Leia mais... - De Sambas e Congadas
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<strong>De</strong> modo distinto das expressões culturais<br />
anteriormente apresentadas, a Congada,<br />
ou Congo, particulariza-se por se apresentar<br />
como manifestação musical e dramática<br />
realizada em louvor a São Benedito, Nossa Senhora<br />
do Rosário e Santa Ifigênia. São grupos<br />
musicais festivos e religiosos que saem em cortejos<br />
reverenciando seus santos de devoção. Especificamente<br />
no território paulista, a cidade de<br />
Aparecida é o cenário de um grande encontro de<br />
<strong>Congadas</strong>, Moçambiques, Vilões e Catopês, que<br />
há <strong>mais</strong> de cem anos se reúnem “festam” anualmente<br />
em devoção a São Benedito. Outras cidades<br />
do Estado de São Paulo também realizam<br />
estas festividades que agregam diversas <strong>Congadas</strong><br />
em louvor a seus santos padroeiros, como<br />
Olímpia, Santo Antônio da Alegria, São Roque e<br />
Guaratinguetá, por exemplo. Em cada uma destas<br />
cidades em que ocorrem festas dedicadas aos<br />
santos de devoção das <strong>Congadas</strong>, uma estrutura<br />
ritual deve ser seguida, algumas vezes bastante<br />
complexa, como veremos <strong>mais</strong> adiante.<br />
É possível observar o vigor e a sólida formação<br />
de muitas destas organizações contemporaneamente<br />
praticadas não só na região sudeste<br />
do Brasil, mas em outros rincões do país. A este<br />
respeito a autora Marina de Mello e Souza (2005)<br />
menciona a presença da Congada na maioria das<br />
regiões brasileiras que, entre os séculos XVI e<br />
XIX, receberam escravos vindos da África. Antes<br />
mesmo de estes negros aportarem no Brasil, o ca-<br />
~ 87 ~<br />
tolicismo fazia-se presente em território africano, <strong>mais</strong> especificamente no reino do Congo e em seus<br />
arredores. (SOUZA, 2005).<br />
As <strong>Congadas</strong> e suas coroações aos reis negros, o festejo, o cortejo acompanhado por grupos<br />
em torno destes reis coroados, estiveram inicialmente presentes em comunidades afrodescendentes.<br />
Tais festejos eram práticas celebradas em grupos de trabalho, quilombos e, sobretudo, nas Irmandades<br />
Negras, agrupamentos leigos de devoção a santos como São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.<br />
As irmandades consistiam em associações compostas por escravos e forros que mantinham diversas<br />
atividades como o financiamento da alforria de seus integrantes, preparação de enterros, assim como<br />
a realização de uma festa anual, a qual homenageava seu santo de devoção. (Ver DIAS, 2001; SOUZA,<br />
2005). Na ocasião da festa, havia o cortejo pelas ruas, alegre procissão, com a presença do rei, de sua<br />
corte, assim como dos tocadores e dançadores. Como menciona Tinhorão (2005), para a realização<br />
destes festejos, os reis do Congo eram escolhidos por meio de eleições entre os próprios negros, os<br />
“brincantes”.<br />
A autora Marina de Mello e Souza investigou a presença desta expressão cultural, e da coroação<br />
dos reis negros,<br />
nos relatos de observadores<br />
e nos documentos<br />
destas irmandades. <strong>De</strong>sse<br />
modo, há registros de<br />
manifestações culturais<br />
relacionadas à coroação<br />
dos reis negros que faziam<br />
referência a diferentes<br />
nações no século<br />
XVIII. Contudo, no século<br />
XIX esta diversidade<br />
de nações não é <strong>mais</strong><br />
encontrada nestes documentos,<br />
é observada quase<br />
que exclusivamente a<br />
presença do rei de Congo.<br />
A este respeito, Souza<br />
(2005, p. 83-84) ressalta a<br />
importância desta nação<br />
para os escravos no Brasil:<br />
Congada e Moçambique Vermelho e Branco
Congada de Cunha<br />
Para eles a experiência do catolicismo<br />
também era um elo com a África natal<br />
(crescentemente idealizada à medida<br />
que se afastava no tempo), devido à existência<br />
de chefes que se diziam católicos<br />
no Congo e em Angola e à incorporação<br />
de ritos e objetos de culto do catolicismo<br />
por algumas populações centro-africanas.<br />
Essa familiaridade anterior com<br />
formas de catolicismo africano ajudou a<br />
construção de uma identidade elaborada<br />
e reproduzida por meio dos reinados<br />
negros realizados nas irmandades.<br />
~ 88 ~<br />
Conforme Tinhorão, desde o século XV a<br />
tradição de se celebrar o rei do Congo já era praticada<br />
em Portugal pelos africanos lá presentes. Por<br />
meio de pesquisas documentais, o autor menciona<br />
a devoção destes negros a Nossa Senhora do<br />
Rosário e suas organizações por meio de confrarias<br />
no território de Portugal. Contudo, o autor<br />
considera que neste período tais coroações representavam<br />
demonstração simbólica e desdobramento<br />
das ações missionárias e econômicas empenhadas<br />
por Portugal na África, as quais tinham<br />
sua base no tráfico de escravos.<br />
Estas festas celebradas com a presença do<br />
rei do Congo eram, em certa medida, aceitas e<br />
toleradas por administradores da sociedade colonial<br />
e por senhores, em razão de diversos fatores.<br />
Paulo Dias (2001) nos explica que até mesmo o<br />
discurso de cronistas não era tão agressivo quando<br />
se abordava a Congada, considerando que o<br />
