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VJ FEV 2010.p65 - Visão Judaica

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VISÃO JUDAICA fevereiro de 2010 Adar 5770<br />

Entrevista com Pilar Rahola em Barcelona<br />

Sérgio A. Feldman e Szyja B. Lorber *<br />

manhã de inverno não<br />

fora generosa comigo.<br />

Barcelona alternava<br />

sol e chuva e nesse dia<br />

(14/1) o sol se escondera<br />

e chovia, e suspeitei que<br />

poderia não ser um bom<br />

presságio. A entrevista fora marcada<br />

para o Real Club de Polo de Barcelona.<br />

Fiz uso do metrô e por pouco não me<br />

perdi entre os prédios do imenso campus<br />

universitário que se aloca nesta parte<br />

da cidade. Cheguei cedo e acanhado<br />

entrei. Um lugar de elite, onde um turista<br />

casual, vestido de maneira simples<br />

pode se sentir perdido em meio a tanta<br />

gente elegante e refinada.<br />

Em alguns minutos apareceu Pilar.<br />

Elegante, agitada e cheia de carisma.<br />

Uma mulher charmosa e que transpira<br />

personalidade. Foi gentil e afetiva e me<br />

convidou para comer e beber algo. Agradeci<br />

mas ela fez questão e me trouxe<br />

um refrigerante. O clima era descontraído<br />

e o ambiente propício para uma entrevista.<br />

Sorte de principiante, diria algum<br />

entendido.<br />

Pilar não se incomodou com perguntas<br />

provocativas e nem com dilemas<br />

e contradições. Assumiu imediatamente<br />

sua identidade e não escondeu sua<br />

absoluta negativa a freios e rédeas ideológicas.<br />

Sua condição de "livre pensadora",<br />

num sentido contemporâneo é<br />

explicita. Vamos à entrevista.<br />

SÉRGIO FELDMAN: A guisa de introdução<br />

irei questioná-la sobre um tema de meus<br />

estudos que cria uma relação entre entrevistador<br />

e entrevistado. No século<br />

XIII, em 1263 nesta cidade de Barcelona,<br />

realizou-se um debate entre o sábio<br />

judeu Nachmânides e um grupo de dominicanos,<br />

onde se sobressaia um judeu<br />

convertido, de nome Pablo Christiani.<br />

A verdadeira fé era o tema. O mundo<br />

mudou e a gente repensa os fatos<br />

sob uma nova ótica. Haveria hoje em<br />

Barcelona e na Espanha, um novo e respeitoso<br />

diálogo entre os dois lados desta<br />

corrente? Haveria um reencontro com<br />

este passado e um acerto de contas com<br />

certos erros do mesmo?<br />

PILAR RAHOLA: Quando a Espanha expulsou<br />

os judeus da velha Sefarad, também<br />

expulsou a inteligentzia (N. E: intelectualidade),<br />

expulsou o desejo e a<br />

vocação do diálogo, expulsou o debate<br />

e, provavelmente, por um longo tempo,<br />

a modernidade. Sem dúvida alguma<br />

a comunidade judaica aqui na Catalunha,<br />

onde estamos, em Barcelona, tinha<br />

a ver com o melhor do pensamento<br />

da época, e dos grandes debates que<br />

são mencionados. Sabemos que de<br />

muitos deles perdemos o registro, mas<br />

estamos conscientes que lá realmente<br />

se promovia o pensamento. Tenho que<br />

dizer com muita dor que a consciência<br />

e a alma judaica de Barcelona e globalmente<br />

da Catalunha ficaram completamente<br />

mirradas. E eu diria também no<br />

nível amplo de toda a Espanha.<br />

Mas hoje a ideia de que um judeu,<br />

sábio profundo, possa ter um debate<br />

sensato, elevado e tranquilo com um<br />

não judeu, hoje, na minha cidade, é impossível.<br />

Estamos submetidos a discursos<br />

muito estigmatizados, a um pensamento<br />

politicamente correto, que de<br />

alguma forma demoniza o judeu, e qualquer<br />

discussão que tenha a ver com a<br />

cultura judaica, com o seu profundo conhecimento<br />

da vida, com suas ideias filosóficas,<br />

sempre cai na atualidade política,<br />

militar, no conflito do Oriente<br />

Médio. É impossível. Muitos dos meus<br />

artigos falam sobre essa questão, a sensatez.<br />

Falam da reivindicação do direito<br />

ao diálogo. Vou te dar um exemplo<br />

para a minha auto-referência. Na época<br />

da operação militar na Faixa de Gaza,<br />

aqui na Espanha ficaram loucos. Praticamente<br />

isso ocorreu em todo o mundo,<br />

mas especialmente aqui isso foi visível.<br />

Acho que agora, francamente,<br />

