29.04.2013 Views

(PDF). - Jardim do Dharma

(PDF). - Jardim do Dharma

(PDF). - Jardim do Dharma

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

A Arte de Morrer<br />

O termo tibetano bar<strong>do</strong> pertence ao vocabulário <strong>do</strong> tempo. Designa um intervalo<br />

temporal marca<strong>do</strong> por um início e um fim defini<strong>do</strong>s: uma conferência, por exemplo,<br />

começa em um ponto preciso <strong>do</strong> tempo e termina em outro ponto preciso. O tempo de<br />

seu transcurso poderia receber a denominação de bar<strong>do</strong>. Assim, o termo não se aplica<br />

apenas à morte, mas a toda experiência ou a to<strong>do</strong> fenômeno cujos limites temporais são<br />

definíveis, de duração longa ou breve. O tempo de um estalar de de<strong>do</strong>s poderia muito<br />

bem caber nessa definição. Elaborar a lista <strong>do</strong>s bar<strong>do</strong>s desembocaria num enuncia<strong>do</strong><br />

sem fim. Por comodidade, restringimos seu número a algumas grandes categorias, duas,<br />

quatro ou seis, segun<strong>do</strong> as abordagens.<br />

Vejamos aqui o que são os seis bar<strong>do</strong>s:<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> nascimento à morte, que se interrompe aos primeiros sinais da agonia;<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> sonho, delimita<strong>do</strong> entre o momento em que a<strong>do</strong>rmecemos e aquele em que<br />

despertamos;<br />

O bar<strong>do</strong> da concentração: <strong>do</strong> início ao fim de uma meditação.<br />

Esses três primeiros bar<strong>do</strong>s pertencem à vida presente.<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> momento da morte: <strong>do</strong> início <strong>do</strong> processo da morte até a morte efetiva.<br />

O bar<strong>do</strong> da natureza em si: <strong>do</strong> momento da morte até o aparecimento das divindades no<br />

esta<strong>do</strong> post-mortem.<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a ser: <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> precedente até o nascimento.<br />

Esses três últimos constituem os bar<strong>do</strong>s da morte.<br />

A essência da mente de to<strong>do</strong>s os seres é o que denominamos a Essência <strong>do</strong> Despertar.<br />

Deste ponto de vista, que é o da verdade última, não existe bar<strong>do</strong>. No entanto, não<br />

temos conhecimento desse mo<strong>do</strong> de ser último, e é por isso que se produzem to<strong>do</strong>s os<br />

tipos de manifestações ilusórias sobre o mo<strong>do</strong> relativo, dentre os quais os seis bar<strong>do</strong>s,<br />

fonte de inumeráveis sofrimentos. Os ensinamentos <strong>do</strong> Buddha visam dissipar esse tipo<br />

de experiência errônea e os sofrimentos que dela decorrem.<br />

Esses ensinamentos ressaltam a importância primordial de ter uma prática espiritual<br />

durante os três bar<strong>do</strong>s desta vida. Uma sólida base espiritual desenvolvida a partir de<br />

agora torna mais fácil a passagem pelos três bar<strong>do</strong>s da morte.<br />

Melhor ainda, a realização <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de ser da mente tornará vão o aparecimento <strong>do</strong>s três<br />

bar<strong>do</strong>s da morte. Nesse caso, é um pouco como tomar um eleva<strong>do</strong>r para subir à<br />

cobertura de um imóvel: apertamos o botão e não necessitamos parar nos andares<br />

intermediários. Mesmo que essa realização não seja alcançada, o desenvolvimento<br />

espiritual adquiri<strong>do</strong> nesta vida tornará mais fácil a experiência <strong>do</strong>s bar<strong>do</strong>s da morte,<br />

permitirá eventualmente reconhecer sua natureza e libertar-se dela.<br />

Os seis bar<strong>do</strong>s não são seis <strong>do</strong>mínios existin<strong>do</strong> independentemente de nós mesmos. Eles<br />

estão liga<strong>do</strong>s à nossa mente, que vive no erro. Sua manifestação procede de nossa<br />

mente. É nossa mente que reconhece seu caráter engana<strong>do</strong>r e deles se liberta.<br />