mesmo não ocorria quando era relatado o batuque,<br />
manifestação cultural sem relação com o<br />
universo religioso católico, no período da Colônia<br />
e no Império. O batuque era concebido pelos<br />
cronistas como diversão “desonesta”, ao contrário<br />
das <strong>Congadas</strong>, consideradas como prática<br />
“honesta” ao passo que atendiam aos preceitos<br />
cristãos em seus cortejos em homenagem aos<br />
santos católicos. Contudo, Souza menciona que<br />
as irmandades relacionadas aos santos católicos<br />
de certo modo acomodavam os escravos às normas<br />
e padrões da sociedade escravista, fato que<br />
em parte explica a tolerância aos festejos de coroação<br />
do rei do Congo. A este respeito são considerados<br />
também aspectos simbólicos que revelam<br />
a aceitação desta manifestação cultural, como a<br />
trajetória do império português e seu intento de<br />
expansão, cujo alicerce centrava-se na conversão<br />
da população dos territórios ocupados ao catolicismo.<br />
Importante mencionar a presença do catolicismo<br />
no Congo, país que incorporou esta religião<br />
como parte do poder central no ano de 1491,<br />
mantendo paralelamente sua soberania e crenças<br />
tradicionais. A introdução do catolicismo e sua<br />
incorporação pelos chefes de Estado do Congo,<br />
o que representava o êxito das ações missionárias<br />
portuguesas, foi tema bastante festejado publicamente.<br />
Algumas passagens ilustram a aceitação<br />
do festejo da Congada por diferentes segmentos<br />
da sociedade, que, muitas vezes chegavam a
participar da manifestação. No período das celebrações<br />
dedicadas ao santo de devoção, alguns<br />
senhores emprestavam joias da família para seus<br />
escravos participarem do festejo, atitude que representava<br />
ostentação da riqueza, poder e de<br />
submissão da comunidade negras a seu senhor<br />
(DIAS, 2001; SOUZA, 2005). Como menciona<br />
Paulo Dias (2001, p. 06-07):<br />
Para os brancos, estar patrocinando<br />
a festa negra significava, além de um<br />
meio de dissipar disposições revoltosas<br />
dos escravos, a oportunidade de ostentar<br />
publicamente seus negros cristianizados<br />
e bem vestidos, reforçando assim<br />
seu status perante a sociedade local.<br />
Ade<strong>mais</strong>, como bem se sabe, o Rei de<br />
Congo era utilizado como intendente<br />
junto à escravaria que lhe devia obediência.<br />
<strong>De</strong> fato, todo o cortejo era permeado pela<br />
ostentação, tanto que os dançantes, instrumentistas,<br />
rei e rainha saiam às ruas vestidos com<br />
roupas luxuosas. Indumentárias parecidas com<br />
as utilizadas por chefes africanos em ocasião das<br />
negociações comerciais realizadas com europeus,<br />
como menciona Souza. Havia também a presença<br />
de vestimentas africanas, com colares, peles,<br />
guizos, pulseiras, entre outros. Nos relatos e documentos<br />
observados por Souza, os instrumentos<br />
musicais utilizados por estes grupos festivos<br />
e devocionais ainda podem ser encontrados em<br />
alguns grupos atuais, como a marimba, os tambores<br />
e instrumentos de corda, por exemplo. Se<br />
nos dias atuais alguns cânticos entoados por congueiros<br />
versam sobre a religiosidade, o santo de<br />
devoção e eventos ocorridos no momento do cor-<br />
~ 89 ~<br />
tejo, Souza menciona que entre os séculos XIX e<br />
início do século XX as letras das músicas também<br />
abordavam temas como o cativeiro, a travessia do<br />
oceano Atlântico, assim como o aprisionamento<br />
na terra natal.<br />
Congada de São Benedito - Ilhabela
Souza ainda ressalta que no século XIX, de uma<br />
maneira geral, a dança ocorrida no momento do<br />
cortejo fazia referência a uma batalha entre o rei<br />
cristão do Congo e outro reinado pagão, num enfrentamento<br />
cantado e dançado, dramatização na<br />
qual quem vencia era o soberano rei do Congo.<br />
Outro aspecto interessante a ser considerado é a<br />
presença de figuras no folguedo que remetem a<br />
Carlos Magno e seus cavalheiros, e a representação<br />
da conversão de infiéis ao cristianismo por<br />
meio das batalhas entre mouros e cristãos. Esta<br />
temática estava presente no livro “Carlos Magno<br />
e os Doze Pares de França”, publicado no Brasil<br />
em 1820, o qual foi usado como material para<br />
de catequese dos escravos (ver CORRÊA, 1981;<br />
DIAS, 2001).<br />
As <strong>Congadas</strong> e suas coroações dos reis<br />
negros contribuíram para a formação de uma<br />
identidade baseada na herança cultural africana,<br />
uma identidade negra católica. Contudo, como<br />
nos explica Souza (2005), foram dois os significados<br />
assumidos pelas <strong>Congadas</strong>, um relacionado à<br />
percepção por parte dos senhores e líderes ligados<br />
ao poder no período escravista, e outro que<br />
diz respeito aos negros escravizados. Para os primeiros,<br />
este significado desdobrava-se em uma<br />
concepção que atestava o domínio destes grupos<br />
~ 90 ~<br />
negros por parte do poder escravocrata. Já para<br />
a comunidade negra, as celebrações de coroação<br />
do rei do Congo representavam a configuração e<br />
o fortalecimento de uma identidade comum entre<br />
africanos de diferentes nações que, por meio<br />
destes festejos, se sentiam pertencentes a uma comunidade<br />