que a Espanha é o país mais neo-antissemita<br />

de toda a Europa. Reinventando<br />

o antissemitismo. Chamem de antissionismo,<br />

chamem de antiisraelismo,<br />

mas ainda é o tema judaico.<br />

Lembro que quando houve a ofensiva<br />

em Gaza escrevi um artigo primeiro<br />

dizendo "não simplifiquemos o conflito".<br />

Apenas afirmei isso: Não sejamos<br />

simplistas e tampouco maniqueístas.<br />

Nem uns são tão maus, nem outros são<br />

tão bons. O maniqueísmo é inútil, pois<br />

elimina o diálogo. Bem, é óbvio que fui<br />

criticada, atacaram-me, ameaçaramme.<br />

Tudo que vocês possam imaginar.<br />

Então, escrevi outro artigo onde reivindicava<br />

o direito de pensar e reivindicava<br />

o direito de falar. E nós estamos nesse<br />

nível. De forma que eu lhes digo, obviamente,<br />

nas sociedades modernas<br />

podemos discutir as mudanças climáticas,<br />

os direitos civis e sobre o que você<br />

queira, mas quando tocamos na pele judaica,<br />

há um montão de gente que se<br />

torna absolutamente histérica.<br />

E já me perguntei publicamente, e<br />

repito agora: Por que tanta gente inteligente<br />

ao falar sobre esta questão torna-se<br />

estúpida? Fica assim, sem lógica<br />

e sem coerência: Cega na negação do<br />

judeu e do Judaísmo. Não, não imagino<br />

este diálogo medieval hoje, no século<br />

XXI, em Barcelona. Todo e qualquer diálogo<br />

hoje redundaria em antiisraelismo.<br />

Infelizmente, isto quer dizer que,<br />

ainda que de maneira matizada e dentro<br />

de contextos diferentes, em alguns<br />

aspectos, o passado nos ensina lições<br />

de tolerância.<br />

SF: Você é uma republicana, cosmopolita<br />

e defensora dos direitos humanos e<br />

da modernidade, mas rejeitar as posições<br />

antiisraelenses da esquerda faz de<br />

você um ET, uma extraterrestre. Comente<br />

isso.<br />

PR: Hoje, a ideologia mais difícil de defender,<br />

a ideologia mais dura, a que<br />

temos que lutar mais, é a ideologia do<br />

livre pensamento. Isto é, todos se colocam<br />

sob o "guarda-chuva" ideológico.<br />

Sou de esquerda, sou de direita, sou<br />

ambientalista, e sou antissistema. E alguém<br />

diz: Eu sou eu. E as minhas dúvidas,<br />

minhas perguntas, claro que têm<br />

sensibilidade, eu sou uma ambientalista,<br />

estou preocupada com os direitos<br />

civis, direitos das mulheres, direitos<br />

dos animais. Eu sou contra touradas.<br />

Sou uma das líderes na Espanha, de um<br />

movimento que está prestes a conseguir<br />

a proibição das corridas de touros<br />

em Barcelona, e na Catalunha, como um<br />

todo. Nós enviamos cem mil assinaturas<br />

para o Parlamento. Eu sou tudo isso,<br />

mas acima de tudo, e antes de tudo<br />

isso, eu sou alguém que faz perguntas.<br />

Ah! Isto é desconfortável, isso é um<br />

sacrilégio, porque vivemos num mundo<br />

em que todos têm respostas. Mas<br />

ninguém faz perguntas.<br />

Recordo, se me permitir, da visão<br />

de Albert Camus, no ano do aniversário<br />

do cinqüentenário de sua morte. Parafraseando<br />

este pensador, eu me lembro<br />

da visão da pessoa que está no meio<br />

de uma praça pública, que armou sua<br />

barraca de campanha na praça e defende<br />

suas perguntas e respostas contra<br />

tudo e contra todos. Notem que Albert<br />

Camus foi um esquerdista, mas enfrentou<br />

Sartre e outros intelectuais da época,<br />

porque eles defendiam ditadores.<br />

Sartre ia para as manifestações de 68<br />

com uma foto de Pol Pot, o sanguinário<br />

ditador cambodjano, que executou<br />

centenas de milhares de pessoas inocentes!<br />

E Camus disse: Não, isso não é<br />

liberdade! E quando toda a gauche (esquerda)<br />

francesa defendia as ações que<br />

o terrorismo praticava nos bares de Argel,<br />

onde as mulheres vestidas com túnicas<br />

traziam bombas, e se faziam explodir<br />

matando jovens que bebiam<br />

café, vitimando pessoas inocentes, em<br />

operações terroristas executadas sem<br />

sentido, quando os alvos civis são o<br />

objetivo, Camus, profético, já dizia:<br />

Não, o terrorismo não justifica as causas,<br />

e não há motivo que justifique esse<br />

mal. E ele os enfrentou. Tinha a visão<br />