A maneira como são vivi<strong>do</strong>s os seis bar<strong>do</strong>s depende unicamente de nossa mente, pois<br />

que são o reflexo da mente. Suponhamos uma casa composta de seis cômo<strong>do</strong>s. As<br />

paredes de cada um <strong>do</strong>s cômo<strong>do</strong>s são recobertas de espelhos. Um homem habita essa


casa. Ele é sujo, hirsuto, esfarrapa<strong>do</strong>, trejeita<strong>do</strong>r. Ele passa de um cômo<strong>do</strong> a outro, mas<br />

os espelhos sempre lhe retornam a mesma imagem, a de um homem sujo, hirsuto,<br />

esfarrapa<strong>do</strong> e trejeita<strong>do</strong>r. Da mesma forma, quan<strong>do</strong> nossa mente está marcada por muito<br />

karma negativo cada um <strong>do</strong>s seis bar<strong>do</strong>s retorna-lhe o sofrimento como um reflexo. O<br />

habitante da casa pode - ao contrário- ser limpo, bem vesti<strong>do</strong>, sorridente. Passan<strong>do</strong> de<br />

um cômo<strong>do</strong> a outro, ele vê em toda parte um rosto claro e sorridente. A casa é a mesma,<br />

mas não há mais nenhuma feiúra nem visões apavorantes. Em vez disso, uma visão<br />

agradável e tranqüila. Quan<strong>do</strong> nossa mente está livre <strong>do</strong> karma negativo e das paixões<br />

que a perturbam, os seis bar<strong>do</strong>s retornam-lhe também uma imagem semelhante a si<br />

mesma, cheia de paz e felicidade.<br />

Agradáveis ou desagradáveis, as aparências não dependem <strong>do</strong>s seis cômo<strong>do</strong>s, que são<br />

neutros. O indivíduo que neles se encontra os impregna com sua própria natureza. Do<br />

mesmo mo<strong>do</strong>, as experiências errôneas <strong>do</strong>s seis bar<strong>do</strong>s não dependem <strong>do</strong>s bar<strong>do</strong>s, mas<br />

de nossa própria mente.<br />

Vejamos o processo <strong>do</strong>s três bar<strong>do</strong>s da morte.<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> momento da morte<br />

Nosso corpo é composto <strong>do</strong>s quatro elementos, reparti<strong>do</strong>s da seguinte maneira:<br />

a carne, os ossos, os constituintes sóli<strong>do</strong>s formam o elemento terra;<br />

o sangue, a fleuma, os diferentes líqui<strong>do</strong>s formam o elemento água;<br />

a temperatura forma o elemento fogo;<br />

o processo respiratório forma o elemento ar.<br />

No momento da morte, esses elementos reabsorvem-se uns nos outros, dan<strong>do</strong> lugar a<br />

uma dupla série de fenômenos, exteriores e interiores.<br />

Em primeiro lugar, o elemento terra reabsorve-se no elemento água. Exteriormente, os<br />

membros tornam-se incapazes de mover-se. Interiormente, a mente vê como miragens.<br />

O elemento água reabsorve-se em seguida no elemento fogo. Exteriormente a boca e a<br />

língua tornam-se secas. Interiormente, percebemos fumaças que passam ou que se<br />

elevam.<br />

Quan<strong>do</strong> o elemento fogo reabsorve-se no elemento ar, exteriormente o calor aban<strong>do</strong>na<br />

os membros, das extremidades em direção ao centro. Interiormente surge um grande<br />

número de faíscas.<br />

Depois o elemento ar reabsorve-se na consciência individual. Exteriormente, a<br />

respiração cessa. Interiormente vemos como chamas de lamparinas à base de manteiga<br />

que bruxuleiam.<br />

A esse processo de reabsorção gradual <strong>do</strong>s quatro elementos sucede o processo <strong>do</strong>s três<br />

caminhos, concomitante com uma fase denominada aparição-extenção-obtenção.<br />

Antes de tu<strong>do</strong>, a consciência individual reabsorve-se na aparição. No mesmo momento<br />

o thigle [gota de energia sutil] branco <strong>do</strong> princípio masculino, situa<strong>do</strong> no alto da cabeça,<br />

desce até o coração. Essa fase é denominada o caminho branco. Interiormente, uma<br />

grande luminosidade branca invade a mentes.