católica negra e, em âmbito <strong>mais</strong> geral,<br />
à sociedade brasileira. Nas palavras de Souza<br />
(2005, p. 90):<br />
A rememoração simbólica do reino<br />
africano católico afirmava uma “africanidade”,<br />
ou seja uma conexão com<br />
a África construída a partir do Brasil<br />
e da experiência aqui vivida, que indicava<br />
uma particularidade da comunidade<br />
negra, uma identidade própria<br />
que a distinguia mesmo quando adotava<br />
o catolicismo e outras tradições<br />
de origem portuguesa como a organização<br />
em irmandades leigas.<br />
<strong>De</strong>ssa maneira, de acordo com Paulo Dias<br />
(2001), além de haver certo controle social por<br />
parte do senhor, do branco que permitia a realização<br />
da festa, por outro lado, a celebração da<br />
Congada representava também visibilidade social<br />
para os negros, assim como possibilitava um mínimo<br />
de inserção social destes na sociedade colonial<br />
brasileira. Contudo, também por meio da<br />
coroação do rei do Congo a comunidade negra<br />
podia rememorar e celebrar elementos de sua<br />
cultura ancestral.<br />
No território brasileiro encontramos contemporaneamente<br />
diferentes tipos de <strong>Congadas</strong>,<br />
com estruturas de funcionamento diversificadas,<br />
tanto no que se refere aos personagens integrantes<br />
do cortejo, quanto à configuração musical e ins-
trumentos musicais utilizados. O cortejo simples<br />
com música e dança sem a presença de dramatizações<br />
é modelo realizado pela maioria das <strong>Congadas</strong>,<br />
que se encontram em eventos de devoção<br />
a santos católicos, sobretudo em festas dedicadas<br />
a São Benedito e ao Divino Espírito Santo. Já<br />
outras organizações realizam celebrações com a<br />
presença de representações de lutas entre nações<br />
africanas, com dramatizações relacionadas às lutas<br />
entre mouros e cristãos, com influência da figura<br />
de Carlos Magno e os Doze Pares de França.<br />
No litoral paulista, encontramos duas <strong>Congadas</strong><br />
que se configuram com estes traços, nas cidades<br />
de Ilhabela e São Sebastião. Importante notar os<br />
instrumentos musicais utilizadas por estas duas<br />
<strong>Congadas</strong>: os tambaques (atabaques) e a marimba,<br />
sendo este último um instrumento de origem<br />
banto, composto por teclas de madeira percutidas<br />
com baquetas.<br />
Em pesquisa realizada por Rossini Tavares<br />
de Lima e sua equipe (1968) foram observadas<br />
as <strong>Congadas</strong> do litoral de São Paulo. Nesta ocasião,<br />
o autor encontrou esta configuração dramática<br />
e instrumental nas festividades de coroação<br />
do rei Congo nas localidades de São Sebastião e<br />
Caraguatatuba, assim como mencionou a presença<br />
desta manifestação também na cidade de Ilhabela.<br />
Neste trabalho, Lima estudou alguns aspectos<br />
interessantes que nos ajudam na compreensão<br />
das <strong>Congadas</strong> a partir do século XX. Um destes é<br />
a percepção da igreja católica na região em relação<br />
a estes folguedos, a condenação da Congada<br />
por parte da instituição, que não proibia a manifestação,<br />
mas a tolerava com ressalvas. Um dos<br />
motivos para esta ação da igreja era a presença de<br />
referências culturais africanas, como parte da indumentária,<br />
o uso de miçangas, lado a lado com<br />
~ 91 ~<br />
imagens dos santos católicos e de referências deste<br />
universo religioso. Esta modalidade de <strong>Congadas</strong><br />
que outrora esteve presente também na cidade<br />
de Caraguatatuba é celebrada nos dias atuais<br />
no território paulista apenas das localidades de<br />
São Sebastião e Ilhabela. Há que se ressaltar que<br />
o uso da marimba no festejo ocorre apenas nestas<br />
cidades e também em raras <strong>Congadas</strong> mineiras<br />
(DIAS, 2003).<br />
Nos eventos e festas dedicadas a São Benedito,<br />
assim como nas festas dedicadas ao Divino,<br />
o que podemos notar é uma diversidade de<br />
cores, de adereços cuidadosamente elaborados,<br />
beleza artística que nos enche os olhos e emociona.<br />
São organizações complexas, dinâmicas, cuja<br />
organização demanda tempo e muitos gastos financeiros,<br />
considerando também as constantes<br />
viagens realizadas por estes grupos em festividades<br />
religiosas ocorridas em diferentes cidades.<br />
Então, quais são as razões pelas quais uma<br />
Congada, e seus mestres, capitães, reis e de<strong>mais</strong><br />
congueiros e congueiras mantêm estas organizações?<br />
O autor Carlos Rodrigues Brandão (1985)<br />
nos apresenta argumentos que contribuem para o<br />
entendimento das razões que motivam estes congueiros/devotos<br />
a participarem ativamente das<br />
atividades de seus grupos. O fator primordial capaz<br />
de justificar a participação destas pessoas em<br />
suas <strong>Congadas</strong> é a devoção, os acontecimentos e<br />
crenças pessoais que já ocorreram entre o então<br />
devoto e o santo padroeiro, ou seja, seu santo de<br />
devoção. Compartilhamos com o autor que a participação<br />
na Congada se dá devido a uma relação<br />
contratual entre o devoto e o santo, muitas vezes<br />
a um voto feito ao santo, que faz com que o ‘brincador’<br />
seja um congueiro pelo resto da vida. O<br />
