strong> valeur conjugue un optimum, un superlatif et une<br />

nullité, comme le suggère le diagramme suivant :<br />

8 Les valeurs d‟absolu sont éclatantes en intensité et concentrées en extensité, tandis que les valeurs<br />

d‟univers d‟univers sont faibles en intensité et diffuses en extensité.


2.3 PRÁXIS ENUNCIATIVA<br />

108<br />

As gran<strong>de</strong>s batalhas, os reinados e as <strong>de</strong>scobertas da ciência são<br />

alguns dos marcos tradicionalmente evocados para se contar a história<br />

da humanida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos, no entanto, „ler‟ essa mesma história através<br />

<strong>de</strong> sinais do cotidiano, entre eles a maquiagem, pois a pintura corporal<br />

e a facial sempre representaram, como um documento vivo, o modo <strong>de</strong><br />

vida das civilizações ao longo dos séculos. Reis, sacerdotes,<br />

camponeses e escravos empregaram-na como importante forma <strong>de</strong><br />

expressão, fosse para insinuar po<strong>de</strong>r e força, para assustar o inimigo,<br />

para <strong>de</strong>monstrar respeito e temor às divinda<strong>de</strong>s, ou até mesmo para<br />

dar forma a um simples impulso <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, a<br />

evolução da maquiagem é uma outra forma, colorida e vibrante, <strong>de</strong> se<br />

contar a história do mundo (LEÃO, 1997).<br />

Como foi visto no capítulo anterior, as hexei corporais são estabelecidas<br />

culturalmente, do mesmo modo como a práxis enunciativa é constituída por “formas<br />

discursivas que o uso das comunida<strong>de</strong>s sócio- culturais fixa sob a forma <strong>de</strong> tipos, <strong>de</strong><br />

estereótipos ou <strong>de</strong> esquemas” (TEIXEIRA, 2001a, p. 45). Po<strong>de</strong>-se dizer, portanto, que<br />

a maquiagem se baseia na articulação das formas discursivas dos atos individuais da<br />

enunciação com os significados que são constituídos culturalmente. A maquiagem<br />

como práxis enunciativa po<strong>de</strong> ser, <strong>de</strong>sse modo, uma criação ou o resultado <strong>de</strong> uma<br />

bricolage 9 que reaproveita elementos <strong>de</strong> outras criações. Conforme explica Teixeira<br />

(2001a), “a originalida<strong>de</strong> do discurso vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dos modos como reage ou respon<strong>de</strong><br />

à exploração dos resíduos discursivos que acolhe”. Por isso a enunciação passou a ser<br />

concebida por Schulz (1995) como uma articulação das formas discursivas do ato<br />

enunciativo individual com as organizações culturais estabelecidas, “que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />

da iniciativa particular do sujeito enunciador, mas que o incluem numa práxis<br />

enunciativa (TEIXEIRA, 2001a, p. 45).<br />

Por isso é possível “contar uma história” por meio da maquiagem. Isso significa<br />

narrar algo que está retido na memória e, se uma maquiagem está guardada na<br />

memória, é porque seu colorido e sua vibração foram, em algum lugar e em algum<br />

momento, sentidos mais intensamente, foram vivos, plenos e fixados culturalmente.<br />

Houve por parte dos sujeitos percebedores, nesses tempos <strong>de</strong> mais intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

9 Zilberberg e Fontanille (2001, p. 174) <strong>de</strong>stacam a metáfora da bricolage, elaborada por Lévi-Strauss e<br />

utilizada por Jean-Marie Floch, <strong>de</strong> cunho figurativo, na qual há conjuntos <strong>de</strong> figuras e motivos, oriundos<br />

<strong>de</strong> universos semióticos heterogêneos e, muitas vezes, <strong>de</strong>sconhecidos entre si, e que são convocados<br />

para constituir outros discursos com axiologias diferentes das originais.


estilo <strong>de</strong> maquiagem, espanto diante <strong>de</strong> um objeto novo. Admiração que vai diminuindo<br />

com o ganho da distância espacial e temporal <strong>de</strong> uma maquiagem que vai per<strong>de</strong>ndo<br />

intensida<strong>de</strong> e ganhando extensida<strong>de</strong> até que tenha se tornado um estereótipo e seja<br />

potencializada para uma futura convocação. Mas também po<strong>de</strong>ria se virtualizar e cair<br />

no esquecimento.<br />

Figura 26: Rita Hayworth. Fonte: SCREEN MEMORIES, 2009.<br />

Figura 27: Camila Espinosa como Rita Hayworth. Fonte: Molinos, 2000, p.198.<br />

Po<strong>de</strong>ria utilizar qualquer tipo <strong>de</strong> maquiagem e <strong>de</strong> qualquer época para explicar a<br />

maquiagem como práxis enunciativa. Preferi escolher uma não tão remota, em uma<br />

época <strong>de</strong> conflito histórico generalizado e que, ao mesmo tempo, aproveitasse os<br />

valores glamourosos que vêm sendo relevantes nesta pesquisa. Portanto, <strong>de</strong>staco a<br />

maquiagem <strong>de</strong> um ícone sensual glamouroso do cinema americano: Rita Hayworth,<br />

figura 26, durante os anos 40, época em que a cor vermelha dos batons vibrava sobre<br />

os lábios cheios e <strong>de</strong>lineados; as sobrancelhas eram <strong>de</strong>senhadas e mais espessas que<br />

109


na década anterior e davam um efeito agressivo e sensual. Um discurso com cores<br />

vivas e sensuais para amenizar o sofrimento provocado nos anos <strong>de</strong> guerra.<br />

110<br />

Enquanto a Europa sofria com as atrocida<strong>de</strong>s da guerra, os Estados Unidos<br />

enviavam soldados após o bombar<strong>de</strong>io <strong>de</strong> Pearl Harbour, em 1941, época em que o<br />

cinema tornou-se um trunfo, já que junto com os aliados chegaram à Europa as atrizes<br />

<strong>de</strong> Hollywood que faziam shows para as tropas. O glamour dos anos 30 foi substituído<br />

pelo heroísmo e as mulheres realçavam a sensualida<strong>de</strong> para que fossem imaginadas<br />

como “a moça que espera por mim quando eu voltar da guerra” (VITA, 2008, p.124).<br />

Na maquiagem dos anos 40, além do resgate da rigi<strong>de</strong>z dos padrões da beleza<br />

clássica, são difundidos os cílios postiços, o pancake 10 e o rouge 11 .<br />

Duda Molinos, em 2000, reconvoca a cor vermelha dos batons, as sobrancelhas<br />

<strong>de</strong>senhadas e espessas conforme o discurso <strong>de</strong> Hayworth, colocado em memória, e o<br />

realiza novamente, agora, sobre o rosto <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), simulacro <strong>de</strong><br />

Rita Hayworth. Um mesmo enunciado, em outro tempo e num outro espaço. Agora<br />

não mais para persuadir soldados <strong>de</strong> guerra, mas para enunciar a maquiagem<br />

cristalizada dos anos 40. Percebe-se, portanto, que, além da relação da maquiagem<br />

com os momentos históricos e sociais <strong>de</strong> cada época, algumas cores se evi<strong>de</strong>nciam,<br />

outras <strong>de</strong>saparecem, alguns produtos vão sendo esquecidos e outros aprimorados,<br />

novos usos, novas formas, novas figuras vão ganhando espaço sobre os rostos dos<br />

sujeitos actantes encarnados. Verifica-se que num outro momento o mesmo irá<br />

acontecer, muitos produtos, cores e formas <strong>de</strong>saparecerão e muitos outros surgirão.<br />

São inovações, criações e bricolages no discurso da maquiagem.<br />

Quais são os valores glamourosos da maquiagem mais recentes? Desaparece o<br />

pancake, consi<strong>de</strong>rado muito artificial, e propagam-se as bases suaves com um leve<br />

brilho dourado sobre todo o rosto e colo. Cai em <strong>de</strong>suso o vermelho vivo para os lábios<br />

e surgem os tons <strong>de</strong> cereja sobre os lábios <strong>de</strong>lineados com lápis em um tom mais<br />

escuro que a pele natural da mo<strong>de</strong>lo. Os cílios postiços se tornam excessivos para<br />

os olhos atuais, são aceitos apenas para os shows, ópera e teatro. Destacam-se as<br />

máscaras para alongar os cílios, continuam os lápis para sobrancelhas. Sombras<br />

10 Base compacta <strong>de</strong>nsa, criada por Max Factor, que podia cobrir muitas imperfeições da pele.<br />

11 Antecessor do blush, nos anos 40 estava em voga o rouge opalescent da Helena Rubinstein.


creme num tom cinza marrom em toda a<br />

pálpebra e na linha dos cílios inferiores são<br />

usados para expressar todo o erotismo sensual<br />

da femme fatale mo<strong>de</strong>rna, Julia Roberts, figura<br />

28. Aucoin <strong>de</strong>screve da seguinte maneira<br />

essas mudanças <strong>de</strong> valores:<br />

111<br />

Nos tempos <strong>de</strong> guerra,<br />

durante os anos 40, a<br />

América criou uma<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fugir e <strong>de</strong><br />

criar fantasia. E Hollywood<br />

estava pronta, como sempre,<br />

para explorar a necessida<strong>de</strong><br />

do cidadão <strong>de</strong> sonhar. Hedy<br />

Lamarr, Gene Tierney, e,<br />

especialmente, por causa do<br />

seu cabelo vermelho<br />

flamejante, Rita Hayworth,<br />

era a amante, a rainha do<br />

glamour e da sedução do seu<br />

tempo. Levando o nome da<br />

mitologia grega, essas<br />

<strong>de</strong>usas <strong>de</strong> celulói<strong>de</strong><br />

seduziam e imobilizavam <strong>de</strong><br />

admiração legiões <strong>de</strong><br />

cinéfilos com uma<br />

sobrancelha arqueada e olhar<br />

intenso em uma direção. Julia Roberts, com seu olhar sedutor e<br />

erotismo sensual, é uma versão mo<strong>de</strong>rna da eterna femme fatale 12 Figura 28: Julia Roberts.<br />

Fonte: AUCOIN, 1995, p. 118).<br />

.<br />

(AUCOIN, 1995, p. 119)<br />

Além da exploração criativa da remanescência discursiva das femmes fatales<br />

dos anos 40, a originalida<strong>de</strong> do discurso das maquiagens glamourosas mo<strong>de</strong>rnas tem<br />

como aliada a alta tecnologia dos produtos cosméticos da atualida<strong>de</strong>. O aparecimento<br />

e o <strong>de</strong>saparecimento dos enunciados, <strong>de</strong> um modo geral e, em particular, da<br />

12 Wartime 1940s America created a need for escape and fantasy. And Hollywood was ready, as always,<br />

to exploit the average citizen's need to dream. Hedy Lamarr, Gene Tierney, and especially because of<br />

her flaming red hair, Rita Hayworth, were the paramours, glamour queens and sirens of their time. Taking<br />

the name from Greek mythology, these celluloid god<strong>de</strong>sses lured and transfixed legions of moviegoers<br />

with an arched brow and come hither stare. Julia Roberts, with her seductive gaze and sensual eroticism,<br />

is a mo<strong>de</strong>rn-day version of this eternal femme fatale.


maquiagem, assim como das formas semióticas no campo do discurso ou, ainda, “o<br />

encontro entre o enunciado e a instância que lhe assume” (FONTANILLE, 2007, 271),<br />

originam-se na práxis enunciativa.<br />

112<br />

A práxis enunciativa administra essa presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas<br />

discursivas no campo do discurso: ela convoca ou invoca no discurso<br />

os enunciados que compõem o campo. Ela os assume mais ou menos,<br />

ela lhes atribui graus <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> e uma certa quantida<strong>de</strong>. Ela<br />

recupera formas esquematizadas pelo uso ou, ainda, estereótipos e<br />

estruturas cristalizadas. Ela as reproduz tais como são ou as <strong>de</strong>svirtua<br />

e lhes fornece novas significações. Ela também apresenta outras<br />

formas e estruturas, inovando <strong>de</strong> forma explosiva, assumindo-as como<br />

irredutivelmente singulares ou propondo-as para um uso mais<br />

amplamente difundido. (FONTANILLE, 2007, p. 271-272)<br />

Zilberberg e Fontanille (2001, p. 174) explicam que as gran<strong>de</strong>zas engendradas a<br />

partir <strong>de</strong> um discurso e as fixadas pelo uso convivem no <strong>de</strong>correr da evolução <strong>de</strong> uma<br />

cultura, dos seus discursos e da sua respectiva propagação. Assim, as gran<strong>de</strong>zas <strong>de</strong><br />

estatutos distintos só po<strong>de</strong>m conviver num mesmo discurso a partir da relação que<br />

elas têm com os diferentes modos <strong>de</strong> existência. A práxis enunciativa, então, manipula<br />

os modos <strong>de</strong> existência para po<strong>de</strong>r adquirir uma dialética <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong><br />

sedimentação, como também concorrer para a formação da dimensão retórica dos<br />

discursos. A práxis é exercida no campo do discurso <strong>de</strong> domínio espaço-temporal em<br />

cujo processo semiótico se distinguem três fases aspectuais: emergente, em processo<br />

ou concluída.<br />

Quando Margarita Carmen Cansino 13 , modalizada pelo querer virtual, toma a<br />

sua posição no mundo hollywoodiano e torna o seu envelope corporal uma superfície<br />

<strong>de</strong> inscrição, por meio do um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem é, então, criado um campo <strong>de</strong><br />

presença perceptivo. As primeiras articulações nesse campo são as valências<br />

intensivas e extensivas, isto é, uma intensida<strong>de</strong> sensível e afetiva e uma extensão<br />

perceptiva. Este processo ocorre durante a fase <strong>de</strong> emergência <strong>de</strong> uma forma.<br />

13 É comum entre as personalida<strong>de</strong>s, os artistas e os políticos, as mudanças <strong>de</strong> nome e <strong>de</strong> imagem.<br />

Não foi diferente com Rita Hayworth, registrada pelos pais como Margarita Carmen Cansino,<br />

artisticamente adotou primeiramente o nome <strong>de</strong> Rita Cansino com o qual trabalhou <strong>de</strong> 1935 até 1937,<br />

quando adotou o sobrenome <strong>de</strong> sua mãe Hayworth e, além do nome, mudou também a cor dos cabelos<br />

para ruivo (auburn).


113<br />

A fase seguinte, do processo, correspon<strong>de</strong> ao discurso em ato propriamente<br />

dito, ou seja, quando Rita Hayworth, com lábios precisamente <strong>de</strong>lineados e cheios <strong>de</strong><br />

batom vermelho, com cílios postiços e sobrancelhas <strong>de</strong>senhadas e espessas, vai<br />

enunciando a sua sensualida<strong>de</strong> glamourosa no mundo glamouroso e sensual <strong>de</strong><br />

Hollywood. Agora se trata <strong>de</strong> um campo esquemático no qual se instauram as formas<br />

discursivas e os valores se evi<strong>de</strong>nciam. As formas discursivas, no caso da maquiagem,<br />

são os “comportamentos somáticos significantes, manifestados pelas or<strong>de</strong>ns<br />

sensoriais” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.144) que geralmente qualificam o ator<br />

figurativo 14 . Assim, nesse momento, quem é visto e percebido é o ator Rita Hayworth,<br />

actante sujeito encarnado, cuja pele foi transformada em superfície <strong>de</strong> inscrição pela<br />

operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que projetou o próprio do meio glamouroso sobre o não<br />

próprio da materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Margarita Carmem Cansino. Rita Hayworth, <strong>de</strong>sse modo,<br />

foi engendrada para ser glamourosa, sensual e persuasiva.<br />

Após Rita Hayworth (Fig. 26) ter enunciado toda a sua sensualida<strong>de</strong> e glamour,<br />

o campo <strong>de</strong> discurso transforma-se em um conjunto <strong>de</strong> diferenças, um lugar <strong>de</strong><br />

categorizações, ou seja, conforme revela Fontanille, um campo diferencial, no qual o<br />

discurso (unida<strong>de</strong> semiótica construída) <strong>de</strong> Rita Hayworth será <strong>de</strong>finido com a ajuda<br />

dos conceitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e alterida<strong>de</strong>, “um par inter<strong>de</strong>finível pela relação <strong>de</strong><br />

pressuposição recíproca”, como <strong>de</strong>finem Greimas e Courtés (2008, p. 251),<br />

imprescindível no estabelecimento da construção da significação. É a relação reflexiva<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> reconhecida por meio da alterida<strong>de</strong>, da necessida<strong>de</strong> do outro para<br />

chegar à existência semiótica.<br />

O campo <strong>de</strong> presença, o campo esquemático e o campo diferencial, portanto,<br />

constituem o campo do discurso em um domínio espaço-temporal. A Práxis enunciativa<br />

é o domínio tanto dos discursos singulares quanto da memória cultural e dos<br />

esquemas semióticos. Apesar da fugacida<strong>de</strong> da maquiagem, ela guarda nos traços,<br />

nas cores e nas texturas sinais <strong>de</strong> histórias, particulares e universais. Po<strong>de</strong>-se<br />

14 De acordo com Greimas e Courtés, “o termo ator foi substituindo progressivamente personagem (ou<br />

dramatis persona) <strong>de</strong>vido a uma maior preocupação com a precisão e a generalização (um tapete<br />

voador ou uma socieda<strong>de</strong> comercial, por exemplo, são atores), <strong>de</strong> modo a possibilitar o seu emprego<br />

fora do domínio exclusivamente literário. O ator é obtido pelos procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem e <strong>de</strong><br />

embreagem – que remete diretamente à enunciação (...) O ator po<strong>de</strong> ser individual (Pedro) ou coletivo (a<br />

multidão), figurativo (antropomorfo ou zoomorfo) ou não figurativo (o <strong>de</strong>stino)”. (2008, p. 44-45)


enxergá-la com olhos <strong>de</strong> historiadores, <strong>de</strong> sociólogos, <strong>de</strong> filósofos, <strong>de</strong> antropólogos e<br />

<strong>de</strong> semioticistas, com os quais estes últimos são capazes <strong>de</strong> distinguir, além da<br />

dimensão pragmática e cognitiva, a dimensão sensível/vertiginosa do enunciado da<br />

maquiagem, que enquanto for novida<strong>de</strong> provocará impactos, contudo, quando se<br />

estabilizar e se tornar conhecido, proporcionará conforto ao enunciatário.<br />

2.3.1 As gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência<br />

114<br />

Po<strong>de</strong>-se afirmar que a maquiagem <strong>de</strong> Rita Hayworth (Fig. 26), além <strong>de</strong> ser<br />

constituída por valores engendrados por um meio social, também traz gran<strong>de</strong>zas<br />

engendradas por um sistema, que foram fixadas pelo uso. Zilberberg e Fontanille<br />

(2001, p.174) explicam que tanto na evolução da cultura quanto nos discursos que a<br />

formam há o convívio <strong>de</strong> pelo menos duas <strong>de</strong>ssas referidas gran<strong>de</strong>zas. E, para que<br />

haja o convívio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas diferentes em um mesmo discurso, como uma bricolage,<br />

é necessário que elas estejam em conexão com diferentes modos <strong>de</strong> existência<br />

(virtualizado, atualizado, potencializado e realizado), promovendo uma conversão da<br />

copresença em espessura discursiva e uma projeção <strong>de</strong> articulações modais sobre o<br />

campo do discurso.<br />

Assim, para administrar as diferentes gran<strong>de</strong>zas semióticas <strong>de</strong> um discurso em<br />

ato, ocorre uma disposição do que Zilberberg e Fontanille (2001, p.175) chamam <strong>de</strong><br />

„produtos‟ da práxis enunciativa e os modos <strong>de</strong> existência:<br />

Modo Virtual (...) é o modo das estruturas <strong>de</strong> um sistema subjacente, da<br />

competência formal disponível no momento da produção do sentido.<br />

Modo Atualizado é aquele das formas que advêm no discurso e das<br />

condições para que elas ali advenham: a atualização <strong>de</strong> um cromatismo<br />

em uma imagem(...).<br />

Modo realizado é justamente o modo pelo qual a enunciação faz as<br />

formas do discurso encontrarem-se com uma realida<strong>de</strong>, realida<strong>de</strong><br />

material do plano da expressão, realida<strong>de</strong> do mundo natural e do<br />

mundo sensível no plano do conteúdo.<br />

Uma forma é consi<strong>de</strong>rada potencializada quando sua difusão ou seu<br />

reconhecimento são tais que ela po<strong>de</strong> figurar como tópos do discurso<br />

(tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações). O<br />

modo virtualizado (nunca voltamos ao virtual propriamente dito, pois<br />

estamos ainda no discurso em ato) é aquele das gran<strong>de</strong>zas que servem<br />

<strong>de</strong> segundo plano ao funcionamento das figuras do discurso: o ato<br />

semiótico consiste, então, em realizar uma figura, em remeter uma


115<br />

outra figura ao estado virtualizado e em colocá-las em interação <strong>de</strong><br />

modo que, no momento da interpretação, o enunciatário seja conduzido<br />

a ir e vir <strong>de</strong> uma figura a outra (FONTANILLE, 2007, p. 276)<br />

Quando Rita Hayworth (Fig, 26) se enuncia sensual e glamourosa, parte do<br />

modo virtual, do qual fazem parte as estruturas <strong>de</strong> um sistema (actantes, modalida<strong>de</strong>s)<br />

e a competência formal disponível no momento da produção do sentido. As cores,<br />

vermelha sobre os lábios, marrons que <strong>de</strong>lineiam e <strong>de</strong>ixam espessas as sobrancelhas,<br />

o pancake que uniformiza a pele e o rouge que dá cor às maçãs do rosto, atualizam o<br />

discurso <strong>de</strong> Hayworth que se realiza ao encontrar com o mundo cinematográfico <strong>de</strong><br />

Hollywood. Desse modo, o ato produtor do discurso <strong>de</strong> significação é, a princípio, uma<br />

tensão entre o virtual, ainda fora do campo <strong>de</strong> discurso, e o realizado, centro do campo<br />

do discurso, intermediado pelo modo atualizado.<br />

Entretanto, em relação à maquiagem-enunciado <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), o<br />

ato produtor do discurso faz um movimento inverso, uma vez que a maquiagem é<br />

realizada a partir <strong>de</strong> uma forma potencializada disponível para outras convocações.<br />

Assim, quando Espinosa usa os lábios precisamente <strong>de</strong>lineados e cheios <strong>de</strong> batom<br />

vermelho, os cílios postiços e as sobrancelhas <strong>de</strong>senhadas e espessas potencializadas<br />

pelo discurso <strong>de</strong> Hayworth, um tópos do discurso, o ato semiótico irá realizar a figura<br />

<strong>de</strong> Hayworth e remeter a figura <strong>de</strong> Espinosa ao estado virtualizado, colocando-as em<br />

interação. Desse modo, no instante em que o enunciatário interpretar o discurso, ele<br />

será levado “a ir e vir <strong>de</strong> uma figura à outra” (FONTANILLE, 2007, p. 276).<br />

2.3.2 Maquiagem na tipologia das operações da práxis enunciativa<br />

Para o campo <strong>de</strong> discurso da maquiagem ou da pintura corporal subenten<strong>de</strong>-se<br />

um campo <strong>de</strong> presença no qual se relacionam instâncias sensíveis e perceptíveis<br />

como as cromáticas, eidéticas e topológicas, e somente por meio <strong>de</strong>ssas instâncias é<br />

que os modos <strong>de</strong> existência e as tensões po<strong>de</strong>m ocorrer na instância <strong>de</strong> discurso da<br />

maquiagem. Apenas quando um observador sensível, em algum lugar, é afetado por<br />

um corpo maquiado é que os modos <strong>de</strong> existência passam a existir. A presença da<br />

maquiagem sobre um corpo faz com que esse observador sensível seja atingido por


ela e comece a vivenciar emoções, ou, como explica Fontanille, “varieda<strong>de</strong>s diferentes<br />

do sentimento <strong>de</strong> existência” (2007, p. 280).<br />

116<br />

O campo esquemático, formado na segunda fase da práxis enunciativa, no qual<br />

se controlam as varieda<strong>de</strong>s do efeito <strong>de</strong> presença do discurso, é composto por duas<br />

dimensões: a intensida<strong>de</strong> da assunção, que obe<strong>de</strong>ce à lógica das forças, e a extensão<br />

do reconhecimento, que obe<strong>de</strong>ce à lógica dos lugares.<br />

Retomo a maquiagem dos anos 40, representada por Rita Hayworth (Fig. 26),<br />

para refletir sobre as transformações que a maquiagem sofre no <strong>de</strong>correr das décadas,<br />

anos, estações. Tal diversificação é justificada pelo <strong>de</strong>vir existencial da instância <strong>de</strong><br />

discurso. Zilberberg e Fontanille (2001, p. 181) explicam que é “a troca social, a<br />

circulação dos objetos semióticos e dos discursos no seio das culturas e comunida<strong>de</strong>s<br />

que adota ou rejeita os usos inovadores ou cristalizados, e que <strong>de</strong> certo modo<br />

„canoniza‟ as criações do discurso”. Essa troca social é muito clara na história da<br />

maquiagem, o que justifica também a velocida<strong>de</strong> com que os estilos <strong>de</strong> maquiagem<br />

surgem e <strong>de</strong>saparecem, uma vez que a circulação das tendências vem abrangendo<br />

mais rapidamente os sujeitos. A busca por inovações aumenta na mesma proporção<br />

em que os usos saturados ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>saparecer.<br />

Se, por um lado, na década <strong>de</strong> 40 <strong>de</strong>saparecem as sobrancelhas arqueadas e<br />

<strong>de</strong>senhadas a lápis, a pele pálida e a sutileza dos coloridos das pálpebras<br />

características da década anterior, por outro, aumenta-se a espessura das<br />

sobrancelhas, carrega-se mais na maquiagem, no batom vermelho sobre lábios cheios<br />

e <strong>de</strong>lineados. Na década seguinte, essas características já não têm o mesmo valor, as<br />

cores dos batons se tornam mais suaves para evi<strong>de</strong>nciar mais os olhos pelo uso <strong>de</strong><br />

sombras e <strong>de</strong>lineadores. Percebe-se, portanto, que a práxis da maquiagem segue as<br />

mesmas direções que a práxis enunciativa e cumpre percursos e transformações<br />

características da sua sintaxe. Ela é responsável pela regulação global, diacrônica ou<br />

sincronicamente, “dos diferentes modos <strong>de</strong> existência das gran<strong>de</strong>zas das quais os<br />

discursos lançam mão” (FONTANILLE, 2007, p. 280).<br />

As varieda<strong>de</strong>s do efeito <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> uma instância sensível e perceptível são<br />

controladas pelas dimensões do campo esquemático, ou seja, da intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assunção (lógica da força) e da extensida<strong>de</strong> do reconhecimento (lógica dos lugares).


Quando Margarita Carmen Cansino se percebe fortemente ligada às figuras e valores<br />

que ela utiliza em sua maquiagem sensual glamourosa (Fig. 26) e se reconhece em<br />

sua produção Rita Hayworth, po<strong>de</strong>-se dizer que há um elo empático entre o sujeito e a<br />

sua produção. A extensão do reconhecimento <strong>de</strong> Rita Hayworth, sensual e<br />

glamourosa, é medida a partir da difusão das formas significantes. As figuras sensuais<br />

e glamourosas ao modo Hayworth se repetem diversas vezes, e tornam-se referência<br />

<strong>de</strong> uma época <strong>de</strong>vido à quantida<strong>de</strong> e freqüência da sua assunção por instâncias <strong>de</strong><br />

discurso. Percebe-se aqui que a intensida<strong>de</strong> da assunção e a extensão do<br />

reconhecimento das maquiagens <strong>de</strong> Rita Hayworth progri<strong>de</strong>m na mesma direção,<br />

numa correlação conversa entre intensida<strong>de</strong> e extensida<strong>de</strong>, o que fortalece as duas e,<br />

ao mesmo tempo, assegura o valor <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> uma forma.<br />

117<br />

Por outro lado, a emissão excessiva <strong>de</strong> uma maquiagem faz com que o valor <strong>de</strong><br />

uso <strong>de</strong> uma forma provoque o seu <strong>de</strong>sgaste, o que leva à procura <strong>de</strong> inovações, cada<br />

vez mais rápidas. Na outra extremida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que, atualmente, são lançadas,<br />

a cada nova estação, tendências <strong>de</strong> cores, <strong>de</strong> produtos, <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong><br />

maquiagem que nem sempre chegam a ser utilizadas por um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

sujeitos. É o caso dos <strong>de</strong>lineadores brancos (Fig. 29), das máscaras <strong>de</strong> cílios coloridas<br />

(Fig.30) que, na verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m funcionar numa passarela <strong>de</strong> moda, em maquiagens<br />

fashions, mas que não alcançam um uso generalizado.<br />

Figura 29: Delineador branco. Fonte: AVON, 2009.<br />

Figura 30: Desfile DKNY – Rímel ver<strong>de</strong> água. Fonte: BETA ATELIE, 2009.


Isso significa que uma forma inovadora surge, porém é pouco difundida. Essas<br />

maquiagens estão investidas do impacto explosivo <strong>de</strong> forte assunção, com o valor <strong>de</strong><br />

uso intacto. Nestes dois casos, do excesso e da intactilida<strong>de</strong> do uso, a intensida<strong>de</strong> da<br />

assunção e a extensão do reconhecimento evoluem inversamente. Desse modo, há<br />

uma correlação divergente entre as duas dimensões. Portanto, a partir do cruzamento<br />

das duas dimensões da presença, há o engendramento <strong>de</strong> várias posições<br />

i<strong>de</strong>ntificadas por Fontanille (2007, p.282).<br />

Na correlação conversa há a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> duas operações sobre o valor <strong>de</strong><br />

troca: a amplificação e a atenuação, que “se referem à regulação do valor <strong>de</strong> troca das<br />

formas na comunicação” (FONTANILLE, 2007, p. 282). A amplificação, cujo percurso<br />

vai da adoção <strong>de</strong> uma forma a sua integração na socieda<strong>de</strong>, seria o nítido caso, entre<br />

outros, da maquiagem sensual glamourosa <strong>de</strong> Hayworth (Fig. 23), em que, após a<br />

instauração da forma no uso, a força <strong>de</strong> assunção é fortalecida pela extensão do seu<br />

reconhecimento no seu próprio meio e também nos outros grupos sociais.<br />

118<br />

A fase da atenuação acontece após o uso vivo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

maquiagem, essa saturação levando à sua obsolescência. Seria a fase seguinte da<br />

maquiagem sensual glamourosa, ou seja, quando a forma já não tem mais<br />

credibilida<strong>de</strong> para a enunciação que vai saindo <strong>de</strong> uso.<br />

Na correlação divergente, as operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento e <strong>de</strong> somação<br />

regulam o valor <strong>de</strong> uso das formas. Na operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento acontece a<br />

propagação do uso da maquiagem social glamourosa ao modo Hayworth (Fig. 23) que<br />

acaba por per<strong>de</strong>r a força <strong>de</strong> assunção, cujo trajeto segue da difusão à revivificação <strong>de</strong><br />

uma forma. A operação <strong>de</strong> somação conduz da formação <strong>de</strong> uma maquiagem<br />

inovadora ao seu <strong>de</strong>sgaste. Ela correspon<strong>de</strong>ria às maquiagens com <strong>de</strong>lineadores<br />

brancos (Fig. 26) e máscaras <strong>de</strong> cílios <strong>de</strong> cores claras (Fig. 27), que são impostas<br />

pelos estilistas nos <strong>de</strong>sfiles <strong>de</strong> moda e têm uma assunção forte e um reconhecimento<br />

fraco.


eproduzido:<br />

119<br />

Fontanille (2007, p. 282) propõe um quadro resumo, que segue aqui<br />

Assunção forte Assunção fraca<br />

Reconhecimento extenso Amplificação Desdobramento<br />

Reconhecimento restrito Somação Atenuação<br />

Essas operações também po<strong>de</strong>m ser representadas no esquema tensivo 16, aqui<br />

reproduzido, <strong>de</strong> Zilberberg e Fontanille (2001, p. 179):<br />

Tônico<br />

INT<br />

Átono<br />

Somação<br />

Atenuação<br />

2.3.3 Objeto estético e semiótico em <strong>de</strong>vir<br />

Átono EXT Tônico<br />

Amplificação<br />

Desdobramento<br />

Se eu entendo a pintura, ou qualquer outra manifestação estética, como<br />

um objeto que fala <strong>de</strong> si mesmo, do mundo natural e do mundo da<br />

memória, a própria natureza do objeto me obriga a consi<strong>de</strong>rar os<br />

retornos, os vaivéns, as sinuosida<strong>de</strong>s, os esboços, o movimento<br />

pendular, as hesitações como constitutivas do modo <strong>de</strong> analisar este<br />

objeto. (TEIXEIRA, 2004e, p.234)<br />

Do mesmo modo que uma pintura feita sobre um suporte tradicional, a<br />

maquiagem é uma inscrição estética no corpo próprio dos actantes encarnados, que<br />

faz <strong>de</strong>les objetos estéticos que falam <strong>de</strong> si mesmos, mas que só po<strong>de</strong>m ser


apreendidos ao se referirem “a duas gran<strong>de</strong>zas e dois modos <strong>de</strong> existência em<br />

competição” (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p. 186), com operações intensivas<br />

combinadas a duas operações elementares: uma <strong>de</strong> ascendência, que alcança a<br />

manifestação, e a outra <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, que retorna ao sistema, cristalizando as<br />

formas vivas em estereótipos que acabam nutrindo a competência dos sujeitos por<br />

produzirem as aplicações mais características.<br />

120<br />

Os atos da práxis, além <strong>de</strong> regularem o <strong>de</strong>vir do objeto semiótico, agem sobre o<br />

seu modo <strong>de</strong> existência, o percurso <strong>de</strong> ascendência.<br />

1 – A fase virtual → Atualizado: revela a emergência <strong>de</strong> uma forma, uma<br />

inovação que <strong>de</strong>ixa os sujeitos observadores surpreendidos e maravilhados.<br />

2 – A fase Atualizado → Realizado: expõe o aparecimento <strong>de</strong> uma forma. É a<br />

fase em que ela recebe uma expressão e um estatuto <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que lhe<br />

possibilita ser um referencial, como a maquiagem <strong>de</strong> Rita Hayworth.<br />

Na outra etapa, do percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, as formas significantes são<br />

contidas, memorizadas, tipificadas, ou po<strong>de</strong>m ser apagadas e esquecidas. Esse<br />

percurso abarca também duas fases:<br />

3 – A fase Realizado → Potencializado: é a condição para a queda <strong>de</strong> uma<br />

forma até então viva e inovadora. Com o <strong>de</strong>sgaste e saturação <strong>de</strong> um uso<br />

constante, e a consequente fixação, ela se torna potencialmente disponível<br />

para outras convocações, como aconteceu no caso <strong>de</strong> Espinosa, simulacro<br />

<strong>de</strong> Rita Hayworth, criado por Duda Molinos (Fig. 24).<br />

4 – A fase Potencializado → Virtualizado: ocorre o “<strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> uma<br />

forma e sua diluição nas estruturas virtuais subjacentes ao exercício <strong>de</strong> uma<br />

prática significante” (FONTANILLE, 2007, p. 278).<br />

A combinação <strong>de</strong>, no mínimo, dois modos <strong>de</strong> existência e duas gran<strong>de</strong>zas em<br />

competição faz com que uma forma diminua <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> para que outra forma seja<br />

promovida, numa concorrência solidária entre os modos <strong>de</strong> existência. Para<br />

<strong>de</strong>monstrar o <strong>de</strong>vir das maquiagens numa práxis enunciativa, tomo como exemplos<br />

diversos estilos <strong>de</strong> maquiagem, principalmente as pinturas corporais.