daquele que olhava para além da sua<br />

ideologia. Pensava livremente.<br />

Modestamente, estou convencida<br />

de que não há nada mais revolucionário,<br />

mais rebelde, e mais livre, que pensar<br />

livremente, até com direito a errar,<br />

todo dia. Pensar e não temer dizer e<br />

enfrentar a maioria que reluta em refletir.<br />

E ter o direito de errar. E a retificar:<br />

reconhecer, caso errou. Mas eu aspiro<br />

fundar a ideologia dos que têm dúvidas,<br />

dos que se perguntam, dos que não se<br />

somaram aos estereótipos, dos que não<br />

são politicamente corretos, dos que não<br />

têm medo de pensar e falar. O que significa<br />

que alguns te odeiem? Bem, ninguém<br />

é ninguém, se não tiver alguns<br />

bons inimigos. O que quer dizer que alguns<br />

te expulsem de seu paraíso ideológico?<br />

Eu os expulso do meu. O que é<br />

que significa que alguém esteja só?<br />

Quem disse que a liberdade não tem a<br />

ver com a solidão? Veja: Uma vez alguém<br />

escreveu: Um pensamento livre é um<br />

território inóspito solitário. E eu vivo no<br />

pensamento livre.<br />

Posso perceber que ela se emociona<br />

quando fala. Imagine a energia dela<br />

ao falar de Israel, do "prejuicio" (preconceito<br />

em espanhol). Ela se percebe<br />

como parte de uma minoria, pois é catalã<br />

assumida. Defende o uso de sua língua<br />

e de sua cultura já milenar. Ou seja,<br />

possui um parâmetro de reflexão que é<br />

étnico e que postula a diversidade.<br />

Sergio Alberto Feldman entrevistou Pilar Rahola em Barcelona<br />

SF: Por que o Islã militante hoje é a vanguarda<br />

da reação, se o Islã medieval na<br />

Espanha era o encontro das civilizações<br />

e de uma suposta convivência?<br />

PR: Bem, vamos por partes. Há um mito<br />

sobre Al Andaluz que eu creio que é<br />

falso. Al Andaluz não foram 800 anos<br />

de paz. Al Andaluz não foram 800 anos<br />

de convivência, Al Andaluz não foram<br />

800 anos de pensamento e de tecnologia.<br />

Em Al Andaluz houve alguns momentos<br />

de certa tranquilidade e de<br />

certa tolerância. Mas houve anos e<br />

anos, e décadas, e inclusive séculos,<br />

de uma intolerância terrível com brutais<br />

perseguições de todos aqueles que<br />

não eram muçulmanos. Não esqueçamos<br />

que cristãos e judeus naquele Al<br />

Andaluz eram cidadãos de segunda, e<br />

às vezes de terceira classe. Muito frequentemente<br />

perseguidos, explorados<br />

com elevados impostos, expulsos<br />

do serviço público, e considerados<br />

realmente como seres humanos de nível<br />

inferior. Considerar que o mito de<br />

Al Andaluz é o mito da tolerância é<br />

mentira histórica. De fato, o exemplo<br />

mais claro é Maimônides, que tem que<br />

ser ouvido como o exemplo mais emblemático.<br />

Teve de fugir de Córdoba e<br />

se refugiar no Norte da África e depois<br />

no Egito. Al Andaluz exilou um de seus<br />

mais nobres filhos. Em 800 anos houve<br />

de tudo. Mas primaram especialmente<br />

por longas épocas de um extremismo<br />

islâmico brutal e terrível, absolutamente<br />

violento, claramente o<br />

contrário a algum tipo de diálogo, e<br />

que a partir daí é o pior tipo de Islã<br />

que imagino.<br />

Estou certa de que alguns dos ditadores<br />

do petrodólar, os ditadores da<br />

Arábia Saudita, ou os ditadores de qualquer<br />

nação... Inclusive alguns dos líderes<br />

terroristas como Bin Laden por sua<br />

vez, viveriam felizes em Al Andaluz,<br />

porque houve épocas em Al Andaluz<br />

3<br />

* Sérgio Alberto<br />

Feldman é doutor<br />

em História pela<br />

UFPR e professor<br />

de História Antiga<br />

e Medieval na<br />

Universidade<br />

Federal do Espírito<br />

Santo, em Vitória.<br />

Foi diretor de<br />

Cultura <strong>Judaica</strong> da<br />

Escola Israelita<br />

Brasileira Salomão<br />

Guelmann, em<br />

Curitiba.<br />

Szyja Ber Lorber é<br />

jornalista e editor<br />

do Jornal <strong>Visão</strong><br />

<strong>Judaica</strong>. Degravou<br />

o vídeo, traduziu o<br />

texto e fez a préedição<br />

do material.<br />

A edição final é de<br />

Sérgio Alberto<br />

Feldman.

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