devoto acredita, assim, ser amparado e auxiliado<br />
pessoalmente pelo seu santo de devoção. Nesta<br />
relação contratual entre devoto e santo, todo o<br />
festejo relacionado à Congada é percebido como<br />
eficaz ritualmente. A dança atualiza o compromisso<br />
da promessa, é condição para o alcance do<br />
milagre, da “graça”, como dizem alguns devotos.<br />
<strong>De</strong>ssa maneira, a promessa também é cumprida<br />
por meio da participação deste congueiro/devoto<br />
na Congada.<br />
As <strong>Congadas</strong> fazem parte do universo do<br />
chamado catolicismo popular, que acontece na<br />
rua, de modo autônomo, sem interferência direta<br />
da igreja católica. Portanto, conflitos não podem<br />
ser descartados nas relações estabelecidos entre<br />
o poder religioso e as celebrações da Congada,<br />
sobretudo no âmbito étnico social. Brandão observou<br />
conflitos desta natureza motivados pela<br />
presença de elementos religiosos de influência<br />
africana no festejo, bem como, por discriminação<br />
racial, presente tanto no discurso, quanto nas<br />
ações de parte da população na localidade obser-
vada. Nos dias atuais as <strong>Congadas</strong> não estão excluídas<br />
destas relações de poder, desse modo, estudos<br />
aprofundados sobre esta expressão podem<br />
revelar estas contradições e conflitos.<br />
Para a elaboração do site e deste dossiê, a equipe<br />
do projeto “<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>” realizou pesquisa<br />
de campo com três grupos de Congada, das<br />
cidades de Guaratinguetá, Cunha e Ilhabela. As<br />
organizações das duas primeiras localidades foram<br />
observadas no contexto da festa dedicada a<br />
São Benedito no mês de abril em Guaratinguetá.<br />
Já a última Congada foi pesquisada em Ilhabela,<br />
no centro na cidade (na vila) no mês de maio na<br />
festa de São Benedito, celebração que tem duração<br />
de três dias, com estrutura de funcionamento<br />
complexa. As três organizações pesquisadas são<br />
formadas por devotos de São Benedito, tido como<br />
padroeiro dos cozinheiros, exemplo de humildade,<br />
pois, em vida, abdicou de todo conforto material.<br />
O santo, também considerado protetor dos<br />
negros e dos pobres, no período do Brasil colônia<br />
era significado como uma espécie de <strong>De</strong>us dos<br />
negros na condição de escravos (SANTOS et al,<br />
2009).<br />
Com a intenção de abordar os saberes e fazeres<br />
que permeiam as <strong>Congadas</strong> destas localidades, a<br />
próxima parte deste dossiê apresentará os resultados<br />
da pesquisa realizada com a “Congada e Moçambique<br />
Vermelho e Branco” de Guaratinguetá,<br />
a “Congada de São Benedito” de Cunha e a “Congada<br />
de Ilhabela”.<br />
~ 92 ~<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Festa do Santo de Preto. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional<br />
do Folclore; Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1985.<br />
CORRÊA, Iracema França Lopes. A Congada de Ilhabela na festa de São Benedito. São Paulo, Escola<br />
de Folclore, Ed. Livramento, 1981.<br />
DIAS, Paulo. A outra festa negra. In: (org) JANCSÓ, István.;KANTOR, Iris. Cultura e sociabilidade<br />
na América portuguesa. São Paulo: Edusp, 2001. Disponível em: http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/images/stories/arquivos_pdf/aoutrafestanegra.pdf.<br />
Acesso em 15/03/2011.<br />
__________. São Paulo corpo e alma. (prefácio) Marcos Mendonça; (apresentação) Alberto T. Ikeda;<br />
(fotografias) Andrea de Valentim. São Paulo: Associação Cultural Cachuera!, 2003.<br />
SANTOS, Luiz Carlos; SANTOS, Moacir José dos; MURADE, José Felício Goussain. Festa de São Benedito:<br />
Patrimônio Imaterial e Cultura Popular. In: Folkcom 2009, GT 3. Folkcomunicação Política,<br />
Turística e Religiosa – Universidade Metodista de São Paulo, 2009. Disponível em: www2.metodista.<br />
br/UNESCO/1_Folkcom%202009/trabalhos.html. Acesso em 25/04/2011.<br />
SOUZA, Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: Revista de História<br />
152, 1º - 2005, pp. 79-98.
~ 93 ~
A congada é um ato religioso de devoção (...) tem que tê respeito,<br />
devoção naquilo que estamo fazendo, porque nós saimo<br />
com a congada, com a bandeira, mas aquela bandeira tem<br />
muito significado pra nós, muita devoção. Agora, tem que tê<br />
amor naquilo que você está fazendo. (trecho de relato de Antônio<br />
Ribeiro, membro do grupo “Vermelho e Branco”)
A<br />
tradição de se festejar São Benedito na cidade de Guaratinguetá<br />
vem de longa data. A Irmandade de São Beneditolocal foi<br />
fundada no ano de 1757, formada neste período por uma corte,<br />
composta por diversos personagens como o rei e a rainha, um juiz e<br />
uma juíza de ramalhete, e um juiz e uma juíza de vara. A organização<br />
e composição desta Irmandade tiveram influência decisiva na criação<br />
e conformação da Irmandade de São Benedito na cidade de Aparecida,<br />
a qual foi fundada em 1909 (ver SANTOS et al, 2009).<br />
Para elaboração de nossa pesquisa, presenciamos a festa do<br />
santo padroeiro no dia vinte e quatro de abril, no domingo de Páscoa.<br />
<strong>De</strong>ssa maneira, a celebração reuniu um total de dez grupos de Congada<br />