2.3.2.1 Revolução semiótica<br />

Figura 31: Sasha. Fonte: GAIR, 2006, p. 30-31.<br />

121<br />

Este trabalho <strong>de</strong> Joanne Gair foi realizado em Los Angeles, no ano <strong>de</strong> 2000,<br />

para o programa <strong>de</strong> televisão “Aunque usted no lo crea”, num episódio <strong>de</strong>dicado<br />

exclusivamente a suas pinturas corporais, no qual a artista criou uma sessão<br />

fotográfica especialmente para o programa.


122<br />

Trabalhei com a mo<strong>de</strong>lo russa Sasha e me concentrei no lado mágico<br />

do meu trabalho... Como posso fazer para parecer que as pessoas<br />

tenham <strong>de</strong>saparecido por meio do meu pincel 15 . (GAIR, 2006, p. 149)<br />

Nessa pintura aplicada sobre uma tela bidimensional e, conjuntamente, sobre o<br />

suporte tridimensional do envelope corporal <strong>de</strong> Sasha (Fig. 31), aparecem diversos<br />

tipos <strong>de</strong> flores, com diferentes cores, texturas e formatos que formam um único plano.<br />

O efeito mágico promovido pela profusão <strong>de</strong> matizes cromáticos das flores, distribuídas<br />

com certa linearida<strong>de</strong>, entre os tons vermelhos, mais <strong>de</strong>stacados; os azuis, mais<br />

recuados, e os brancos, que salpicam luzes na composição, é o da diluição do corpo<br />

da mo<strong>de</strong>lo. A artista aproveita as características <strong>de</strong> cada cor para conseguir escon<strong>de</strong>r<br />

os volumes naturais do corpo humano. Assim, vale-se do grau <strong>de</strong> cromaticida<strong>de</strong> da<br />

cor vermelha, naturalmente mais saturada que as <strong>de</strong>mais, como também a <strong>de</strong> maior<br />

visibilida<strong>de</strong>; do azul e do branco, explora suas respectivas profundida<strong>de</strong> e<br />

luminosida<strong>de</strong> naturais para <strong>de</strong>sviar o olhar do enunciatário para as flores e diminuir o<br />

foco <strong>de</strong> atenção do corpo <strong>de</strong> Sasha (Fig. 31). Além disso, as flores têm ritmos<br />

contínuos sobre o fundo amarelo das duas telas (fundo e corporal), promovendo uma<br />

camuflagem do corpo no meio florido. É uma maneira <strong>de</strong> fazer com que o corpo passe<br />

<strong>de</strong>spercebido, como um camaleão que adapta seu aspecto às normas do meio<br />

ambiente. Apesar da operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem conservar a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do<br />

envelope corporal <strong>de</strong> Sasha, ele sucumbe diante da gran<strong>de</strong>za cromática da<br />

enunciação.<br />

As pinturas se completam formando uma massa única, um plano contínuo no<br />

qual a tridimensionalida<strong>de</strong> do corpo humano parece recuar sob a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

flores, <strong>de</strong> cores, <strong>de</strong> formas e <strong>de</strong> texturas. Quanto maior a distância do observador<br />

(enunciatário) em relação à composição, menor será a percepção do corpo. Distância<br />

essa que promove ainda mais a virtualização do corpo. A competição das gran<strong>de</strong>zas e<br />

dos modos <strong>de</strong> existência é evi<strong>de</strong>nte numa operação intensiva <strong>de</strong> sua práxis<br />

enunciativa cujas operações <strong>de</strong> ascendência e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência se articulam<br />

mutuamente. As oscilações ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes são primordiais para explicar e<br />

15 Trabajé con la mo<strong>de</strong>lo rusa Sasha y me concentré en el lado mágico <strong>de</strong> mi trabajo... Cómo puedo<br />

hacer que parezca que las personas <strong>de</strong>saparecen con mi pincel.


epresentar o percurso que um observador faz diante dos corpos pintados, ou diante<br />

<strong>de</strong> qualquer outro texto observado. O movimento <strong>de</strong> percepção <strong>de</strong> um observador<br />

diante da pintura <strong>de</strong> Gair (Fig. 31) segue do ato <strong>de</strong> ascendência (Atualizado →<br />

Realizado), no qual aparecem as flores que recebem uma expressão e um estatuto <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong>, para o ato <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte (Potencializado →Virtualizado) que culmina no<br />

<strong>de</strong>saparecimento do corpo e sua diluição nas estruturas virtuais subjacentes ao<br />

exercício <strong>de</strong> uma prática significante. É o aparecimento <strong>de</strong> uma forma que estabelece<br />

uma relação mútua com <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> outra, constituindo, <strong>de</strong>ssa maneira,<br />

conforme esclarece Fontanille (2007, p. 278), uma revolução semiótica.<br />

123


2.3.2.2 Distorção semiótica<br />

Figura 32: Christina Ricci como Edith Piaf.Fonte: AUCOIN, 2000, p.100.<br />

Figura 33: Christina Ricci. Fonte: MORPHTHING, 2009.<br />

Figura 34: Edith Piaf. Fonte: DAYS EYE, 2009.<br />

124<br />

Neste exemplo, acontece uma mudança do sentido na i<strong>de</strong>ntificação do rosto da<br />

atriz Christina Ricci (Fig. 33). Cabe ressaltar que o mesmo acontece com Thelma<br />

Aucoin (Fig. 16) quando figuram sobre o seu rosto as imagens <strong>de</strong> Marlene Dietrich<br />

(Fig. 21) ou <strong>de</strong> Coco Chanel (Fig. 20), ou ainda, no simulacro <strong>de</strong> Rita Hayworth sobre o<br />

rosto <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27). Christina Ricci (Fig. 33) empresta seu suporte<br />

facial para que Kevyn Aucoin a transforme em Edith Piaf (Fig. 34). Para isso, as<br />

sobrancelhas naturais <strong>de</strong> Ricci (Fig. 32) são cobertas, outras novas, bem finas, são


<strong>de</strong>senhadas com lápis marrom, acima das naturais cobertas. Base e pó facial são<br />

aplicados para uniformizar o rosto, sombras em pó são aplicadas sobre as pálpebras,<br />

primeiramente a <strong>de</strong> cor pêssego em toda a extensão, <strong>de</strong>pois a marrom sob a cavida<strong>de</strong><br />

das sobrancelhas, seguindo do mais intenso próximo ao nariz e fazendo um <strong>de</strong>gradé<br />

até chegar ao canto externo dos olhos. A linha dos cílios inferiores também recebe a<br />

mesma sombra marrom esfumada sobre ela. Os cílios recebem várias camadas <strong>de</strong><br />

máscara preta. Os lábios são contornados e aumentados com lápis no tom <strong>de</strong> pele e<br />

preenchidos com batom vermelho sangue. A área do osso malar é levemente colorida<br />

com um blush rosa, a peruca e o jogo <strong>de</strong> luzes completam o visual. É claro que os<br />

formatos das sobrancelhas e dos lábios já são um indicativo do rosto <strong>de</strong> Piaf, porém,<br />

ao se relacionarem com o trabalho <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> Ricci, como o próprio Aucoin<br />

<strong>de</strong>staca, criam o efeito <strong>de</strong> mimese e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com Edith Piaf, <strong>de</strong>stacando<br />

principalmente a força passional da cantora <strong>de</strong> referência.<br />

125<br />

Neste exemplo, acontece uma distorção semiótica, provocada pela competição<br />

das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong> existência numa operação intensiva <strong>de</strong> sua práxis<br />

enunciativa. Ocorre uma operação <strong>de</strong> ascendência, do Virtualizado para o Atualizado<br />

e, <strong>de</strong>pois, outra <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado. É a emergência<br />

da forma do rosto <strong>de</strong> Piaf correlacionada à diminuição gradativa da intensida<strong>de</strong> do<br />

rosto <strong>de</strong> Ricci. Este caso seria uma espécie <strong>de</strong> sinédoque visual, na qual há uma<br />

relação <strong>de</strong> contiguida<strong>de</strong> das figuras, isto é, po<strong>de</strong>r-se-ia chamá-las <strong>de</strong> as “Piafs”. Há<br />

nas “Piafs”, assim como nas “Dietrichs”, nas “Chanels” e nas “Hayworths”, a<br />

concorrência <strong>de</strong> um conteúdo figurante atualizado e um conteúdo reconstituído<br />

potencializado.


126<br />

Dois corpos femininos juntos, dispostos horizontalmente em direções inversas,<br />

cobertos por uma maquiagem corporal ver<strong>de</strong>, distribuída uniformemente sobre os dois,<br />

compõem o primeiro plano cromático da obra. Uniformida<strong>de</strong> cromática que é quebrada<br />

pela centralida<strong>de</strong> dos musgos verda<strong>de</strong>iros que cobrem os sexos das mo<strong>de</strong>los,<br />

configurando dois pontos <strong>de</strong> textura ao plano, além <strong>de</strong> serem dois pontos <strong>de</strong> tensão na<br />

extensão dos envelopes corporais pintados <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>. Os musgos figuram como duas<br />

aglomerações arbóreas caracterizadas pela fertilida<strong>de</strong> do solo e pela exuberância da<br />

vegetação e estão estrategicamente posicionados como sinalizadores do também solo<br />

fértil feminino.<br />

Figura 35: Skinscapes – Colinas. Fonte: GAIR, 2006, p. 44-45.


127<br />

O segundo plano cromático é formado pela cor azul clara que forma o céu<br />

aberto da paisagem. Esses corpos colinas (Fig. 35) foram pintados por Gair, no verão<br />

<strong>de</strong> 2000, para a revista Black Book <strong>de</strong> New York, Estados Unidos. Tal qual uma<br />

metáfora visual, essa paisagem corporal se baseia numa relação <strong>de</strong> semelhança<br />

subtendida entre o sentido próprio e o figurado. A práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa<br />

maquiagem também é uma distorção semiótica, como no exemplo do simulacro <strong>de</strong> Piaf<br />

(Fig. 32). A práxis acontece por meio da competição das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong><br />

existência numa operação intensiva, na qual primeiro ocorre uma operação <strong>de</strong><br />

ascendência, do Virtualizado para o Atualizado, seguida por uma operação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado. A relação dos planos cromáticos, com<br />

a <strong>de</strong>formação do envelope corporal promovida pela <strong>de</strong>breagem cria um efeito <strong>de</strong><br />

verossimilhança na relação com as colinas do mundo natural. As colinas pintadas<br />

emergem enquanto o envelope corporal entra em <strong>de</strong>clínio, intensificado pelo<br />

comprometimento da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal, provocado pela<br />

operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, pela composição e pelo corte fotográfico, do mesmo modo<br />

como acontece na obra <strong>de</strong> Julio Larraz (Fig. 3), que consta no primeiro capítulo, outro<br />

exemplar <strong>de</strong> uma pintura corporal que promove uma distorção semiótica.


2.3.2.3 Remanejamento semiótico<br />

Figura 36: Flora/A Primavera. Fonte: GAIR, 2006, p. 87<br />

128


129<br />

Ao ver pela primeira vez essa mulher grávida adornada por flores que olha<br />

diretamente para o observador (Fig. 36), po<strong>de</strong>-se associá-la imediatamente a uma obra<br />

<strong>de</strong> arte famosa. E foi exatamente essa a intenção <strong>de</strong> Gair quando, em 1994, soube do<br />

interesse da atriz Demi Moore, grávida <strong>de</strong> oito meses, em participar <strong>de</strong> uma pintura<br />

corporal. A maquiadora, nessa época, acabara <strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> uma visita à Itália, on<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong> ver os originais do artista renascentista italiano, Sandro Botticelli. Ainda sob o<br />

impacto das obras primorosas em <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> Botticelli, ela propôs à atriz recompor<br />

Flora, uma das personagens do quadro A primavera 16 (Fig. 37), sobre o seu corpo.<br />

Figura 37: A Primavera- Sandro Botticelli – 1478/82<br />

Fonte: Nova Cultural, 1991.<br />

Flora, <strong>de</strong>usa das<br />

florestas e das flores, aparece à<br />

direita do referido quadro, e<br />

surge a partir do rapto<br />

apaixonado <strong>de</strong> Clóris, ninfa das<br />

flores, por Zéfiro, vento do<br />

oeste 17 . Essa cena é<br />

proveniente das histórias do<br />

poeta Ovídio, que narrava o<br />

princípio da primavera no<br />

momento em que a ninfa Clóris<br />

se transforma em Flora: “Eu era<br />

Clóris, a quem chamam Flora”. Na pintura <strong>de</strong> Botticelli, ela traja uma túnica talaris<br />

ricamente <strong>de</strong>talhada, com qual a <strong>de</strong>usa espalha flores pelos campos. Gair aproveita o<br />

volume da barriga <strong>de</strong> oito meses <strong>de</strong> Moore para reproduzir o volume da túnica sobre o<br />

corpo ligeiramente volumoso, característico dos corpos renascentistas, <strong>de</strong> Flora. Gair<br />

não apenas recompõe Flora sobre o corpo <strong>de</strong> Moore, mas reconstitui alguns dos<br />

significados alegóricos <strong>de</strong>ssa pintura <strong>de</strong> Botticelli cuja mensagem é recebida, <strong>de</strong><br />

acordo com Argan (2003, p. 261), em diversos níveis. A artista reproduz a amenida<strong>de</strong><br />

16<br />

“A primavera”, têmpera sobre ma<strong>de</strong>ira, foi pintada por volta <strong>de</strong> 1478/82, tem 203X314 cm e se<br />

encontra em Florença, na galeria <strong>de</strong>gli Uffizi.<br />

17<br />

O quadro “A Primavera” é composto por nove personagens, da esquerda para a direita aparecem:<br />

Mercúrio, o mensageiro do <strong>de</strong>uses; as tres graças, componentes habituais do séquito <strong>de</strong> Vênus; a<br />

própria Vênus; cupido, Flora, Clóris e Zéfiro.


do pequeno bosque e do prado florido que está ao fundo da pintura. Do mesmo modo<br />

que no original, na reprodução há a ausência <strong>de</strong> perspectiva do “alinhamento dos<br />

troncos paralelos e o rendilhado das folhas no fundo da primavera”, um fundo sem<br />

profundida<strong>de</strong>, que, junto com a reforçada cadência daquelas paralelas, agrega valor<br />

aos fluxos dos ritmos lineares das figuras. Gair conserva em sua reconstituição “as<br />

tênues passagens da cor” e “o preciso recorte dos escuros das árvores contra a<br />

clarida<strong>de</strong> do céu” (ARGAN, 2003, p. 261).<br />

130<br />

A recomposição dos <strong>de</strong>talhes é preciosa, feita minuciosamente pela<br />

maquiadora: as flores que <strong>de</strong>coram a túnica, o movimento do tecido ao vento, o<br />

rendado da manga magistralmente pintado a mão, o fundo composto por árvores e o<br />

chão também adornado por flores. Para dar um aspecto tridimensional à túnica, foram<br />

agregadas peças <strong>de</strong> chiffon <strong>de</strong>coradas com o mesmo motivo floral que está pintado<br />

sobre o corpo <strong>de</strong> Moore. Da mesma maneira que as pró<strong>tese</strong>s das figuras 8 e 9,<br />

apresentadas no primeiro capítulo, as peças <strong>de</strong> chiffon são um meio <strong>de</strong> multiplicação<br />

da espessura do envelope corporal <strong>de</strong> Moore. A <strong>de</strong>breagem mantém a conexão do<br />

envelope corporal <strong>de</strong> Moore e também ocorre por meio <strong>de</strong> excrescências, que fazem<br />

com que aconteça o ajuste da superfície do envelope <strong>de</strong> inscrição ao envelope<br />

corporal. Por outro lado, a atriz se posiciona tal qual Flora original, e também acomoda<br />

em seus braços as flores acumuladas em sua túnica para que possa cumprir a missão<br />

<strong>de</strong> florir o mundo. Nenhum <strong>de</strong>talhe escapa a Gair, que enfeita os cabelos e o colo <strong>de</strong><br />

sua Flora com arranjos florais tridimensionais. O ritmo da figura, a atraente beleza e o<br />

semblante do corpo <strong>de</strong> Flora sobre o corpo <strong>de</strong> Moore aparecem na fotografia <strong>final</strong>, tal<br />

qual o original “no fluir das linhas, nos <strong>de</strong>licados acor<strong>de</strong>s das cores” (ARGAN, 1957,<br />

p.74).<br />

Neste exemplo, além do acréscimo do tecido proeminente ao corpo que se<br />

compacta ao envelope, a reconstituição <strong>de</strong> Flora conserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão<br />

do envelope corporal, proporcionando um efeito <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> referência à obra <strong>de</strong><br />

Botticelli, ou seja, a maquiadora “diz” o que o pintor havia “dito” antes. Há, portanto, um<br />

remanejamento semiótico, pois Gair afeta as relações entre o original cultural e o<br />

sistema, fazendo com que a práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa pintura corporal combine as<br />

gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong> existência numa operação intensiva. Assim, com a


eativação da combinatória virtual em um estereótipo, promove a emergência da<br />

pintura <strong>de</strong> Botticelli que é ajustada ao ofuscamento do envelope corporal <strong>de</strong> Moore,<br />

isto é, um ato <strong>de</strong> ascendência, do Virtualizado para o Atualizado, seguido por um ato<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Potencializado para o Virtualizado.<br />

2.3.2.4 Flutuação semiótica<br />

Figura 38: Jovem <strong>de</strong> cabelo comprido. Fonte: GAIR, 2006, p. 126.<br />

Figura 39: Deborah Lin. Fonte: GAIR, 2006, p. 105.<br />

Figura 40: Yana. Fonte: GAIR, 2006, p. 121<br />

131<br />

Uma imagem na imagem é o que vemos nessas três obras artísticas. A<br />

concepção <strong>de</strong>sses trabalhos, realizados por Gair entre meados dos anos 80 e início<br />

do anos 90, é basicamente a mesma: a utilização dos dorsos das mo<strong>de</strong>los orientais<br />

como suporte <strong>de</strong> uma pintura com motivos também orientais.<br />

A jovem <strong>de</strong> cabelo comprido (Fig. 38) impressionou Gair tanto por sua beleza<br />

quanto pelo seu cabelo comprido e pelo tom <strong>de</strong> sua pele oriental que, segundo a<br />

maquiadora, seriam as telas mais suaves e perfeitas. A artista, então, projetou sobre<br />

as costas da mo<strong>de</strong>lo uma imagem <strong>de</strong>la própria. Desse modo, a pintora conseguiu


“contar uma história com várias imagens” (GAIR, 2006, p. 155). A mo<strong>de</strong>lo aparece <strong>de</strong><br />

costas, sentada sobre os próprios pés, como uma gueixa. Um tecido leve, <strong>de</strong> cor<br />

vermelha, envolve os seus quadris. Os cabelos lisos, pretos e longos, são acomodados<br />

no ombro direito da moça, o que leva o observador a <strong>de</strong>duzir que eles <strong>de</strong>scem pelo<br />

seu corpo nu. O dorso liso e suave da mo<strong>de</strong>lo recebeu a pintura <strong>de</strong> si mesma: uma<br />

moça oriental que também está sentada penteando os longos cabelos lisos e pretos,<br />

que passam pelo seu ombro esquerdo e atingem o colo nu, um tecido vermelho se<br />

<strong>de</strong>staca sobre o volume da saia e alcança a materialização sobre os quadris da<br />

mo<strong>de</strong>lo.<br />

132<br />

A segunda composição (Fig. 39) foi feita em Los Angeles durante a gravação <strong>de</strong><br />

um ví<strong>de</strong>o musical <strong>de</strong> Janet Jackson. Da mesma maneira que a anterior (Fig. 38), Gair<br />

pinta sobre as costas <strong>de</strong> Deborah Lin uma imagem <strong>de</strong>la própria que, no ví<strong>de</strong>o, é<br />

revelada quando o quimono da mo<strong>de</strong>lo cai em cena. A moça oriental (Fig. 39) tem os<br />

cabelos lisos e pretos penteados para trás, formando um coque baixo, preso pelos<br />

tradicionais hashi vermelho com <strong>de</strong>talhes brancos. Ela também aparece<br />

comportadamente sentada e mostra a pintura <strong>de</strong> si mesma que repousa em seu dorso:<br />

uma gueixa com o rosto maquiado tradicionalmente, vestida com um quimono<br />

suntuoso, <strong>de</strong> cor ver<strong>de</strong> com <strong>de</strong>talhes vermelhos.<br />

Yana, mo<strong>de</strong>lo da terceira composição (Fig. 40), se distingue das outras duas<br />

(fig. 38 e 39), uma vez que o ângulo e o corte fotográfico não permitem que o<br />

observador visualize nitidamente qual é a sua real postura, mas, mesmo assim,<br />

percebe-se que ela se movimenta. O que se consegue vislumbrar dos seus braços dá<br />

a impressão <strong>de</strong> que ambos seguem para a esquerda. Dos seus cabelos apenas po<strong>de</strong>-<br />

se ver que são lisos e pretos por meio <strong>de</strong> duas mechas, aparentemente molhadas,<br />

que caem sobre as costas pintadas com símbolos assimilados da ópera chinesa: uma<br />

personagem da ópera em plena ação, que parece se mover tal e qual seu suporte,<br />

caminha com os braços completamente abertos; as longas mangas amarelas da roupa<br />

branca com estampas azuis, dobram-se sobre as mãos e balançam no espaço. Ao<br />

redor <strong>de</strong>ssa figura central são <strong>de</strong>senhados flores e i<strong>de</strong>ogramas chineses. Além das<br />

imagens chinesas, Gair utiliza os próprios produtos <strong>de</strong> maquiagem específicos para a


ópera, como também aquacolor 18 e caneta da marca sharpie 19 para os <strong>de</strong>talhes mais<br />

finos e <strong>de</strong>licados da pintura.<br />

133<br />

Em nenhum momento vemos os traços faciais que i<strong>de</strong>ntificam mais facilmente<br />

um oriental, mas po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar, nos três sujeitos actantes encarnados, traços<br />

orientais, como os cabelos lisos, pretos, longos, que estão soltos, presos ou molhados.<br />

A postura das duas primeiras mo<strong>de</strong>los (Figs. 38 e 39), que estão <strong>de</strong>licadamente<br />

sentadas como duas gueixas, ao contrário da terceira (fig. 40), que parece se mover tal<br />

qual a pintura que leva às costas, é um dos pontos <strong>de</strong> distinção entre as composições.<br />

Todos esses <strong>de</strong>talhes das mo<strong>de</strong>los são isotopias figurativas 20 orientais ligadas e<br />

reforçadas pelas pinturas tradicionalmente orientais que são manifestadas<br />

alternadamente na composição. São Isotopias orientais pintadas sobre corpos<br />

configurados como isotopias também orientais. A relação entre as isotopias e a<br />

manutenção da conexão dos envelopes corporais provoca um efeito <strong>de</strong> redundância e<br />

<strong>de</strong> reiteração da origem oriental dos respectivos suportes. As manifestações<br />

alternadas na composição fazem com que “a isotopia figurante [pintura corporal] vá e<br />

venha entre atualização e realização, e a isotopia figurada [envelopes corporais], entre<br />

realização e potencialização” (FONTANILLE, 2007, p. 279).<br />

Há uma combinação entre o aparecimento <strong>de</strong> uma forma (as pinturas orientais)<br />

e o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> outra (os envelopes corporais) na práxis <strong>de</strong>ssas três composições.<br />

Uma operação intensiva que promove um ato <strong>de</strong> ascendência do Atualizado para o<br />

Realizado e, na sequência, um ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, do Realizado para o Potencializado<br />

que configura o que Zilberberg e Fontanille (2001, p. 187) <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> flutuação<br />

semiótica.<br />

18<br />

Um produto <strong>de</strong> maquiagem artística, com cores intensas, que é aplicado com esponja úmida ou pincel.<br />

Produz um acabamento similar às pinturas <strong>de</strong> aquarela.<br />

19<br />

Caneta utilizada para diversos fins, ícone nos Estados Unidos cujo traçado fino e preciso se fixa sobre<br />

variadas superfícies.<br />

20<br />

De acordo com Diana Barros, a “isotopia figurativa caracteriza-se pela redundância <strong>de</strong> traços<br />

figurativos, pela associação <strong>de</strong> figuras aparentadas e correlacionadas a um tema, o que atribui ao<br />

discurso uma imagem organizada da realida<strong>de</strong>”. (BARROS, 2003, p.86)


Figura 41: Emma Belcher - Rosas.<br />

Fonte: GAIR, 2006, p. 110.<br />

134<br />

Ao contrário da figura 31, na<br />

qual Gair apagou o corpo <strong>de</strong> Sasha<br />

sobre um mundo <strong>de</strong> flores pintadas,<br />

agora ela cerca o corpo <strong>de</strong> Emma<br />

Belcher (Fig. 41) <strong>de</strong> rosas naturais e<br />

as recompõe, em pintura, sobre a<br />

superfície <strong>de</strong> inscrição da mo<strong>de</strong>lo.<br />

O mesmo tema, as mesmas figuras<br />

florais com práxis enunciativas<br />

distintas. O primeiro correspon<strong>de</strong> a<br />

uma revolução semiótica na qual há<br />

uma correlação entre o<br />

aparecimento das flores, fase<br />

Atualizado → Realizado, e o<br />

<strong>de</strong>saparecimento do corpo, fase<br />

Potencializado → Virtualizado.<br />

Nessa última composição (fig. 41),<br />

realizada em 2004, na Nova<br />

Zelândia, país <strong>de</strong> nascença da<br />

artista, acontece uma flutuação<br />

semiótica que surge <strong>de</strong> uma combinação do aparecimento das flores pintadas sobre o<br />

corpo, fase Atualizado → Realizado, e a diminuição gradativa da intensida<strong>de</strong> das<br />

rosas naturais, fase Realizado → Potencializado. O observador oscila seu olhar entre<br />

as imagens das rosas <strong>de</strong>talhadamente pintadas sobre o corpo e as rosas naturais <strong>de</strong><br />

várias tonalida<strong>de</strong>s, do rosa chá ao vermelho escuro, que cercam o corpo pintado. As<br />

rosas naturais permanecem ali, disponíveis ao olhar que po<strong>de</strong> ir e vir o quanto quiser,<br />

flutuando entre o natural e sua imitação artística. O efeito <strong>de</strong> verossimilhança em<br />

relação com as rosas naturais é promovido pelas formas e pelas cores.<br />

Zilberberg e Fontanille (2001, p. 187) <strong>de</strong>monstram, em uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> figuras<br />

sintáxicas, a práxis enunciativa, apreendida do ponto <strong>de</strong> vista do <strong>de</strong>vir dos objetos,<br />

como uma composição <strong>de</strong> atos ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes, dos quais se originam


quatro transformações elementares e quatro transformações tensivas:<br />

(Decadência)<br />

(Ascendência)<br />

Emergência Aparecimento<br />

Declínio Distorção Flutuação<br />

Desaparecimento Remanejamento Revolução<br />

135<br />

A partir disso, percebe-se que, nas pinturas corporais ou nas maquiagens<br />

cotidianas, a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos, tipos e composições, assim como os diferentes<br />

sentidos que elas têm nas diversas culturas do mundo, estão sempre em<br />

transformação. Em cada época, a maquiagem se modifica. Algumas vezes, valorizam-<br />

se mais os olhos; em outras, os lábios é que ganham <strong>de</strong>staque. Ela também po<strong>de</strong> ser<br />

mais suave e neutra ou mais forte e colorida, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tempo e do espaço em<br />

que está inserida.<br />

Posição hierárquica em uma socieda<strong>de</strong>; po<strong>de</strong>r para reis e nobres; respeito às<br />

divinda<strong>de</strong>s sobrenaturais e aos <strong>de</strong>uses para os primitivos; aceitação social para os<br />

contemporâneos e, essencialmente, o estético, são alguns dos significados atribuídos<br />

à maquiagem facial ou corporal. Entretanto, é ao combinar gran<strong>de</strong>zas, modos <strong>de</strong><br />

existência e tensões que a maquiagem alcança o status <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte. A partir<br />

<strong>de</strong>ssas relações entre as gran<strong>de</strong>zas, os modos <strong>de</strong> existência e as tensões torna-se<br />

possível compreen<strong>de</strong>r as vertigens, os torpores, os arrepios e as surpresas provocadas<br />

pela maquiagem. Maquiar-se é discorrer com cores, com nuances, com ritmos, com<br />

formas e tensões que se transformam em discursos coloridos, originais e extasiantes.<br />

Uma tomada <strong>de</strong> posição no mundo, cujo modo <strong>de</strong> expressão gera sentidos<br />

apreendidos com mais ou menos intensida<strong>de</strong>.<br />

Assim como a instância do corpo próprio está em eterno <strong>de</strong>vir, as inscrições<br />

efêmeras, maquiagens e pinturas corporais, como objetos estéticos e semióticos, se<br />

transformam incessantemente. Essas metamorfoses são reguladas pelos atos da<br />

práxis, sejam nas maquiagens sociais cotidianas e, mais evi<strong>de</strong>ntemente, nas pinturas<br />

corporais. Estas últimas, originadas nas ditas socieda<strong>de</strong>s primitivas, são percebidas,<br />

nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, como uma maneira <strong>de</strong> reconectar o ser humano à


natureza. Diferentemente das culturas atuais, os povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada, têm um<br />

modo <strong>de</strong> vida tradicional, uma continuida<strong>de</strong> temporal e espacial e necessitam que as<br />

enunciações coloridas sejam constantemente atualizadas para que possam continuar<br />

vivas.<br />

136


3 - NOVOS SENTIDOS PARA O CORPO: AS INSCRIÇÕES EFÊMERAS PARA OS<br />

PRIMITIVOS E PARA OS CONTEMPORÂNEOS<br />

137<br />

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário<br />

porque vinha <strong>de</strong> encontro à minha mais profunda suspeita <strong>de</strong> que o<br />

rosto humano também fosse uma espécie <strong>de</strong> máscara.(...)<br />

Eu mal podia esperar pela saída <strong>de</strong> uma infância vulnerável – e pintava<br />

minha boca <strong>de</strong> batom bem forte, passando também ruge nas minhas<br />

faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.<br />

(...) mas o rosto ainda nu não tinha a máscara <strong>de</strong> moça que cobriria<br />

minha tão exposta vida infantil (...) (LISPECTOR, 1998, p. 26 – 28)<br />

Des<strong>de</strong> cedo, as meninas observam a mãe e o “ritual” atrativo, mágico e<br />

fascinante <strong>de</strong> se maquiar, porém a influência da televisão vem acelerando esse<br />

processo, além <strong>de</strong> promover a padronização e a serialização dos rostos. Atualmente,<br />

há produtos e cores específicas para essas meninas/mulheres, que, como disse<br />

Lispector, tanto <strong>de</strong>sejam escapar “da meninice”. Colorir o rosto, <strong>de</strong>senvolver uma<br />

máscara tem o sentido <strong>de</strong> acesso ao misterioso mundo adulto no qual, na imaginação<br />

inocente da infância, tudo se po<strong>de</strong>. A maquiagem seria uma tentativa <strong>de</strong> cobrir “a<br />

exposta vida infantil” e entrar em um mundo <strong>de</strong>sconhecido, que, só mais tar<strong>de</strong>, as<br />

meninas perceberão que é tão ou mais cheio <strong>de</strong> regras, tensões e responsabilida<strong>de</strong>s.<br />

Essas transformações figurativas dos sujeitos actantes encarnados,<br />

correspon<strong>de</strong> à narrativida<strong>de</strong> da maquiagem que é comum entre as culturas letradas e<br />

pré-letradas. Porém, os grupos culturais pré-letrados, normalmente, possuem um<br />

modo <strong>de</strong> vida coletivo e tradicional. A cada nova aplicação das pinturas corporais<br />

significa a continuida<strong>de</strong> e a permanência <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> vida. Seria como a<br />

coexistência atual e anterior das enunciações. Fontanille (2004a, p.253) explica que “a<br />

tradição funciona por continuida<strong>de</strong> temporal e espacial <strong>de</strong> sua transmissão” 1 , e, para<br />

mantê-la viva, as enunciações impessoais não po<strong>de</strong>m ser interrompidas. Então, po<strong>de</strong>-<br />

se dizer que cada vez que um indivíduo Nuba se pinta, ele reativa a enunciação <strong>de</strong><br />

forma pessoal.<br />

1 La tradition que celui <strong>de</strong> la continuité temporelle et spatiale <strong>de</strong> sa transmission.


Fontanille e Zilberberg (2001, p. 213) explicam que “há forma <strong>de</strong> vida a partir do<br />

momento em que a práxis enunciativa apareça como intencional, esquematizável e<br />

estética, ou seja, preocupada com um plano da expressão que lhe seja peculiar”.<br />

Desse modo, os Nubas e seus sentidos estéticos completamente esquematizados<br />

mantêm viva a sua tradição da pintura corporal. Essas pinturas Nuba estão fixadas<br />

pelo uso e são imediatamente reconhecidas no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma estesia. A cada nova<br />

aplicação, um indivíduo Nuba <strong>de</strong>seja entrar em conjunção com a beleza (objeto <strong>de</strong><br />

valor) e atualizam o discurso por meio da categoria eidética do plano da expressão,<br />

uma vez que as cores correspon<strong>de</strong>m às faixas etárias. Assim, o actante sujeito<br />

encarnado Nuba, por meio das operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem (<strong>de</strong>formações e projeções),<br />

transformam suas peles em superfície <strong>de</strong> inscrições efêmeras que são revestidas por<br />

figuras, se tornam os atores socias Nubas, com força <strong>de</strong> transformação e forma<br />

i<strong>de</strong>ntificável.<br />

138<br />

Quanto aos corpos contemporâneos, para Le Breton (2003), eles ou são<br />

cultuados ou são <strong>de</strong>sprezados nesses tempos <strong>de</strong> exibição <strong>de</strong> músculos tonificados, <strong>de</strong><br />

beleza estética acima <strong>de</strong> qualquer coisa, que produzem imagens corporais<br />

constantemente reversíveis, às quais se atribuem incertezas <strong>de</strong> significados que<br />

acabam parecendo ser inatingíveis. Um corpo que, tal como o rosto, acentua a sua<br />

situação <strong>de</strong> projeto, como <strong>de</strong>fine Fiorin (2008a). O corpo contemporâneo não é nada<br />

mais que um projeto, um corpo inacabado. O corpo que antes era pertencente à<br />

natureza, hoje é da or<strong>de</strong>m da cultura. Um indivíduo antigamente se resignava ao corpo<br />

com que nascera, agora, diante dos avanços da cosmética, da produção<br />

<strong>de</strong>rmatológica, das cirurgias plásticas, o corpo possui uma imagem i<strong>de</strong>alizada “e em<br />

relação a ela, o corpo <strong>de</strong> cada um é sentido como uma falta” (FIORIN, 2008a, p. 149).<br />

Os corpos pertencentes à natureza são representados nesta pesquisa pelos<br />

habitantes das montanhas Nuba, no su<strong>de</strong>ste da província sudanesa <strong>de</strong> Kordofan,<br />

África. Como são muitos os primitivos com culturas específicas, um estudo<br />

generalizado que abranja a maioria <strong>de</strong>les não levaria a compreensão <strong>de</strong> todo o<br />

contexto social específico <strong>de</strong> cada grupo. Conforme explica Lévi-Strauss (1981), <strong>de</strong>ve-<br />

se compreen<strong>de</strong>r tanto as máscaras quanto os ritos, o cotidiano que está associado ao<br />

meio social <strong>de</strong> cada cultura.


