ECO, Umberto. Como se faz uma tese (livro - Sociologia e Política
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sc (ob<strong>se</strong>rvados os requisitos expressos nos ponlos I e 2) acrescentai'<br />
alg<strong>uma</strong> coisa àquilo que a comunidade já sabia c <strong>se</strong> iodos os tnibalhos<br />
futuros sobre o mesmo tema o tiverem, pelo menos cm icoria. de tomar<br />
em consideração. Evidentemente, a importância científica é proporcional<br />
ao grau dc indispcnsabüidade que o contributo exibe. Há contributos<br />
após os quais os estudiosos, <strong>se</strong> nào os tiverem em conta, não podem<br />
dizer nada de positivo. E há outros que os estudiosos não fariam mal<br />
em ter em conta mas, sc não o fizerem, não vem mal nenhum ao mundo.<br />
Recentemente, foram publicadas cartas que James Joycc escrevia ã<br />
mulher sobre escaldantes problemas <strong>se</strong>xuais. E claro que alguém que<br />
amanhã estude a gêne<strong>se</strong> da personagem de Molly Bloom no Ulis<strong>se</strong>s de<br />
Joyce. poderá <strong>se</strong>r ajudado pelo faelo de saber que. na vida privada, Joyce<br />
atribuía à mulher <strong>uma</strong> <strong>se</strong>xualidade viva e de<strong>se</strong>nvolvida como a dc Molly;<br />
iraia-<strong>se</strong>. portanto, de um útil conlribulo científico. Por outro lado. há<br />
admiráveis interpretações dc Ulis<strong>se</strong>s em que a personagem Molly é<br />
focada de <strong>uma</strong> maneira corrccia mesmo <strong>se</strong>m <strong>se</strong> terem em conta aqueles<br />
dados; trata-<strong>se</strong>. portanto, dc um contributo dispensável. Pelo contrário,<br />
quando foi publicado Stephen Heiv. a primeira versão do romance<br />
joyciano Retrato do artista quando jovem, todos estiveram de acordo<br />
que era es<strong>se</strong>ncial lê-lo em consideração para compreender a evolução<br />
do escritor irlandês. Era um contributo científico indispensável.<br />
Ora. qualquer um poderia revelar um des<strong>se</strong>s documentos que, freqüentemente,<br />
são objecto de ironia a propósito dos rigorosíssimos<br />
filólogos alemães, que <strong>se</strong> chamam «contas da lavadeira», e que são<br />
efectivamente textos de valor ínfimo, em que talvez o autor tenha<br />
anotado as despesas a <strong>faz</strong>er naquele dia. Por vezes, dados deste gênero<br />
lambem são úteis, pois podem conferir um tom dc h<strong>uma</strong>nidade a um<br />
artista que todos supunham isolado do mundo, ou revelar que nes<strong>se</strong><br />
período ele vivia assaz pobremente. Outras vezes, pelo contrário, não<br />
acrescentam nada àquilo que já <strong>se</strong> sabia, são pequenas curiosidades<br />
biográficas e não têm qualquer valor científico, embora haja pessoas<br />
que arranjam fama de investigadores incansáveis revelando <strong>se</strong>melhantes<br />
inépcias. Não que sc deva de<strong>se</strong>ncorajar quem <strong>se</strong> diverte a<br />
<strong>faz</strong>er <strong>se</strong>melhantes investigações, mas não <strong>se</strong> pode falar de progresso<br />
do conhecimento h<strong>uma</strong>no e <strong>se</strong>ria muito mais útil. <strong>se</strong> não do ponto de<br />
vista científico pelo menos do pedagógico, escrever um bom livrinho<br />
de divulgação que contas<strong>se</strong> a vida e resumis<strong>se</strong> as obras do autor.<br />
4) A pesquisa deve fornecer os elementos para a confirmação e<br />
para a rejeição das hipóte<strong>se</strong>s que apre<strong>se</strong>nta c. portanto, deve fornecer<br />
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os elementos para <strong>uma</strong> possível continuação pública. Este é um requisito<br />
fundamental. Eu posso querer demonstrar que existem centauros<br />
no Peloponeso. mas devo <strong>faz</strong>er quatro coisas precisas: a) produzir<br />
provas (como <strong>se</strong> dis<strong>se</strong>, pelo menos um osso caudal );b) dizer como procedi<br />
para enconlrar o achado; c) dizer como <strong>se</strong> deveria proceder para<br />
encontrar outros; d) dizer possivelmente que tipo dc osso (ou de outro<br />
achado), no dia em que fos<strong>se</strong> encontrado, destruiria a minha hipóte<strong>se</strong>.<br />
Deste modo, não só forneci as provas da minha hipóte<strong>se</strong>, mas<br />
procedi de modo a que outros possam continuar a procurar, <strong>se</strong>ja para<br />
a confirmar <strong>se</strong>ja para a pôr em causa.<br />
O mesmo sucede com qualquer outro tema. Admitamos que faço<br />
<strong>uma</strong> te<strong>se</strong> para demonstrar que num movimento extraparlamentar de<br />
1969 havia duas componentes, <strong>uma</strong> leninista c outra trotskista, embora<br />
<strong>se</strong> considere geralmente que ele era homogêneo. Tenho de apre<strong>se</strong>ntar<br />
documentos (panfletos, registos dc as<strong>se</strong>mbléias, artigos, etc.) para<br />
demonslrar que lenho razão; terei de dizer como procedi para enconlrar<br />
aquele material e onde o encontrei, de modo que outros possam<br />
continuar a investigar naquela direcção; e terei de dizer <strong>se</strong>gundo que<br />
critério atribuí o material de prova a membros des<strong>se</strong> grupo. Por exemplo,<br />
sc o grupo <strong>se</strong> dissolveu em 1970, tenho de dizer <strong>se</strong> considero expressão<br />
do grupo apenas o material teórico produzido pelos <strong>se</strong>us membros<br />
até tal data (mas, então, terei de dizer quais os critérios que me levam<br />
a considerar certas pessoas membros do grupo: inscrição, participação<br />
nas as<strong>se</strong>mbléias, suposições da polícia?): ou <strong>se</strong> considero ainda textos<br />
produzidos por ex-membros do grupo após a sua dissolução, partindo<br />
do princípio de que. <strong>se</strong> expressaram depois aquelas idéias, isso significa<br />
que já as cultivavam, talvez em surdina, durante o período de actividade<br />
do grupo. Só des<strong>se</strong> modo forneço aos outros a possibilidade de<br />
<strong>faz</strong>er novas investigações e de mostrar, por exemplo, que as minhas<br />
ob<strong>se</strong>rvações estavam erradas porque, digamos, nào <strong>se</strong> podia considerar<br />
membro do grupo um fulano que <strong>faz</strong>ia parte dele <strong>se</strong>gundo a polícia<br />
mas que nunca foi reconhecido como tal pelos outros membros, pelo<br />
menos a avaliar pelos documentos de que <strong>se</strong> dispõe. Apre<strong>se</strong>ntámos<br />
assim <strong>uma</strong> hipóte<strong>se</strong>, provas e processos de confirmação e de rejeição.<br />
Escolhi propositadamente temas muito diferentes, justamente para<br />
demonstrar que os requisitos de cientificidade podem aplicar-<strong>se</strong> a<br />
qualquer tipo de investigação.<br />
Tudo o que acabei de dizer refere-<strong>se</strong> ã oposição artificial entre<br />
te<strong>se</strong> «científica» e le<strong>se</strong> «política». Pode <strong>faz</strong>er-<strong>se</strong> <strong>uma</strong> le<strong>se</strong> política<br />
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