e Moçambique de diferentes cidades próximas dali, como Cunha e<br />
Lorena. Toda a celebração é cuidadosamente organizada ano após ano<br />
pela Irmandade de São Benedito de Guaratinguetá. Para tanto, todos<br />
os anos são escolhidas diferentes lideranças, cada uma com sua função<br />
delimitada, para as quais caberá toda a organização do evento dedicado<br />
ao santo. As principais figuras eleitas pelos membros da Irmandade<br />
nos dias atuais são o rei e a rainha, responsáveis pela organização geral<br />
da festividade. Além delas, são eleitos o guardião da imagem, o alferes<br />
da bandeira, o alferes da coroa e o capitão do mastro. Respectivamente,<br />
são eles responsáveis pela imagem de São Benedito, pela bandeira,<br />
pela coroa e pela confecção do mastro do santo homenageado, que<br />
pode chegar a medir até doze metros de altura.<br />
Contudo, a organização desta celebração anual antecede em<br />
muitos meses o dia da grande festa. A arrecadação de fundos para a<br />
realização do festejo fica a cargo do principal casal responsável pela<br />
~ 95 ~<br />
Congada e Moçambique Vermelho e Branco
organização: o rei e a rainha. Com esta intenção,<br />
são promovidos bingos e jantares, cuja renda é revertida<br />
em benefício da festa. Conforme os relatos<br />
de pessoas envolvidas com a Irmandade, neste<br />
ano, o propósito da festividade esteve centrado<br />
em valorizar as origens africanas de São Benedito,<br />
considerando a presença marcante das <strong>Congadas</strong><br />
nesta ocasião.<br />
As celebrações que envolvem musicalidade<br />
e devoção por meio da presença de <strong>Congadas</strong><br />
e Moçambiques não compõem a totalidade do<br />
festejo. Estas formam uma parte da programação<br />
da festa de São Benedito, composta também pela<br />
presença da tradicional “Cavalaria São Gonçalo”,<br />
por missas e procissões. Para os dias de festividades<br />
também são montadas diversas barracas<br />
de comércio de comidas e bebidas para atender<br />
os visitantes e devotos. Durante a noite, ocorrem<br />
eventos profanos, com a participação de grupos<br />
de música sertaneja. No domingo da festa, as<br />
<strong>Congadas</strong> e Moçambiques chegam à cidade de<br />
Guaratinguetá pela manhã para acompanhar a<br />
missa dedicada ao santo e louvar São Benedito.<br />
Após a missa, estes grupos, então, se concentram<br />
na praça lateral à igreja do santo padroeiro e seguem<br />
em procissão até a escola onde o almoço<br />
coletivo é servido. Ao adentrar a escola, cada grupo<br />
realiza uma cantoria dedicada a São Benedito,<br />
para depois seus membros comporem a fila para<br />
pegar, cada um, seu prato de comida. Muito bem<br />
organizado, o almoço é servido para todos os integrantes<br />
destes grupos culturais e religiosos.<br />
Após o farto almoço servido, os grupos<br />
seguem até o salão da Irmandade para reverenciar<br />
São Benedito. Nesse momento, as organizações,<br />
uma por vez, realizam cantorias em frente<br />
~ 96 ~<br />
Josemar<br />
a uma imagem do andor do santo. Logo depois<br />
todos permanecem em frente à Irmandade, para<br />
dar início à procissão com as bandeiras contendo<br />
imagens de santos católicos, e o andor de São Benedito<br />
até o Campo do Galvão. Todo o percurso é<br />
permeado pela musicalidade das <strong>Congadas</strong> e Moçambiques,<br />
os quais realizam saudações religiosas<br />
ao santo com o auxílio de suas caixas, chocalhos,<br />
violas, sanfonas e bastões. Todos peregrinam por<br />
este trajeto até o Campo do Galvão, local em que<br />
permanece o mastro com a imagem de São Benedito<br />
em seu topo. Também em procissão, de lá o<br />
mastro deve ser carregado e levado, apenas por<br />
homens, até a igreja de São Benedito. Já em frente<br />
à igreja do santo padroeiro, o mastro é levantado,<br />
com muita devoção e emoção, finalizando a participação<br />
dos grupos de Congada no evento.<br />
Na ocasião da festa, a equipe do projeto<br />
“<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>” pesquisou dois grupos,<br />
uma Congada de Guaratinguetá e outra da cidade<br />
de Cunha. O grupo local com que tivemos contato<br />
foi a “Congada e Moçambique Vermelho e<br />
Branco”, organização relativamente nova, ainda<br />
em formação, a qual dá continuidade às ações de<br />
um antigo congueiro da cidade chamado Aristeu.<br />
O grupo foi fundado em 2006 pelos congueiros<br />
Jozemar, seu Oscar e Dona Maria Luiza<br />
na cidade de Guaratinguetá. A organização é<br />
significada por seus integrantes como um grupo<br />
moderno, contemporâneo, que agrega características<br />
e influências tanto de elementos próprios<br />
da Congada, assim como do Moçambique. Jozemar,<br />
mestre do grupo, com 28 anos, que teve seus<br />
aprendizados iniciais na Congada com seu Aristeu,<br />
nos explica melhor como funciona a organização:
~ 97 ~<br />
Mas a gente tá tentando resgatar a cultura. Eu tenho fé que <strong>mais</strong> pra frente nós possavoltá um<br />
pouco no antigo, né? Que era tradicional o uniforme branco, que era fita cruzada, duas fita, um<br />
lado vermelho o outro azul. Esse que era o tradicional Moçambique. Hoje o nosso grupo é um<br />
grupo contemporâneo, não é aquele grupo tradição, antigo, família, raiz. Mas eu tenho fé que os<br />