139<br />

Os Nubas foram fotografados por Riefenstahl, que, atraída por suas pinturas<br />

corporais, buscou maior aprofundamento nos estudos <strong>de</strong> Faris. Essas fotografias e a<br />

beleza das suas pinturas corporais influenciaram Roberto Edward, criador e diretor do<br />

projeto Cuerpos Pintados. Portanto, os corpos estéticos, bonitos, esbeltos e <strong>de</strong>finidos,<br />

padrão <strong>de</strong> beleza dos Nubas, não po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, nesta investigação, os<br />

representantes dos povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada. A partir das pinturas e escarificações<br />

corporais dos Nubas comprova-se a multidimensionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse corpos.<br />

De acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996, p. 43), a valorização da<br />

multidimensionalida<strong>de</strong> corporal assegura a conexão da cabeça ao corpo. É raro que<br />

algo passe pelo rosto, diferentemente do ser humano contemporâneo, que tem o rosto<br />

como forma <strong>de</strong> expressão primeira. A polivalência está em todo o corpo, passa por<br />

seus volumes, por suas cavida<strong>de</strong>s internas, por suas conexões e por “coor<strong>de</strong>nadas<br />

exteriores variáveis (territorialida<strong>de</strong>s)” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 43).<br />

As pinturas sobre a pele revelam “codificações simbólicas complexas” (JEUDY,<br />

2002, p. 89), motivo pelo qual foram estudadas profundamente nas pesquisas<br />

etnográficas. As tatuagens e as escarificações são exibidas como um “<strong>de</strong>safio para os<br />

olhos”, e também são sinais <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> pertença. “O corpo tatuado parece<br />

<strong>de</strong>spossuir a si mesmo para pertencer ao Outro” (JEUDY, i<strong>de</strong>m, p. 91), à medida que o<br />

outro tenta vencer o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar seus segredos. Até mesmo as máscaras<br />

que aparecem sobre o rosto dos povos pré-letrados são para garantir a pertença da<br />

cabeça ao corpo. Deleuze e Guattari (i<strong>de</strong>m, p. 43) afirmam que as máscaras não<br />

valorizam um rosto.<br />

Os pré-letrados possuem um corpo sacro que é entendido como pertencente à<br />

natureza e é valorizado por essa condição. Segundo Viviane Baeke (1997, p. 19), a<br />

pintura corporal, as tatuagens e as escarificações são como as vestimentas, são<br />

maneiras <strong>de</strong> valorizar e/ou mudar o sentido do corpo. Além da busca estética nessa<br />

transformação, o motivo principal da metamorfose corporal são as relações sociais,<br />

religiosas ou políticas. Além disso, Fontanille (2004a) constata que, para os povos Tin<br />

<strong>de</strong> Nova Guiné, o corpo é uma “figura” mereológica:<br />

...diversas partes (os membros e os órgãos) são associadas para<br />

formar um todo fe<strong>de</strong>rativo on<strong>de</strong> as partes <strong>de</strong>vem conservar sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>; mas essa figura aparece <strong>de</strong> imediato como homólogo da


140<br />

representação do entorno natural, uma configuração em arquipélago,<br />

<strong>de</strong> tal modo que as relações entre as partes (os órgãos e os membros)<br />

são homólogas com as relações entre as ilhas e as águas que<br />

constituem o território <strong>de</strong>sse povo 2 . (2004a, p. 16).<br />

A corporalida<strong>de</strong> dos povos pré-letrados, conforme <strong>de</strong>nominação dada por Lux<br />

Vidal e Aracy Silva (1992), é um exemplo que serve como princípio para a semiótica<br />

do corpo, na qual “a forma e as transformações das figuras do corpo proporcionam<br />

uma representação discursiva das operações profundas do processo semiótico 3 ”<br />

(FONTANILLE, 2004a, p. 17). Nesses corpos, a conexão do envelope corporal é<br />

preservada pelas operações da <strong>de</strong>breagem, mantendo não apenas todo o corpo<br />

conectado, mas também a sua conexão com o mundo natural. São corpos que<br />

possibilitam uma leitura polissensorial, a partir da força <strong>de</strong> ligação entre eles e o grupo,<br />

como também com o entorno e o cosmos, que fazem <strong>de</strong>les um espaço <strong>de</strong><br />

semiotização durante toda a vida. São actantes competentes, são re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura das<br />

ocorrências do dia a dia. Um corpo cujas formas e transformações esclarecem, <strong>de</strong><br />

acordo com Fontanille (2004a, p. 17), o percurso “fenomenológico e „encarnado‟” da<br />

significação.<br />

O efeito coesivo do envelope corporal atribuído às pinturas, tatuagens,<br />

escarificações dos povos pré-letrados é percebido inclusive nos jovens. O rito <strong>de</strong><br />

passagem significa passar <strong>de</strong> um estado para outro; aprendizagem <strong>de</strong> novos hábitos;<br />

novos conhecimentos; novas obrigações e está relacionado, <strong>de</strong> acordo com Lévi-<br />

Strauss (1979), com a ecologia e com a estrutura social <strong>de</strong> cada sistema sócio-cultural.<br />

Os rituais <strong>de</strong> escarificação, <strong>de</strong> tatuagem e <strong>de</strong> pinturas corporais são os principais<br />

meios que esses povos usam para ensinar e induzir os indivíduos a se iniciarem nas<br />

novas tarefas que a socieda<strong>de</strong> lhes impõe, e, geralmente, é durante o período <strong>de</strong><br />

puberda<strong>de</strong> que eles são introduzidos.<br />

O rito <strong>de</strong> passagem na cultura Nuba indica escarificações para as meninas e<br />

2 Des parties (les membres el les organes) sont associées pour former un tout fédératif, où les parties<br />

doivent conserver leur i<strong>de</strong>ntité ; mais cette figure apparaît immédiatement comme l‟homologue <strong>de</strong> la<br />

représentation <strong>de</strong> l‟environnement naturel, une configuration en archipel, en ce sens que les rapports<br />

entre les parties (les organes et les membres) sont homologues <strong>de</strong>s rapports entre les îles et les eaux<br />

qui constituent le territoire <strong>de</strong> ce peuple.<br />

3 La forme et les transformations <strong>de</strong>s figures du corps fournissent une représentation discursive <strong>de</strong>s<br />

opérations profon<strong>de</strong>s du processus sémiotique.


cores para os homens. De certo modo, sem todos os rituais tradicionais apresentados<br />

nas culturas pré-letradas, po<strong>de</strong>-se dizer que nas socieda<strong>de</strong>s letradas a maquiagem<br />

também tem uma importância fundamental na fase <strong>de</strong> transição entre a infância, a<br />

adolescência e a ida<strong>de</strong> adulta, restrita ao sexo feminino. Apesar da <strong>de</strong>limitação da área<br />

para as inscrições efêmeras, estas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser um atrativo para o imaginário<br />

infantil tal qual um rito <strong>de</strong> passagem. As meninas, assim como Lispector, no texto em<br />

epígrafe, acreditam, cada vez mais, que as cores da maquiagem tem o sentido <strong>de</strong> um<br />

passaporte libertário para o mundo adulto.<br />

3.1 O CORPO ESTÉTICO, A CONSTRUÇÃO FIGURATIVA E O SEMISSIMBOLISMO<br />

DA PINTURA CORPORAL DOS NUBAS<br />

141<br />

O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais “humanos” dos<br />

homens o espetáculo <strong>de</strong> que participam sem perceber (MERLEAU-<br />

PONTY, 1980, p.120).<br />

O fascínio dos Nubas pela estética corporal está inserido em todos os<br />

momentos do seu cotidiano. De acordo com Riefenstahl e Faris, somente os novos e<br />

saudáveis consi<strong>de</strong>rados entre eles, pelos padrões locais, como fisicamente belos é que<br />

tinham a permissão <strong>de</strong> ficar <strong>de</strong>spidos. Dificilmente encontram-se homens ou mulheres<br />

gordos entre eles, uma vez que a obesida<strong>de</strong> é consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>sagradável. Os homens<br />

acima da faixa etária dos 30, que já não lutam, consequentemente não usam mais<br />

adornos, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> usar as pinturas corporais e não andam mais nus. Do mesmo<br />

modo, as mulheres <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> exibir o corpo <strong>de</strong>spido após a primeira gravi<strong>de</strong>z. Para<br />

eles, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embelezar um corpo que já não é mais consi<strong>de</strong>rado belo.<br />

Os Nubas se conformam com a <strong>de</strong>gradação corporal provocada pelo tempo e<br />

seguem para outras ativida<strong>de</strong>s nas quais o corpo não seja o centro das atenções. Eles<br />

têm um conhecimento extenso sobre o corpo humano e dão nomes específicos para<br />

cada músculo e para cada postura e atitu<strong>de</strong> física. Conforme revelam a fotógrafa e o<br />

antropólogo, o vocabulário dos Nubas em relação ao corpo humano é muito maior que<br />

o das socieda<strong>de</strong>s letradas, uma vez que eles têm um termo específico para cada<br />

postura, do ombro ao estômago. A forma <strong>de</strong> andar, a posição dos pés, o modo como o


calcanhar toca o chão, o volume do estômago, se os ombros são caídos, largos ou<br />

estreitos e assim por diante, tudo é minuciosamente observado, avaliado e <strong>de</strong>finido por<br />

eles. Esse fato revela a característica humana em buscar o sentido <strong>de</strong> estar no mundo.<br />

142<br />

Um indivíduo Nuba, para pertencer ao grupo, <strong>de</strong>ve manter o corpo belo e<br />

esbelto, pois essa é uma das características da hexis corporal Nuba. Além <strong>de</strong>ssa<br />

característica geral, há regras para ambos os sexos se apresentarem no grupo. Se,<br />

por um lado, o sentido da arte é estético, por outro, <strong>de</strong> acordo com Faris (1972), a<br />

<strong>de</strong>coração corporal segue regras sociais e também indica um status. As cores, os<br />

estilos, as formas dos cabelos e as escarificações servem para marcar a faixa etária, a<br />

hierarquia, a condição fisiológica e o estatuto ritual. As mulheres Nubas têm tratamento<br />

diferenciado em relação aos homens. Ambos po<strong>de</strong>m pintar o corpo, mas as mulheres,<br />

além das pinturas bem mais simples que as masculinas, passam pelo dolorido ritual<br />

das escarificações (Figs 2 e 13), que começam a ser realizadas por volta dos <strong>de</strong>z anos<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. São três fases <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong>ssas cicatrizes intencionais: a primeira por<br />

volta dos <strong>de</strong>z anos na parte frontal do tronco; a segunda após a primeira menstruação<br />

e a terceira, cujas escarificações são aplicadas nas costas, acontece após o<br />

nascimento dos filhos.<br />

Nas pinturas femininas não há contrastes cromáticos, somente usam a cor<br />

amarela ou vermelha sobre o corpo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do clã familiar paterno. As<br />

tonalida<strong>de</strong>s das duas cores são diferentes, pois cada clã tem um lugar próprio para<br />

buscar o pigmento. Se as cores são uniformes, as escarificações exploram os planos<br />

eidético e topológico, criando formas que, às vezes, se concentram em algumas áreas,<br />

e em outras, se espalham por todo o corpo e rosto, <strong>de</strong> acordo com a fase <strong>de</strong> vida <strong>de</strong><br />

cada mulher. A operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que preenche seus envelopes corporais com<br />

essas marcas <strong>de</strong>finitivas preserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão, resguardando a unida<strong>de</strong><br />

do corpo. As escarificações, em conjunto com a coloração terrosa, utilizada nas<br />

pinturas po<strong>de</strong>m ter o sentido associado ao seu processo dolorido e sangrento, uma<br />

vez que as mulheres Nuba reforçam no corpo as marcas que o tempo imprime<br />

naturalmente. Clei<strong>de</strong> Campelo (1996, p. 49) diz que “o corpo da mãe é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

gestação uma expansão do corpo do filho, relação textual que logo será ampliada com<br />

a aquisição <strong>de</strong> novos textos, como o corpo expandido da família”.


143<br />

Para os homens, há <strong>de</strong>terminados a<strong>de</strong>reços, como braceletes, cintos,<br />

penteados, além da luta <strong>de</strong> vara, que correspon<strong>de</strong> a algumas faixas etárias. O mesmo<br />

acontece com a <strong>de</strong>coração corporal, principalmente no que diz respeito à seleção<br />

cromática: o vermelho e o branco acinzentado são <strong>de</strong>stinados aos meninos acima <strong>de</strong> 8<br />

anos; a cor amarela é <strong>de</strong>stinada aos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> intermediária e a cor preta como fundo<br />

só po<strong>de</strong> ser usada a partir <strong>de</strong> dois anos após a entrada na ida<strong>de</strong> adulta. Vê-se,<br />

portanto, que a categoria cromática do plano da expressão correlaciona-se com o<br />

plano do conteúdo. Esse é um típico caso <strong>de</strong> como “a relação entre a expressão e<br />

conteúdo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser convencional ou imotivada” (BARROS, 2003, 89), para instituir<br />

uma nova perspectiva <strong>de</strong> visão. Desse modo, os Nubas, para exprimirem que<br />

pertencem à faixa etária das crianças, utilizam as cores vermelhas e brancas, em<br />

oposição às cores amarelas e pretas, reservadas aos adultos. No quadro 6 abaixo,<br />

está resumida a correspondência cromática das pinturas com o respectivo grau etário<br />

dos homens Nubas, como também os termos masculinos e femininos correspon<strong>de</strong>ntes<br />

às respectivas cores, conforme os dados fornecidos por Faris (1972):


Sexo do<br />

usuário<br />

Masculino vermelho e<br />

branco<br />

Masculino vermelho,<br />

Cor Ida<strong>de</strong> Grau Cor <strong>de</strong><br />

amarelo,<br />

branco<br />

Masculino vermelho,<br />

amarelo,<br />

branco e<br />

preto<br />

8-11/11-<br />

14/14-17<br />

Lōer<br />

17-20/20-23 Kadūndōr<br />

20-23/26-<br />

29/29-<br />

31/31-<br />

45/45-<br />

Feminino amarelo De acordo<br />

com o clã<br />

da família<br />

do pai<br />

Feminino Vermelho De acordo<br />

com o clã<br />

da família<br />

do pai<br />

Kadōnga<br />

fundo 4<br />

vermelho<br />

branco/cinza<br />

amarelo<br />

preto<br />

Termo<br />

144<br />

cōrda cōŗē<br />

cōrda cera<br />

cōrda calō<br />

cōrda cūņin<br />

wā wa ēcēɂēt<br />

wā wa wōŗē<br />

A oposição cromática, no plano da expressão, correlacionada à oposição etária,<br />

do plano do conteúdo, caracteriza uma semiótica semissimbólica, uma vez que as<br />

correlações parciais entre os dois planos da linguagem apresentam um conjunto <strong>de</strong><br />

microcódigos, conforme explica Greimas (2004, p.93), da mesma maneira como ocorre<br />

com o microcódigo gestual do sim vs. não, que correspon<strong>de</strong> à oposição verticalida<strong>de</strong><br />

vs. horizontalida<strong>de</strong>.<br />

O estudo tradicional do simbolismo é dominado por uma visão “lexical‟,<br />

em que uma figura da expressão é correlacionada a uma figura do<br />

conteúdo. Lévi-Strauss (em Le totémisme aujourd‟hui) foi um dos<br />

primeiros a opor a esta visão substancial uma visão relacional. Uma<br />

4 O azul também foi usado por um período, proveniente dos comerciantes árabes. O branco pálido é<br />

usado por ambos os sexos, porém, somente em rituais.


145<br />

análise aprofundada das linguagens simbólicas <strong>de</strong> diferentes culturas<br />

mostra que elas repousam amplamente – mesmo se permitem<br />

frequentemente uma leitura do tipo lexical – sobre sistemas<br />

semissimbólicos. Assim, a maior parte das culturas primitivas africanas<br />

se serve do contraste entre duas cores/cromático („vermelho‟)/ vs.<br />

/acromático („preto‟, „branco‟)/ para exprimir a oposição vida vs. morte.<br />

(GREIMAS, 1986) 5 .<br />

Se a categoria cromática correlaciona-se à faixa etária, as linhas e formas da<br />

categoria eidética são relacionadas com as coisas do mundo: animais e relevos, entre<br />

outros. Faris (1972, p. 50) relaciona alguns <strong>de</strong>sses grafismos representacionais Nuba:<br />

Figura 42: Representação linear. Fonte: FARIS, 1972, p.50.<br />

5 Tradução <strong>de</strong> Lucia Teixeira.<br />

Piton<br />

Cobra venenosa<br />

Montanha<br />

Seios Femininos<br />

Colar Shilluk<br />

Tamanduá<br />

Tartaruga<br />

pequena<br />

Chuva


146<br />

Essas linhas po<strong>de</strong>m aparecer em diversas posições do corpo, do rosto ou sobre<br />

o cabelo. Algumas formas representacionais, no entanto, <strong>de</strong>vem ser localizadas<br />

topologicamente no corpo ou no rosto, mas, mesmo com essas <strong>de</strong>terminações, o<br />

espaço para a imaginação está assegurado, uma vez que estilizações e variações são<br />

aceitas. Alguns <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m ser observados nas figuras abaixo:<br />

Pássaros mascarados<br />

Pássaro<br />

Mascarado<br />

Pássaro da<br />

floresta<br />

Antílope da<br />

Floresta<br />

Macaco Preto<br />

ou vermelho da<br />

floresta<br />

Veado<br />

pequeno da<br />

savana<br />

.Figura 43: Desenhos representacionais do rosto Fonte: FARIS, 1972, p. 85<br />

Vaca<br />

Abutre Antílope<br />

pequeno da<br />

floresta


Figura 44: Desenhos representacionais para os corpos.Fonte: FARIS, 1972, p.78<br />

147<br />

As normas atribuídas pelos Nubas ao uso das cores e das formas<br />

correspon<strong>de</strong>m à relação do sistema com o processo (lexicalizado), ou da dicotomia<br />

saussureana língua (virtual) com a fala (realizada) 6 . O uso das cores e das formas faz<br />

com que os Nubas fiquem completamente transfigurados, a tal ponto que Riefenstahl<br />

não podia reconhecê-los a cada mudança <strong>de</strong> pintura, o que normalmente acontecia<br />

duas vezes por dia 7 . Como actantes sujeitos encarnados competentes, esses artistas<br />

natos sabem e po<strong>de</strong>m facilmente trocar <strong>de</strong> estados figurativos distintos, fascinando e<br />

persuadindo esteticamente os enunciatários. Como o corpo é o princípio da<br />

actancialida<strong>de</strong> e da intencionalida<strong>de</strong>, conforme foi visto no primeiro capítulo, os Nubas<br />

fazem juz a essa premissa proposta por Fontanille (2004a, p. 124). Como actantes<br />

encarnados cumprem perfeitamente a função da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida pela<br />

intencionalida<strong>de</strong> que lhes é própria. No sistema semissimbólico essa intencionalida<strong>de</strong><br />

6 Vale observar que o semissimbolismo das pinturas dos Nubas caminha para um simbolismo, na<br />

medida que cristaliza a articulação entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, apontando, <strong>de</strong>sse<br />

modo, para um sentido global.<br />

7 Somente nos meses <strong>de</strong>votados ao trabalho nos campos é que o óleo, a pintura e os adornos não são<br />

feitos diariamente.<br />

Gato da Floresta<br />

Avestruz<br />

Chacal da<br />

montanha


po<strong>de</strong> ser dupla, no sentido <strong>de</strong> que se constrói uma linguagem segunda ao <strong>de</strong>sviar<br />

alguns traços da expressão para renovar ou confirmar certos significados. Isso permite<br />

às pinturas corporais Nuba ter um “discurso mais profundo e mais mítico” e também,<br />

por outro lado, mais verda<strong>de</strong>iro, uma vez que “a arbitrarieda<strong>de</strong> do signo está em parte<br />

abolida, já que o signo conquista alguma motivação” (GREIMAS e COURTÉS, 1986).<br />

148<br />

A oposição profunda entre o vermelho e o preto, da materialida<strong>de</strong> da pintura,<br />

correspon<strong>de</strong> à oposição do plano do conteúdo entre criança e adulto, que se a<strong>de</strong>qua<br />

ao primeiro nível, o fundamental, do percurso gerativo <strong>de</strong> sentido semiótico. Como<br />

actantes encarnados estéticos, os sujeitos Nubas se juntam ao objeto também<br />

estético: as formas e cores efêmeras que são projetadas sobre os seus corpos<br />

próprios. Desse modo, os indivíduos Nubas instauram o nível narrativo a partir da<br />

tomada <strong>de</strong> posição no mundo sócio/etário/cultural ao qual pertencem. Por meio da<br />

operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem que conserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope<br />

corporal, os discursos topológicos, eidéticos e cromáticos <strong>de</strong> uma materialida<strong>de</strong><br />

caracteristicamente fugaz são percebidos em ato, e, assim, os Nubas exercem a<br />

persuasão ou a vertigem em seus enunciatários.<br />

3.2 PLANO DA EXPRESSÃO.<br />

O que me fascinou mais que tudo foi a pintura sobre os rostos dos<br />

homens. Esses nativos tinham um incrível dom da imaginação e da<br />

arte. Eles logo perceberam como eu estava impressionada com suas<br />

qualida<strong>de</strong>s artísticas e, a partir <strong>de</strong> então, competiam, para minha<br />

surpresa e admiração, elaborando novas máscaras diárias. Eu consegui<br />

conhecer muitos <strong>de</strong>les pelo nome com o passar do tempo, e alguns<br />

tinham um talento fora do comum. Eu me recordo particularmente <strong>de</strong><br />

Yunis, <strong>de</strong> Kaduma, <strong>de</strong> El Kallas, <strong>de</strong> Aliman e <strong>de</strong> Molle. Às vezes<br />

figurativas, mas frequentemente, bastante abstratas e servindo para fins<br />

estéticos ao invés <strong>de</strong> <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>s rituais, seus <strong>de</strong>senhos indicam um<br />

comando <strong>de</strong> todos os cânones da arte. Se eles se pintavam<br />

simetricamente ou assimetricamente, com ornamentos, linhas ou<br />

figuras estilizadas, o efeito era sempre harmonioso. O modo como<br />

usam a forma e a cor nasceu da gran<strong>de</strong> fonte da arte. Meninas e<br />

homens, igualmente, fizeram um genuíno culto <strong>de</strong> seus corpos. Fiquei<br />

impressionada pela sua extrema limpeza. Antes <strong>de</strong> pintar o rosto e o<br />

corpo, os Nubas do su<strong>de</strong>ste se lavam e passam óleo. Sem o óleo, que<br />

<strong>de</strong>ve ser completamente absorvido pela pele, a pintura seria impossível.<br />

Para remover a pintura eles usam uma argila úmida que é <strong>de</strong>ixada no


149<br />

corpo por aproximadamente meia hora. Isso absorve os pigmentos e o<br />

óleo que <strong>de</strong>pois são lavados 8 . (RIEFENSTAHL, 1976, p. 212).<br />

Nestas palavras, Riefenstahl <strong>de</strong>ixa clara a materialida<strong>de</strong> da pintura corporal dos<br />

Nubas, como também a utilização das outras categorias plásticas do plano da<br />

expressão semiótica: a cromática (categoria constituinte), a eidética (categoria<br />

constituida) e a topológica (categoria não constitucional). A semiótica plástica é<br />

apropriada para analisar os sistemas semissimbólicos constituídos por manifestações<br />

visuais. Durante a análise do plano da expressão, faz-se necessário <strong>de</strong>screver os seus<br />

componentes, verificando a organização hierárquica das categorias que po<strong>de</strong>m ser<br />

combinadas <strong>de</strong> variadas maneiras, o que <strong>de</strong>terminará os diversos efeitos plásticos.<br />

Conforme Greimas e Courtés(1986), as categorias constitucionais possibilitam “a<br />

apreensão <strong>de</strong> uma configuração plástica”, em oposição às categorias não<br />

constitucionais, que “regem a disposição das configurações já constituídas no<br />

espaço”.<br />

O discurso plástico dos Nubas, conforme esclarece Faris, po<strong>de</strong> ser ou não<br />

representacional, mas as escolhas dos traços e das formas sempre é feita <strong>de</strong> acordo<br />

com a morfologia do corpo.<br />

A arte pessoal dos Nubas do su<strong>de</strong>ste não é uma arte semântica no<br />

sentido <strong>de</strong> que todo projeto tem algum tipo <strong>de</strong> significado simbólico<br />

profundo. O elemento mais significativo é o meio em que ele é<br />

comumente produzido - o corpo humano. Esta exposição culturalmente<br />

apropriada po<strong>de</strong> ser, talvez, como Lévi-Strauss sugeriu, a expressão<br />

culturológica essencial do homem em oposição ao indivíduo<br />

biológico 9 .(FARIS, 1972, p. 50).<br />

8 What fascinated me more than all else was the painting on the men‟s faces. These natives had<br />

incredible gifts of imagination and artistry. They soon noticed how impressed I was by their handiwork,<br />

and from then on competed for my won<strong>de</strong>r and admiration by <strong>de</strong>vising new masks every day. I got to<br />

know many of them by name as time went by, and some were outstandingly talented. I particularly<br />

remember Yunis, Kaduma, El Kallas, Alimam and Molle. Sometimes figurative but often quite abstract<br />

and serving aesthetic rather than ritual purposes, their drawings displayed a command of all the canons<br />

of art. Whether they painted themselves symmetrically or asymmetrically, and whether with ornaments,<br />

lines or stylized figures, the effect was always harmonious. Their use of form and colour sprang from the<br />

very fount of art. Girls and men alike, they ma<strong>de</strong> a genuine cult of their bodies.<br />

I was impressed by their extreme cleanliness. Before painting the face and body, the South-East<br />

Nuba wash and oil themselves. Without oil, which must be thoroughly absorbed by the skin, painting<br />

would be impossible. For removing paint they use a moist clay which is left on the body for about half an<br />

hour. This absorbs the pigments and oil and is then washed off.<br />

9 Southeastern Nuba personal art is not a semantic art in the sense that all <strong>de</strong>sign has some type of<br />

<strong>de</strong>eper symbolic meaning. The most meaningful element is the medium on which it is commonly<br />

produced - the human body. This culturally proper exposure can be, perhaps, as Lévi-Strauss has


150<br />

De todo modo, ao pintarem o corpo e o rosto, os Nubas mantêm a conexão<br />

total do corpo, como explicaram Deleuze e Guatari (1996, p. 43). Contudo, sobre o<br />

rosto há uma maior concentração <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, justamente na área nobre do corpo<br />

humano. Talvez seja exatamente para não valorizar o rosto, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os<br />

filósofos. Com a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação individual e do estado emocional, eles<br />

direcionam o olhar para o conjunto do corpo, ressaltando a “expressão culturológica<br />

essencial”, como se referiu Leví-Strauss (1981).<br />

Percebe-se na pintura dos Nubas os contrastes e as oposições em todas as<br />

categorias plásticas: às vezes eles opõem a pintura simétrica do corpo à pintura<br />

assimétrica sobre o rosto; traços curvilíneos versus retilíneos; direita versus esquerda.<br />

Faris <strong>de</strong>screve cinco tipos <strong>de</strong> projetos topológicos básicos da pintura corporal Nuba,<br />

que po<strong>de</strong>m ser representacionais ou não representacionais:<br />

Ţōrē: projetos orientados sobre uma divisão vertical por meio das cores<br />

<strong>de</strong> simetria bilateral.<br />

Nyūlaņ: projetos que irradiam a partir <strong>de</strong> um único ponto ao longo do<br />

eixo <strong>de</strong> simetria bilateral.<br />

Pacōrē: projetos que divi<strong>de</strong>m o corpo (ou rosto), em paralelo a muitas<br />

seções: vertical, horizontal ou diagonal.<br />

Tōmā: projetos uniformemente distribuídos, carimbados ou manchados.<br />

Kōbera: sem distribuição uniforme dos diferentes projetos individuais,<br />

nomeadamente painéis <strong>de</strong> projeto 10 . (1976, p. 74)<br />

Seja como for o projeto topológico, os Nubas não per<strong>de</strong>m o sentido estético nas<br />

suas pinturas. De acordo com Faris, os projetos mais comuns são os não-<br />

representacionais, nos quais eles po<strong>de</strong>m usar elementos e traços das pinturas<br />

representacionais, porém essa mistura em um único conjunto faz com que se tornem<br />

mais abstratos.<br />

suggested, the essential expression of culturological man as opposed to the biological individual.<br />

10 Ţōrē: <strong>de</strong>signs orientated about a vertical division along axix of bilateral symmetry.<br />

Nyūlaņ:<strong>de</strong>signs which radiate from a single point along the axis of bilateral symmetry.<br />

Pacōrē: <strong>de</strong>signs which divi<strong>de</strong> body (or face) in to many parallel sections, vertically, horizontally, or<br />

diagonally.<br />

Tōmā: uniformly distributed stamped or spotted <strong>de</strong>signs.<br />

Kōbera: non- uniform distribution of different individual <strong>de</strong>signs, particularly panels of <strong>de</strong>sign.