Em segun<strong>do</strong> lugar, a aparição reabsorve-se na extensão. O thigle vermelho <strong>do</strong> princípio<br />

feminino, situa<strong>do</strong> na base <strong>do</strong> tronco, sobe até o coração. É o caminho vermelho,<br />

caracteriza<strong>do</strong> pela manifestação de uma grande luminosidade vermelha.<br />

Enfim, o princípio masculino branco e o princípio feminino vermelho juntam-se no<br />

coração. É o caminho negro. A mente, por um instante, faz a experiência da vacuidade,<br />

depois cai na obscuridade.<br />

Essas descrições técnicas <strong>do</strong>s diferentes fenômenos que se manifestam no momento da<br />

morte não têm apenas um valor <strong>do</strong>cumentário. Se, com efeito, não temos nenhum<br />

conhecimento <strong>do</strong> processo de reabsorção <strong>do</strong>s elementos uns nos outros, e da sucessão<br />

<strong>do</strong>s três caminhos, sua aparição pode nos deixar desampara<strong>do</strong>s e causar-nos muito<br />

pavor. Ter um certo conhecimento disso desde já é estar preveni<strong>do</strong> e, portanto, não ser<br />

arrebata<strong>do</strong> pelo me<strong>do</strong> <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>.<br />

Podemos também ir mais longe, desenvolven<strong>do</strong> uma compreensão mais profunda. Com<br />

efeito, para além de sua manifestação, esses fenômenos têm uma essência pura à qual<br />

podemos nos referir.<br />

Os quatro elementos têm por essência pura as "quatro deusas". No momento <strong>do</strong><br />

desenvolvimento <strong>do</strong>s fenômenos causa<strong>do</strong>s pela reabsorção <strong>do</strong>s elementos, pensamos<br />

que esses fenômenos são a manifestação das quatro deusas:<br />

Buddhalochana: o elemento terra;<br />

Mamaki: o elemento água;<br />

Pandaravasini: o elemento fogo;<br />

Samayatara: o elemento ar.<br />

Essas quatro deusas existem naturalmente na mente desde sempre. Saber reconhecer sua<br />

expressão é também escapar <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />

Se essas noções de deusas são para nós difíceis de aceitar ou de assimilar, podemos<br />

desenvolver uma abordagem diferente pensan<strong>do</strong>: "Os fenômenos que agora se<br />

produzem são manifestações ilusórias de minha mente. Eles não existem em si mesmos,<br />

são apenas uma produção de minha mente".<br />

Os três caminhos têm igualmente por essência pura os três Corpos de Buddha:<br />

o caminho branco: o Corpo de Manifestação [sânsc. nirmanakaya];<br />

o caminho vermelho: o Corpo de Glória [sânsc. sambhogakaya];<br />

o caminho negro: o Corpo Absoluto [sânsc. dharmakaya].<br />

Eles não são, portanto, apavorantes em si mesmos.<br />

Se, além disso, temos agora uma boa prática <strong>do</strong> mahamudra, reconheceremos o fim <strong>do</strong><br />

caminho negro como sen<strong>do</strong> a manifestação da "clara luz fundamental". Reconhecer essa<br />

clara luz fundamental é "tornar-se Buddha no Corpo Absoluto <strong>do</strong> momento da morte".<br />

Dizemos ainda que é ser "liberto enquanto Buddha no primeiro bar<strong>do</strong>". Quan<strong>do</strong> o<br />

Despertar é assim alcança<strong>do</strong>, o bar<strong>do</strong> não prossegue.<br />

Se, em contrapartida, a clara luz fundamental não é reconhecida, a mente mergulha num<br />

esta<strong>do</strong> de profunda inconsciência, de uma duração variável, mas fixada, em regra geral,<br />

em três dias e meio.