meus filhos, os meus netos, com a vontade de <strong>De</strong>us, continue esse trabalho nosso.<br />
A união de referências diversas em um só grupo deve-se às experiências prévias dos membros do<br />
grupo em suas intenções de homenagear São Benedito. Conforme relato de seu Oscar, integrante da<br />
bateria da Congada, tocador de surdo, a respeito da junção de elementos e referências culturais:<br />
A congada não tem bateria pesada, são <strong>mais</strong> as caixinha e não tem também bastão. A congada<br />
mesmo em si ela é as caixinha pequena e o pessoal só que dança. E o moçambique já tem a bateria<br />
pesada, e tem o pessoal que é de linha, e tem o bastão. Na realidade, hoje o pessoal misturou tudo.<br />
Sobretudo, o que singulariza o grupo é a presença concomitante da dança com manejo de bastão<br />
juntamente com os instrumentos pesados, tanto em dimensões, quanto em projeção sonora, como o<br />
surdo. Em sua configuração, a Congada e Moçambique Vermelho e Branco possui uma estrutura com<br />
os seguintes membros: mestre, contramestre, capitão, a bateria e o conjunto de dançadores. Conforme<br />
entrevista dada por Jozemar, o grupo ainda tenta tornar sólida e constante esta estrutura de funcionamento.<br />
No momento do cortejo, mestre e contramestre cantam juntos, ao passo que o capitão transmite<br />
os versos cantados aos de<strong>mais</strong> cantadores. Já a bateria representa todo o conjunto instrumental,<br />
o qual é formado por instrumentos de percussão, como o pandeiro, o chocalho de metal, o tarol, as<br />
caixas e os surdos. O pandeiro, a caixinha e o tarol iniciam a música, e logo depois entram em cena os<br />
instrumentos <strong>mais</strong> pesados, como os surdos.<br />
Os dançadores fazem parte do chamado “pessoal da linha”, também responsáveis pelos bastões<br />
percutidos uns nos outros pelos pares de dançadores posicionados uns de frente aos outros, componentes<br />
essenciais do instrumental. Para que a música comece, inicialmente o mestre canta um cântico,<br />
que depois é iniciado pelos componentes da linha. Assim, a bateria começa a tocar e a dança é iniciada,<br />
juntamente com os toques do bastão, que variam de acordo com os ritmos realizados pelo conjunto<br />
da bateria. O apito indica quanto o manejo dos bastões deve ser iniciado. As músicas podem ser<br />
criadas de improviso de acordo com os acontecimentos no cortejo e o santo homenageado em ocasião<br />
das festas que o grupo participa, assim como podem ser entoados cânticos já existentes, compostos<br />
pelos próprios congueiros. Sobre as músicas, seu Oscar menciona também o uso de cânticos de mestres<br />
de outros grupos que, por vezes, são compartilhados: “Que nem o senhor aqui que morreu. Ele<br />
era um experiente na congada mesmo, seu Aristeu. Ele era professor. Então, ele adorava passá verso<br />
porque ele achava que arguémtava continuando o trabalho dele.” Entretanto, seu Oscar menciona que<br />
nem sempre é assim, e que a utilização de músicas de outros mestres congueiros deve ocorrer com o<br />
consentimento de seus compositores, senão não estarão descartadas as brigas e desentendimentos.
A formação etária do grupo é bastante<br />
diversa. Há crianças, adolescentes, assim como<br />
adultos e idosos. O instrumental é composto por<br />
congueiros do gênero masculino, que também<br />
marcam presença na dança de bastões juntamente<br />
com as mulheres. A vestimenta é composta por<br />
camiseta vermelha, calça e sapatos brancos e gorro<br />
feito de crochê nas cores vermelha e branca.<br />
A bandeira, segurada por duas devotas, segue à<br />
frente do grupo durante todo o cortejo, enfeitada<br />
nas laterais com flores e fitas coloridas, tendo ao<br />
centro pinturas das imagens dos santos homenageados<br />
por esta Congada: Nossa Senhora Aparecida,<br />
São Benedito e Frei Galvão. É dona Maria<br />
Luíza, esposa de seu Oscar, quem confecciona a<br />
cada ano a bandeira que representa a Congada<br />
em todos os lugares por onde esta passa. Dona<br />
Maria Luíza inicialmente participava do grupo levando<br />
a bandeira, entretanto, devido a problemas<br />
de saúde, teve que abandonar a função e continuar<br />
acompanhando o grupo em todas as viagens e<br />
cortejos ajudando a cuidar das crianças presentes<br />
na Congada, sem, contudo, participar da dança.<br />
Uma das grandes preocupações desta organização<br />
é a dificuldade de se inserir crianças e<br />
jovens na Congada. Os congueiros mencionam<br />
como entraves para essa participação a variedade<br />
de opções de lazer que os jovens têm nos dias atuais,<br />
que suplantam a intenção de se realizar atividades<br />
ligadas à religiosidade. Soma-se a este fato a<br />
percepção depreciativa que muitos desses jovens<br />
têm em relação à Congada. Filha de seu Oscar e<br />
dona Maria Luíza, Daniele, treze anos, fala sobre<br />
os jovens e crianças do grupo que, muitas vezes<br />
ficam acanhados de se apresentarem na cidade<br />
de Guaratinguetá devido a percepção errônea em<br />
~ 98 ~<br />
Seu Oscar<br />
torno da Congada.<br />
A relação simbólica de contrato entre o<br />
congueiro e o santo de devoção, mencionada no<br />
início deste capítulo, é facilmente encontrada na<br />
“Congada e Moçambique Vermelho e Branco”.<br />
Seus integrantes, sobretudo, participam do grupo<br />
por devoção aos três santos homenageados por<br />