151<br />

Com as pinturas representacionais dos Nubas po<strong>de</strong>-se perceber que um mínimo<br />

<strong>de</strong> traços representa um leopardo (Figs. 47 e 48), uma montanha (Fig. 49), um pássaro<br />

(Fig. 45 e 46), entre outros. Não existe iconicida<strong>de</strong> na representação, mas apenas um<br />

traço que retém a qualida<strong>de</strong> mais fundamental e mais profunda <strong>de</strong> cada representação.<br />

As pinturas corporais Nuba po<strong>de</strong>m ser comparadas à obra <strong>de</strong> Picasso, As<br />

metamorfoses <strong>de</strong> um touro, na qual o pintor vai “apagando os recursos <strong>de</strong><br />

referencialização do <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong>snudando-o até chegar a sua estrutura mínima”, como<br />

explica Lúcia Teixeira (2008b, p. 301). Os Nubas atingem naturalmente a “rarefação<br />

figurativa”, tornando, <strong>de</strong>sse modo, as suas representações, aos nossos olhos,<br />

verda<strong>de</strong>iras abstrações.<br />

Teixeira, no mesmo artigo, refere-se a uma conferência proferida por Italo<br />

Calvino, na qual ressalta a “nossa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> golpear o contínuo das sensações<br />

confusas, atribuindo-lhes a forma <strong>de</strong> signos inteligíveis”. Diante <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações,<br />

po<strong>de</strong>-se dizer que os Nubas, em suas pinturas corporais, <strong>de</strong>safiam a si próprios e,<br />

consequentemente, seus observadores, a “enfrentar sentidos inesperados” e também<br />

nos ensinam a compreen<strong>de</strong>r a produção do sentido, que vai do mais concreto e<br />

complexo ao mais simples e abstrato (TEIXEIRA, 2008b).<br />

Tanto nos recursos <strong>de</strong> expressão que imprimem direcionalida<strong>de</strong> às<br />

linhas, volume aos corpos e movimento ao conjunto, quanto no plano<br />

mais abstrato do conteúdo, que opera com o <strong>de</strong>spojamento das figuras<br />

para falar da essencialida<strong>de</strong> da representação, os procedimentos<br />

discursivos instalam um sujeito da enunciação cuja caligrafia rasura a<br />

representação convencional, anunciando um tempo <strong>de</strong> novos<br />

procedimentos estéticos. (TEIXEIRA, 2008b, p. 302)


Figura 45: Pintura simétrica e representativa – variação<br />

da cipalin – máscara <strong>de</strong> pássaro. Fonte: FARIS, 1972,<br />

p.103.<br />

Figura 46: Pintura simétrica e representativa – variação<br />

da cipalin – máscara <strong>de</strong> pássaro. Fonte: RIEFENSTAHL,<br />

1976, p. 191.<br />

152<br />

As figuras 45 e 46 apresentam maquiagens simétricas e representativas. Elas<br />

representam um pássaro, vale ressaltar que, na tradição dos Nubas, a representação<br />

<strong>de</strong> um animal, não faz com que eles se tornem ou adquiram o po<strong>de</strong>r do animal<br />

representado, mesmo porque, em uma mesma configuração, eles po<strong>de</strong>m representar<br />

vários animais. Como os Nubas valorizam a beleza corporal, eles procuram explorar e<br />

reforçar essa beleza por meio da imitação da padronagem das peles, das formas dos<br />

corpos dos animais nas pinturas corporais, produzindo por meio da relação dos planos<br />

eidéticos e topológicos um efeito puramente estético.<br />

A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal é assegurada pelas inscrições<br />

coloridas e efêmeras. Se o corpo se mostra evi<strong>de</strong>nciado nestas duas pinturas, o rosto,<br />

o que há <strong>de</strong> mais humano, está virtualizado.<br />

O rosto é humano, é somente em referência a um sentido profundo da<br />

humanida<strong>de</strong> que se falará do rosto por um animal, uma coisa, uma<br />

paisagem. O rosto está no alto do corpo, à frente, ele é a parte nobre do<br />

indivíduo; sobretudo, ele é o lugar do olhar. Lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se vê e <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong>, às vezes, é visto, por essa razão, é um lugar privilegiado das<br />

funções sociais - comunicativas, intersubjetivas, expressivas, linguagem


153<br />

- mas também, suporte visível da função mais ontológica, o rosto é do<br />

homem 11 . (AUMONT, 1992, p. 14)<br />

A cor <strong>de</strong> fundo da maquiagem à esquerda é amarela, da direita é branca. Isso<br />

significa que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> faixas etárias diferentes e pertencerem respectivamente ao<br />

grau <strong>de</strong> Lōer e Kadūndōr, com o tipo cōrda calō (amarelo) e cōrda cera (branco). Por<br />

ser representacional do tipo 2 12 , a pintura <strong>de</strong>ve ser simétrica, para que o formato possa<br />

ser i<strong>de</strong>ntificado, contudo, variações po<strong>de</strong>m ser realizadas, como nessas duas<br />

maquiagens. Os padrões originais po<strong>de</strong>m ser verificados na figura 43. Os dois<br />

exemplos apresentam dois triângulos equiláteros lado a lado, preenchidos pela cor<br />

preta. O primeiro recortou os triângulos verticalmente, o segundo, o dividiu em quatro<br />

partes. O arranjo <strong>de</strong> pluma <strong>de</strong> avestruz no cabelo completa a figura do exemplo da<br />

esquerda. Percebe-se que as formas das pinturas atualizaram a enunciação do ritual<br />

tradicional, garantido, <strong>de</strong>sse modo, a sua manutenção e um enunciado vivo e inovado.<br />

11 Le visage est humain, c‟est seulement en référence à un sens profond <strong>de</strong> l‟humanité qu‟on parlera <strong>de</strong><br />

visage pour un animal, une chose, un paysage ; le visage est au haut du corps, `l‟avant, il est la partie<br />

noble <strong>de</strong> l‟individu ; surtout, il est le lieu du regard. Lieu d‟où l‟on voit et d‟où l‟on est vu à la fois, et pour<br />

cette raison lieu privilégié <strong>de</strong> fonctions sociales – communicatives, intersubjectives, expressives,<br />

langagières – mais aussi, support visible <strong>de</strong> la fonction la plus ontologique, le visage est <strong>de</strong> l‟homme.<br />

12 Há três tipos <strong>de</strong> representação: tipo1, tipo2, tipo3 que são especificadas nos exemplos.


Figura 47: Rosto com pintura facial semissimétrica e não-representativa; corpo simétrico, representacional – tūrkā tera<br />

– Leopardo. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p. 90.<br />

Figura 48: Rosto com pintura assimétrica e representacional - tūrkā tera – Leopardo. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p.<br />

189.<br />

154<br />

Nestes dois exemplos (Figs. 47 e 48), o corpo representa o leopardo. São duas<br />

pinturas corporais do tipo Tōmā, com manchas distribuídas uniformemente por todo o<br />

corpo. Conforme esclarece Faris (1972, p. 91), os Nubas procuram respeitar a<br />

morfologia dos animais representados e reproduzem os seus <strong>de</strong>talhes mais<br />

característicos na parte do corpo humano que correspon<strong>de</strong> à localização daquela<br />

característica. Nestes exemplos, são representadas as manchas sobre o corpo do<br />

leopardo. A cor <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>termina a ida<strong>de</strong>, e não tem relação com o animal: o da<br />

esquerda, com pintura <strong>de</strong> fundo branca, é do grau Lōer (14 a17 anos); o da direita,<br />

com pintura <strong>de</strong> fundo amarela, é um Kadūndōr (17 a 23 anos). Os corpos são<br />

uniformes e representativos, entretanto, a maquiagem do rosto da figura 47 não é<br />

representacional e é simétrica; a da figura 48 é representacional do tipo 1, totalmente<br />

assimétrica.<br />

A pintura do rosto do Lōer, à esquerda, é feita com linhas finas sobre a testa,<br />

no topo há uma sequência <strong>de</strong> formas triangulares, na parte mais baixa, losangos


preenchidos com pequenos círculos. Um losango maior, também preenchido pelos<br />

pequenos círculos, divi<strong>de</strong> o centro da testa e aponta para a divisão do nariz. Nos dois<br />

lados <strong>de</strong>sse losango central aparecem dois losangos irregulares, preenchidos por dois<br />

grafismos diferentes, é esse o único <strong>de</strong>talhe assimétrico <strong>de</strong>ssa pintura.<br />

155<br />

As linhas duplas que divi<strong>de</strong>m o nariz seguem contornando e dividindo o rosto<br />

horizontalmente por cima das sobrancelhas, atingem a área do osso malar ou<br />

zigomático e ascen<strong>de</strong>m, fechando o contorno das laterais da testa. A área dos olhos e<br />

as laterais do nariz são completamente preenchidas por pequenos círculos, como os<br />

utilizados nos losangos da testa. Esses pequenos círculos também aparecem entre as<br />

linhas que contornam a face. Na área da boca e do queixo é <strong>de</strong>senhado um triângulo<br />

invertido, completamente preenchido pela cor preta que ressalta o sorriso.<br />

O rosto é divido em três partes horizontais (área da testa, dos olhos e da boca),<br />

o excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes lineares da testa se opõe à textura lisa da área da boca e essas<br />

duas áreas circundam a área dos olhos. A outra pintura, da figura da direita, é dividida<br />

em duas partes verticais, tem menos <strong>de</strong>talhes, mas é completamente assimétrica. Do<br />

lado esquerdo do rosto aparece uma estilização <strong>de</strong> um avestruz, representação<br />

kūngūrū ka lelr tipo 1, que, segundo Faris (1972, p. 92), é a forma apenas codificada do<br />

animal, relevante apenas para a i<strong>de</strong>ntificação, e po<strong>de</strong> ser aplicada em qualquer parte<br />

do corpo. É diferente do tipo 3, como o do leopardo, em que as características da<br />

superfície da pele do animal <strong>de</strong>vem ser aplicadas sobre a parte do corpo humano que<br />

corresponda à do animal representado. Do lado direito do rosto, um pouco escondido<br />

atrás da vara (arma utilizada nas lutas), percebe-se que apenas o olho é contornado e,<br />

na altura do osso malar, aparecem três linhas horizontais e paralelas.<br />

Nota-se novamente o equilíbrio e a harmonia das duas pinturas, uma com mais<br />

<strong>de</strong>talhes e a outra com uma composição mais simples, que conservam a conexão do<br />

envelope corporal (corpo e cabeça) e a ligação com a natureza ao utilizar as figuras do<br />

mundo natural. Os Nubas conseguem uma total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação e criativida<strong>de</strong>,<br />

mesmo regidos pelas regras impostas para as pinturas, para, além <strong>de</strong> atualizar as<br />

enunciações da tradição, criar efeitos estéticos a partir das relações entre os planos<br />

eidéticos, topológicos e a estratégia enunciativa da <strong>de</strong>breagem, que conserva a<br />

conexão corporal.


Esse Nuba (Fig. 49) é do grau<br />

Kadūndōr (17 a 23 anos), para o qual o uso<br />

do pigmento amarelo como fundo é<br />

permitido. O <strong>de</strong>senho sobre o seu rosto é<br />

bem simples, simétrico e harmonioso. A<br />

composição é não representacional, mas<br />

mistura a representação linear da montanha<br />

sobre a testa com o <strong>de</strong>senho dos olhos daņ<br />

daka awlad hēmed, que representa a vaca.<br />

Vale lembrar que isso não significa que ele<br />

seja ou se sinta como o animal<br />

representado, mas é puramente um efeito<br />

estético. Os Nubas tentam explicar o mundo<br />

com um texto, em forma <strong>de</strong> pintura corporal,<br />

predominante temático: a beleza. No nível<br />

narrativo a junção dos Nubas com a beleza<br />

estética que é recoberta no nível discursivo<br />

com algumas figuras do mundo natural:<br />

leopardo, pássaros, montanha, avestruz<br />

entre outros.<br />

Faris <strong>de</strong>screve com minúcia a leitura<br />

que os Nubas fizeram do mundo natural,<br />

tornado significante por meio da i<strong>de</strong>ntificação das suas figuras como objetos, que<br />

foram i<strong>de</strong>ntificados, classificados e relacionados entre si. O antropólogo afirma que a<br />

arte dos Nubas não é totalmente semântica, pois nem todas as pinturas têm algum tipo<br />

<strong>de</strong> significado simbólico profundo. Contudo, po<strong>de</strong>-se dizer que as que são<br />

representacionais não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser uma leitura <strong>de</strong> natureza semântica, como explica<br />

Greimas, “que serve <strong>de</strong> „código‟ <strong>de</strong> reconhecimento que torna o mundo inteligível e<br />

manuseável” (2004, p.79) tanto para os próprios Nubas como para nós.<br />

156<br />

Figura 49: Rosto simétrico não representacional -<br />

Montanha. Fonte: RIEFENSTAHL, 1976, p. 109.<br />

...sendo cada cultura dotada <strong>de</strong> uma „visão <strong>de</strong> mundo‟ que lhe é própria,<br />

ela impõe por isso mesmo condições variáveis ao reconhecimento dos<br />

objetos e, consequentemente, à i<strong>de</strong>ntificação das figuras visuais como


157<br />

algo que „representa‟ os objetos do mundo, contentando-se<br />

frequentemente com esquematismos vagos, mas exigindo, por vezes,<br />

reprodução minuciosa dos <strong>de</strong>talhes „verídicos‟. (GREIMAS, 2004, p.80).<br />

Os “traços heterogêneos que constituem a pintura corporal representacional<br />

dos Nubas do tipo 1 reproduzem a forma apenas para codificar e, assim, serem<br />

passíveis <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação, têm uma figurativida<strong>de</strong> normal, e muitos po<strong>de</strong>m ser<br />

comparados com <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> uma criança, como o avestruz no rosto da Fig. 48 e<br />

das montanhas da figura 49. Muitos <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m ser i<strong>de</strong>ntificados<br />

inclusive por pessoas <strong>de</strong> outras culturas. Contudo, em relação às representações do<br />

tipo 2 (Fig. 45 e 46), que utilizam a forma e a superfície da pele do animal<br />

representado, e do tipo 3, que utilizam apenas as características da superfície da pele<br />

dos animais representados pelas pinturas (corpo das Figs. 47 e 48), apresentam<br />

graus variáveis da figurativida<strong>de</strong>.<br />

Assim, a figurativida<strong>de</strong> não é uma simples ornamentação das coisas,<br />

ela é esta tela do parecer cuja virtu<strong>de</strong> consiste em entreabrir, em <strong>de</strong>ixar<br />

entrever, graças ou por causa <strong>de</strong> sua imperfeição, como que uma<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> além (do) sentido. Os humores do sujeito reencontram,<br />

então, a imanência do sensível. (GREIMAS, 2002, p. 74).<br />

Para os Nubas, tais representações são facilmente i<strong>de</strong>ntificáveis, <strong>de</strong> natureza<br />

icônica, <strong>de</strong> acordo com Faris (1992, p.93). Porém, para as pessoas <strong>de</strong> culturas<br />

diferentes, essas representações são simples e abstratas, como o exemplo da<br />

montanha (Fig. 49), que, se comparado aos exemplos dos capítulos anteriores, as<br />

montanhas <strong>de</strong> Larraz e as colinas <strong>de</strong> Gair (Figs. 3 e 35), é menos icônico que estes.<br />

As pinturas dos Nubas provocam nos observadores <strong>de</strong> outra cultura uma<br />

tensão, uma surpresa, parecida com o estranhamento que os Punks (Fig. 10)<br />

promovem nos outros sujeitos encarnados <strong>de</strong> hexei corporais diferentes. Há, portanto,<br />

entre os Nubas e os habitantes <strong>de</strong> outras culturas uma tensão afetiva, numa correlação<br />

divergente cujo esquema é ascen<strong>de</strong>nte, como <strong>de</strong>monstrado no esquema tensivo 8 (p.<br />

79). Sem dúvida que o exotismo das pinturas encanta <strong>de</strong> todo modo e procura-se<br />

compreendê-las.<br />

Os Nubas, regidos pelo sentido estético, mantêm viva a tradição dos enunciados<br />

efêmeros das pinturas corporais pessoais a partir <strong>de</strong> uma enunciação tradicional. Eles<br />

são, <strong>de</strong>sse modo, atores semióticos com força <strong>de</strong> transformação e forma i<strong>de</strong>ntificável.


Como sujeitos actantes encarnados transformam o envelope corporal para reafirmar<br />

um ritual e se manterem conectados com a natureza. Os sujeitos actantes encarnados<br />

contemporâneos per<strong>de</strong>ram essa conexão com a natureza e fazem dos seus corpos<br />

projetos enunciativos culturais e, <strong>de</strong> acordo com Deleuze, restritos ao rosto. Deleuze e<br />

Guattari (1996) perguntam o que fazer para reiventar o corpo contemporâneo como<br />

multiplicida<strong>de</strong> heterogênea e polivalente.<br />

Seria, então, preciso levar o rosto a um<br />

“<strong>de</strong>sfazimento”, “encontrar ou fazer surgir a<br />

cabeça sob o rosto” (Deleuze, 2007, p. 28)<br />

e <strong>de</strong>scobrir um “corpo sem órgãos”, em que<br />

seria necessária a arte, com todos os seus<br />

recursos, como instrumento para liberar no<br />

corpo todos os “<strong>de</strong>vires” reais. Apenas a<br />

arte provocaria a junção <strong>de</strong>sses corpos<br />

com a natureza, liberando, <strong>de</strong>sse modo, o<br />

sentido social dos envelopes corporais na<br />

contemporaneida<strong>de</strong> para criar novos<br />

efeitos <strong>de</strong> sentido. Assim, passo a verificar<br />

a construção <strong>de</strong> sentido nas pinturas<br />

corporais contemporâneas <strong>de</strong> Tracy Craig.<br />

Procurei trabalhos que remetessem <strong>de</strong><br />

algum modo ao plano <strong>de</strong> expressão das<br />

pinturas dos Nubas.<br />

A figura 50 faz parte <strong>de</strong> uma<br />

campanha publicitária <strong>de</strong> preservativos cuja<br />

pintura corporal foi realizada por Craig<br />

Tracy. Essa campanha foi publicada em<br />

página inteira das revistas americanas<br />

Cosmopolitan, Shape and muscle e<br />

Fitness. O rosto da mo<strong>de</strong>lo está maquiado<br />

harmonicamente com cores quentes do<br />

158<br />

Figura 50: LifeStyles. Leopardo.Fonte: TRACY,<br />

2006.


mesmo grupo <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s da cor amarela aplicada sobre o corpo, o que garante a<br />

preservação da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal da mo<strong>de</strong>lo. Sobre o<br />

corpo foi pintado um fundo amarelo, que remete à tonalida<strong>de</strong> dos pelos <strong>de</strong> um<br />

leopardo. Sobre esse fundo foram distribuídas uniformemente diversos tamanhos e<br />

tipos <strong>de</strong> manchas. As manchas maiores reproduzem o formato <strong>de</strong> roseta com o centro<br />

“vazio”, e se espalham pela parte central do corpo; as menores, próximas ao pescoço e<br />

às mãos, mantêm a forma irregular, mas são completamente preenchidas pela cor<br />

preta, correspon<strong>de</strong>nte às do animal <strong>de</strong> referência. Na categoria topológica há uma<br />

oposição central vs periférico na distribuição das formas das manchas maiores vs<br />

menores. Tal oposição colabora com o efeito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o animal selvagem,<br />

além <strong>de</strong> aumentar o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> do trabalho do pintor. Para os leigos, a<br />

representação do leopardo encontrado nos corpos Nuba po<strong>de</strong> gerar dúvidas no<br />

reconhecimento por causa das cores <strong>de</strong> fundo, que têm o significado da faixa etária e<br />

não remetem diretamente à pelagem do animal, o que é agravado também pelo<br />

formato mais simples e pela distribuição uniforme das manchas pintadas. Isso não<br />

acontece quando observamos a pintura <strong>de</strong> Tracy, que por meio das relações entre as<br />

categorias cromáticas, topológicas e eidéticas e o alto nível <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> produz o<br />

sentido <strong>de</strong> iconicida<strong>de</strong> e verossimilhança em relação com o Leopardo. Acredita-se que<br />

qualquer pessoa que <strong>de</strong> algum modo conheça um leopardo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da<br />

cultura, po<strong>de</strong>ria reconhecê-lo na obra do pintor contemporâneo, <strong>de</strong>vido à minúcia <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>talhes do plano da expressão. Vale ressaltar que na campanha publicitária para a<br />

qual foi feita essa pintura, a mo<strong>de</strong>lo está em um ambiente arborizado, do lado direito<br />

da figura da mulher/leopardo está escrita a frase em letras brancas “Release your inner<br />

beast” (libere a sua fera interior). Esse elemento verbal revela o sentido da mulher<br />

estar com seu corpo pintado como a pelagem <strong>de</strong> um felino 13 e a sugestão do sexo<br />

selvagem protegido.<br />

159<br />

Há, portanto, uma distorção semiótica, provocada pela práxis enunciativa <strong>de</strong>ssa<br />

pintura corporal, que promove o movimento do observador diante <strong>de</strong>sse corpo pintado,<br />

ou seja, a pintura emerge enquanto o envelope corporal humano entra em <strong>de</strong>clínio.<br />

13 Não pretendo <strong>de</strong>talhar as relações dos textos verbais, uma vez que o foco da pesquisa é o corpo<br />

pintado e, neste caso, interessa-me o sentido figurativo da pintura.


160<br />

Com uma flutuação semiótica em Speed, título da obra a ser analisada (Fig. 51),<br />

Tracy faz uso da aparente simplicida<strong>de</strong>, para torná-la mais atraente com uma<br />

composição harmoniosa. Velocida<strong>de</strong> vs. inércia po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada a oposição<br />

fundamental <strong>de</strong>sse trabalho, que, por meio <strong>de</strong> traços visuais heterogêneos, é oferecido<br />

aos nossos olhos como uma imagem clara, simples e paradoxal.<br />

Um felino ocupa a posição central da imagem e é cercado pela imensidão<br />

branca. O artista não economiza recursos para a representação icônica do felino, que,<br />

a princípio, po<strong>de</strong>ria ser qualquer felino pintado: um leopardo, uma onça, uma pantera<br />

ou um guepardo. Para um exímio conhecedor <strong>de</strong> animais bastam os dois <strong>de</strong>talhes da<br />

imagem que reproduzem fielmente as manchas pretas, arredondadas e/ou ovaladas,<br />

distribuídas pelo corpo do animal, e o risco preto marcante entre os olhos e a boca<br />

como uma lágrima preta, para saber que se trata do felino mais veloz: o guepardo. Se<br />

não bastasse a riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, o pintor lança uma pista ao intitular a obra como<br />

speed.<br />

Figura 51: Speed. Fonte: TRACY, 2006.<br />

A mo<strong>de</strong>lo Cara se encontra <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> bruços, com a cabeça direcionada para a<br />

direita e repousada entre os braços cruzados. Tanto a pele quanto os cabelos estão<br />

completamente brancos, na mesma tonalida<strong>de</strong> do fundo e do chão. No centro <strong>de</strong>sse<br />

fundo branco, rente às costas da mo<strong>de</strong>lo, percebe-se o ícone da tecla play,<br />

semelhante à encontrada em aparelhos eletrônicos <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> sons e imagens.


161<br />

A lateral do corpo <strong>de</strong> Cara é a tela/suporte para a pintura do guepardo, que<br />

corre para o lado esquerdo, ou seja, contrário à posição corporal da mo<strong>de</strong>lo. A<br />

sugestão do movimento e da velocida<strong>de</strong> do felino é dada pela substituição das patas<br />

por rastros <strong>de</strong> tinta esmaecida, que também aparecem por trás da cauda.<br />

A oposição cromática amarelo vs branco correspon<strong>de</strong> à oposição semântica<br />

fundamental velocida<strong>de</strong> vs inércia, do mesmo modo que o felino em plena corrida se<br />

opõe ao corpo <strong>de</strong>itado da mo<strong>de</strong>lo. A tecla Play, no mesmo plano cromático da mo<strong>de</strong>lo<br />

cria um efeito <strong>de</strong> jogo no qual se espera que alguém o acione para que a moça<br />

comece a se movimentar. A natureza <strong>de</strong>sperta não espera que o ser humano a<br />

acompanhe...<br />

Tracy, a partir da práxis enunciativa da pintura, faz com que nossos olhos<br />

flutuem entre o envelope corporal branco potencializado <strong>de</strong> Cara e a figura realizada<br />

do guepardo. O semissimbolismo <strong>de</strong>ssa pintura, além <strong>de</strong> confirmar as correlações<br />

entre categorias do plano da expressão e do conteúdo, aclara “os mecanismos<br />

reveladores da transfiguração das sensações em manifestações sígnicas” (TEIXEIRA,<br />

1998a, p. 49). Também é revelador para a verificação da diferença <strong>de</strong> graus <strong>de</strong><br />

figurativida<strong>de</strong> entre as pinturas corporais dos Nubas e das pinturas contemporâneas.


Figura 52: Sister and brother. Fonte: TRACY, 2006.<br />

162<br />

Sister and brother (Fig. 52) foi realizada em março 2005 e tem uma dupla<br />

execução, por Craig Tracy e por Carolyn Roper, uma colaboração mútua na qual um<br />

pintou o outro. O trabalho i<strong>de</strong>alizado por Tracy tem uma prepon<strong>de</strong>rância do contraste<br />

acromático (preto) vs cinza metálico, com apenas um toque <strong>de</strong> vermelho no centro da<br />

parte mais alta do peito, o que cria o efeito <strong>de</strong> uma armadura, realçando a<br />

materialida<strong>de</strong> metálica da cobertura. As oposições cromáticas e eidéticas, assim como<br />

os arabescos, remetem às pinturas corporais dos Nubas.


163<br />

A pintura do rosto <strong>de</strong> Roper propõe uma assimetria na qual a face é dividida na<br />

vertical. O lado esquerdo é subdividido em duas partes preenchidas com a cor cinza<br />

metálica: na testa aparece um triângulo e na parte externa do rosto, da sobrancelha até<br />

a meta<strong>de</strong> do queixo, predomina a forma arredondada, e na parte interna, que<br />

compreen<strong>de</strong> o nariz e a boca, é retilíneo. O lado direito do rosto tem apenas duas<br />

pequenas áreas <strong>de</strong> contraste: o lábio inferior e a palpébra superior, ambos pintados <strong>de</strong><br />

cinza metálico. O pigmento preto circunda essas partes claras, dos dois lados do rosto,<br />

como também toda a cabeça e conectando-a ao corpo.<br />

Tanto nos braços quanto no tronco da mo<strong>de</strong>lo, a pintura segue a mesma<br />

estrutura do rosto, a parte externa é preta e a interna cinza metálica. A tinta preta, no<br />

tronco da moça, emoldura a forma cinza métalica, uma espécie <strong>de</strong> armadura medieval,<br />

com curvas que acompanham o formato do corpo feminino. No centro aparecem<br />

arabescos curvilíneos, mo<strong>de</strong>lados com luzes que proporcionam um aspecto <strong>de</strong> alto<br />

relevo e criam um efeito <strong>de</strong> uma armadura. Esses arabescos circundam um dos<br />

emblemas da monarquia francesa, a flor-<strong>de</strong>-lis 14 , também mo<strong>de</strong>lada com as luzes,<br />

provocando a sensação <strong>de</strong> volume que leva a um efeito <strong>de</strong> sentido tátil. Na parte alta e<br />

central do tronco, próximo à traqueia, entre os arabescos, há um pequeno losango<br />

vermelho. Os braços da mo<strong>de</strong>lo estão cruzados sobre a cabeça. No meio <strong>de</strong> cada<br />

braço está pintado um retângulo cinza metálico, sobre o qual repousam os <strong>de</strong>dos da<br />

moça, pintados <strong>de</strong> preto.<br />

14 De acordo com Bruce-Mitford, a lenda da flor-<strong>de</strong>-lis “diz que um anjo teria dado um lírio a Clóvis, rei<br />

dos Francos, em 496 d.C, quando este se converteu ao cristianismo” (1996, p. 105). A flor-<strong>de</strong>-lis é uma<br />

figura heráldica muito associada à monarquia francesa, particularmente, ligada ao o Rei da França.<br />

Assim, a representação <strong>de</strong>sta flor e seu simbolismo, é o que os elementos heráldicos querem transmitir<br />

quando a empregam sob as mais diversas formas. É uma das quatro figuras mais populares<br />

em brasonaria, juntamente com a águia, a cruz e o leão. (Enciclopédia Larouse Cultural, 1995, v.10, p.<br />

2465).É o símbolo do movimento escoteiro, as três pétalas representando os três pilares da promessa<br />

escoteira e o apontar para o Norte em mapas e bússolas, mostra para on<strong>de</strong> o jovem <strong>de</strong>ve ir, sempre<br />

para cima. Em New Orleans, cida<strong>de</strong> natal <strong>de</strong> Tracy, a flor-<strong>de</strong>-lis tem diversos significados, está na<br />

ban<strong>de</strong>ira e se tornou o símbolo da reconstrução da cida<strong>de</strong> após a passagem do furacão Katrina em<br />

agosto <strong>de</strong> 2005.


164<br />

A pintura sobre o rosto <strong>de</strong> Tracy é simétrica, em oposição à pintura do rosto da<br />

moça. No centro do rosto, a parte cinza metálica tem o formato mais anguloso, do<br />

mesmo modo que a pintura do tronco, o que faz uma oposição eidética em relação à<br />

pintura corporal da mo<strong>de</strong>lo. Os arabescos que preenchem essa armadura angulosa<br />

também têm traços predominantemente mais retílineos, em oposição à totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

traços curvilíneos dos arabescos da armadura pintada em Roper. O emblema da flor-<br />

<strong>de</strong>-lis também está presente, é menor, e o jogo <strong>de</strong> luz é reduzido, mais linear, se<br />

comparado ao que está pintado em Roper. O losango vermelho é maior, mas também<br />

está localizado na parte alta e central do tronco, próximo à traqueia do mo<strong>de</strong>lo. Os<br />

braços <strong>de</strong> Tracy também estão cruzados, mas à frente da testa. Nos antebraços estão<br />

pintados <strong>de</strong> cinza metálico triângulos pontiagudos assimétricos, como se fossem<br />

bainhas <strong>de</strong> faca.<br />

A oposição semântica fundamental do plano do conteúdo feminino vs.<br />

masculino correspon<strong>de</strong> à oposição eidética do plano da expressão: curvilíneo vs<br />

anguloso. As duas pinturas corporais têm, em comum, as categorias cromáticas e<br />

topológicas, mas se opõem na categoria eidética e proporcionam uma sensação <strong>de</strong><br />

força, <strong>de</strong> resistência. A composição traz a temática da força, que é recoberta, no nível<br />

discursivo, pelas figuras distintas masculina e feminina, que são unidas pelas figuras<br />

comuns do mundo natural contruído: a armadura, a flor-<strong>de</strong>-lis e os losangos vermelhos.<br />

O título irmão e irmã <strong>de</strong>nota um laço familiar do qual emerge a força da união<br />

masculina e feminina. Tracy e Roper conseguem mostrar, por meio da aparente<br />

distinção sexual, os efeitos <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> força e coragem que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das<br />

qualida<strong>de</strong>s femininas e masculinas e que po<strong>de</strong>m estar reunidos em uma única figura,<br />

como a <strong>de</strong> Joana D‟Arc. Há, portanto, um remanejamento semiótico nessa<br />

composição, no qual acontece a ascendência das armaduras e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência<br />

dos envelopes corporais <strong>de</strong> Tracy e Roper.


165<br />

Se nas figuras anteriores os corpos estão no ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio e <strong>de</strong>cadência, em<br />

Fallon (Fig. 53), o corpo <strong>de</strong>saparece não sob flores como na obra <strong>de</strong> Gair (Fig. 31),<br />

mas sob formas <strong>de</strong>sconexas e sob uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores frias e quentes<br />

contexturadas. A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexão do envelope corporal em Fallon está<br />

completamente comprometida, uma vez que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem o fragmenta<br />

duplamente; por um lado, pelas categorias cromáticas e eidéticas e, por outro, pelo<br />

recorte fotográfico. Tracy revela que “esta imagem foi criada <strong>de</strong> forma que permitisse<br />

que o corpo realmente ditasse o <strong>de</strong>senho e o conteúdo da pintura” 15 . E esse é o<br />

motivo pelo qual ela está aqui, pela relação estética da pintura com o corpo, tal qual a<br />

relação que os Nubas mantêm com o corpo. Para produzir o efeito puramente<br />

estético, Tracy faz com que as cores intercalem-se e entrelacem-se em curvas e<br />

diagonais, dando uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>. A categoria cromática é<br />

composta pela cor vermelha, pelas acromáticas, branca e preta e, por último, o neutro<br />

15 This image was created in a fashion that allows the body to truly dictate the <strong>de</strong>sign and content of the<br />

painting.<br />

Figura 53: Fallon. Fonte: TRACY, 2009.


cinza, proveniente da mistura <strong>de</strong>ssas últimas. Nenhuma cor está pura, todas se<br />

encontram mescladas e texturizadas umas pelas outras: a área branca é manchada<br />

pelo preto; a área cinza é formada pela soma <strong>de</strong> percentuais irregulares da mistura do<br />

preto com o branco; e a vermelha é contaminada pelas três. A materialida<strong>de</strong> das<br />

pinceladas, curtas e médias, sinuosas e diagonais, verticais e horizontais, ora mais<br />

brandas ora mais fortes, promove um ritmo acelerado ao trabalho. O preto circunda e<br />

divi<strong>de</strong> todas as áreas cromáticas e acromáticas, constituindo as formas diagonais e<br />

curvas.<br />

166<br />

As mãos brancas são os únicos elementos do corpo humano imediatamente<br />

i<strong>de</strong>ntificados entre as formas e as cores e acabam indicando o caminho para o<br />

reconhecimento do suporte recuado sob o enunciado. A assinatura do pintor surge<br />

próxima à linha preta que divi<strong>de</strong> o tornozelo: uma pequena flor-<strong>de</strong>-lis. Essa composição<br />

tem um percurso complexo e abstrato, com baixo grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong> e auto grau <strong>de</strong><br />

plasticida<strong>de</strong>. A beleza pela beleza, a cor pela cor, a forma pela forma.<br />

Percebe-se nessas pinturas corporais contemporâneas o <strong>de</strong>sfazimento do rosto<br />

comparável às culturas primitivas, exemplificado pelos Nubas. Para esses, não havia<br />

importância se Riefenstahl não os reconhecesse, pois essa era a intenção. Produzir o<br />

efeito <strong>de</strong> beleza, valorizando a estética do corpo era o principal objetivo, mas uma<br />

beleza conectada à natureza. As pinturas corporais, contemporâneas e primitivas,<br />

livram o ser humano da primazia do rosto, tão aflorada nas socieda<strong>de</strong>s<br />

contemporâneas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que valoriza o rosto, a<br />

socieda<strong>de</strong> globalizada faz <strong>de</strong>le item <strong>de</strong> série, com regras limitadoras e exclu<strong>de</strong>ntes.<br />

As indústrias <strong>de</strong> cosméticos lançam, a cada nova estação, novas cores, novos<br />

produtos. “Novida<strong>de</strong>s” limitadoras, disputadas fortemente pelos consumidores, com o<br />

intuito <strong>de</strong> não se sentirem excluídos do grupo social escolhido. Num movimento<br />

contrário, as pinturas corporais Nubas, com todas as regras, os i<strong>de</strong>ntificam em um<br />

grupo e, simultaneamente, os fazem distintos uns dos outros: são enunciados pessoais<br />

que mantêm a enunciação ritual/tradicional viva e ativa.