O conjunto <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que se estende desde o começo da dissolução <strong>do</strong>s elementos até<br />

o fim <strong>do</strong>s três dias e meio de inconsciência constitui o bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> momento da morte.<br />

Pergunta: Quan<strong>do</strong> se diz que os elementos "reabsorvem-se" uns nos outros, o que<br />

significa aqui "reabsorver-se"?<br />

Resposta: "Reabsorver-se" significa, nesse caso, que a energia que rege cada um <strong>do</strong>s<br />

elementos deixa de ser funcional e reabsorve-se na energia <strong>do</strong> elemento seguinte.<br />

Esse processo de reabsorção <strong>do</strong>s quatro elementos não ocorre apenas no momento da<br />

morte, mas também, de maneira extremamente sutil, quan<strong>do</strong>, por exemplo, <strong>do</strong>rmimos<br />

ou quan<strong>do</strong> um pensamento desaparece da mente.<br />

Pergunta: Vimos que na seqüência da reabsorção <strong>do</strong>s quatro elementos desenvolvia-se<br />

um outro processo sutil, denomina<strong>do</strong> "aparição-extenção-obtenção". Por que esses<br />

termos são utiliza<strong>do</strong>s? Trata-se da aparição, da extensão e da obtenção da clara luz?<br />

Resposta: Não, não exatamente. Esses termos não são utiliza<strong>do</strong>s para descrever o<br />

processo de nascimento ou de cessação de um esta<strong>do</strong> mental, seja no momento da morte<br />

ou em outras circunstâncias, como o sono ou o pensamento. Conforme se trate de uma<br />

cessação ou de um começo, há <strong>do</strong>is sistemas:<br />

o sistema progressivo, quer dizer, o movimento <strong>do</strong> exterior para o interior;<br />

o sistema regressivo, quer dizer, o movimento <strong>do</strong> interior para o exterior.<br />

No momento da morte, é o sistema progressivo que entra em jogo.<br />

O sistema regressivo é ilustra<strong>do</strong> pelo processo de acordar. Durante o sono profun<strong>do</strong>, a<br />

consciência é absorvida no potencial de consciência. Todas as consciências - visual,<br />

auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental - então, em esta<strong>do</strong> latente. Quan<strong>do</strong><br />

despertamos, elas saem desse potencial. O instante preciso em que, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a<br />

virtualidade, elas põe-se em funcionamento, corresponde à aparição. É o primeiro<br />

instante de seu funcionamento, antes mesmo da percepção de um objeto. A segunda<br />

fase, a extensão, corresponde ao momento em que, por intermédio <strong>do</strong> olho - se tomamos<br />

o exemplo da consciência visual - uma forma é vista pela consciência visual. Esta fase é<br />

denominada extensão, pois marca um aumento da experiência cuja aparição era o<br />

começo. É o segun<strong>do</strong> instante dessa experiência. Enfim, vem a identificação <strong>do</strong> objeto<br />

percebi<strong>do</strong>, por exemplo: "Isto é um copo". É a obtenção.<br />

Esse sistema regressivo aplica-se tanto ao nascimento de um indivíduo quanto à<br />

concepção de um pensamento.<br />

O sistema progressivo, aquele que vimos para a morte, é também ilustra<strong>do</strong> pelo<br />

a<strong>do</strong>rmecimento. Se representamos o exemplo <strong>do</strong> copo, a percepção <strong>do</strong> copo é a<br />

aparição. Quan<strong>do</strong>, em razão da chegada <strong>do</strong> sono, ele cessa de ser percebi<strong>do</strong>, diz-se que a<br />

aparição reabsorve-se na extensão. Depois, quan<strong>do</strong> nos aprofundamos mais no sono, a<br />

extensão reabsorve-se na obtenção. A extensão enceta o processo de absorção no<br />

potencial de consciência. Quan<strong>do</strong> a absorção é concluída é "a obtenção-clara luz", ou<br />

ainda "a clara luz <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de ser fundamental". De fato, ela só é verdadeiramente a<br />

clara luz se é identificada. Caso contrário, é simplesmente a ignorância, a obscuridade


inconsciente.<br />

Pergunta: Vimos que existe uma relação entre as três fases aparição-extensão-obtenção<br />

e os três Corpos <strong>do</strong> Despertar. Como ela explicita-se?<br />

Resposta: A aparição equivale ao caminho branco. Quan<strong>do</strong> ele não é reconheci<strong>do</strong> pelo<br />

que ele é na realidade, é percebi<strong>do</strong> como uma experiência de cessação da produção de<br />

agressividade no mental. Se reconhecemos sua essência, é o Corpo de Emanação.<br />

