29.04.2013 Views

ECO, Umberto. Como se faz uma tese (livro - Sociologia e Política

ECO, Umberto. Como se faz uma tese (livro - Sociologia e Política

ECO, Umberto. Como se faz uma tese (livro - Sociologia e Política

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

III. 1.2. Fontes de primeira e de <strong>se</strong>gunda mão<br />

Quando <strong>se</strong> trabalha sobre <strong>livro</strong>s, <strong>uma</strong> fonte de primeira mào c<br />

<strong>uma</strong> edição original ou <strong>uma</strong> edição crítica da obra em questão.<br />

Uma tradução não é <strong>uma</strong> fonte: é <strong>uma</strong> próte<strong>se</strong>, como a dentadura<br />

ou os óculos, um meio de atingir de <strong>uma</strong> forma limitada algo<br />

que <strong>se</strong> encontra fora do meu alcance.<br />

Uma antologia não é <strong>uma</strong> fonte: é um apanhado de fontes; pode<br />

<strong>se</strong>r útil como primeira aproximação, mas lazer <strong>uma</strong> te<strong>se</strong> sobre um<br />

autor significa pressupor que verei nele coisas que outros não viram,<br />

c <strong>uma</strong> antologia fomece-mc apenas aquilo que outra pessoa viu.<br />

As re<strong>se</strong>nhas efectuadas por outros autores, mesmo completadas<br />

pelas mais amplas citações, não são <strong>uma</strong> fonte: são quando muito<br />

fontes de <strong>se</strong>gunda mão.<br />

Uma fonte pode <strong>se</strong>r de <strong>se</strong>gunda rnâo dc várias maneiras. Se qui<strong>se</strong>r<br />

<strong>faz</strong>er <strong>uma</strong> le<strong>se</strong> sobre os discursos parlamentares de Palmiro,<br />

Togliatli. os discursos publicados pelo Unità constituem urna fonte<br />

de <strong>se</strong>gunda mão. Ninguém me diz que o redactor não lenha feito cortes<br />

ou cometido erros. Pelo contrário, as actas parlamentares <strong>se</strong>rão<br />

fontes de primeira mão. Se con<strong>se</strong>guis<strong>se</strong> encontrar o texto escrito direitamente<br />

por Togliatti, teria <strong>uma</strong> fonte de primeiríssima mão. Se qui<strong>se</strong>r<br />

estudar a declaração de independência dos Estados Unidos, a única<br />

fonte de primeira mão é o documento autêntico. Mas posso também<br />

considerar de primeira mão <strong>uma</strong> boa fotocópia. E posso ainda considerar<br />

de primeira mão o texto elaborado criticamente por qualquer<br />

hisloriógrafo de <strong>se</strong>riedade indiscutível («indiscutível» quer aqui dizer<br />

que nunca foi posta em causa pela literatura crítica existente),<br />

Compreende-<strong>se</strong> então que o conceito de «primeira» e «<strong>se</strong>gunda mão»<br />

depende da perspectiva que <strong>se</strong> der à te<strong>se</strong>. Se a te<strong>se</strong> pretender discutir<br />

as edições críticas cxislenles. é necessário recorrer aos originais.<br />

Se ela pretender discutir o <strong>se</strong>ntido político da declaração de independência,<br />

<strong>uma</strong> boa edição crítica scr-mc-á mais do que suficiente.<br />

Se qui<strong>se</strong>r <strong>faz</strong>er <strong>uma</strong> te<strong>se</strong> sobre Fstntntras narrativas nos «Promessi<br />

Sposi». bastar-me-á <strong>uma</strong> edição qualquer das obras de Manzoni. Sc.<br />

pelo contrário, o meu objectivo for di<strong>se</strong>ulir problemas lingüísticos<br />

(digamos. Manzoni entre Milão e Florença), então lerei de dispor<br />

de boas edições críticas das várias redacções da obra manzoniana.<br />

Digamos enlão. que. nos limites fixados pelo objeclo da minha pesquisa,<br />

as fontes devem <strong>se</strong>r <strong>se</strong>mpre de primeira mão. A única coisa que<br />