3.3 O PONTO DE VISTA TENSIVO<br />

167<br />

O campo <strong>de</strong> presença dos Nubas, assim como o <strong>de</strong> qualquer actante<br />

encarnado, é formado quando a carne (matéria) toma uma posição no mundo social<br />

inscrevendo sobre o envelope corporal corpo próprio, superfície <strong>de</strong> inscrição, a pintura<br />

<strong>de</strong>sejada e entrando em junção com o objeto <strong>de</strong> valor, nesse caso, a beleza estética<br />

corporal. Quando o grupo social e Riefenstahl percebem os Nubas com as maquiagens<br />

vertiginosas e fascinantes, sujeitos e objeto se realizam. De acordo com Zilberberg e<br />

Fontanille (2001, p. 125), a presença para o sujeito é apreendida como espanto diante<br />

da presença realizada. Normalmente, o súbito, caracteristicamente efêmero, faz com<br />

que a presença realizada se virtualize e dê lugar ao hábito. Porém, os Nubas<br />

combatem a fugacida<strong>de</strong> do súbito com a mesma arma: a fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />

maquiagens. Como eles se pintam pelo menos duas vezes por dia, e a farta<br />

imaginação e criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses artistas natos sempre renovam e inovam as formas,<br />

combinando e harmonizando as pinturas <strong>de</strong> maneiras diferentes, provocam diversos<br />

espantos e súbitos diariamente. Seria como dizer as mesmas coisas <strong>de</strong> maneiras<br />

diferentes, conservando e atualizando a beleza estética e harmoniosa.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista do objeto, a relação é a mesma que a dos sujeitos. A pintura<br />

corporal como embelezamento estético corporal, como objeto <strong>de</strong> valor, é uma<br />

novida<strong>de</strong>, entretanto, com o tempo po<strong>de</strong> tornar-se antiga. Como a maquiagem dos<br />

Nubas é sempre renovada, ela permanece uma novida<strong>de</strong>. Desse modo, conforme<br />

explicam Zilberberg e Fontanille, no “campo <strong>de</strong> presença, o espanto e a novida<strong>de</strong><br />

carregam um valor <strong>de</strong> irrupção, o hábito e a antiguida<strong>de</strong>, um valor <strong>de</strong> estada 16 ” (2001,<br />

p.125). Portanto, o campo <strong>de</strong> presença dos Nubas, com suas pinturas corporais, po<strong>de</strong><br />

ser assim representado no esquema tensivo 17, um percurso <strong>de</strong> ascendência em uma<br />

correlação divergente:<br />

16 Grifo dos autores.


Espanto<br />

INT<br />

Hábito<br />

168<br />

O valor semiótico das pinturas corporais sociais Nuba tem o estilo <strong>de</strong> valor <strong>de</strong><br />

universo. Todos os homens e mulheres têm acesso à pintura corporal durante um<br />

período da vida. Os pigmentos são fornecidos pela natureza e po<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>ntro das<br />

regras cromáticas, ser utilizados por todos. Esse regime caracteriza-se pela<br />

participação e expansão operadas pela mistura. A correlação entre os eixos da<br />

intensida<strong>de</strong> e da extensida<strong>de</strong> é conversa, uma vez que muitos Nubas entram em<br />

conjunção com a pintura corporal.<br />

Irrupção<br />

Novo EXT Antigo<br />

Estada<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que os estilos <strong>de</strong> valor são os principais contrapontos entre as<br />

maquiagens sociais dos povos <strong>de</strong> cultura pré-letrada e dos <strong>de</strong> cultura letrada. Como foi<br />

visto no capítulo 2, a maioria das maquiagens das culturas letradas tem o valor <strong>de</strong><br />

absoluto, com regime axiológico <strong>de</strong> exclusão-concentração. Além da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

exclusão <strong>de</strong> um grupo social, os actantes sujeitos encarnados contemporâneos são<br />

menos submetidos ao súbito, já que, pela rápida propagação dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

maquiagem, o hábito se estabelece mais rapidamente. A irrupção acontece,<br />

principalmente, quando o espaço <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo com uma <strong>de</strong>terminada<br />

hexis corporal é “invadido” por pessoas com hexei corporais distintas.<br />

Os novos produtos <strong>de</strong> maquiagem, objetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo dos actantes sujeitos<br />

encarnados contemporâneos, são lançados a cada nova estação como novida<strong>de</strong>s,


porém, com a mesma velocida<strong>de</strong> com que são lançadas, tornam-se antiguida<strong>de</strong>s. O<br />

campo <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>sses sujeitos contemporâneos caminha para o valor <strong>de</strong> estada e<br />

po<strong>de</strong> ser assim representado no esquema tensivo 18, um percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência em<br />

uma correlação divergente:<br />

Espanto<br />

INT<br />

Hábito<br />

Irrupção<br />

Novo EXT Antigo<br />

Estada<br />

169<br />

Se, por um lado, o antigo, para os Nubas, está sempre sendo inovado, e tanto o<br />

indivíduo quanto o grupo sempre se espantam diante das inovações, por outro lado, o<br />

novo das maquiagens sociais, para os indivíduos contemporâneos, torna-se<br />

ultrapassado muito rapidamente, o que é provocado pela estabilização <strong>de</strong> formas e<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> maquiagens globalizadas. A escapatória <strong>de</strong>sse sistema <strong>de</strong> rostida<strong>de</strong>,<br />

como afirma Deleuze, passa pelas pinturas corporais contemporâneas. Do mesmo<br />

modo, as performances contemporâneas em que o corpo aparece pintado, segundo<br />

Jeudy, seriam o suporte da expressão artística que tem como possível origem as<br />

“maneiras pelas quais os homens das socieda<strong>de</strong>s primitivas utilizam seu próprio corpo<br />

para nele inscrever sinais” (2002: 92-93). Nessa analogia proposta pelo sociólogo, é<br />

mostrado como o corpo ultrapassa o po<strong>de</strong>r da mediatização. O corpo é, então, um<br />

“medium <strong>de</strong> todos os tempos e <strong>de</strong> todas as culturas”, que “se impõe como mito das<br />

origens <strong>de</strong> qualquer forma <strong>de</strong> expressão estética” (JEUDY, 2002, p. 92 a 93).


170<br />

Mais que em qualquer situação, o corpo suporte <strong>de</strong>verá ser o perfeito<br />

sincretismo actancial, a articulação do “sujeito-objeto”. E será pelas suas próprias<br />

sensações que ele atingirá a sensibilida<strong>de</strong> dos outros corpos ao seu redor. Um corpo<br />

que <strong>de</strong>ve romper com os vícios e clichês, surpreen<strong>de</strong>r, provocar fissuras, abrir fendas,<br />

para que o sentido pelos sentidos aconteça.


4 – A MAQUIAGEM NA CENA TEATRAL<br />

171<br />

Meus olhos boiaram por diversas vezes. Arrepiei-me inúmeras vezes.<br />

Mas calafrios no calor po<strong>de</strong> ser brisa na praia. Não era miragem. Eu<br />

estava em terra firme acreditando em tudo que via. Não tenho muita<br />

proprieda<strong>de</strong> para falar sobre o fazer teatral. Mas sei sentir. (NEVES,<br />

2009)<br />

Não quero falar tão somente das belas maquiagens com acabamento<br />

impecável, que ressaltam a merecida beleza física <strong>de</strong> um atuante, mas daquela que,<br />

para além da beleza, em traços muitas vezes imperfeitos, enaltece o ser teatral. Uma<br />

arte viva, que acontece no aqui e no agora, a partir dos sentidos presentes <strong>de</strong> atuantes<br />

e <strong>de</strong> espectadores, que juntos seguem para um novo tempo e novo espaço<br />

representado, em jogos <strong>de</strong> máscara e <strong>de</strong> vertigem.<br />

A maquiagem cênica é um dos elementos da caracterização da personagem e,<br />

assim como a pintura corporal, diferentemente <strong>de</strong> todos os outros tipos <strong>de</strong> maquiagem<br />

(sociais, televisivas, cinematográficas), tem maior liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão. Muitas<br />

vezes, o que é “proibido” em algum estilo <strong>de</strong> maquiagem social é muito bem-vindo na<br />

teatral. Apesar <strong>de</strong> a maquiagem cênica ser uma linguagem artística que faz parte <strong>de</strong><br />

um todo, ou seja, <strong>de</strong> uma encenação, ela forma “um sistema estético que obe<strong>de</strong>ce<br />

apenas às suas próprias regras” (PAVIS, 2003, p. 172). Sistema estético que, por si só,<br />

leva aos choques sensíveis, arrepios e vertigens, pelo simples fato <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r os<br />

espectadores com algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s figurativas inesperadas, porém com efeitos<br />

verda<strong>de</strong>iros, que levam os observadores a acreditar em tudo o que vêem, como no<br />

relato em epígrafe. Maquiagem que beneficia o <strong>de</strong>saparecimento do atuante em prol<br />

do aparecimento <strong>de</strong> diversas personagens, <strong>de</strong>ixando o Eu carne adormecido para que<br />

os Seus outros <strong>de</strong>spertem sobre a superfície <strong>de</strong> inscrição, conforme <strong>de</strong>screve Oida:<br />

Agora posso ver que aquelas perucas e aquela maquiagem com as<br />

quais eu brincava eram apenas versões diferentes do inusitado saco<br />

preto que minha mãe tinha feito para mim 1 . Eram um meio <strong>de</strong> sumir.<br />

Um jeito <strong>de</strong> me escon<strong>de</strong>r. Desaparecer na frente das pessoas, em vez<br />

<strong>de</strong> representar para elas. É evi<strong>de</strong>nte que eu não era invisível <strong>de</strong><br />

1 Para satisfazer o <strong>de</strong>sejo infantil <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer tal qual os ninjas dos filmes populares japoneses, a<br />

mãe <strong>de</strong> Oida o presenteou com um saco preto e estabeleceram um jogo : quando ele estava <strong>de</strong>ntro do<br />

saco se tornava invisível e não podia ser visto por ela.


172<br />

verda<strong>de</strong>, mas o “eu” que os outros viam não era o “verda<strong>de</strong>iro eu”.<br />

Através das máscaras e maquiagens, o “eu” se tornava invisível. (OIDA,<br />

2007, p. 20)<br />

O termo caracterização, conforme explica Pavis (1999, p. 38), é oriundo da<br />

técnica, literária ou teatral, utilizada pelos escritores para a criação dos atributos físicos<br />

e das características psicológicas das personagens. Conforme explica Fiorin (2008a, p.<br />

137), esses traços físicos são <strong>de</strong>scritos explicitamente no enunciado <strong>de</strong> um texto.<br />

Nesse caso, essas características vão sendo representadas por meio <strong>de</strong> uma<br />

sequência <strong>de</strong> figuras, que traduzem os temas. É no enunciado dos romances ou das<br />

peças teatrais 2 que os corpos das personagens são representados 3 : “a pintura <strong>de</strong> um<br />

corpo por meio <strong>de</strong> palavras concretas, no caso <strong>de</strong> um texto verbal, não é gratuita”<br />

(FIORIN, 2008a, p.140). São os traços físicos que concretizam uma característica da<br />

personagem: a sensualida<strong>de</strong>, a tensão, a bonomia entre outras.<br />

Então, é a partir da caracterização que se fará com que a personagem, criada<br />

por um autor ou coletivamente, e <strong>de</strong>scrita no enunciado ou apenas visível na<br />

imaginação <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong> criação, possa ser verossímil como ser humano: “seja<br />

ela vista pelo ângulo físico, psicológico ou social – ou outros -, a caracterização é um<br />

conjunto <strong>de</strong> traços organizados, que visam a pôr <strong>de</strong> pé um esquema <strong>de</strong> ser humano”<br />

(PALLOTINI, 1989, p. 67). E para a caracterização <strong>de</strong> uma personagem a hexis<br />

corporal tem papel fundamental no ponto <strong>de</strong> vista social da personagem. Por outro<br />

lado, essa técnica literária também po<strong>de</strong> ser utilizada para a construção <strong>de</strong><br />

personagens sobrenaturais, monstruosos, animalescos, entre outros.<br />

Cenicamente, para o atuante, a caracterização é um conjunto <strong>de</strong> técnicas que<br />

possibilitam a ele a construção da personagem criada anteriormente pelo autor ou por<br />

2 De acordo com Pavis (1999, p.38) nos romances, o escritor tem mais „espaço‟ e „tempo‟ para<br />

caracterizar o exterior das personagens. No texto teatral, o dramaturgo, <strong>de</strong>vido à „objetivida<strong>de</strong>‟ do drama,<br />

apresenta as personagens em ação, nas falas. As indicações cênicas do estado psicológico ou físico; os<br />

nomes dos lugares; o discurso da personagem e os comentários <strong>de</strong> terceiros; os jogos <strong>de</strong> cena, como<br />

também as entonações, a mímica e a gestualida<strong>de</strong>; a ação da peça; são alguns dos elementos que<br />

facilitam a leitura da personagem oriunda da dramaturgia teatral. Pavis esclarece que cada dramaturgia<br />

tem um grau específico da caracterização: “o teatro clássico tem um conhecimento essencialista e<br />

universal do homem”. O naturalismo <strong>de</strong>screve “escrupulosamente as condições <strong>de</strong> vida dos caracteres”.<br />

Em algumas formas <strong>de</strong> dramaturgia, como a Commedia <strong>de</strong>ll‟arte, há a pressuposição <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong><br />

personagens, que se tornam conhecidos por tradição ou por convenção.<br />

3 O texto no teatro, principalmente o contemporâneo, po<strong>de</strong> ser proveniente <strong>de</strong> diversas fontes: o próprio<br />

texto teatral, romances adaptados, criações coletivas, documentos históricos entre outros.


processos colaborativos. A personagem teatral po<strong>de</strong> “ser vista como intersecção (no<br />

sentido matemático) <strong>de</strong> dois conjuntos semióticos, o textual e o cênico” (UBERSFELD,<br />

2005, p.75). A caracterização teatral, portanto, abarca a construção visual do rosto, os<br />

recursos corporais e vocais utilizados para construir as personagens, bem como os<br />

figurinos.<br />

173<br />

O estatuto da personagem <strong>de</strong> teatro é ser encarnada pelo ator, não<br />

mais se limitar a esse ser <strong>de</strong> papel sobre o qual se conhece o nome, a<br />

extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras)<br />

ou indiretas (pelo autor). A personagem cênica adquire, graças ao ator,<br />

uma precisão e uma consistência que fazem-na passar do estado<br />

virtual ao estado real e icônico. Ora, o aspecto físico e eventual da<br />

personagem é exatamente o que há <strong>de</strong> especificamente teatral e mais<br />

marcante para a recepção do espetáculo. Tudo o que, na leitura,<br />

podíamos ler nas entrelinhas da personagem (seu físico, o ambiente<br />

on<strong>de</strong> evolui) foi ditatorialmente <strong>de</strong>terminado pela encenação: isto reduz<br />

nossa percepção imaginária do papel, mas acrescenta, ao mesmo<br />

tempo, uma perspectiva que não imaginamos, mudando a situação <strong>de</strong><br />

enunciação e, portanto, a interpretação do texto falado 4 . (PAVIS, 1999,<br />

p.288)<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>-se dizer que, para a construção da personagem teatral,<br />

encarnada pelo atuante, numa correspondência com a dicotomia saussureana, o texto<br />

estaria para a língua (virtual), assim como a caracterização estaria para a fala<br />

(realizada). Do mesmo modo, po<strong>de</strong>-se dizer que o atuante oferece o seu envelope<br />

corporal polissensorial, superfície <strong>de</strong> inscrição, para que as figuras imaginadas pelo<br />

autor, pelo diretor, pela equipe <strong>de</strong> criação e pelo próprio atuante, possam se realizar<br />

em cena. A superfície <strong>de</strong> inscrição cedida pelo atuante será, na encenação, a memória<br />

figurativa do universo semiótico da personagem e do próprio espetáculo teatral.<br />

A caracterização, no texto e na encenação, tem estatutos distintos. No texto<br />

original a personagem po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>terminadas características, porém ao ser transposta<br />

para o palco, essa personagem construída pelo autor torna-se uma aura, como “um<br />

fantasma sem forma”, como <strong>de</strong>screve Pallotini (1989, p. 63). A sua plenitu<strong>de</strong> só<br />

acontecerá, no espaço cênico, por meio da <strong>de</strong>breagem, que transforma o envelope<br />

corporal do atuante em superfície <strong>de</strong> inscrição, quando, então, adquirirá forma<br />

i<strong>de</strong>ntificável, visível e reconhecível, uma manifestação concreta do ator semiótico.<br />

4 Grifos do autor.


174<br />

A maquiagem cênica, inscrição efêmera, que po<strong>de</strong> preservar ou não as<br />

proprieda<strong>de</strong>s do envelope corporal, é a arte que possibilita a criação do rosto e/ ou do<br />

corpo do ator. Para Pavis ela po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada o figurino vivo que se inscreve na<br />

pele do atuante, que “faz o rosto passar do animado ao inanimado, flerta com a<br />

máscara” (1999, p. 232).<br />

A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como po<strong>de</strong>m<br />

ser a máscara, o figurino ou o acessório. Não é tampouco uma „técnica<br />

do corpo‟, uma „maneira com a qual os homens sabem utilizar seu<br />

corpo‟. É, melhor dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana<br />

colada no rosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor<br />

para servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue. (PAVIS, 2003, p. 170).<br />

A maquiagem em uma encenação teatral tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> virtualizar ou<br />

potencializar o rosto do atuante para realizar o rosto da personagem. A virtualização<br />

promovida por ela era <strong>de</strong>sejada por Constantin Stanislavski 5 (1986) no intuito <strong>de</strong><br />

preservar o atuante para que ele pu<strong>de</strong>sse se transformar por completo em sua<br />

personagem. Ao mesmo tempo em que realiza a transformação do atuante em<br />

personagem, a maquiagem fortalece o vínculo natural e estreito entre eles, como<br />

privilegia a atuação realista, e ainda <strong>de</strong>monstra a relevância da caracterização nessa<br />

metamorfose. “Assim, a caracterização é a máscara que escon<strong>de</strong> o indivíduo- ator.<br />

Protegido por ela, [ele] po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spir a alma até o último, o mais íntimo <strong>de</strong>talhe. Este é<br />

um importante atributo ou traço da transformação” (STANISLAVSKI,op. Cit., p. 53).<br />

A encenação realista requer uma maquiagem imperceptível aos olhos do<br />

público, que aju<strong>de</strong> a envolvê-lo emocionalmente, promovendo, <strong>de</strong>sse modo, uma maior<br />

i<strong>de</strong>ntificação entre ele e a personagem. Numa tendência contrária, o expressionismo 6 ,<br />

o teatro brechtiano 7 , a teoria artaudiana 8 entre outros, buscam quebrar o ilusionismo<br />

5 Atuante e encenador russo, foi fundador do Teatro Artístico <strong>de</strong> Moscou (em 1898) e os seus princípios<br />

inscrevem-se na corrente naturalista.[...] A sua contribuição fundamental <strong>de</strong>ntro do quadro do movimento<br />

naturalista foi re<strong>de</strong>finir a noção <strong>de</strong> realismo colocando a tônica sobre o „realismo interior‟, e <strong>de</strong> se ligar<br />

ao problema da formação do atuante (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 1996, p.371).<br />

6 “É um movimento que apareceu nas artes da Alemanha entre 1911-1915. No plano teatral está<br />

representado por dramaturgos como Georg Kaiser, Ernat Toller, Walter Hasenclever. Ansioso por<br />

„exprimir‟ e não reproduzir, o expressionismo, nas suas origens, afirma-se como nostalgia <strong>de</strong> um<br />

aprofundamento da vida”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 415)<br />

7 É assim <strong>de</strong>nominado por causa <strong>de</strong> Bertolt Brecht (1898 – 1966) que “foi um autor dramático,<br />

encenador e poeta alemão. Para além <strong>de</strong> uma obra dramática muito rica, <strong>de</strong>ixou uma obra teórica<br />

importante que se esten<strong>de</strong> dos anos vinte aos anos cinquenta. Recusando o teatro „ dramático‟<br />

aristotélico, fundado na ilusão e na i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1926 o „teatro épico‟ e os seus


ealista e, com isso, a maquiagem po<strong>de</strong> servir como efeito <strong>de</strong> teatralização 9 , como<br />

observa Pavis (1999, 232). A maquiagem, então, por ser uma máscara totalmente<br />

perceptível, joga “com a ambiguida<strong>de</strong> constitutiva da representação teatral: mescla <strong>de</strong><br />

natural e artificial, <strong>de</strong> coisa e <strong>de</strong> signo” 10 (PAVIS, 1999, p.232).<br />

Po<strong>de</strong>-se notar que a caracterização como um todo e a maquiagem em particular<br />

são recursos importantes para o atuante, pois irão ajudá-lo a revelar a sua personagem<br />

para si mesmo, tanto durante o processo <strong>de</strong> sua construção quanto, mais adiante, no<br />

<strong>de</strong>svelamento a que irá proce<strong>de</strong>r o público que o assistirá.<br />

175<br />

O primeiro meio <strong>de</strong> apreensão que tem o espectador, a sua primeira<br />

forma <strong>de</strong> atingir essa criatura que é o[a] personagem é a visual. O [A]<br />

personagem se mostra, assim, inicialmente, sob seu aspecto, digamos,<br />

físico. (PALLOTINI, 1989, p. 64)<br />

Tal pensamento é corroborado por Richard Corson (1975), que diz que a<br />

maquiagem irá iluminar a personagem tanto para o atuante quanto para o público,<br />

provendo seu verda<strong>de</strong>iro retrato para ambos. Desse modo, a maquiagem teatral seria<br />

uma expressão plástica a serviço <strong>de</strong> um todo <strong>de</strong> sentido que é a obra <strong>de</strong> teatro.<br />

Portanto, “a pintura <strong>de</strong> um corpo” em um texto verbal, como <strong>de</strong>screve Fiorin (2008a,<br />

p.140), é, então, materializada, em cena, por meio dos produtos, técnicas, pincéis,<br />

princípios <strong>de</strong> distanciação. (...) propõe uma nova escrita dramática, uma nova prática <strong>de</strong> cena e uma<br />

nova técnica <strong>de</strong> interpretação para o ator. O teatro, espaço mediador entre o espectador e o mundo, é<br />

posto ao serviço <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira pedagogia social: surpreen<strong>de</strong>ndo-se e interrogando-se perante as<br />

contradições <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que a cena não mais lhe apresenta como natural, mas como manipulável<br />

e transformável”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 465)<br />

8 Teoria <strong>de</strong>senvolvida por Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e atuante francês, “participou<br />

no movimento surrealista antes <strong>de</strong> se separar <strong>de</strong>le no momento da criação do Teatro Alfred Jarry, em<br />

1926. Se nunca chegou a realizar esse „treatro da cruelda<strong>de</strong>‟ que propõe em O teatro e o seu duplo, não<br />

<strong>de</strong>ixou menos <strong>de</strong> alimentar toda uma corrente do teatro contemporâneo pela força <strong>de</strong>ssa visão limite.<br />

Essa visão é a <strong>de</strong> um teatro não apenas libertado da literatura e da psicologia, mas que reencontraria a<br />

eficácia original e mágica (quer dizer criadora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>) <strong>de</strong> uma linguagem <strong>de</strong> signos unificada,<br />

reconciliando, enfim, o corpo e o espírito, o abstrato e o concreto, o homem e o universo. O ator<br />

(atuante), portador <strong>de</strong> signos, está no centro: a sua respiração e o seu corpo estão na base <strong>de</strong>sta nova<br />

gramática. Eles animam seus „hieróglifos”. (BORIE, ROUGEMONT e SCHERER, 1996, p. 447)<br />

9 De acordo com Pavis, “teatralizar um acontecimento ou um texto é interpretar cenicamente usando<br />

cenas e atores para construir a situação. O elemento visual da cena e a colocação em situação dos<br />

discursos são as marcas da teatralização” (1999, p.374).<br />

10 Além das funções <strong>de</strong> embelezamento, <strong>de</strong> teatralização e da acentuação dos traços do rosto do<br />

atuante, a maquiagem também codifica um rosto, como é o caso das maquiagens orientais: Teatro<br />

Kabuki japonês; Ópera <strong>de</strong> Pequim e o teatro dança indiano Kathakali. A maquiagem cênica também<br />

po<strong>de</strong> sair dos limites do rosto e ocupar todo o corpo do atuante, passa a não caracterizar <strong>de</strong> “maneira<br />

psicológica e, sim, contribui para a elboração <strong>de</strong> formas teatrais do mesmo modo que os outros objetos<br />

da representação (máscara, iluminação, figurino). (Pavis, 1999, p.232).


cores e formas das “finas membranas” (PAVIS, 2003, p. 170). Estas últimas atualizam<br />

as palavras concretas <strong>de</strong> um autor, a imaginação <strong>de</strong> um diretor, a criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

atuante e <strong>de</strong> toda a equipe <strong>de</strong> criação sob um envelope corporal <strong>de</strong>breado em<br />

superfície <strong>de</strong> inscrições, para fazer com que o rosto da personagem se realize na<br />

encenação teatral.<br />

4.1 Relações enunciativas<br />

176<br />

A maquiagem veste tanto o corpo como a alma daquele que a usa, daí<br />

sua importância estratégica tanto para a sedutora, na vida, como para o<br />

ator, no palco. (PAVIS, 2003, p. 170)<br />

A encenação “é o ato <strong>de</strong> colocar à vista, sincronicamente, todos os sistemas<br />

significantes cuja interação é produtora <strong>de</strong> sentido para o espectador” (PAVIS, 2008, p.<br />

21). Desse modo, numa encenação, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da estética teatral,<br />

encontram-se diversos sistemas expressivos que se relacionam num tempo e num<br />

espaço <strong>de</strong>terminados. Tanto o texto quanto a maquiagem são sistemas cênicos ligados<br />

aos atuantes, ao espaço e ao ritmo temporal. Cabe ressaltar que, <strong>de</strong> acordo com<br />

Ubersfeld (2005), o espaço cênico on<strong>de</strong> ocorre a encenação é limitado e circunscrito; é<br />

duplo (dicotomia palco-plateia), é codificado pelos hábitos cênicos <strong>de</strong> uma época e <strong>de</strong><br />

um lugar; é uma imitação <strong>de</strong> algo e, por fim, é a área <strong>de</strong> atuação. Do mesmo modo<br />

como o espaço, no teatro, há também duas temporalida<strong>de</strong>s distintas: a da<br />

representação e a da ação representada.<br />

Voltando ao pensamento <strong>de</strong> Pavis (2008), <strong>de</strong>ve-se observar que os materiais<br />

cênicos estabelecidos pelos sistemas expressivos tornam-se um objeto <strong>de</strong><br />

conhecimento, um sistema <strong>de</strong> relações entre os atuantes, o encenador, a equipe <strong>de</strong><br />

criação e os espectadores (sujeito coletivo).<br />

Decifrar a encenação consiste em receber e interpretar o sistema que<br />

se encontra na base da produção da equipe artística. Não se trata <strong>de</strong><br />

reconstituir as intenções do encenador, mas sim <strong>de</strong> emitir uma hipó<strong>tese</strong><br />

sobre o sistema escolhido pelos produtores/criadores, através daquilo<br />

que o espectador recebe. (PAVIS, 2008, p. 23).


177<br />

Cabe <strong>de</strong>stacar também as relações enunciativas entre o atuante (sujeito) e a<br />

representação do outro (personagem) que ele constrói. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das<br />

estéticas e estilos <strong>de</strong> atuação, o atuante, geralmente, é a parte central e essencial do<br />

acontecimento teatral. “Ele é o vinculo vivo entre o texto do autor, as diretivas <strong>de</strong><br />

atuação do encenador e o olhar e a audição do espectador” (PAVIS, 1999, p. 30). Além<br />

<strong>de</strong> conduzir signos, sobre ele se cruzam informações sobre a história contada, a<br />

caracterização física, psicológica, social e gestual das personagens e a relação com o<br />

espaço cênico.<br />

A relação que o atuante mantém com sua personagem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da estética<br />

cênica proposta. Por exemplo, na <strong>de</strong> cunho naturalista o atuante <strong>de</strong>ve manter a<br />

atuação ininterruptamente, sem quebras, e levar o espectador a se i<strong>de</strong>ntificar com a<br />

personagem, provocando uma ilusão contínua <strong>de</strong> que ela é uma pessoa complexa<br />

como qualquer ser humano real. A maquiagem, <strong>de</strong>sse modo, segue a estética proposta<br />

e <strong>de</strong>ve ser extremamente natural. Qualquer alteração facial pela maquiagem <strong>de</strong>ve ser<br />

imperceptível aos olhos do espectador, produzindo o efeito <strong>de</strong> que o que ele vê é<br />

verda<strong>de</strong>iro, real, verossímil.<br />

O atuante po<strong>de</strong> ainda ter a convicção <strong>de</strong> ser a personagem ou ter a habilida<strong>de</strong><br />

técnica <strong>de</strong> mostrar apenas a imagem externa da personagem. Além disso, po<strong>de</strong><br />

distanciar-se da personagem, citá-la, ironizá-la, quebrando a ilusão, “saindo” e<br />

“entrando” da personagem quando bem preten<strong>de</strong>r. Nesse caso, a maquiagem po<strong>de</strong> ser<br />

percebida e produzir o efeito <strong>de</strong> um estranhamento no espectador, com o intuito <strong>de</strong><br />

quebrar a ilusão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e realida<strong>de</strong>.<br />

De todo modo, no teatro o atuante tem dupla condição: é uma pessoa presente<br />

que se situa aqui e agora, no tempo da representação, e, simultaneamente,<br />

personagem imaginária, que se situa no tempo da ação representada e no espaço<br />

cênico. Cabe a ele transmitir ao espectador as orientações e impulsos para o sentido<br />

da obra. A relação enunciativa que se dá entre o atuante e o espectador, nesta<br />

investigação, é focada nas convenções estabelecidas pelas encenações oci<strong>de</strong>ntais.<br />

Pavis explica que se trata <strong>de</strong> uma convenção ficcional, e ocorre quando o atuante<br />

finge, conscientemente, ser um outro e o espectador (enunciatário) o consi<strong>de</strong>ra “como<br />

„extraído‟ da realida<strong>de</strong> ambiente e portador <strong>de</strong> uma situação, <strong>de</strong> um papel” (PAVIS,


2003, p. 51). E é a partir <strong>de</strong> então que a ação ficcional tem sentido e verda<strong>de</strong>, mas<br />

apenas nesse mundo convencionado.<br />

178<br />

O atuante oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> tradição psicológica, então, constrói vozes, gestos e<br />

fisionomias para dar ao espectador o sentido <strong>de</strong> que está diante <strong>de</strong> uma pessoa real.<br />

Os atuantes naturalistas procuram imprimir semelhanças com o caráter, com as<br />

experiências, com as emoções, valores e até feições do espectador, <strong>de</strong> modo a<br />

promover a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>ste com a personagem. O atuante <strong>de</strong>ve ter consciência dos<br />

índices <strong>de</strong> seus gestos, das suas expressões faciais e corporais, da maquiagem e do<br />

figurino, para que eles possam chegar até o espectador, possibilitando, <strong>de</strong>sse modo,<br />

suas percepções e as atribuições <strong>de</strong> significações. De acordo com Pavis, a teoria do<br />

atuante está inserida na teoria da encenação, da recepção e na produção do sentido.<br />

A preparação do ator, em particular <strong>de</strong> suas emoções, só faz sentido na<br />

perspectiva do olhar do outro, logo, do espectador, que <strong>de</strong>ve estar em<br />

condições <strong>de</strong> ler os índices fisicamente visíveis da personagem trazida<br />

pelo ator. (PAVIS, 2003, p.54)<br />

Pavis (2003, p. 57) explica que o atuante constrói o seu papel a partir <strong>de</strong><br />

fragmentos que produzirão a ilusão <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. Para analisar a sequência <strong>de</strong><br />

atuação <strong>de</strong>ve-se, portanto, consi<strong>de</strong>rar “o conjunto da representação, recolocando-a na<br />

estrutura narrativa que revela a dinâmica da ação e a organização linear dos temas”. O<br />

pesquisador distingue quatro tipos <strong>de</strong> vetores, que são uma primeira estrutura do<br />

trabalho do atuante, constituído por pequenos <strong>de</strong>talhes como nuances da voz e do<br />

gesto, indispensáveis à legibilida<strong>de</strong> da atuação. O atuante, portanto, funcionaria como<br />

um amplificador para todo o resto da representação, estruturado por vetores:<br />

1- ACUMULADORES: con<strong>de</strong>nsam ou acumulam vários signos;<br />

2- CONECTORES: ligam dois elementos da sequência em<br />

função <strong>de</strong> uma dinâmica;<br />

3- SECIONANTES: provocam uma ruptura no ritmo narrativo,<br />

gestual, vocal, o que chama a atenção no momento em que o<br />

sentido „troca <strong>de</strong> sentido‟;<br />

4- EMBREADORES: fazem passar <strong>de</strong> um nível <strong>de</strong> sentido a<br />

outro ou da situação <strong>de</strong> enunciação aos enunciados.(PAVIS,<br />

2003, p 58).