A extensão equivale ao caminho vermelho. Se ele não é reconheci<strong>do</strong>, é percebi<strong>do</strong> como<br />

uma experiência de cessação da produção de desejo-apego. Sua essência é o Corpo de<br />

Glória.<br />

A obtenção equivale ao caminho negro. Não reconheci<strong>do</strong>, é percebi<strong>do</strong> como uma<br />

experiência de suspensão da produção de opacidade mental. Sua essência é o Corpo<br />

Absoluto, que designa também a expressão "clara luz fundamental".<br />

Às três fases previamente citadas, acrescentamos, às vezes, uma quarta, denominada<br />

"total obtenção". Este termo significa que é reconhecida a essência <strong>do</strong> caminho negro.<br />

Ele se refere, portanto, à experiência da clara luz. Obtenção e total obtenção possuem<br />

um senti<strong>do</strong> quase idêntico, a não ser pelo fato de que o primeiro situa-se no instante<br />

precedente <strong>do</strong> reconhecimento da clara luz, enquanto o segun<strong>do</strong> no instante que o segue.<br />

Pergunta: O que é a clara luz?<br />

Resposta: A clara luz é permanecer no mo<strong>do</strong> de ser da mente, permanecer em sua<br />

essência sem ser iludi<strong>do</strong> pelos pensamentos. Quan<strong>do</strong>, durante a meditação, mantemos a<br />

mente em sua própria essência, isto é a "clara luz <strong>do</strong> caminho". No momento da morte,<br />

após a aparição-extenção-obtenção, aparece a "clara luz fundamental".<br />

Se reconhecemos esta última, dizemos então que a clara luz filhe e a clara luz mãe<br />

encontram-se, o que significa que a experiência da clara luz <strong>do</strong> caminho expande-se na<br />

clara luz fundamental. É o que denominamos tornar-se Buddha no primeiro bar<strong>do</strong>.<br />

Pergunta: No momento da morte, distinguimos a cessação da respiração exterior e a<br />

cessação <strong>do</strong> vento interior. Como reconhecemos que ocorre esse segun<strong>do</strong> fenômeno?<br />

Resposta: Em primeiro lugar, a respiração exterior para: vem um estertor gutural<br />

segui<strong>do</strong> de uma última longa expiração ou de uma última longa inspiração. Isso é<br />

facilmente observável. Em contrapartida, não existe sinal permitin<strong>do</strong> revelar de maneira<br />

absolutamente precisa a suspensão <strong>do</strong> vento interior. Todavia, consideramos que ele é<br />

efetivo quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> movimento cessou na carótida. De uma maneira geral, ele<br />

transcorre aproximadamente cinco minutos entre a parada da respiração exterior e o fim<br />

<strong>do</strong> vento interior. No Tibete, diz-se tradicionalmente: "O tempo de comer uma tigela de<br />

tsampa". Porém, isso não é uma regra fixa. Pode ser mais breve ou mais longo.<br />

Em seguida, deve-se evitar tocar no corpo até que se tenha opera<strong>do</strong> a transferência de<br />

consciência (p'howa), ou então, durante três dias. A regra, no Tibete, era de nunca tocar<br />

no corpo nos três dias que se seguiam à morte.<br />

Pergunta: O momento preciso da morte é a cessação da respiração exterior ou a<br />

cessação <strong>do</strong> vento interior?