esta Congada. Não podemos esquecer também<br />
o fator da sociabilidade, de grande importância<br />
para esses congueiros que, por meio do grupo,<br />
viajam constantemente para outras cidades em<br />
eventos culturais e religiosos. O mestre do grupo,<br />
Jozemar, começou a participar dos festejos relacionados<br />
à Congada devido a um milagre presenciado<br />
por ele, e atribuído a São Benedito. <strong>De</strong>sde<br />
então, o congueiro nunca deixou de reverenciar<br />
seu santo de devoção por meio da Congada, por<br />
adoração e agradecimento pelas “graças” recebidas.<br />
Como é possível observar nas palavras de Jozemar:<br />
Nós estamos aqui pra buscar santidade.<br />
<strong>De</strong>ntro no Moçambique a gente tá buscando<br />
isso aí. (...) Eu amo o que eu faço.<br />
Eu cheguei a largar de serviço, emprego,<br />
pra ficá no Moçambique. <strong>De</strong>us nunca<br />
me desamparou. Tudo que eu peço pra<br />
<strong>De</strong>us, a interseção a São Benedito, ele<br />
me dá, ele me dá mesmo.<br />
Apesar dos traços culturais presentes na Congada,<br />
seus membros têm na devoção aos santos o<br />
fator primordial que condiciona a participação<br />
destes no grupo. Contudo, a organização participa<br />
tanto de eventos de cunho religioso, não só<br />
relacionados aos santos de devoção, como de encontros<br />
culturais. <strong>De</strong>sse modo, o grupo frequenta<br />
eventos de cunho religioso em cidades como
Angra dos Reis, Lagoinha, Campos do Jordão e<br />
Aparecida. Já no tocante à dimensão cultural, a<br />
organização tem presença garantida anualmente<br />
no Revelando São Paulo, encontro que celebra a<br />
cultura popular paulista, nas cidades de São José<br />
dos Campos, São Paulo, Atibaia e Iguape.<br />
Em pesquisa de campo, a equipe do projeto<br />
“<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>” entrevistou quatro<br />
congueiros do grupo “Vermelho e Branco”: seu<br />
Antônio, pandeirista, Seu Oscar, dona Maria Luíza,<br />
Daniele e Jozemar. Todos eles ressaltaram a<br />
relevância do grupo que, mesmo com formação<br />
recente, já é componente importantíssimo na<br />
vida destes “brincantes”. Como mestre do grupo,<br />
Jozemar sintetiza o pensamento dos congueiros,<br />
e não nos deixa esquecer o valor que a Congada<br />
tem para quem a celebra: “O Brasil tem quinhentos<br />
anos, foi formado por negros, brancos, índios<br />
(...). O Brasil é da cultura, não pode deixáacabá<br />
isso. O moçambique é riqueza, congada é riqueza,<br />
capoeira, jongo, samba-lenço. Tudo isso é riqueza<br />
do Brasil.”<br />
~ 99 ~<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
SANTOS, Luiz Carlos; SANTOS, Moacir José<br />
dos; MURADE, José Felício Goussain. Festa de<br />
São Benedito: Patrimônio Imaterial e Cultura<br />
Popular. In: Folkcom 2009, GT 3. Folkcomunicação<br />
Política, Turística e Religiosa – Universidade<br />
Metodista de São Paulo, 2009. Disponível em:<br />
www2.metodista.br/UNESCO/1_Folkcom%20<br />
2009/trabalhos.html. Acesso em 25/04/2011.<br />
Daniele
~ 100 ~
A nossa, lá em Paraty, eles nem fala congada, é marrá-paiá. O<br />
marrá-paiá de Cunha chegô! Porque antigamente, no começo<br />
das congada, não tinha aquele guizo, né? Aquele guizo que<br />
marra na perna. Então, era umas latinha assim, fazia desse<br />
zinco, e botava uma arcinha nela, então botava um pouco de<br />
chumbo, ou pedrinha dentro e a gente marrava aquela canequinha<br />
na perna assim, que era o marrá-paiá. A canequinha<br />
chamava paiá, então ficou com o nome marrá-paiá”. (trecho<br />
de entrevista cedida por Antônio Monteiro, antigo congueiro<br />
de Cunha)
O<br />
antigo “marrá-paiá” de Cunha é nos dias atuais conhecido<br />
como a “Congada de São Benedito”, organização com<br />
aproximadamente cento e trinta anos de fundação. O grupo,<br />
que tem como um de seus líderes seu José Bideco, é a mesma<br />
organização que compõe também uma Folia de Reis e uma Folia<br />
do Divino, ambas criadas no mesmo período de fundação da<br />
Congada. A gênese deste grupo está centrada na família de seu<br />
José Bideco, congueiro devoto de São Benedito. Seu bisavô, avô e<br />
pai eram envolvidos com a celebração da Congada na cidade de<br />
Cunha. Seu José ainda guarda recordações da Congada realizada<br />
no ambiente rural, nas roças, nos arredores da localidade, festejada<br />
de modo muito diverso do que acontece contemporaneamente. Na<br />
roça, a prática da Congada estava relacionada aos Santos Juninos:<br />
Santo Antônio, São Pedro e São João. <strong>De</strong>sse modo, onde estivessem<br />
ocorrendo festas juninas, a Congada lá estava com sua presença<br />
marcante. A própria configuração instrumental do grupo também<br />
era diferente, não se usava o guiso de bronze, o chamado paiá, mas<br />
antes, uma latinha, o número de instrumentos musicais também<br />
era menor. Nesta época, a presença de negros no grupo era muito<br />
maior, visto que muitos descendentes diretos de escravos que trabalharam<br />
nas lavouras da região participavam da Congada.<br />
Seu José Bideco começou a participar da Congada aos oito<br />
anos de idade, por influência de seus familiares, como menciona<br />
o congueiro em seu relato: “Meu bisavô tocava, eu nem conheci.<br />
Meu avô tocava, meu pai tocava. Meu pai era mestre, meu avô era<br />