179<br />

O trabalho do atuante é complementado pelas nuances do figurino e da<br />

maquiagem. Pavis utiliza a tipologia dos vetores da atuação para classificar os<br />

figurinos. Dessa maneira, a partir <strong>de</strong>ssa tipologia vetorial dos figurinos, passo a utilizá-<br />

la para a maquiagem cênica. Assim, a maquiagem servirá como vetor acumulador<br />

quando agrupar conjuntos <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong>finidos (raça, profissão, famílias, entre<br />

outros). Quando a maquiagem possibilita ao espectador se localizar nas oposições, ou<br />

seja, ler um corpo ou um rosto maquiado em relação aos outros, captando, <strong>de</strong>sse<br />

modo, o sistema <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>, ela funciona como um vetor conector. As<br />

interrupções entre séries <strong>de</strong> cenas, com mudanças <strong>de</strong> aparência entre elas,<br />

proporcionadas pela maquiagem, a tornam um vetor secionante.<br />

Entretanto, a maquiagem cênica sempre será um vetor embreador como uma<br />

forma <strong>de</strong> estabelecer, a partir da duplicida<strong>de</strong>/ambiguida<strong>de</strong> do atuante e sua<br />

personagem, a relação com o outro que está do lado <strong>de</strong> lá, na plateia, o público. Po<strong>de</strong>-<br />

se dizer que a maquiagem no teatro também irá proce<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong> uma operação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>breagem entre a pessoa física e privada do atuante e o outro construído<br />

cenicamente, a personagem. O envelope corporal <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição<br />

do atuante, sobre o qual também se pintam enunciados efêmeros, funciona como<br />

separação e contato. Diferentemente <strong>de</strong> como acontece com o actante sujeito<br />

encarnado, conforme foi visto no primeiro capítulo, no qual o envelope corporal<br />

<strong>de</strong>breado separa e contata as fronteiras <strong>de</strong> mundos diferentes, na cena teatral ele<br />

separa o atuante e contata a personagem ao espectador (enunciatário).<br />

A maquiagem cênica, por meio das operações <strong>de</strong> pluralização, inversão ou<br />

projeção da <strong>de</strong>breagem, conforme visto no primeiro capítulo, também po<strong>de</strong>rá<br />

conservar ou não as proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, <strong>de</strong> compactação e <strong>de</strong> filtro <strong>de</strong> seleção<br />

do envelope corporal do atuante, para que a personagem consiga ser legível ao<br />

espectador/enunciatário. A preservação ou não do envelope corporal e as operações<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem, conjugadas às nuances vocais e corporais do trabalho do atuante, ao<br />

texto do autor, às diretivas <strong>de</strong> atuação do encenador, às orientações e impulsos <strong>de</strong><br />

toda uma equipe <strong>de</strong> criação e à maquiagem ancoram o sujeito na encenação e o<br />

entregam ao olhar e à audição dos espectadores, acentuando e/ou reforçando traços,<br />

ocultando e/ou modificando-os completamente:


180<br />

Traços do lápis <strong>de</strong> maquiagem, mas também traços <strong>de</strong> caráter, traços<br />

do esboço global que a cena sugere. O espectador vivencia a<br />

atmosfera e a coloração emocional que emana dos rostos e corpos<br />

pintados (PAVIS, 2003, p. 174).<br />

Desse modo, no espaço cênico, durante o tempo da ação representada, o corpo<br />

e/ou rosto do atuante po<strong>de</strong>rá estar potencializado ou virtualizado, uma vez que nesse<br />

espaço é o rosto ou corpo da personagem construída que estará realizado. A<br />

potencialização acontecerá quando o rosto ou o corpo do atuante estiver disponível<br />

para ser convocado por meio do reconhecimento <strong>de</strong> sua fisionomia ou, ainda, quando<br />

for possível acessá-lo <strong>de</strong> algum modo, em algum momento da encenação. A<br />

virtualização ocorre quando não se po<strong>de</strong> reconhecer o atuante, pois os seus traços<br />

fisionômicos estarão completamente cobertos pela “fina membrana” (PAVIS, 2003), <strong>de</strong><br />

modo a fazer emergir a personagem.<br />

A maquiagem teatral po<strong>de</strong> lançar mão <strong>de</strong> todas as maquiagens sociais<br />

potencializadas pelo uso para ancorar a personagem (sujeito) na encenação naturalista<br />

e criar o sentido <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> para o espectador, situando-o no tempo da ação<br />

representada, assim como, no espaço, <strong>de</strong>finindo raças e etnias. De acordo com<br />

Fontanille, “o „tempo que passa‟ afeta o envelope; o „tempo que dura‟ concerne à<br />

„carne‟ material do objeto” 11 (FONTANILLE, 2004a, p.247). Assim, o envelope corporal<br />

do atuante <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrições também po<strong>de</strong>, por meio da<br />

maquiagem, enunciar a ida<strong>de</strong> cronológica das personagens representadas.<br />

Numa encenação que proponha um sentido <strong>de</strong> artificialida<strong>de</strong>, a maquiagem está<br />

livre da relação com as referências do mundo social representado e não precisa<br />

remeter a nenhuma maquiagem potencializada. De fato, essas maquiagens<br />

potencializadas até po<strong>de</strong>m ser utilizadas, porém aparecem estilizadas, recriadas e<br />

inovadas.<br />

A efemerida<strong>de</strong>, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> virtualizar um rosto, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

materializar e dar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> às personagens, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar a personagem<br />

do atuante e <strong>de</strong> contatá-la ao espectador, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser um vetor enunciativo e<br />

11 Le « temps qui passe » affect l‟enveloppe ; le « temps qui dure » concerne la chair matérielle même <strong>de</strong><br />

l‟objet.


<strong>de</strong> estabelecer relações enunciativas entre os elementos cênicos, são qualida<strong>de</strong>s que<br />

dão à maquiagem uma dimensão ampla e forte na encenação.<br />

4.2 Um exemplo: O Carrasco, encenação do Grupo Amok Teatro.<br />

181<br />

O grupo Amok Teatro nasceu no Brasil em 1998, sob a direção da brasileira Ana<br />

Teixeira e do francês Stéphane Brodt. A estética cênica do grupo é fundamentada<br />

numa interseção entre as teorias e práticas <strong>de</strong> Etienne Decroux 12 e Antonin Artaud. Por<br />

motivações distintas, o corpo e a linguagem física ocupam o centro do ato teatral<br />

<strong>de</strong>sses dois artistas inspiradores do grupo, que concentra as suas experimentações<br />

nesses princípios. Para completar as premissas que estabelecem o grupo, nas suas<br />

encenações são utilizadas “a metodologia <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> ator <strong>de</strong>senvolvida por Arianne<br />

Mnouchkine no Théatre du Soleil (França), assim como uma forte influência do teatro<br />

oriental” (AMOK, 2008), introduzidas por Stéphane Brodt.<br />

O espetáculo teatral O Carrasco é o segundo trabalho do grupo e estreou no<br />

ano 2000, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. É um espetáculo teatral contemporâneo, cujo texto foi<br />

elaborado <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s dos atuantes e da equipe <strong>de</strong> criação, sob o<br />

comando da direção cênica. Não se trata, contudo, conforme revela o grupo, <strong>de</strong> uma<br />

adaptação ou <strong>de</strong> uma transcrição do romance homônimo <strong>de</strong> Pär Lagerkvist. A obra foi<br />

o ponto <strong>de</strong> partida para a encenação, um percurso que levou os integrantes do grupo a<br />

diversos autores até chegarem a uma peça original. Um texto híbrido que foi sendo<br />

construído durante os ensaios, sob a inspiração do romance <strong>de</strong> Lagerkvist; da peça<br />

teatral O balcão, <strong>de</strong> Jean Genet; dos filmes: O sétimo selo, <strong>de</strong> Ingmar Bergman, e<br />

Trono manchado <strong>de</strong> sangue, <strong>de</strong> Akira Kurosawa; além <strong>de</strong> Une Saison en Enfer, <strong>de</strong><br />

Arthur Rimbaud; La Ville Parjure, L‟India<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Helène Cixous; Macbeth, <strong>de</strong> W.<br />

Skakespeare, Le diable et le bon dieu, <strong>de</strong> Jean- Paul Sartre e Oeuvres Completes <strong>de</strong><br />

12 “Etienne Decroux nasceu na França em 1898 e começou sua formação <strong>de</strong> ator em 1923 na escola do<br />

Vieux-Colombier <strong>de</strong> Jacques Copeau. Entre 1923 e 1945, foi intérprete <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> obras<br />

clássicas e mo<strong>de</strong>rnas sob a direção <strong>de</strong> Copeau, Charles Dullin, Louis Jouvet e Antonin Artaud. Ele foi<br />

um dos mestres mais influentes do teatro oci<strong>de</strong>ntal. Seu conhecimento do nível pré-expressivo do ator e<br />

das leis que fundamentam o movimento cênico permanece sem igual na história do teatro do século XX”.<br />

(AMOK, 2008.


Antonin Artaud.<br />

Do mesmo modo que o texto, todos os outros elementos da encenação foram<br />

sendo construídos a partir e em proveito do trabalho dos atuantes e da relação com os<br />

espectadores.<br />

182<br />

Nossa proposta foi a <strong>de</strong> trabalhar com o mínimo <strong>de</strong> recursos, na<br />

direção <strong>de</strong> um teatro pobre, fundado unicamente na presença do ator e<br />

na sua relação com o público. Nesse contexto, cenário, figurinos, texto<br />

e luz foram se construindo progressivamente, ao longo <strong>de</strong> meses <strong>de</strong><br />

ensaios, não como criações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> artistas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />

mas do interior da cena, como uma continuação material do trabalho do<br />

ator. (AMOK, 2008)<br />

De acordo com o grupo, o espetáculo oscila entre um passado remoto e a<br />

atualida<strong>de</strong> da personagem central e é dividido em quatro quadros in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, nos<br />

quais se evi<strong>de</strong>ncia a ambivalência entre o bem e o mal. O Carrasco, uma personagem<br />

solitária, é provocado ou exaltado pelas outras personagens e sobre ele pesa o sangue<br />

dos milênios. Perseguido por seus tormentos, sua reação se torna “um mergulho na<br />

questão central da obra <strong>de</strong> Lagerkvist: qual o sentido da vida se, quando interrogamos,<br />

Deus não respon<strong>de</strong>?” (op. Cit.)<br />

4.2.1 O espaço cênico e a percepção das presenças das personagens <strong>de</strong> O<br />

Carrasco<br />

O espetáculo O Carrasco é subdividido em quatro cenas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

conforme as seguintes sinopses:<br />

O espetáculo se divi<strong>de</strong> em quatro quadros in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes on<strong>de</strong> a<br />

presença do carrasco é constante.<br />

Quadro I : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist<br />

Na penumbra <strong>de</strong> uma taverna, dois personagens contam estórias <strong>de</strong><br />

morte, <strong>de</strong> execuções, <strong>de</strong> amor, todas se dirigindo ao Carrasco que,<br />

obstinadamente, guarda o silêncio.<br />

Quadro II : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Jean Genet<br />

Uma ladra se apresenta diante <strong>de</strong> um velho juiz para ser julgada. Como<br />

peças <strong>de</strong> um estranho jogo, o juiz enuncia as regras das relações entre<br />

ele, a ladra e o Carrasco.<br />

Quadro III : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Ingmar Bergman e Jean Genet<br />

Um General se encontra face a face com a Morte. Atiçado por esse<br />

inusitado colóquio o General po<strong>de</strong>rá, talvez, voltar.<br />

Quadro IV : A partir <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Pär Lagerkvist


183<br />

Antes <strong>de</strong> ir-se para continuar seu trabalho, o Carrasco<br />

respon<strong>de</strong>rá a seus perseguidores. Ele, que carrega sobre os ombros os<br />

crimes cometidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da humanida<strong>de</strong>, procura o repouso.<br />

(AMOK, 2008)<br />

O espaço cênico é responsável pelo primeiro impacto nos espectadores e<br />

também é o organizador <strong>de</strong> todos os outros elementos cênicos. Para dar sentido <strong>de</strong><br />

aproximação entre espectadores e a encenação, a direção do espetáculo optou por um<br />

espaço completamente fechado, que agregava atuantes e espectadores, no qual havia<br />

uma única porta para a entrada e a saída do público.<br />

A estrutura cênica propõe um espaço fechado, englobando ator e<br />

público. Uma gran<strong>de</strong> mesa <strong>de</strong>fine a área do jogo. O número limitado <strong>de</strong><br />

espectadores propicia uma gran<strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre o público e os<br />

personagens, reduzindo a distância entre “ato” e “participação ao ato”.<br />

(AMOK, 2008).<br />

Vale ressaltar que nos fundamentos do Teatro da Cruelda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Artaud, o<br />

espectador <strong>de</strong>veria estar no centro da cena e o espetáculo <strong>de</strong>veria girar ao seu redor.<br />

A estreita ligação do Amok Teatro com as teorias do encenador levou-o a optar por um<br />

espaço cênico que inserisse o público na cena. Assim, a entrada dos espectadores era<br />

feita pela porta central do espaço cênico, e este era atravessado por eles. Além disso,<br />

para alcançar as arquibancadas on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam se acomodar, os espectadores<br />

passavam pelas personagens, já em suas posições. Tal situação provocava, portanto,<br />

o primeiro efeito <strong>de</strong> aproximação entre encenação e público. De acordo com Pavis o<br />

Teatro da Cruelda<strong>de</strong> é um termo inventado por Artaud para o seu projeto <strong>de</strong><br />

encenação, no qual o espectador seria submetido a um mundo <strong>de</strong> sensações, “um<br />

tratamento <strong>de</strong> choque emotivo” (PAVIS, 1999, p.377).<br />

Queremos fazer do teatro uma realida<strong>de</strong> na qual se possa acreditar, e<br />

que contenha para o coração e os sentidos esta espécie <strong>de</strong> picada<br />

concreta que comporta toda sensação verda<strong>de</strong>ira. (...)<br />

É para apanhar a sensibilida<strong>de</strong> do espectador em todas as suas<br />

facetas que preconizamos um espetáculo giratório que, em vez <strong>de</strong><br />

tornar a encenação e a platéia dois mundos fechados, sem<br />

comunicação possível, distribua seus clarões visuais e sonoros entre a<br />

massa inteira dos espectadores. (ARTAUD. 1999, pág. 97)<br />

O sentido <strong>de</strong> aproximação é ampliado quando a personagem Comandante fecha<br />

a porta, estabelecendo que todos estivessem no mesmo espaço e no mesmo tempo.<br />

Essa opção da encenação remete aos “modos <strong>de</strong> interação dos sujeitos” e aos “modos


<strong>de</strong> interação entre o sujeito e o mundo” discutidos por Landowski no livro Presenças<br />

do outro (2002), no qual são construídas “as bases <strong>de</strong> uma tipologia dos modos como<br />

o sujeito entra em contato aqui e agora com o objeto”. O sentido <strong>de</strong> O Carrasco<br />

começa a ser construído pela não separação dos atuantes e do público. Adotando o<br />

pensamento <strong>de</strong> Landowski, po<strong>de</strong>-se pensar que <strong>de</strong>sse encontro direto é que emergiria<br />

o sentido.<br />

184<br />

Na penumbra da sala percebe-se que o centro <strong>de</strong>sse espaço fechado é<br />

ocupado por uma gran<strong>de</strong> mesa, ao redor da qual se posicionam todas as personagens.<br />

As pare<strong>de</strong>s e a porta são feitas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras rústicas e pesadas que, tal qual a mesa,<br />

têm a tonalida<strong>de</strong> amarelada que proporciona a sensação <strong>de</strong> temperatura quente às<br />

cenas. Sobre a mesa encontram-se três lamparinas e seis pequenos refletores<br />

micropar que também emitem uma tonalida<strong>de</strong> amarelada. O Carrasco ocupa a<br />

extremida<strong>de</strong> direita e permanece sentado na mesma posição durante as três primeiras<br />

cenas. As outras personagens jamais se aproximam do local on<strong>de</strong> se encontra o<br />

Carrasco: na primeira cena, as personagens Comandante e Jericó ocupam a<br />

extremida<strong>de</strong> da esquerda; na segunda cena a personagem Mulher se posiciona à<br />

frente da mesa próxima ao centro e a personagem Juiz se posiciona ao fundo; na<br />

terceira cena, por meio da iluminação, as personagens General e Morte aparecem<br />

sobre a mesa. Na quarta cena, o Carrasco fica só, sai da extremida<strong>de</strong> direita e sobe na<br />

mesa, ocupando-lhe o centro. O espaço cênico e as posições das personagens po<strong>de</strong>m<br />

ser visualizados nas figuras 54, 55, 56 e 57:


Figura 54: Cena I: Comandante, Jericó e Carrasco. Fonte: DVD do<br />

espetáculo.<br />

Figura 55: Cena II: Juiz, Mulher e Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

185


Figura 56: Cena III: Morte, General e Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

Figura 57: Cena IV: Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

186


187<br />

Esse espaço cênico, do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, é um “campo <strong>de</strong> presenças” que,<br />

como pensam Fontanille e Zilberberg (2001, p. 125), é “consi<strong>de</strong>rado como o domínio<br />

espácio-temporal” em que se exerce a percepção. As presenças materializadas das<br />

personagens também se manifestam, conforme foi visto nos outros capítulos, em<br />

termos <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> extensão e <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> (FONTANILLE, 2007, p. 75). A<br />

partir das presenças materializadas po<strong>de</strong>m-se i<strong>de</strong>ntificar as suas proprieda<strong>de</strong>s visuais:<br />

o móvel e o imóvel, o visível e o invisível, o sólido e o fluido, o quente e o frio, entre<br />

outras.<br />

A personagem Carrasco, interpretada por Marcus Pina, está presente do início<br />

ao fim da representação e da ação representada. Nas três primeiras cenas ele é uma<br />

presença imóvel, sólida e quente, que permanece em silêncio e se mantém na<br />

extremida<strong>de</strong> direita da mesa, em uma penumbra, às vezes mais intensa, outras, mais<br />

mo<strong>de</strong>rada. Ele apenas ouve as provocações e as exaltações <strong>de</strong> todas as outras<br />

personagens que, ao contrário <strong>de</strong>le, entram e saem <strong>de</strong> cena à vista do público, durante<br />

os entreatos. E é apenas nos entreatos que sua presença é invisível. Só no quarto<br />

quadro é que ele ganha voz e movimento.<br />

As outras personagens, fugazes, móveis, fluidas e frias, são interpretadas pelos<br />

atuantes Renata Collaço e Stéphane Brodt: a Comandante e Jericó, personagens da<br />

primeira cena; o Juiz e a Mulher, da segunda cena; a morte e o General, da terceira<br />

cena. As quatro últimas nascem <strong>de</strong> um ritual cênico, público, no qual as personagens<br />

que terminaram as suas ações <strong>de</strong>saparecem para que as próximas possam completar<br />

o seu ciclo <strong>de</strong> vida cênico, temporário: encarnes e <strong>de</strong>sencarnes; materializações e<br />

<strong>de</strong>smaterializações. Deve-se esclarecer que as duas primeiras personagens já estão<br />

em cena quando o público entra no espaço cênico e <strong>de</strong>saparecem no ritual.<br />

O crítico <strong>de</strong> teatro Maksen Luiz, do Jornal do Brasil, <strong>de</strong>finiu esse ritual cênico<br />

como uma “liturgia <strong>de</strong> passagem”.<br />

A diretora Ana Teixeira cria tempo cênico extremamente preciso na<br />

sua sincronizada preparação - os atores se <strong>de</strong>spem <strong>de</strong> um<br />

personagem para recompor outro numa dança litúrgica <strong>de</strong> passagem -,<br />

(...) O Carrasco é um espetáculo hierático, seco e racionalista em seus<br />

fundamentos, mas que provoca tanto a reflexão quanto a vívida<br />

emoção. (LUIZ, 2001)


188<br />

Assim, nessa liturgia, o espaço permanece o mesmo, porém são os atuantes<br />

que ocupam a cena e não mais as personagens. Os dois atuantes sentam-se lado a<br />

lado, <strong>de</strong> frente para os espectadores e utilizam a mesa para colocar os objetos<br />

necessários para a troca <strong>de</strong> figurinos e maquiagem, como <strong>de</strong>monstra a figura 58:<br />

Figura 58: Entreato. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

Verifica-se que durante as três cenas a figura do Carrasco é ro<strong>de</strong>ada pelas<br />

outras personagens e seu espaço é restrito à extremida<strong>de</strong> direita da mesa, já os<br />

espectadores e as outras personagens ocupam todo o restante do espaço cênico. O<br />

público que varia todos os dias nas diversas sessões e as personagens que variam <strong>de</strong><br />

cena em cena ro<strong>de</strong>iam o Carrasco, mas estas últimas não se aproximam <strong>de</strong>le.<br />

Entretanto, durante os entreatos a personagem Carrasco <strong>de</strong>saparece da cena, por<br />

meio da iluminação, numa espécie <strong>de</strong> ausência presente e os atuantes Renata Collaço<br />

e Stéphane Brodt ocupam a parte <strong>de</strong> trás da mesa para a “liturgia da passagem”.<br />

Portanto, nos entreatos o espaço é inteiramente ocupado pelos atuantes e pelos<br />

espectadores, sem a presença materializada <strong>de</strong> personagens, uma vez que o Carrasco<br />

se torna invisível. Durante as três primeiras cenas, do ponto <strong>de</strong> vista tensivo, po<strong>de</strong>-se


dizer que a exteriorida<strong>de</strong> é representada espacialmente por noventa por cento do<br />

espaço cênico. A faixa lateral baixa, média e alta da direita, ocupada pelo Carrasco,<br />

representa a interiorida<strong>de</strong>, intensa, operada pelo foco, ligado à carne e aos estados <strong>de</strong><br />

alma, como po<strong>de</strong> ser verificado no esquema tensivo nº 1 (p. 45). O efeito <strong>de</strong> presença,<br />

<strong>de</strong> acordo com o pensamento <strong>de</strong> Fontanille (2007, p. 76), <strong>de</strong>ve combinar “forças, <strong>de</strong><br />

um lado, e posições e quantida<strong>de</strong>s do outro 13 ”. Desse modo, tem-se o efeito <strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong> na força da presença do Carrasco, que aparece no espaço “interno”, e as<br />

posições e quantida<strong>de</strong>s no efeito <strong>de</strong> extensão, operado pela apreensão, dos corpos<br />

próprios e estados <strong>de</strong> coisas, como “externo”.<br />

189<br />

Os outros materiais cênicos estabelecidos pelos sistemas expressivos reiteram<br />

os sentidos espaciais, <strong>de</strong>ntre eles <strong>de</strong>staca-se a construção figurativa que caracteriza<br />

cada personagem.<br />

4.2.2 Da construção figurativa do Carrasco, no romance, à maquiagem, na<br />

encenação<br />

Com certeza, apenas um espectador totalmente insensível não teria<br />

um choque ao <strong>de</strong>parar-se, inesperadamente, com um <strong>de</strong>sses rostos<br />

que Antonin Artaud projetou, no <strong>final</strong> <strong>de</strong> sua vida, no espaço <strong>de</strong><br />

simples folhas <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho. Rostos separados do resto do<br />

corpo, pescoços cortados, cicatrizes expostas, marcadas na carne por<br />

uma vida passada ou ainda por vir, e <strong>de</strong> olhares tão intensos que vão<br />

muito além das pessoas que se encontram paradas diante <strong>de</strong>les.<br />

Haverá alguém que, atravessado por um <strong>de</strong>sses olhares, tenha<br />

permanecido intacto? (THÉVENIN, 1999, p.101).<br />

Apesar da encenação <strong>de</strong> O Carrasco ter se baseado em diversos textos e filmes<br />

cinematográficos, a caracterização cênica da personagem principal segue os traços<br />

físicos construídos por Pär Lagerkvist:<br />

13 Grifos do autor.<br />

Alto e forte na sua roupa vermelha cor <strong>de</strong> sangue, apoiando sobre<br />

as mãos seu rosto marcado pelo ferro vermelho 14 (...)<br />

O carrasco não o via. Ele não fazia nenhum movimento. A luz da vela<br />

cintilando, o gran<strong>de</strong> rosto inexpressivo mal era visível sob a sombra da<br />

14 grand et fort dans son costume rouge sang, appuyant sur sa main son front marqué par le fer rouge.<br />

[As traduções do romance O Carrasco aqui utilizadas foram feitas por Eduardo Maya.]


190<br />

sua mão 15 (...)<br />

Dizem que nem faca nem espada mor<strong>de</strong>m o carrasco, disse o velho, e<br />

novamente ele olhou furtivamente a gran<strong>de</strong> figura silenciosa 16 .(...)<br />

Sólido e resistente, com um rosto cheio <strong>de</strong> cicatrizes no qual projetava<br />

lábios grossos enrugados, tinha uma expressão brutal e selvagem e os<br />

seus olhos avermelhados, com um olhar pesado 17 . (...)<br />

O carrasco po<strong>de</strong> ser bom também. Ouvimos dizer que ele salvou os<br />

doentes e infelizes, as pessoas na maior angústia, e que toda a arte<br />

médica era impotente para aliviar 18 . (...)<br />

Há uma força <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. Há uma força do mal, isto é certo e<br />

<strong>de</strong>terminado.<br />

Mas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem esta força? Do diabo, eu digo! 19 (LARGERKVIST,<br />

1988, p. 7, 11, 13, 33, 40, 42)<br />

Em cena, a presença do Carrasco é imóvel, silenciosa, sólida e resistente,<br />

<strong>de</strong>sse modo a materialização da personagem, seguindo o pensamento <strong>de</strong> Ubersfeld<br />

(2005, p. 75), torna-se a intersecção dos conjuntos semióticos, textuais e cênico.<br />

Cenicamente a equipe <strong>de</strong> criação, por meio da maquiagem, segue alguns traços<br />

<strong>de</strong>scritos pelo autor: imprimindo sobre a testa uma cicatriz gran<strong>de</strong> e profunda,<br />

fabricando-lhe uma expressão brutal e selvagem, avermelhando os olhos e também<br />

lhes dando peso com as grossas sobrancelhas. As marcas do tempo que passou são<br />

expressas pelas rugas, pela longa barba. Tais características provocam um efeito <strong>de</strong><br />

choque intenso parecido com os dos rostos projetados por Artaud, conforme <strong>de</strong>screve<br />

Thévenin, em epígrafe.<br />

O figurino também segue a <strong>de</strong>terminação cromática <strong>de</strong>scrita por Lagerkvist:<br />

roupa vermelha cor <strong>de</strong> sangue. Em cena ele usa uma longa saia vermelha e blusa<br />

preta, que só são reveladas no último quadro. O véu rústico num tom marrom<br />

avermelhado é a única peça do figurino que é vista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da encenação. As<br />

15<br />

Le bourreau ne le voyait pas. Il ne faisait aucun mouvement. A la lueur vacillante <strong>de</strong> la chan<strong>de</strong>lle, son<br />

grand visage sans expression était à peine visible sous l‟ombre <strong>de</strong> sa main.<br />

16<br />

On raconte que ni couteau ni épée ne mor<strong>de</strong>nt sur le bourreau, dit le vieux, et <strong>de</strong> nouveau il regarda<br />

furtivement la gran<strong>de</strong> figure silencieuse.<br />

17<br />

Massif et vigoureux, avec une figure pleine <strong>de</strong> cicatrices où faisaient saillie <strong>de</strong> grosses lèvres plissées,<br />

il avait une expression brutale et sauvage et ses yeux injectés <strong>de</strong> sang, au regard lourd, étaient<br />

complètement jaunâtres.<br />

18<br />

En effet, le bourreau peut être bon, lui aussi. On a entendu dire qu‟il a sauvé <strong>de</strong>s mala<strong>de</strong>s et <strong>de</strong>s<br />

malheureux, <strong>de</strong>s gens dans la plus gran<strong>de</strong> détresse, que tout l‟art médical avait été impuissant à<br />

soulager.<br />

19<br />

Il y a une force en lui. Il y a une force dans le mal, sûr et certain.<br />

Mais d‟où le mal tient-il cette force? Du diable, te dis-je!


figuras 57 (p. 186), 59 e 60 mostram o figurino e <strong>de</strong>talhes da aplicação da maquiagem.<br />

Figura 59: Marcus Pina se maquiando. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

Figura 60: Marcus Pina se maquiando. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

191


192<br />

De acordo com o pensamento <strong>de</strong> Fontanille (2007, p. 76), as proprieda<strong>de</strong>s<br />

visuais po<strong>de</strong>m ser avaliadas em termos <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, extensão e quantida<strong>de</strong>. Essas<br />

proprieda<strong>de</strong>s visuais são percebidas antes mesmo <strong>de</strong> se saber <strong>de</strong> quem se trata, e é<br />

exatamente o que acontecia no momento em que os espectadores atravessavam o<br />

espaço cênico. A personagem Carrasco era percebida pelas suas características<br />

visuais, ou seja, antes mesmo <strong>de</strong> saber quem ele era, seu rosto arrebatava o público,<br />

ainda que sob a forma <strong>de</strong> um fazer informativo neutro, utilizando a nomenclatura<br />

proposta por Greimas e Courtés (2008, p.491). O momento <strong>de</strong>sse primeiro contato<br />

seria uma espécie <strong>de</strong> atestado <strong>de</strong> existência, um fazer informativo emissivo (GREIMAS<br />

E COURTÉS, i<strong>de</strong>m, p. 162), sem mobilizar as modalida<strong>de</strong>s veridictórias. Como o<br />

espectador ainda não compreen<strong>de</strong>u o estatuto veridictório <strong>de</strong>ssa presença intensa, ele<br />

é acometido por uma inquietação, uma suspensão epistemológica. A presença do<br />

Carrasco irrompe inesperadamente, uma diferença que começa a fazê-la significar. É<br />

por essa percepção inicial que o espectador teatral começa a sentir quem está em<br />

cena.<br />

Na encenação em análise, a parte visual dada a perceber do Carrasco, do<br />

momento da entrada do público até o fim da terceira cena, era apenas o seu rosto<br />

emoldurado por um véu cor marrom avermelhada. Essa mesma cor se confundia na<br />

sua face, on<strong>de</strong> se encontravam também outras tonalida<strong>de</strong>s quentes. O restante da sua<br />

figura ficava escondido atrás da mesa. Assim sendo, recorro às teorias <strong>de</strong> Merleau-<br />

Ponty (2006b), nas quais ele afirma que “o corpo não tem uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> posição,<br />

mas <strong>de</strong> situação”, ou seja, a concentração está toda no rosto do Carrasco e o seu<br />

corpo o segue “como a cauda <strong>de</strong> um cometa”. A concentração é então a primeira<br />

qualida<strong>de</strong> visual <strong>de</strong>ssa personagem. A predominância da cor vermelha na maquiagem<br />

e figurino lhe dá outra qualida<strong>de</strong>, a da temperatura quente da cor (categoria cromática).<br />

As outras proprieda<strong>de</strong>s foram sendo percebidas no <strong>de</strong>correr da apresentação (espaço-<br />

temporal): a imobilida<strong>de</strong>, a soli<strong>de</strong>z, a visibilida<strong>de</strong> e a perpetuida<strong>de</strong>. Esse conjunto <strong>de</strong><br />

características, estabelecidas na articulação entre as categorias cromáticas e<br />

topológicas, conce<strong>de</strong> ao Carrasco um alto grau <strong>de</strong> energia (intensida<strong>de</strong>) e baixo grau<br />

<strong>de</strong> labilida<strong>de</strong> no espaço temporal (extensão): energia da concentração, da temperatura<br />

da cor, o pouco espaço percorrido pela imobilida<strong>de</strong> e pela soli<strong>de</strong>z.


193<br />

A maquiagem forma um todo único e contínuo e preserva a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conexão do envelope corporal do atuante pluralizando, por meio da <strong>de</strong>breagem, os<br />

sentidos do Carrasco. Ao mesmo tempo em que preserva a conexão, a maquiagem<br />

também se compacta ao rosto por meio das sobrancelhas postiças. Desse modo, ela<br />

se ajusta ao corpo assumindo, portanto, a compactação. São essas sobrancelhas<br />

postiças que aumentam o peso do olhar, conforme a <strong>de</strong>scrição do autor. Na verda<strong>de</strong>,<br />

há uma ambiguida<strong>de</strong> na proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> compactação, uma vez que as lágrimas <strong>de</strong><br />

sangue que escorrem pelo rosto promovem a i<strong>de</strong>ntificação distintiva do conteúdo<br />

emocional da personagem, invertendo o fora e o <strong>de</strong>ntro. Essas lágrimas figurativizam<br />

toda a dor interna da personagem.<br />

Marcus Pina, que carrega impressionante máscara <strong>de</strong> sangue, revela<br />

na imobilida<strong>de</strong> com que permanece em dois terços do espetáculo o<br />

grau <strong>de</strong> segurança técnica e domínio da emoção que transfere, <strong>de</strong><br />

maneira irretocável, quando, <strong>final</strong>mente, o carrasco ganha voz para se<br />

''justificar''. (LUIZ, op. cit)<br />

A veemência do Carrasco é sentida, principalmente, pela sua “máscara <strong>de</strong><br />

sangue” (Figs. 62 e 63). A intensida<strong>de</strong> da maquiagem promove a virtualização do rosto<br />

<strong>de</strong> Marcus Pina (Fig. 61), que se mantém como um suporte recuado durante toda a<br />

encenação. Portanto, há uma competição das gran<strong>de</strong>zas e dos modos <strong>de</strong> existência<br />

entre a maquiagem e o suporte facial do atuante, numa operação intensiva da práxis<br />

enunciativa: a ascensão (atualizado → realizado) na qual aparece o rosto do Carrasco<br />

e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência (potencializado → virtualizado) do rosto <strong>de</strong> Marcus Pina o que<br />

caracteriza uma revolução semiótica. No teatro não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> closes, mas se<br />

po<strong>de</strong> dizer que a sensação provocada pelo rosto <strong>de</strong>ssa personagem é como a <strong>de</strong> um<br />

close-up no cinema, <strong>de</strong>vido à intensida<strong>de</strong> e à força promovida pela maquiagem.