Resposta: A morte começa na cessação da respiração exterior, mas só se torna efetiva<br />

no momento <strong>do</strong> caminho negro. Também é no momento <strong>do</strong> caminho negro que se<br />

interrompe o vento interior, ou seja, quan<strong>do</strong> o thigle branco <strong>do</strong> alto da cabeça e o thigle<br />

vermelho <strong>do</strong> umbigo reúnem-se no coração. A mente, então, cai na inconsciência. A<br />

queda na inconsciência e a cessação <strong>do</strong> vento interior são concomitantes.<br />

Pergunta: Em caso de morte acidental súbita há, todavia, um processo de reabsorção <strong>do</strong>s<br />

elementos?<br />

Resposta: A reabsorção <strong>do</strong>s elementos sem dúvida ocorre mesmo em caso de morte<br />

acidental súbita, mas o processo desenvolve-se de maneira tão acelerada que não é<br />

possível tomar consciência dele.<br />

O bar<strong>do</strong> da natureza em si<br />

Ao final <strong>do</strong>s três dias e meio de inconsciência, começa um outro perío<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong> o<br />

"bar<strong>do</strong> da natureza em si". É um pouco como se se saísse de um sono profun<strong>do</strong>. Durante<br />

esse perío<strong>do</strong> vão manifestar-se os Buddhas das cinco famílias, intrinsecamente<br />

presentes em nossa mente, enquanto expressão das cinco sabe<strong>do</strong>rias. É o segun<strong>do</strong> bar<strong>do</strong><br />

da morte, denomina<strong>do</strong> o bar<strong>do</strong> da natureza em si.<br />

No primeiro dia desse segun<strong>do</strong> bar<strong>do</strong> da morte, aparece o Buddha Vairochana. Ele<br />

manifesta-se seja sob a forma de um Buddha, seja sob a forma de luzes ofuscantes de<br />

cor azul organizan<strong>do</strong>-se em figuras geométricas diversas. Ao mesmo tempo que essa luz<br />

azul, aparece um clarão branco, mais suave, que corresponde ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s deuses.<br />

Para quem não tem nenhuma noção <strong>do</strong> que se passa, a luz <strong>do</strong> Buddha, pela potência de<br />

seu brilho, tem algo de pavoroso que leva a pessoa a se desviar dela. Está-se, ao<br />

contrário, mais inclina<strong>do</strong> a seguir o clarão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s deuses, suave e agradável.<br />

Duas atitudes corretas permitem fazer face a essa situação:<br />

A primeira consiste em tomar consciência de que a cegante luminosidade azul manifesta<br />

a presença <strong>do</strong> Buddha Vairochana, e em seguida rogar-lhe para dissipar os sofrimentos e<br />

os fenômenos <strong>do</strong> bar<strong>do</strong>.<br />

A segunda requer um conhecimento mais profun<strong>do</strong> que o precedente. Trata-se de<br />

reconhecer que a luminosidade que aparece não tem existência exterior, que ela é a<br />

manifestação de um <strong>do</strong>s cinco Buddhas primordialmente presentes em nossa mente. É<br />

seu aspecto manifesta<strong>do</strong> que se exprime exteriormente, mas na verdade, sua luz não tem<br />

existência exterior intrínseca. Ela é a luminosidade de nossa própria mente. Isso vale<br />

para o Buddha Vairochana assim como para os outros Buddhas que aparecem nos dias<br />

seguintes.<br />

Permanecer plenamente consciente de que a luz e a própria mente são uma só e ser<br />

liberto <strong>do</strong> sofrimento <strong>do</strong> bar<strong>do</strong>. Ao contrário, deixar-se seduzir pelo clarão branco <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s deuses e a ele apegar-se é ser conduzi<strong>do</strong> a renascer no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s deuses.<br />

No segun<strong>do</strong> dia aparece a Buddha Vajrasattva, bem como uma luminosidade branca.<br />

Manifesta-se ao mesmo tempo a luz escura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s infernos.<br />

No terceiro dia, aparece o Buddha Ratnasambhava, assim como uma luminosidade<br />

amarela. Manifesta-se ao mesmo tempo o clarão azul <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens.<br />

No quarto dia, aparece o Buddha Amitabha, bem como uma luminosidade vermelha.