74<br />

não posso <strong>faz</strong>er é citar o meu autor através da citação feita por outro. Em<br />

icoria. um trabalho científico sério nunca deveria citar a partir dc <strong>uma</strong><br />

citação, mesmo que não <strong>se</strong> trate do autor de que nos ocupamos directamente.<br />

No entanto, há excepções razoáveis, especialmente para <strong>uma</strong> te<strong>se</strong>.<br />

Se <strong>se</strong> escolher, por exemplo. O problema da transcendemalidade<br />

do Belo na «Summa theologiae» de 5. Tomás de Aquino, a fonte primária<br />

<strong>se</strong>rá a Sui/ima de São Tomás, c digamos que a edição Marietti<br />

actualmente no mercado basta, a menos que sc venha a suspeitar de<br />

que trai o original, caso em que <strong>se</strong> terá de recorrer a outras edições<br />

(mas. nessa altura, a te<strong>se</strong> tornar-<strong>se</strong>-á de caracter filológico. em vez<br />

de ter um caracter estético-filosófico). Em <strong>se</strong>guida, descobrir-<strong>se</strong>-á<br />

que o problema da transcendental idade do Belo é aflorado também<br />

por Sào Tomás no Comentário ao De Divinis Nominibus do P<strong>se</strong>udo-<br />

-Dionísio. e apesar do título restritivo do trabalho, ler-<strong>se</strong>-á lambem<br />

de ver directamente esta última obra. Finalmente, verificar-<strong>se</strong>-á que<br />

São Tomás retomava aquele tema de toda <strong>uma</strong> tradição teológica<br />

anterior e que descobrir todas as fontes originais repre<strong>se</strong>nta o trabalho<br />

de <strong>uma</strong> vida erudita. Todavia, ver-<strong>se</strong>-á que este trabalho já<br />

existe e que foi feito por Dom Henry Pouillon. que no <strong>se</strong>u exienso<br />

trabalho refere amplos fragmentos de todos os autores que comentaram<br />

o P<strong>se</strong>udo-Dionísio. sublinhando relações, derivações c contradições.<br />

F, certo que nos limites da te<strong>se</strong> <strong>se</strong> poderá usar o material<br />

colhido por Pouillon <strong>se</strong>mpre que <strong>se</strong> de<strong>se</strong>jar <strong>faz</strong>er <strong>uma</strong> referência<br />

a Alexandre de Halcs ou a Hilduíno. Se <strong>se</strong> chegar à conclusão dc<br />

que o texto dc Alexandre de Hales é es<strong>se</strong>ncial para o de<strong>se</strong>nvolvimento<br />

da exposição, é melhor procurar consultá-lo directamente na<br />

edição da Quaracchimas; <strong>se</strong> <strong>se</strong> trata de remeter para qualquer breve<br />

citação, bastará declarar que <strong>se</strong> teve acesso ã fonte aüavés de Pouillon.<br />

Ninguém dirá que sc agiu com incúria, <strong>uma</strong> vez que Pouillon é um<br />

estudioso sério c que o texto que <strong>se</strong> foi buscar a este autor não constituía<br />

o objecto directo da le<strong>se</strong>.<br />

A única coisa que não deverão <strong>faz</strong>er é citar <strong>uma</strong> fonte de <strong>se</strong>gunda<br />

mão fingindo ter visto o original. E isto não apenas por razões de<br />

ética profissional: pen<strong>se</strong>m no que aconteceria <strong>se</strong> alguém vos perguntas<strong>se</strong><br />

como con<strong>se</strong>guiram ver directamenle um determinado manuscrito,<br />

quando é sabido que o mesmo foi destruído em 1944!<br />

Não <strong>se</strong> devera, porém, cair na neuro<strong>se</strong> da primeira mão. O facto<br />

c Napoleão ter morrido em 5 dc Maio dc 1821 é conhecido de<br />

todos, geralmente através de fontes dc <strong>se</strong>gunda mão (<strong>livro</strong>s de história<br />

escrilos com ba<strong>se</strong> noutros <strong>livro</strong>s de história). Sc alguém qui-<br />

75

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!