Figura 61: Marcus Pina. Fonte: Marcus Pina.<br />

Figura 62: O Carrasco. Fonte: AMOK.<br />

194


Figura 63: O Carrasco. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

195<br />

A práxis enunciativa da maquiagem do Carrasco cujo enunciado é forte, intenso<br />

e pesado, parte do modo virtual (a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Lagerkvist). As cores, os marrons que<br />

dão um tom encardido à pele e a tonalida<strong>de</strong> bege pele que reproduz as rugas e a<br />

cicatriz ainda viva, promovem o jogo <strong>de</strong> claro e escuro que, além <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar o rosto,<br />

cria os efeitos <strong>de</strong> aspecto ru<strong>de</strong> e fisionomia forte; o esmalte nicotina que escurece os<br />

<strong>de</strong>ntes, a cor vermelha que circunda a cicatriz e escorre dos olhos como lágrimas <strong>de</strong><br />

dor, <strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> sofrimento e que também aparece respingada sobre o capuz; os<br />

postiços que <strong>de</strong>ixam as sobrancelhas mais grossas e espessas, pesando o semblante;<br />

e a barba cheia e irregular que completam a fisionomia sofrida do Carrasco, atualizam<br />

o seu discurso visual, que se realiza ao encontrar com as outras personagens e com<br />

os espectadores. Portanto, do mesmo modo como ocorre com os actantes<br />

encarnados, como foi visto no segundo capítulo, o ato produtor do discurso <strong>de</strong><br />

significação é, a princípio, uma tensão entre o virtual, ainda fora do campo <strong>de</strong> discurso,<br />

e o realizado, centro do campo do discurso, intermediado pelo modo atualizado.


4.2.3 As Maquiagens dos efêmeros: Jericó, Comandante, Juiz, Mulher, General e<br />

Morte<br />

196<br />

As outras personagens do espetáculo O Carrasco fazem parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

presenças que aparecem em cenas distintas e sempre em duplas: Jericó e a<br />

Comandante que já estão prontos quando os espectadores (enunciatários) entram no<br />

espaço cênico, mas <strong>de</strong>saparecem diante do público durante a primeira “liturgia <strong>de</strong><br />

passagem”; o Juiz e a Mulher aparecem e <strong>de</strong>saparecem no <strong>de</strong>correr da primeira<br />

liturgia; o General e a Morte nascem no segundo entreato e <strong>de</strong>saparecem ao fim da<br />

terceira cena. As proprieda<strong>de</strong>s visuais <strong>de</strong>sse grupo são: a dispersão (vários corpos,<br />

várias situações corporais); a predominância das cores branca e preta nos figurinos<br />

(categoria cromática), maquiagens com as tonalida<strong>de</strong>s mais claras e brancas, sem<br />

pontos <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> cores ou formas, todos recursos que atribuem aos rostos<br />

temperatura fria. Assim como acontece com o Carrasco, as proprieda<strong>de</strong>s da categoria<br />

cromática são as primeiras a serem percebidas, as outras proprieda<strong>de</strong>s foram sendo<br />

absorvidas no <strong>de</strong>senvolvimento das cenas: a mobilida<strong>de</strong>, a flui<strong>de</strong>z e a efemerida<strong>de</strong>.<br />

Nesse conjunto <strong>de</strong> características visuais temos um baixo grau <strong>de</strong> força (intensida<strong>de</strong>) e<br />

um alto grau <strong>de</strong> labilida<strong>de</strong> no espaço temporal (extensão).<br />

As maquiagens que <strong>de</strong>finem os rostos <strong>de</strong>sse grupo <strong>de</strong> personagens não são tão<br />

intensas nem complexas quanto a do Carrasco e não chegam a promover o recuo total<br />

do rosto dos atuantes. Porém, estes são completamente revelados nos entreatos e, a<br />

partir <strong>de</strong>ssa revelação, po<strong>de</strong>-se dizer que eles ficam potencializados durante o resto da<br />

encenação. As maquiagens <strong>de</strong>sse grupo são bem mais simples e preservam a<br />

conexida<strong>de</strong> dos envelopes corporais.<br />

Nessa encenação a maquiagem faz uso <strong>de</strong> todos os vetores <strong>de</strong> significação<br />

visual: como vetor acumulador, por agrupar personagens; como vetor conector, por<br />

possibilitar a comparação do grupo <strong>de</strong> personagens com o Carrasco; como vetor<br />

secionante, por promover mudanças nas aparências na interrupção feita pela “liturgia<br />

<strong>de</strong> passagem”, que ocorre entre as séries <strong>de</strong> cenas. Além <strong>de</strong>sses vetores mais<br />

específicos, todas as maquiagens do espetáculo são vetores embreadores e “fazem<br />

passar <strong>de</strong> um nível <strong>de</strong> sentido a outro ou da situação <strong>de</strong> enunciação aos enunciados”


(PAVIS, 2003, p.58), por meio da <strong>de</strong>breagem entre a pessoa física e privada do<br />

atuante e o outro construído cenicamente, a personagem.<br />

197<br />

A práxis enunciativa da maquiagem da primeira dupla, Jericó (Figs. 64 e 65) e<br />

Comandante (Figs. 64 e 66), é semelhante à do Carrasco: parte do modo virtual e as<br />

cores marrom e bege claro mo<strong>de</strong>lam o rosto, dando volume às bochechas da<br />

Comandante e rugas a Jericó; o esmalte <strong>de</strong>ntário nicotina e preto proporciona o<br />

<strong>de</strong>sgaste aos <strong>de</strong>ntes dos dois; a peruca grisalha <strong>de</strong>monstra a ida<strong>de</strong> madura da<br />

Comandante; tudo isso atualiza os discursos visuais, que também se realizam quando<br />

ambos se encontram, diante um do outro e diante do Carrasco, ou quando se<br />

encontram com os espectadores.<br />

Figura 64: Jericó e a Comandante. Fonte: AMOK.


Figura 65: Jericó. Fonte: AMOK.<br />

Figura 66: A Comandante. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

198<br />

Porém, durante o primeiro entreato, “liturgia <strong>de</strong> passagem”, a práxis é outra,<br />

conforme po<strong>de</strong> ser verificado na figura 67: parte-se do discurso realizado das


maquiagens que constroem o rosto <strong>de</strong> Jericó e o rosto da Comandante, já<br />

reconhecidos pelos espectadores, que retiveram as feições <strong>de</strong>les na memória. Desse<br />

modo, os rostos construídos já po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados como potencializados. Quando<br />

a construção visual dos rostos das personagens é <strong>de</strong>sfeita em cena, eles são<br />

remetidos ao modo virtualizado, cujas gran<strong>de</strong>zas servirão “<strong>de</strong> segundo plano ao<br />

funcionamento das figuras do discurso” (FONTANILLE, 2007, p. 276). Os rostos dos<br />

atuantes, Renata Collaço e Stéphane Brodt (fig. 67 D e E), que, até então, se<br />

encontravam recuados, tornam-se, momentaneamente, realizados. Em seguida, são<br />

potencializados, ou seja, têm suas presenças transferidas para a memória do<br />

enunciatário e ficam disponíveis para outras convocações, o que acontecerá no<br />

segundo entreato.<br />

199<br />

Figura 67: Sequência do primeiro entreato. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

A – Comandante e Jericó colocando objetos sobre a mesa;<br />

B – Retirada <strong>de</strong> perucas e figurinos da Comandante e <strong>de</strong> Jericó;<br />

C – Colocação dos figurinos da Mulher e do Juiz;<br />

D e E – Retirada da maquiagem, momento em que os rostos dos<br />

atuantes são revelados;<br />

F – Nova maquiagem, perucas e esmaltação dos <strong>de</strong>ntes;<br />

G – Mulher e Juiz


200<br />

Os rostos da Mulher (Fig. 68) e do Juiz (Fig. 69) são construídos com poucos<br />

recursos <strong>de</strong> maquiagem, apenas pela coloração dos <strong>de</strong>ntes do juiz e com perucas para<br />

ambos. A Mulher permanece <strong>de</strong> costas para os espectadores e Stéphane Brodt utiliza<br />

expressões faciais específicas para compor o Juiz, como os olhos espremidos sob os<br />

óculos. A práxis enunciativa <strong>de</strong>ssas maquiagens, inicialmente, segue o mesmo<br />

caminho do primeiro entreato: modo Realizado (maquiagens da Mulher e do Juiz -<br />

Figs. 68, 69, 70 a e b) passando pelo modo potencializado e atingindo o modo<br />

virtualizado. Porém, os rostos dos atuantes agora são reconvocados (Fig. 67 B e C),<br />

sendo novamente realizados e, logo em seguida, retornam à potencialização. Durante<br />

esse processo um novo movimento começa, a aplicação da maquiagem para a<br />

construção dos rostos das personagens do terceiro quadro que ainda estavam no<br />

modo virtual (sob a inspiração <strong>de</strong> Bergson) e são realizados durante o segundo<br />

entreato (rostos da Morte e do General – Figs. 70 F e G).<br />

Figura 68: A Mulher. Fonte: DVD do espetáculo.<br />

Figura 69: O Juiz. Fonte: AMOK.


201<br />

A transformação aos olhos do público, durante a segunda “liturgia <strong>de</strong><br />

passagem”, virtualiza o Juiz e a Mulher e, em um <strong>de</strong>terminado momento, reconvoca o<br />

rosto dos atuantes, para que estes “<strong>de</strong>em vida” à próxima dupla <strong>de</strong> personagens: a<br />

Morte e o General, conforme é <strong>de</strong>monstrado na figura 70.<br />

Figura 70: Sequência do segundo entreato. Fonte:<br />

DVD do espetáculo.<br />

A – Retirada do figurino da Mulher;<br />

B – Retirada do figurino do Juiz;<br />

C- Rostos <strong>de</strong> Renata Collaço e Stéphane Brodt;<br />

D – Aplicação da maquiagem da Morte;<br />

E – Aplicação da maquiagem do General;<br />

F – A Morte<br />

G – O General


202<br />

Do mesmo modo que as praxes das maquiagens que materializam as outras<br />

personagens, o rosto da morte é atualizado pela base branca aplicada sobre todo o<br />

rosto da atuante; pela aquacolor branca aplicada sobre os cabelos, como também pelo<br />

aumento do volume <strong>de</strong>stes. Para o general as sobrancelhas são escurecidas, os olhos<br />

ganham contorno marrom e adquirem profundida<strong>de</strong> com a aplicação <strong>de</strong> uma base <strong>de</strong><br />

mesmo tom. A plenitu<strong>de</strong> acontece quando ocupam o centro da mesa e se encontram<br />

em cena, diante do Carrasco e dos espectadores que voltam a perceber as tensões. A<br />

correlação é direta entre as dimensões intensivas e extensivas, à medida que aumenta<br />

a extensão da Morte (Figs. 71 e 72) e do General (Fig. 71), aumenta a intensida<strong>de</strong> do<br />

carrasco, que volta a ser visível por meio da iluminação.<br />

Figura 71: A morte e o General. Fonte: AMOK.<br />

Figura 72: A morte. Fonte: AMOK.


203<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que no início do espetáculo estão em cena as personagens em<br />

toda plenitu<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>m ser percebidos como uma forma i<strong>de</strong>ntificável. Porém, durante<br />

os entreatos as relações são outras: no primeiro entreato a Comandante e Jericó (Figs.<br />

66, 65 e 64) têm o modo <strong>de</strong> manifestação figurativa potencializada, já são ícones<br />

estáveis e reconhecíveis, com seus envelopes próprios marcados com inscrições que<br />

lhes conce<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Contudo, quando as maquiagens são retiradas em cena,<br />

os atuantes são consi<strong>de</strong>rados sem forma e sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para aquele mundo<br />

representado, são simples manifestações da presença, uma ocupação da extensão.<br />

Apenas quando começam a aplicar as novas maquiagens é que vão atualizando as<br />

novas figuras até que as outras personagens das próximas cenas alcancem a<br />

plenitu<strong>de</strong> cênica. Esse ciclo é repetido no segundo entreato. Nas “liturgias <strong>de</strong><br />

passagem” acontecem flutuações semióticas, nas quais as gran<strong>de</strong>zas e os modos <strong>de</strong><br />

existência entram em combinação entre o aparecimento dos rostos das personagens<br />

em ascendência (atualizado → realizado) e o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência dos rostos dos<br />

atuantes (realizado → potencializado). Apenas o Carrasco é que se mantém como um<br />

ator semiótico pleno, com corpo e rosto próprios, durante toda a encenação.<br />

4.3 As proprieda<strong>de</strong>s visuais e o plano da expressão<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que na encenação <strong>de</strong> O carrasco, os enca<strong>de</strong>amentos e as<br />

sobreposições <strong>de</strong> cenas, ou seja, sua sintaxe discursiva, conjuga a dimensão da<br />

intensida<strong>de</strong> (sensível) e a dimensão da extensida<strong>de</strong> (inteligível) da seguinte maneira:<br />

nas quatros cenas há uma correlação conversa entre os eixos da intensida<strong>de</strong> e da<br />

extensida<strong>de</strong>, um esquema <strong>de</strong> amplificação, no qual o aumento da intensida<strong>de</strong> é<br />

combinado com o <strong>de</strong>sdobramento da extensão. O sensível e o inteligível crescem<br />

conjuntamente. Parte-se da intensida<strong>de</strong>, do choque da visão da figura do Carrasco e<br />

segue-se para a compreensão que vai sendo adquirida no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> cada cena, com<br />

o aumento da extensão e das múltiplas presenças (o grupo <strong>de</strong> personagens). Há a<br />

captação do olhar e da atenção dos espectadores, a força do Carrasco versus muitas<br />

personagens, produzindo, <strong>de</strong>sse modo uma “tensão afetiva e cognitiva” (FONTANILLE,<br />

2007, pág. 112), conforme po<strong>de</strong> ser visualizado no esquema tensivo 19:


+<br />

Eixo da<br />

intensida<strong>de</strong><br />

Estado <strong>de</strong> alma<br />

Sensível<br />

Operação:<br />

Foco<br />

Força do<br />

Carrasco<br />

-<br />

204<br />

Por outro lado, na “liturgia <strong>de</strong> passagem” o gradiente da extensão diminui, do<br />

mesmo modo que o da intensida<strong>de</strong>. Não há presenças <strong>de</strong> personagens, mas <strong>de</strong><br />

atuantes, e o Carrasco está invisível. Portanto há o <strong>de</strong>clínio geral das tensões e dos<br />

<strong>de</strong>sdobramentos, como uma espécie <strong>de</strong> reavaliação. Seria como uma zona <strong>de</strong><br />

valências intensivas e extensivas mais fracas, como <strong>de</strong>fine Fontanille (2007, p. 116),<br />

uma zona virtual, na qual se apagam as personagens e <strong>de</strong>saparecem as figuras e da<br />

qual emergem novas formas semióticas. Acontece, portanto, uma correlação<br />

conversa, num esquema <strong>de</strong> atenuação que produz um relaxamento cognitivo. Os<br />

entreatos, nessa encenação, funcionam como uma quebra rítmica, sonora e visual. O<br />

esquema tensivo 20 <strong>de</strong>monstra esse movimento:<br />

+<br />

Eixo da<br />

intensida<strong>de</strong><br />

Estado <strong>de</strong> alma<br />

Sensível<br />

Operação:<br />

Foco<br />

Força do<br />

Carrasco<br />

-<br />

- Eixo da extensida<strong>de</strong> +<br />

Estado <strong>de</strong> coisas,<br />

Inteligível<br />

Labilida<strong>de</strong> espaço-temporal do grupo das<br />

personagens efêmeras<br />

- Eixo da extensida<strong>de</strong> +<br />

Estado <strong>de</strong> coisas,<br />

Inteligível<br />

Labilida<strong>de</strong> espaço-temporal do grupo das<br />

personagens efêmeras


205<br />

O ritmo das cenas é lento, acompanhado pela sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um vento<br />

constante. Com a entrada da liturgia é estabelecido ritmo mais acelerado que é<br />

embalado por uma música suave. O efeito <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> que gerava sensações,<br />

afetos e tensões é <strong>de</strong>smanchado. Ao aparecer em cena o espelho, lenços<br />

<strong>de</strong>maquilantes, pincéis, lápis, perucas, todo o aparato para executar uma maquiagem,<br />

o espectador é <strong>de</strong>spertado das tensões provocadas pelas cenas antece<strong>de</strong>ntes, num<br />

momento que produz efeito <strong>de</strong> distanciamento.<br />

A proximida<strong>de</strong> do público com as personagens, a imobilida<strong>de</strong> da personagem<br />

central e a aplicação da maquiagem durante as liturgias permitem a observação<br />

<strong>de</strong>talhada do rostos <strong>de</strong> cada personagem. Seria por meio dos fundadores dos sentidos,<br />

conforme <strong>de</strong>screve Pavis (2003, p.174), ou seja, do distanciamento e da proximida<strong>de</strong>,<br />

que se tenta avaliar uma maquiagem cênica. O espetáculo não tem uma estética<br />

realista e/ou naturalista, <strong>de</strong>sse modo, nem os figurinos nem a maquiagem <strong>de</strong>terminam<br />

uma época ou local específico. Não há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação do<br />

espectador com as personagens, nem <strong>de</strong> provocar ilusões, mas, conforme revela<br />

Pavis a respeito das teorias <strong>de</strong> Artaud, o espetáculo <strong>de</strong>veria provocar “uma catarse e<br />

uma experiência estética e ética original” (1999, p. 377), como acontece com O<br />

Carrasco. A encenação constrói um “antigamente” e uma taverna situada em algum<br />

lugar in<strong>de</strong>finido. A maquiagem revela a ida<strong>de</strong> e o meio social pobre do grupo das<br />

personagens efêmeras, com exceção da Morte, que é uma personagem sobrenatural.<br />

A maquiagem do Carrasco agiganta a sua figura, provocando um forte impacto<br />

visual, que reforça a concentração da presença e a sensação da sua perpetuida<strong>de</strong>. É<br />

a maquiagem que revela os seus tormentos, conforme as seguintes palavras proferidas<br />

por ele próprio na encenação:<br />

Eu sou o carrasco!...Des<strong>de</strong> o início dos tempos exerço o meu ofício e<br />

não parece que meu tempo já tenha acabado. Homens nascem e<br />

<strong>de</strong>saparecem mas eu permaneço e, coberto <strong>de</strong> sangue, vejo-os passar.<br />

Eu, o único que nunca envelhece. (...)<br />

Entendi por que vocês me chamavam! Eu sou o Cristo dos homens,<br />

com a marca do carrasco na fronte! Eu sigo meu caminho <strong>de</strong> guerra<br />

através do mundo e todo dia eu os salvo no sangue! E eu, ninguém<br />

crucifica! Aspiro ao sacrifício da morte. Mas sei que esse momento


206<br />

nunca virá. Enquanto vocês existirem, minha cruz jamais será erguida<br />

(Texto cênico <strong>de</strong> O Carrasco) 20 .<br />

A oposição cromática: tonalida<strong>de</strong>s frias dos efêmeros vs tonalida<strong>de</strong>s quentes do<br />

Carrasco, correspon<strong>de</strong> à oposição semântica fundamental mortalida<strong>de</strong> vs<br />

imortalida<strong>de</strong>, caracterizando, <strong>de</strong>sse modo, uma relação semissimbólica, conforme foi<br />

visto no terceiro capítulo.<br />

O tempo que passa é representado pelas personagens: Jericó e Comandante,<br />

Juiz e Mulher, Morte e General e também aparece nas rugas profundas construídas<br />

pela “fina membrana” que materializa o envelope corporal do Carrasco. O tempo que<br />

dura está figurativizado na carne do Carrasco que transparece pelas lágrimas <strong>de</strong><br />

sangue que impregnam o seu rosto único. No grupo <strong>de</strong> personagens, as trocas das<br />

maquiagens durante a liturgia e a escolha <strong>de</strong> uma coloração mais próxima dos tons <strong>de</strong><br />

pele natural, ou ainda esbranquiçada, reiteram as proprieda<strong>de</strong>s visuais <strong>de</strong> dispersão e<br />

<strong>de</strong> efemerida<strong>de</strong>.<br />

O quadro abaixo resume as oposições nas maquiagens do espetáculo e a<br />

relação entre os planos <strong>de</strong> conteúdo e <strong>de</strong> expressão:<br />

20 O texto do espetáculo está reproduzido no anexo.


Maquiagens das personagens <strong>de</strong> O Carrasco<br />

Perpetuida<strong>de</strong><br />

Imortalida<strong>de</strong><br />

Efemerida<strong>de</strong><br />

Mortalida<strong>de</strong><br />

Carrasco Comandante, Jericó,<br />

Juiz, Mulher, Morte e<br />

General<br />

Traços intensos Traços mo<strong>de</strong>rados<br />

Predominância do<br />

vermelho<br />

Predominância <strong>de</strong><br />

claros e tons <strong>de</strong> pele<br />

Constante Mutável<br />

Unida<strong>de</strong> Varieda<strong>de</strong><br />

Inversa à anatomia<br />

do rosto<br />

Direta na anatomia do<br />

rosto<br />

Mais Teatral Mais Realista<br />

207


CONCLUSÃO<br />

208<br />

Des<strong>de</strong> o momento em que a maquiagem, há quase vinte e cinco anos, me<br />

tomou <strong>de</strong> assalto e me conquistou, eu percebi que havia muito mais do que pós, cores<br />

e brilhos. Não que pós, cores e brilhos aplicados a rostos e corpos sejam pouco, mas<br />

são sempre tomados como acessórios e auxiliares. Ao contrário disso, penso que a<br />

maquiagem é uma linguagem tanto em suas motivações mais convencionais quanto<br />

em suas múltiplas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fraturar o sentido cotidiano. Dotada <strong>de</strong> plano da<br />

expressão visual, em que categorias cromáticas, eidéticas, topológicas e matéricas se<br />

mesclam para, sobre o suporte corporal, criar códigos socialmente interpretáveis pelo<br />

hábito ou produzir sentidos inesperados, a maquiagem correspon<strong>de</strong>rá a conteúdos que<br />

oscilarão, em correspondência com o plano da expressão, entre a habitualida<strong>de</strong> e a<br />

surpresa. As “finas membranas” que se ajustam sobre a pele, móveis e efemeramente<br />

coloridas, po<strong>de</strong>m provocar nos observadores atração ou repulsa, sensualida<strong>de</strong> ou<br />

susto, choque ou cumplicida<strong>de</strong>. Manipulados pelo sensível, em primeiro lugar, e em<br />

seguida pelo inteligível, os enunciatários das mensagens produzidas pela maquiagem<br />

completam o ciclo da comunicação por meio do qual se reafirma o caráter <strong>de</strong><br />

linguagem da maquiagem.<br />

Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os sentidos produzidos pela maquiagem e pela<br />

pintura corporal, adotei os princípios teóricos da semiótica discursiva para enten<strong>de</strong>r a<br />

maquiagem como um enunciado pintado sobre o rosto e/ou o corpo, <strong>de</strong>finido no tempo<br />

e no espaço e operado na dimensão do discurso em ato. Até mesmo em uma<br />

encenação teatral, a maquiagem acontece no aqui e no agora do tempo da<br />

representação, ainda que ela seja um vetor acumulador (família, profissão, época) para<br />

a ação representada. A maquiagem faz do envelope corporal, um Seu-outro pele, uma<br />

superfície <strong>de</strong> inscrições temporárias que permitem ao sujeito actante encarnado<br />

adquirir diversas hexei corporais e entrar em junção com valores estéticos <strong>de</strong> diversos<br />

grupos socais. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se aproxima <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado grupo, o indivíduo maquiado automaticamente se afasta <strong>de</strong> diversos<br />

outros. Como um palimpsesto a maquiagem permite às pessoas terem diversos


avatares, mostrarem-se ou escon<strong>de</strong>rem-se e provocar efeitos comuns e/ou<br />

surpreen<strong>de</strong>ntes.<br />

209<br />

Esse enunciado fugaz está diretamente ligado ao suporte que recebe as<br />

inscrições. Um suporte complexo, tridimensional, sensível, fenomenológico: um corpo<br />

visível e reflexivo que está exposto a forças e tensões internas e externas. Esse corpo<br />

é um sincretismo actancial: sujeito e objeto, necessários para a realização <strong>de</strong> um<br />

processo semiótico. Esse actante encarnado possui uma carne <strong>de</strong> referência e um<br />

corpo-próprio invólucro/fronteira em constante <strong>de</strong>vir e assume aparências fugazes.<br />

Esse corpo-próprio, como um anverso do Eu, recebe a “fina membrana” que,<br />

simultaneamente, separará e colocará em comunicação o Eu e o mundo social. Se os<br />

avatares do corpo evi<strong>de</strong>nciam as qualida<strong>de</strong>s da função semiótica, como afirma<br />

Fontanille (2004a, p. 124), a maquiagem é um dos principais meios <strong>de</strong> enunciá-los.<br />

O sujeito encarnado a partir do envelope corporal e da intencionalida<strong>de</strong> do<br />

movimento po<strong>de</strong> ser a fonte <strong>de</strong> uma intensida<strong>de</strong> e seguir para o alvo <strong>de</strong>sejado, ou<br />

po<strong>de</strong> inverter a posição e passar a ser o alvo <strong>de</strong> outros meios sociais. Ao tomarem<br />

uma posição, os actantes sujeitos encarnados abrem o campo <strong>de</strong> presença,<br />

constituído a partir da percepção <strong>de</strong> suas matérias corporais, no qual será estabelecido<br />

o percurso das relações juntivas com o objeto <strong>de</strong> valor. O estar maquiado é uma<br />

posição tomada e os valores são os estéticos, o status, o glamour, entre outros. Nesse<br />

campo há uma pressuposição recíproca entre os eixos da intensida<strong>de</strong> e da<br />

extensida<strong>de</strong>, uma forma <strong>de</strong> averiguar as variações tensivas da presença: harmoniosas<br />

e esperadas ou <strong>de</strong>sproporcionais, surpreen<strong>de</strong>ntes e inesperadas ou habituais,<br />

próximas e familiares ou extraordinárias, distantes e estranhas.<br />

Ao <strong>de</strong>formar ou inverter o envelope corporal do sujeito encarnado, ou ainda, ao<br />

projetar o próprio sobre o não próprio, é que a operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>breagem instala as<br />

condições para a realização do discurso <strong>de</strong> cores e formas do sujeito. Tais operações<br />

po<strong>de</strong>m fazer com que o envelope corporal seja recuado ou visível por meio do reforço<br />

dos seus traços, em prol da enunciação. Po<strong>de</strong> acontecer também uma combinação<br />

entre o recuo e a visibilida<strong>de</strong> do envelope corporal, como é o caso dos Nubas, que<br />

preservam a conexão do envelope e valorizam a presença do corpo por meio das<br />

maquiagens, contudo, quase sempre o rosto está recuado. Essas operações da


<strong>de</strong>breagem conservarão ou comprometerão as proprieda<strong>de</strong>s do envelope.<br />

210<br />

Nas maquiagens sociais a operação mais comum é a <strong>de</strong> projeção do próprio<br />

sobre o não próprio, que po<strong>de</strong> produzir discursos esperados ou provocar surpresas,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> como um indivíduo se apresenta diante <strong>de</strong> hexei corporais distintas,<br />

provocando <strong>de</strong>sse modo tensões afetivas familiares ou tensões afetivas do estranho,<br />

conforme foi visto no capítulo 1.<br />

As operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>formação ou inversão dos envelopes corporais são mais<br />

frequentes nas pinturas artísticas e teatrais, que provocam vertigens ao produzirem<br />

efeitos <strong>de</strong> sentidos estéticos inusitados. É a partir das relações entre os planos da<br />

expressão (cromático, eidético, matérico e topológico) e as estratégias enunciativas<br />

como as <strong>de</strong>breagens que esses efeitos vão sendo elaborados. A sensação ou ilusão<br />

<strong>de</strong> ótica <strong>de</strong> um corpo ausente, nessas pinturas artísticas, libera esse corpo dos<br />

sentidos sociais culturalmente arraigados sobre a pele, <strong>de</strong>ixando-o livre para provocar<br />

outros sentidos.<br />

É preciso também ter consciência das “astúcias da enunciação”, parafraseando<br />

Fiorin (2001), <strong>de</strong> uma maquiagem. Não basta simplesmente caprichar na maquiagem,<br />

o sujeito encarnado po<strong>de</strong> ser o enunciador da própria imagem, mas <strong>de</strong>ve saber se o<br />

que está “dizendo” é realmente o que está querendo “dizer”. E, mesmo que “diga”<br />

exatamente o que quer “dizer”, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá do fazer interpretativo do enunciatário para<br />

avaliar se o que “diz” é verda<strong>de</strong>iro, falso, mentiroso ou secreto. O enunciado do<br />

“enfeite preparado para a noite”, como diz Serres (2001), é entendido como um fazer<br />

persuasivo e interpretativo entre um enunciador e um enunciatário. Ao se maquiar o<br />

sujeito encarnado, além <strong>de</strong> se tornar um ator semiótico com forma i<strong>de</strong>ntificável,<br />

convoca as modalida<strong>de</strong>s veridictórias para que o sujeito encarnado, na sua narrativa,<br />

possa se transformar no que <strong>de</strong>sejar. Essa convocação é importante tanto no cotidiano<br />

quanto nos palcos. De todo modo, caberá aos observadores o julgamento pelo estatuto<br />

veridictório do parecer.<br />

Compreen<strong>de</strong>r que a maquiagem faz parte da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> figurativa<br />

<strong>de</strong> um sujeito actante encarnado, do fazer persuasivo que se estabelece entre<br />

enunciador e enunciatário, construído <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma práxis enunciativa, torna-se<br />

fundamental para a “leitura” dos rostos e dos corpos constantemente mutáveis. Kevin


Aucoin mostra isso com as transformações <strong>de</strong> Thelma Aucoin, <strong>de</strong> acordo com as<br />

análises realizadas no segundo capítulo. A práxis é responsável pelo movimento <strong>de</strong><br />

ascensão <strong>de</strong> um discurso figurativo, original ou não, da sua permanência ou não na<br />

memória individual ou coletiva, e que, a qualquer momento, po<strong>de</strong>rá ser resgatado ou<br />

estilizado, conforme foi visto por meio das maquiagens <strong>de</strong> Rita Hayworth (Fig. 26), da<br />

reconvocação por Duda Molinos sobre o rosto suporte <strong>de</strong> Camila Espinosa (Fig. 27), e<br />

da atualização do discurso por Aucoin sobre o rosto suporte <strong>de</strong> Julia Roberts (Fig. 28).<br />

O sentimento da falta do novo e do <strong>de</strong>sgaste do antigo, cada vez mais avassalador nos<br />

tempos atuais, diminui o tempo <strong>de</strong> maquiagens com alto grau <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong><br />

aumentar a quantida<strong>de</strong> do uso dos discursos figurativos, coloridos e efêmeros, que se<br />

tornam corriqueiros e antigos rapidamente. Na outra extremida<strong>de</strong>, alguns discursos<br />

“estéreis” não chegam a alcançar longas distâncias.<br />

211<br />

Como objetos estéticos e semióticos, o corpo e a pintura, constantemente em<br />

<strong>de</strong>vir, são apreendidos na competição das gran<strong>de</strong>zas e nas articulações dos modos <strong>de</strong><br />

existência. Desse modo, po<strong>de</strong>m ocorrer revoluções, distorções, remanejamentos e<br />

flutuações semióticas, em cujos movimentos o corpo po<strong>de</strong> estar <strong>de</strong>saparecido,<br />

ofuscado ou entrar em <strong>de</strong>clínio, para que o enunciado pintado apareça, emerja. Ao<br />

apreen<strong>de</strong>r essas obras, os olhos do observador hesitam, ascen<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>scem, vão e<br />

voltam em movimentos lentos, ou sinuosos, ou rápidos, ou retilíneos.<br />

Se os indivíduos contemporâneos lançam ou resgatam maquiagens sociais,<br />

articulando <strong>de</strong> diversos modos a práxis enunciativa da maquiagem, os povos pré-<br />

letrados como os Nuba, ao se pintarem, atualizam a enunciação tradicional <strong>de</strong> seu<br />

grupo. Outra diferença está nos valores das maquiagens: as contemporâneas têm<br />

valor <strong>de</strong> absoluto, sob um regime <strong>de</strong> exclusão e concentração. Em oposição, as<br />

pinturas corporais dos Nubas têm valor <strong>de</strong> universo, uma vez que há a participação <strong>de</strong><br />

muitos indivíduos que entram em conjunção com a beleza estética do corpo. Além das<br />

diferenças entre as práxis e os valores das pinturas contemporâneas e as chamadas<br />

primitivas, é possível compreen<strong>de</strong>r a diferença entre o grau <strong>de</strong> figurativida<strong>de</strong>. Para os<br />

observadores contemporâneos, as pinturas corporais dos Nubas têm um grau <strong>de</strong><br />

figurativida<strong>de</strong> baixo, já as contemporâneas trabalham com todos os níveis <strong>de</strong><br />

figurativida<strong>de</strong>, do abstrato ao ícone. As maquiagens dos Nubas também <strong>de</strong>monstram a


semiótica semissimbólica, a partir das correlações parciais entre os dois planos da<br />

linguagem: conteúdo (faixa etária) vs expressão (categoria cromática).<br />

212<br />

Contudo, é na construção figurativa das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos atores teatrais que a<br />

maquiagem <strong>de</strong>monstra ser fundamental. Do mesmo modo que na vida, a maquiagem<br />

teatral tem importância estratégica, como pensa Pavis (2003). Na vida cotidiana, a<br />

maquiagem é um vetor social, no palco, ele é diversificado: acumulador (raça,<br />

profissão, famílias); conector (oposições <strong>de</strong> rostos); secionante (mudanças <strong>de</strong><br />

aparência). O ponto em comum entre as maquiagens sociais cotidianas e a teatral é<br />

que são ambas vetores embreantes, ao estabelecerem a relação com o outro, seja<br />

esse outro o grupo social e suas hexei corporais ou os apreciadores dos espetáculos<br />

teatrais.<br />

No dia a dia é por meio da <strong>de</strong>breagem que a maquiagem inscrita na superfície<br />

da pele (envelope corporal <strong>de</strong>breado em superfície <strong>de</strong> inscrição) coloca em contato ou<br />

separa os atores semióticos dos grupos sociais. No teatro, ela também funciona como<br />

fronteira, contudo, separa o atuante e contata a personagem com o público. A<br />

maquiagem teatral possui maior autonomia e po<strong>de</strong> utilizar <strong>de</strong> todos os recursos e<br />

resgatar discursos coloridos potencializados pelo uso; po<strong>de</strong> criar enunciados originais;<br />

po<strong>de</strong> virtualizar o rosto do atuante e/ou potencializá-lo no mesmo espaço-tempo da<br />

encenação, como ocorre no espetáculo O Carrasco. Nesse espetáculo o rosto do<br />

atuante Marcus Pina permanece virtualizado, o que gera uma revolução semiótica: o<br />

aparecimento do rosto do Carrasco (atualizado → realizado) e o <strong>de</strong>saparecimento do<br />

rosto <strong>de</strong> Marcus Pina (potencializado → virtualizado). Os rostos dos outros atuantes<br />

são potencializados durante os entreatos, nos quais acontece uma flutuação semiótica<br />

entre os rostos enunciados das personagens Jericó, Comandante, Juiz, Mulher,<br />

General e Morte (atualizado → realizado) e os rostos dos atuantes Renata Collaço e<br />

Stéphane Brodt (realizado → potencializado).<br />

O semissimbolismo também está presente nas maquiagens <strong>de</strong>sse espetáculo,<br />

uma vez que as cores quentes (vermelhos) do plano da expressão da maquiagem do<br />

Carrasco estão em oposição às cores frias (brancos, pele clara) do grupo <strong>de</strong><br />

personagens, e correspon<strong>de</strong>m à perpetuida<strong>de</strong> do Carrasco em oposição à efemerida<strong>de</strong><br />

do grupo <strong>de</strong> personagens, no plano do conteúdo. Essas características enunciativas


estabelecem relações com as outras linguagens que formam o espetáculo teatral,<br />

para constituir a semiótica sincrética da encenação.<br />

213<br />

Ao sentido estético da maquiagem, seja ela artística, social ou teatral, se<br />

sobrepõem ou acrescentam diversos outros efeitos <strong>de</strong> sentido. Efeitos que só po<strong>de</strong>m<br />

surgir ou serem vividos hic et nunc, numa experiência <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> entre<br />

participantes (enunciadores e enunciatários), principalmente pela característica<br />

efêmera e pela relação com o seu suporte sensível: o corpo humano, ancoradouro da<br />

presença humana no mundo. Por essas características do corpo, a maquiagem<br />

ressalta a emergência do sentido que é apreendido simultaneamente como<br />

configuração inteligível e sensível. Por meio das pinturas fugazes o ser humano po<strong>de</strong><br />

estar em eterno <strong>de</strong>vir em busca <strong>de</strong> sentidos, seja no espetáculo do homem no mundo,<br />

seja nos simulacros dos espetáculos teatrais. Ao término dos aplausos, diante dos<br />

espelhos nos camarins, aos poucos, os atuantes reassumem a imagem ícone dos<br />

atores sociais.<br />

Acabou a peça. Cometeu-se o espetáculo. Lentamente<br />

Esvazia-se o teatro, (...). Nos camarins<br />

Os ágeis ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> mímica improvisada (...)<br />

Lavam suor e maquiagem (BRECHT 2000, p. 253).