Manifesta-se ao mesmo tempo o clarão amarelo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos ávi<strong>do</strong>s.<br />

No quinto dia aparece o Buddha Amoghasiddhi, assim como uma luminosidade verde.<br />

Manifesta-se ao mesmo tempo o clarão vermelho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s animais e <strong>do</strong>s<br />

semideuses.<br />

No dia seguinte, os cinco Buddhas aparecem simultaneamente, ao mesmo tempo que o<br />

conjunto das luzes das seis classes de seres. No total, quarenta e duas divindades<br />

pacíficas vão manifestar-se em nossa mente, seguidas de cinqüenta e oito divindades<br />

irritadas. Essas manifestações duram aproximadamente três semanas.<br />

Se, sem ceder ao pavor, reconhecermos essas divindades e sua luminosidade pelo que<br />

elas são, somos libera<strong>do</strong>s nesse segun<strong>do</strong> bar<strong>do</strong>, e não entramos no terceiro bar<strong>do</strong> da<br />

morte.<br />

Caso contrário, começa o bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a ser.<br />

O bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a ser<br />

No transcurso <strong>do</strong> bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a ser, a pessoa compreende que ela está morta. É uma<br />

experiência <strong>do</strong>lorosa. Desejosa de renovar seus laços habituais com seus entes queri<strong>do</strong>s<br />

da vida passada, ela busca falar-lhes. Estes, inconscientes <strong>do</strong> que se passa, não podem<br />

responder-lhe. A pessoa experimenta muito ressentimento e sofrimento.<br />

A mente <strong>do</strong> bar<strong>do</strong> não tem corpo no senti<strong>do</strong> material <strong>do</strong> termo, mas possui, todavia, um<br />

corpo mental <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de faculdades sensoriais semelhantes às nossas. Esse corpo mental<br />

desloca-se à velocidade <strong>do</strong> pensamento. Num instante ele pode, portanto, encontrar-se<br />

em qualquer lugar <strong>do</strong> universo.<br />

To<strong>do</strong>s os tipos de fenômenos pavorosos produzem-se no transcurso desse bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a<br />

ser, sejam de caráter luminoso, sejam, mais ainda, de caráter sonoro. Ouvimos ruí<strong>do</strong>s<br />

terrificantes: o estron<strong>do</strong> de uma montanha que desmorona, o ribombo da tempestade<br />

sobre o oceano, a crepitação <strong>do</strong> fogo, o uivar <strong>do</strong> vento. Nesse caso, não devemos ceder<br />

ao me<strong>do</strong>, mas pensar que são apenas manifestações ilusórias de nossa própria mente,<br />

sem existência real.<br />

Em seguida, progressivamente, os condicionamentos de nossa mente que nos ligavam à<br />

nossa vida passada interrompem-se, ao mesmo tempo que entram em jogo os<br />

condicionamentos <strong>do</strong> nascimento vin<strong>do</strong>uro.<br />

Aquele que, durante a sua vida, habituou-se a orar ao Buddha Amitabha para renascer<br />

no Campo de Beatitude pode então orar novamente com força e libertar-se durante o<br />

terceiro bar<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong> que não precisará renascer.<br />

No caso contrário, somos leva<strong>do</strong>s a um futuro renascimento, e temos a visão de nossos<br />

futuros pais. Nesse caso, devemos meditar sobre nós mesmos sob a forma de um yidam,<br />

como Chenrezig, pensar que esse yidam dissolve-se na vacuidade e permanecer na<br />

vacuidade. Além disso, quan<strong>do</strong> temos a visão de nossos futuros pais que se unem,<br />

devemos visualizá-los como <strong>do</strong>is yidams em união. Não temos, então, a liberdade de<br />

escolher nosso renascimento. A força <strong>do</strong> karma nos arrasta. Podemos, entretanto, dar<br />

uma certa orientação desejan<strong>do</strong> obter um bom renascimento que nos permita praticar o


dharma, trilhar a senda <strong>do</strong> Despertar para o bem <strong>do</strong>s seres.<br />

Conquanto a duração <strong>do</strong> bar<strong>do</strong> <strong>do</strong> vir a ser seja variável, ela é geralmente fixada em<br />

vinte e quatro dias. Adicionan<strong>do</strong> os três bar<strong>do</strong>s da morte que acabamos de descrever<br />

brevemente, obtemos uma duração teórica de quarenta e nove dias, mas ela pode estar<br />

sujeita a inúmeras variações.<br />

(Bokar Rinpoche. Morte e Arte de Morrer no Budismo Tibetano. Tradução de Plínio<br />

Augusto Coelho,<br />

revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1997. Pág. 15-32.)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!