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VITA, Ana Carlota. História da maquiagem, da cosmética e do penteado. São Paulo:<br />

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Acessado em 05 ago. 2008.<br />

__________. Razão e poética do sentido. São Paulo: EDUSP, 2006.<br />

222


ANEXO<br />

O CARRASCO<br />

Adaptação <strong>de</strong> Ana Teixeira<br />

Quadro 1<br />

223<br />

Sentado na penumbra da taverna, com seus trajes vermelhos, o Carrasco está<br />

imóvel e silencioso. No outro lado da mesa, Jericó, o ladrão e a velha Comandante.<br />

A Comandante: Veja, o Carrasco está aqui.<br />

Jericó: Provavelmente teremos uma execução amanhã.<br />

A Comandante: O machado e o vinho sempre foram bons parceiros. - Ao<br />

carrasco - Salve, Mão Destra da Providência!<br />

Jericó: Ao carrasco, provocativo - A bebida aqui é boa, não é, executor <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s obras? Você <strong>de</strong>ve saber que o patrão foi buscar um <strong>de</strong>do <strong>de</strong> ladrão na forca<br />

para pendurar em seu tonel... Nada <strong>de</strong>ixa o vinho com um gosto tão bom quanto um<br />

<strong>de</strong>do <strong>de</strong> enforcado!<br />

A Comandante: Cuidado Jericó, tudo o que vem do cadafalso tem um estranho<br />

po<strong>de</strong>r... um po<strong>de</strong>r extraordinário.<br />

Jericó: É claro que o cadafalso tem po<strong>de</strong>res... e, sem dúvida, o machado do


carrasco e coisas do gênero tem proprieda<strong>de</strong>s particulares. É por isso que ninguém<br />

ousa tocar nos objetos que ele segurou. Mas isso não é razão para se falar baixo cada<br />

vez que se trata <strong>de</strong>le! - um tempo - Sabe que ele po<strong>de</strong> mesmo ser amigo daquele que<br />

executa?<br />

A Comandante: Um amigo? Impossível!<br />

224<br />

Jericó: Sim, isso eu já pu<strong>de</strong> constatar com meus próprios olhos. Vi quando<br />

chegaram abraçados. Eles estavam bêbados, tão bêbados que mal podiam andar em<br />

direção ao lugar do suplício. Embora não houvesse muita diferença entre os dois o<br />

carrasco parecia mais embriagado. “Vlam!” ele fez cortando a cabeça do outro.<br />

A Comandante: A Comandante: O diabo <strong>de</strong>ve estar zombando <strong>de</strong> você por<br />

contar essas besteiras! Quando digo que existe ali um po<strong>de</strong>r, é a mais pura verda<strong>de</strong>,<br />

tão verda<strong>de</strong>iro quanto o fato <strong>de</strong> estarmos aqui falando. Lembra-se <strong>de</strong> Kristen?<br />

Jericó: Aquele menino que caía no chão babando e tremendo...<br />

A Comandante: Porque estava possuído! Pois escute bem o que vou te dizer,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sua mãe o levou a uma execução e lhe <strong>de</strong>u um pouco do sangue do morto<br />

para beber, ele ficou curado e nunca mais caiu. Mas precisa ser sangue <strong>de</strong><br />

assassino... e raspado da espada do carrasco, senão, não serve para nada. - ao<br />

Carrasco - Não é assim, mestre?... Por minha fé, o carrasco tem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cura, ele<br />

que está tão próximo do Demônio! Quando passo diante da colina da forca à noite,<br />

escuto barulhos <strong>de</strong> matar <strong>de</strong> medo. Sei muito bem <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os boticários e outros<br />

feiticeiros pagãos vão buscar as abominações que lhes servem para preparar as suas<br />

poções. Alguns cadáveres, dissecados até os ossos, até per<strong>de</strong>m a forma humana...<br />

Não é só os ratos e os abutres que vivem <strong>de</strong> carcaças, nós fazemos o mesmo!...<br />

Jericó: Pois é.... não sei. Po<strong>de</strong> ser que no cadafalso aconteçam coisas<br />

estranhas. Mas para mim, o carrasco é um homem como os outros. Vi um que nem


conseguiu executar a vítima, pois se apaixonou por ela bem no lugar do suplício.<br />

A Comandante: Como assim?<br />

Jericó: Ninguém conhecia a acusada. Ela não era da cida<strong>de</strong>, mas era linda <strong>de</strong><br />

se ver. Olhos doces, cheios <strong>de</strong> um terror mortal e úmidos como os <strong>de</strong> uma gazela.<br />

Eram realmente perigosos. Não era <strong>de</strong> se espantar que ele se apaixonasse aquele<br />

ponto. Estava lívido e suas mãos tremiam. Ele abandonou o machado, aproximou-se<br />

da vítima e esten<strong>de</strong>u-lhe a mão. Então, os olhos da mulher se encheram <strong>de</strong> lágrimas...<br />

A Comandante: Mas por Deus, como tudo isso acabou?<br />

225<br />

Jericó: Ele avançou em direção aos juizes, <strong>de</strong>clarando que se oferecia a casar-<br />

se com ela. Ora, vocês sabem muito bem que nesse caso é permitido perdoar. Eles se<br />

casaram e a mulher foi marcada a ferro quente, como o marido, pois assim é a lei.<br />

Viveram como as pessoas normais. Várias vezes os vi juntos quando ela<br />

esperava um filho. Continuava sedutora, embora, como esposa do Carrasco, trouxesse<br />

na fronte aquela marca maldita. No fim da gravi<strong>de</strong>z, tentaram encontrar uma parteira.<br />

Mas ninguém queria fazer o parto da mulher do carrasco. É bem provável que tenha<br />

sido forçada a parir sozinha, pois o marido não estava lá no momento necessário. Foi<br />

muito triste, ninguém sabe exatamente o que aconteceu, mas ela confessou diante do<br />

tribunal que tivera <strong>de</strong> estrangular o filho. Contou que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> recobrar forças para<br />

cuidar da criança e enxugar o sangue do seu rosto, viu que trazia na fronte o sinal do<br />

carrasco. Disse ainda que amava <strong>de</strong>mais o filho para se resignar a vê-lo viver nesse<br />

mundo com aquela marca. Então, ela foi con<strong>de</strong>nada a ser enterrada viva.<br />

O próprio marido teve <strong>de</strong> sepultá-la. Eu assisti a execução. Ele olhava o corpo<br />

da mulher <strong>de</strong>saparecer sob a terra e <strong>de</strong>morou o quanto pô<strong>de</strong> para cobrir a cabeça. Ela<br />

não pronunciou uma palavra e olhava o tempo todo para ele. Quando, enfim, chegou a<br />

hora <strong>de</strong> cobrir o rosto, ele <strong>de</strong>sviou o olhar.<br />

Contaram que na mesma noite ele voltou para tentar <strong>de</strong>senterrá-la, esperando<br />

que ainda estivesse viva... Partiu pouco tempo <strong>de</strong>pois e ninguém mais soube <strong>de</strong> seu


<strong>de</strong>stino.<br />

(um tempo)<br />

Mas agora, vamos beber e não falemos mais nessas coisas! Por aqui o vinho!<br />

Mais vinho! Mas que seja bem forte! É melhor aproveitar a vida enquanto ainda há<br />

tempo! Este é um lugar <strong>de</strong> Satã, mas se encontra aqui a melhor bebida. Vamos<br />

taberneiro, me faz jorrar o vinho da pare<strong>de</strong>!<br />

226<br />

A Comandante: Mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> contar tudo isso, você ainda afirma que o<br />

carrasco é um homem como os outros?<br />

Jericó : Afirmo! Com sangue nas veias e coração no peito.<br />

A Comandante: Então, porque não vai se sentar perto <strong>de</strong>le?<br />

Jericó : Nunca sabemos o que o diabo nos reserva...<br />

A Comandante: Conheço um homem que não tinha medo <strong>de</strong> se aproximar do<br />

carrasco! Lembra-se <strong>de</strong> Lasse, o ladrão...<br />

Jericó: Naturalmente, ele também é um filho <strong>de</strong> Satã. Rouba no jogo, aquele<br />

abominável maneta que não consegue segurar nada nas mãos.<br />

A Comandante: Roubar? Ele não precisa trapacear para embolsar seus<br />

miseráveis níqueis.<br />

Jericó: Você não sabe <strong>de</strong> nada!<br />

A Comandante: Ah não!?<br />

Jericó: Ele usa os mesmos truques que os outros ladrões, e quando o pegarem,<br />

o carrasco o pren<strong>de</strong>rá e ele irá para a forca!


227<br />

A Comandante: Nenhuma forca o pegará, em nome do Diabo! Lembro quando<br />

arrancaram seus <strong>de</strong>dos e os pregaram um a um no pelourinho. Ele ria olhando a<br />

multidão...<br />

Jericó: Ah é? Mas quando eles começaram a arrancar as mãos, aí a coisa<br />

mudou, não foi? Ele começou a rir menos!<br />

A Comandante: É verda<strong>de</strong> mas ele conta com forças po<strong>de</strong>rorsas para ter<br />

sobrevivido tanto tempo assim... Você sabe que ele tem uma Mandrágora?<br />

Jericó : Não vê que são só histórias?<br />

A Comandante: Garanto que não são só histórias! Ele a carrega no peito e a<br />

coisa tem uma forma humana.<br />

Jericó: Como pô<strong>de</strong> consegui-la?!<br />

A Comandante: Na colina do cadafalso, on<strong>de</strong> enterram os con<strong>de</strong>nados quando o<br />

vento os <strong>de</strong>rruba ... Eu mesma o vi quando foi arrancá-la! Foi horrível, os mortos<br />

choravam e se <strong>de</strong>batiam como os loucos. Eles se jogaram sobre Lasse enquanto<br />

procurava. Nesse momento ele viu a flor da Mandrágora no pé da forca, on<strong>de</strong> ainda<br />

estava pendurado um corpo. Lasse tirou com seus cotos um pouco <strong>de</strong> terra ali ao<br />

redor, <strong>de</strong>itou <strong>de</strong> bruços e pôs-se a arrancá-la com os <strong>de</strong>ntes! Mas a coisa começou a<br />

gritar até gelar o sangue... E quando conseguiu arrancá-la ouviam-se, ali <strong>de</strong>baixo da<br />

terra, uivos e mugidos! Era como se o inferno tivesse vazado sobre a terra! “Ela é<br />

minha! É minha! Agora tenho bens a legar, em nome do <strong>de</strong>mônio!”<br />

Quadro 2<br />

Um velho juiz está sentado, adormecido, numa ca<strong>de</strong>ira. Ele segura um gran<strong>de</strong><br />

livro, aberto sobre seus joelhos. O carrasco está na mesma posição que no primeiro<br />

quadro, imóvel e silencioso. Sentada no público, uma mulher espera.


228<br />

Juiz: - Acordando, retoma a leitura. – A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cultura é uma falsida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstrada pela ciência e conseguintemente fora <strong>de</strong> discussão. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

costumes, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritura, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>...i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>...<br />

sempre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>... – Um tempo. Olhando para o Carrasco – Respon<strong>de</strong> meu<br />

Carrasco, respon<strong>de</strong>. Será que estou aqui para <strong>de</strong>scobrir o mal o a inocência? Quem<br />

sou eu? Que Deus seja testemunha sempre <strong>de</strong>sejei tornar-me juiz... E para exercer<br />

minha função, foi preciso que me obstinasse, às custas <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> vícios. Mas o<br />

que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>finir um juiz é a mais rigorosa inteligência. O coração nos leva à<br />

perdição, nos <strong>de</strong>ixa escravos <strong>de</strong> uma serena langui<strong>de</strong>z. Na verda<strong>de</strong> não se trata só <strong>de</strong><br />

inteligência, mas também <strong>de</strong> – hesita – cruelda<strong>de</strong>, e além <strong>de</strong>ssa cruelda<strong>de</strong>, um<br />

caminhar hábil e vigoroso em direção à ausência. Em direção à morte... Deus? Estou<br />

morto, rígido. Rigi<strong>de</strong>z solene! Imobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva. On<strong>de</strong> estão minhas pernas? On<strong>de</strong><br />

estão meus braços? O que fazem minhas mãos <strong>de</strong>baixo das pregas frias <strong>de</strong> meus<br />

trajes? Elas se tornaram membros enfermos, asas cortadas, capazes somente <strong>de</strong><br />

esboçar gestos patéticos.. Mas ainda tenho você Carrasco! Magistral amontoado <strong>de</strong><br />

carne! Espelho que me glorifica! Nunca teria tua força nem tua habilida<strong>de</strong>. Aliás, o que<br />

eu faria com tanta força e habilida<strong>de</strong>? Meu braço... meu enorme braço, pesado <strong>de</strong>mais<br />

para meus ombros. Tu és meu corpo caminhando a meu lado... Sem ti eu não seria<br />

nada. - percebendo a presença <strong>de</strong> alguém na sala - Quem está ai?<br />

Mulher: Marta, Marta Lagerlöff.<br />

Juiz: Já chegou... Des<strong>de</strong> quando está aqui?<br />

Mulher: Cheguei agora, senhor.<br />

Juiz: Trate-me <strong>de</strong> senhor Juiz. Aproxime-se. – a mulher se aproxima - Você<br />

parece bem jovem. Não é menor?<br />

Mulher: Não, não senhor Juiz.<br />

Juiz: Bem, o que você fez?


Mulher: Roubei, senhor Juiz..<br />

Juiz: Então, você é uma ladra?!<br />

Mulher: Sim, senhor Juiz.<br />

Juiz: Não!<br />

Mulher: Não?<br />

Juiz: Isso é para <strong>de</strong>pois. A confissão <strong>de</strong>ve chegar na hora certa. Negue!<br />

Mulher: Para seu espancada?<br />

229<br />

Juiz: Justamente, para ser espancada! Primeiro você <strong>de</strong>ve negar, <strong>de</strong>pois<br />

confessar e se arrepen<strong>de</strong>r. Escute, não é con<strong>de</strong>nar o que mais <strong>de</strong>sejo, é julgar. É<br />

preciso que você seja uma ladra exemplar se quiser que eu seja um juiz exemplar.<br />

Estou sendo claro?<br />

Mulher: Sim , senhor Juiz.<br />

Juiz: Bom, quanto aos golpes, reconheço que o Carrasco bate com força.... mas<br />

ele também está fazendo o seu trabalho. Estamos ligados: você, ele e eu. Se ele não<br />

batesse como eu po<strong>de</strong>ria impedi-lo <strong>de</strong> bater? Portanto ele <strong>de</strong>ve bater para que eu<br />

intervenha e comprove minha autorida<strong>de</strong>. E você <strong>de</strong>ve negar para que ele bata! Ainda<br />

estou sendo claro?<br />

Mulher: Sim, senhor Juiz.<br />

Juiz: Muito bem. Então, vamos retomar: Você roubou?


Mulher: Não, senhor Juiz, jamais...<br />

230<br />

Juiz: Jamais? Foi surpreendida! Você esquece que uma re<strong>de</strong> sutil e sólida,<br />

meus tiras <strong>de</strong> aço, controlam todos os seus gestos? Insetos <strong>de</strong> olhos vivos, eles te<br />

espreitam e prisioneira te trazem aqui para que eu seja o juiz <strong>de</strong> seus atos! Ofício<br />

sublime! É <strong>de</strong> mim que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> o equilíbrio. O mundo é uma maçã, eu a corto em<br />

duas meta<strong>de</strong>s: os bons e os maus. E você está do lado dos maus. Sob o olhar do<br />

mundo, limparei a podridão. Reis dos Infernos, os que peso estão mortos, como eu.<br />

Você está morta e vou te fazer confessar.<br />

Mulher: O senhor me dá medo senhor Juiz.<br />

Juiz: Cale-se! Ladra, ca<strong>de</strong>la, Minos te fala! Minos te pesa! Nas profun<strong>de</strong>zas do<br />

Inferno, separo os humanos que por lá se aventuram, uma parte nas chamas, outra no<br />

tédio. Eu abarroto os Infernos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados, eu abarroto as prisões. Prisões,<br />

calabouços, lugares abençoados on<strong>de</strong> o mal é impossível pois são a encruzilhada <strong>de</strong><br />

toda a maldição do mundo. E não se po<strong>de</strong> cometer o mal no mal. E vocês vivem no<br />

mal, na ausência <strong>de</strong> remorsos. É o Diabo que brinca! É assim que o reconhecemos. É<br />

o gran<strong>de</strong> ator.. Há perigos por todos os lados. Todos correm perigo. Mas estamos<br />

prontos. Tenho encontro com vários magistrados, estamos preparando novas leis, uma<br />

revisão do código... On<strong>de</strong> está meu Código? Ele me esclarece, me mantém acordado.<br />

– Ele tosse. Se pare. Cuspe - On<strong>de</strong> eu estava mesmo? Ah, já me lembro. Ia ser Minos,<br />

meu cão latia. Cérbero? Cérbero? Você se lembra? Como você era cruel, mau! Bom! E<br />

eu, impiedoso. Enchíamos os infernos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados, enchíamos as prisões... És<br />

assustador Carrasco! E a visão <strong>de</strong> novas vitimas te faz parecer mais assustador ainda.<br />

Mostra tuas presas... Terríveis! Você é meu complemento perfeito. – Ele comece a<br />

adormecer. A luz vai diminuindo. Um tempo. tocando sua peruca – E você também,<br />

minha coroa. Saiba que se meus olhos se fecharem pela última vez, o que verei por<br />

<strong>de</strong>trás <strong>de</strong> minhas pálpebras, é tu, minha linda juba branca. – A luz continua abaixando.<br />

um tempo – A or<strong>de</strong>m do mundo está tão tumultuada que tudo é permitido... - ele


adormece -<br />

Uma função e uma função. Não é uma maneira <strong>de</strong> ser. Juiz é uma maneira <strong>de</strong><br />

ser. É um encargo, um fardo... A função vai à merda..<br />

Quadro 3<br />

231<br />

O General está <strong>de</strong> pé sobre a mesa. O carrasco continua na mesma posição,<br />

imóvel e silencioso. Ouve-se o canto da Morte. O General cai bruscamente no chão,<br />

fuzilado.<br />

A Morte: Todos os homens são mortais... e a vida é uma breve prisão on<strong>de</strong> eles<br />

se exaltam e se afligem. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>saparecem, só para mostrar como são frágeis os<br />

mortais. Nem o santo nem o guerreiro são poupados. A salubre e <strong>de</strong>sprezível carne<br />

consagra a promessa: o sumiço no meio do nada.<br />

General - Quem é você?<br />

A Morte: Sou a Morte.<br />

General: Finalmente chegou. Com tanto tempo <strong>de</strong> atraso. – um tempo - Você<br />

veio me buscar?<br />

A Morte: Tenho andado com você há muito tempo...<br />

General : Eu sei.<br />

A Morte: Você está com medo ?<br />

General : Minha carne está com medo, mas eu não... – um tempo - Os ventos...


os ventos se irritam... On<strong>de</strong> estamos ?<br />

A Morte : Você chegou. Você está em meu continente infinito.<br />

General: Ninguém te escapa?<br />

A Morte: Nada me escapa. Ninguém me escapa.<br />

General: Mas por que agora?<br />

A Morte: Você não terá a resposta.<br />

232<br />

General: Está tudo silencioso... mas parece que tudo se move. A calma é tão<br />

gran<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos dizer que tudo se move à uma velocida<strong>de</strong> terrível... Aon<strong>de</strong> está a<br />

legião <strong>de</strong> anjos que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>rrotar meus inimigos? – um tempo - A revolta acabou?<br />

Eles continuam? O que está acontecendo?<br />

A Morte: A cida<strong>de</strong> está cheia <strong>de</strong> cadáveres. As mulheres são as mais exaltadas.<br />

Elas cantam a matança e a pilhagem. Os seus soldados morrem beijando a ban<strong>de</strong>ira.<br />

General: A guerra era meu Deus. Deitei-me na lama e sequei-me ao ar do crime.<br />

Eu amava a or<strong>de</strong>m, era o meu sonho. Um mundo on<strong>de</strong> tudo seria silencioso e imóvel e<br />

cada coisa em seu lugar. - um tempo – Agora estou no fundo do mundo.<br />

A Morte: Em pouco tempo você estará <strong>de</strong> volta.<br />

General : Como??...<br />

A Morte: Em pouco tempo você estará <strong>de</strong> volta.<br />

General : Você me <strong>de</strong>ixaria voltar...


233<br />

A Morte: Todos pe<strong>de</strong>m isso, mas eu não faço concessões. No seu caso não<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim... Você é como um lago on<strong>de</strong> o povo vem sempre se mirar.<br />

General: E quando eles se <strong>de</strong>bruçam <strong>de</strong>mais, caem e se afogam...<br />

A Morte: Nunca existirá movimento bastante po<strong>de</strong>roso para <strong>de</strong>struir a sua<br />

imagem. O povo é capaz <strong>de</strong> sacrificá-lo, mas graças ao vício e a miséria você retomará<br />

o seu lugar.<br />

General: Impossível, estou morto.<br />

A Morte: Você é mais verda<strong>de</strong>iro que quando vivo... É <strong>de</strong> você que se dizia “Ele<br />

é forte como a Morte”. Escute!...Sua imagem, como o seu nome, já se repercute ao<br />

infinito.<br />

General: Minha imagem?...<br />

A Morte: Está inscrita, gravada, imposta pelo medo.<br />

General: Em todos os lugares?<br />

A Morte: Você está nos selos, nas cédulas, nos carimbos dos comissariados.<br />

General: Estou na guerra? Nos <strong>de</strong>ntes dos soldados?<br />

A Morte: Em toda parte.<br />

General: Na mão dos estivadores? Nas brinca<strong>de</strong>iras das crianças?<br />

A Morte: Sim...


General: Estou nas prisões? Nas rugas dos velhos?<br />

234<br />

A Morte: Para você tudo está escrito com letras maiúsculas. Os homens<br />

tremeram tanto que sua imagem começa a fazê-los duvidar <strong>de</strong>les mesmos. A sua<br />

imagem está inundando o mundo.<br />

General: Agora eu entendo... General! Homem <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> parada, eis-me<br />

aqui em minha pura aparência. Se atravessei guerras sem morrer, se atravessei as<br />

misérias sem morrer, se atravessei todos esses anos, foi por essa <strong>de</strong>scida ao encontro<br />

da glória. Estou morto e isso serve à minha glória.<br />

A Morte: O senhor é um general morto, mas eloqüente.<br />

General: Porque morto! Sou somente a imagem daquele que fui. Agora estou<br />

nos braços da nação! Construi um império para que, em troca, o império...<br />

A Morte: Construa-te um sepulcro.<br />

General: E por que não? Tenho meu sepulcro on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rei velar toda a minha<br />

morte. O povo abaixará a cabeça e escon<strong>de</strong>rá os olhos, pois serei general para a<br />

eternida<strong>de</strong>! Não é por min, mas pela minha imagem, e a minha imagem pela sua<br />

imagem, e assim por diante, ate o infinito!<br />

Estou aqui, face a face com a morte, mas não tenho medo porque sei que<br />

voltarei. Voltarei cem vezes se for preciso. Mas voltarei sempre. Sangrarei luz. Sou um<br />

carvão ar<strong>de</strong>nte. Queimo vivo. Escutem, rebel<strong>de</strong>s!! Cavalgarei sobre minha ira. Voarei<br />

sobre cada cida<strong>de</strong>, cada vilarejo, ninguém escapara ao meu olhar! Eu me jogarei sobre<br />

seus ombros como um lobo e rasgarei suas nucas! A po<strong>de</strong>rosa silhueta do Carrasco<br />

me guiará! Salve Carrasco! O sangue é a cor do homem. Vida longa a nós dois que<br />

poremos or<strong>de</strong>m neste mundo! Esfolaremos todos os traidores! Seremos sempre<br />

vitoriosos... O banho <strong>de</strong> aço da guerra é indispensável. E se não encontrarmos crimes


oubaremos os crimes do céu! Arrancaremos os crimes dos Deuses, seus estupros,<br />

seus incêndios, seus incestos, suas mentiras, suas matanças! A guerra é uma orgia do<br />

trovão!<br />

235<br />

Meus soldados avançarão, aparecerão como <strong>de</strong>uses! Seus fuzis, encerados e<br />

lustrados, com a impiedosa baioneta <strong>de</strong> aço.... Soldados! Os inimigos nos esperam e<br />

são homens que vocês <strong>de</strong>verão <strong>de</strong>sventrar, não ratos. E num lapso <strong>de</strong> tempo, no<br />

corpo a corpo olhem bem para eles e <strong>de</strong>scubram a humanida<strong>de</strong> que existe neles. Se<br />

não vocês matarão ratos e só terão feito o amor e a guerra com ratos. Quero a guerra,<br />

o amor e as tripas ao sol! Quero, costurados nos seus forros <strong>de</strong> suas fardas, imagens<br />

<strong>de</strong> garotas peladas e <strong>de</strong> Virgens Marias. Quero que enviem às suas famílias medalhas<br />

e relógios manchados <strong>de</strong> sangue coagulado e mesmo <strong>de</strong> esperma. Degolem meus<br />

filhos! Que eles babem sangue! Que eles sangrem escarro! Que eles suem por todos<br />

os buracos! A morte está nas suas costas. Sua foice brilha quando ela a levanta por<br />

cima <strong>de</strong> suas cabeças. Estão prontos? Todos para o cemitério!<br />

Quadro 4<br />

O carrasco: Eu sou o carrasco!...Des<strong>de</strong> o início dos tempos exerço o meu ofício<br />

e não parece que meu tempo já tenha acabado. Homens nascem e <strong>de</strong>saparecem mas<br />

eu permaneço e, coberto <strong>de</strong> sangue, vejo-os passar. Eu, o único que nunca envelhece.<br />

Quando, pela primeira vez, vocês dirigiram os olhos ao céu em busca <strong>de</strong> Deus,<br />

dilacerei um <strong>de</strong> seus irmãos e o ofereci em sacrifício. A partir <strong>de</strong>sse momento, vários<br />

foram aqueles que sacrifiquei aos <strong>de</strong>uses e aos diabos, ao céu e ao abismo, culpados e<br />

inocentes em legiões incalculáveis.<br />

Exterminei da terra povos inteiros, saqueei e <strong>de</strong>vastei reinos, flagelei até o<br />

sangue torrentes <strong>de</strong> homens, mergulhando a vida humana nas sombras da noite. A<br />

marca do crime incrustrou-se em minha fronte. Estou con<strong>de</strong>nado a lhes servir. Tudo o<br />

que vocês me pediram, eu fiz e fico à espera <strong>de</strong> que novas gerações me chamem com


sua voz jovem e impaciente. Pesa sobre mim o sangue dos milênios. Gritam em mim<br />

vozes que ninguém po<strong>de</strong> imaginar. Por que minha alma maldita <strong>de</strong>ve sofrer tudo isso?<br />

Por que se <strong>de</strong>scarrega sobre mim a soma <strong>de</strong> todos os pecados? Quem me dará o<br />

repouso da morte?<br />

Na época em que ainda havia um Deus, <strong>de</strong>cidi um dia seguir em sua direção.<br />

Lembro que era o dia em que eu velava um con<strong>de</strong>nado que dizia ser o Cristo dos<br />

Homens. Deixei a terra e caminhei nem sei por quanto tempo. Achei Deus, gran<strong>de</strong> e<br />

po<strong>de</strong>roso na imensidão celeste.<br />

espaço.<br />

236<br />

Mas ele não me via, estava imóvel e como que petrificado, o olhar perdido no<br />

Eu falava e falava sem parar, mas seu rosto duro e impassível não esboçou um<br />

traço sequer. Parecia talhado em pedra. Seus olhos inchados, vazios como o <strong>de</strong>serto,<br />

fixavam sempre o espaço. Fui tomado <strong>de</strong> assombro e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sespero acima <strong>de</strong><br />

minhas forças. Sozinho no silêncio, sentia o vento da eternida<strong>de</strong> me congelar... Não<br />

havia nada a fazer, ninguém com quem falar. Nada.<br />

O Deus <strong>de</strong> vocês, vocês o petrificaram! Está morto há muito tempo! Vocês não<br />

escutam seu silêncio entre nossos gritos? Loucos que se massacram ao infinito!<br />

Como ele po<strong>de</strong>ria ter <strong>de</strong>sejado tudo o que está acontecendo agora? Ele se<br />

<strong>de</strong>compõe como um leproso em seu trono e o vento sinistro da eternida<strong>de</strong> dissemina<br />

seu pó nos <strong>de</strong>sertos celestes.<br />

Entendi por que vocês me chamavam! Eu sou o Cristo dos homens, com a<br />

marca do carrasco na fronte! Eu sigo meu caminho <strong>de</strong> guerra através do mundo e todo<br />

dia eu os salvo no sangue! E eu, ninguém crucifica! Aspiro ao sacrifício da morte. Mas<br />

sei que esse momento nunca virá. Enquanto vocês existirem, minha cruz jamais será<br />

erguida<br />

A Morte: Você sabe que eu te espero! Te espero quando você volta abatido e<br />

manchado <strong>de</strong> sangue. Você <strong>de</strong>ita a cabeça em meus joelhos, beijo tua fronte ar<strong>de</strong>nte e<br />

enxugo o sangue da tua mão. Você sabe que sempre te espero!

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