reis”. Toda a família de seu José Bideco era composta por devotos<br />
de São Benedito, os quais constantemente faziam e cumpriam<br />
promessas ao santo de proteção, de modo que a Congada estava<br />
também inserida nestes votos. Ao entrar no grupo, seu José parti-<br />
~ 102 ~
cipou no manejo do bastão, com o paiá preso nas<br />
pernas. Quando pequeno, seu José acompanhava<br />
o pai nas andanças com a Congada, e, quando<br />
adulto, estabeleceu o compromisso de continuar<br />
com as ações do grupo em Cunha. Nas palavras<br />
do congueiro:<br />
Meu pai, antes dele morrê... ele morreu<br />
naquela rua ali embaixo, coitado. Falou:<br />
meu fio, não larga não meu fio, seu pai<br />
tá ruim, seu pai num vai aguentá. Até na<br />
véspera que ele tava bem ruim memo,<br />
tinha um trato. “Meu pai, eu num vô,<br />
pai. Não meu fio, pode ir, seu pai tá<br />
ruim e eu quero que você continue.” Aí<br />
cativô <strong>mais</strong> eu. Quando o pai fala isso<br />
pro fio, o fio tem que cativá.<br />
<strong>De</strong>sde o falecimento de seu pai, seu José Bideco,<br />
sessenta e oito anos, é um dos líderes da Congada<br />
de Cunha, organização com aproximadamente<br />
trinta e cinco integrantes nos dias atuais. O congueiro<br />
hoje cumpre a função de ajudante do mestre,<br />
auxiliando-o no momento da cantoria. Toca<br />
acordeon no momento do cortejo, embora também<br />
saiba tocar viola, violão e cavaquinho.<br />
A “Congada de São Benedito” encanta<br />
por toda sua organização, minuciosamente pensada.<br />
As vestimentas brancas, calças e camisas,<br />
as faixas vermelhas que se cruzam nos peitos dos<br />
congueiros, o paiá preso nas pernas dos dançadores,<br />
assim como o chapéu com flores pintadas à<br />
mão, formam um conjunto estético harmonioso,<br />
completado com a presença da música. A bandeira<br />
com a imagem de São Benedito segue à frente<br />
dos congueiros durante todo o cortejo. Logo<br />
atrás, vem o grupo organizado de acordo com<br />
uma estrutura preestabelecida, composta pelos<br />
~ 103 ~<br />
seguintes membros: mestre, ajudante do mestre,<br />
capitão, o general, o reis, assim mesmo chamado<br />
no plural, e os de<strong>mais</strong> tocadores e congueiros.<br />
A função do mestre é cantar os primeiros versos<br />
que, posteriormente, serão repetidos pelos de<strong>mais</strong><br />
congueiros. O ajudante<br />
do mestre contribui repassando<br />
a letra da música entoada<br />
para os integrantes do<br />
grupo. Já o capitão e o general<br />
devem cuidar da organização<br />
da Congada, tomar conta<br />
das filas de congueiros, que<br />
são duas, dispostas uma em<br />
frente à outra, zelando para<br />
que estas não fiquem tortas<br />
ou desordenadas. O “reis” é<br />
encarregado de comandar a<br />
bandeira e ficar à frente do<br />
grupo com ela. O capitão e o<br />
general ficam na ponta da fila,<br />
onde estão os congueiros novos,<br />
sem muita experiência.<br />
É o capitão quem apita quando<br />
é necessária a atenção dos<br />
congueiros.<br />
O instrumental do grupo<br />
é composto por instrumentos<br />
como a viola, o violão,<br />
pandeiro, acordeon, surdos<br />
e caixas. Os paiás e bastões<br />
manejados no momento da<br />
dança são também incorporados<br />
aos instrumentos musicais.<br />
Esta função de dançador<br />
exige grande desenvoltura e<br />
seu José bideco<br />
preparo físico dos conguei
~ 104 ~<br />
ros, considerando o esforço contínuo nas funções concomitantes de dançar manejando os bastões e<br />
bater os pés com o paiá no ritmo de cada música entoada. Não há restrições quanto à participação na<br />
Congada, há pessoas de diversas faixas etárias, jovens, adultos, idosos, assim como mulheres.<br />
As músicas cantadas no momento do cortejo são quase que exclusivamente feitas de improviso,<br />
de acordo com fatos ocorridos no momento do cortejo, ou em reverência ao santo homenageado.<br />
A maioria das letras é improvisada pelo mestre, quem deve ter profundos conhecimentos sobre as<br />
santidades de devoção da Congada, assim como os saberes que envolvem a criação de letras conforme<br />
o que o contexto pede. Seu José Bideco cantou um dos versos entoados nestas ocasiões:<br />
Não me deixe não, não me deixe não<br />
Ai, meu São Benedito não me deixe não<br />
Quando eu deixá este mundo<br />
Que é cheio de ilusão<br />
Eu quero morá com <strong>De</strong>us<br />
Pra já vim a sarvação<br />
Não me deixe não, não me deixe não<br />
Ai, meu São Benedito não me deixe não.<br />
Outro integrante antigo do grupo é seu<br />
Antônio Monteiro, com oitenta anos nos dias atuais.<br />
Seu Antônio começou a participar do grupo<br />
com vinte anos de idade na cidade de Cunha, e já<br />
assumiu praticamente todas as funções possíveis<br />
na manifestação. Já foi reis, capitão, general e também<br />
presidente, ou seja, o responsável geral pela<br />
Congada, além de já ter sido tocador de surdo.<br />
Nos dias atuais, o antigo congueiro acompanha o<br />
cortejo sem participar no instrumental e dança.<br />
Também viaja junto com o grupo para todas as<br />
festas para as quais este é convidado em diversas<br />
cidades. Também participava de mutirões nas roças<br />
nos arredores de Cunha, trabalhos festivos em<br />
que o canto improvisado tinha presença marcante.<br />
Seu Antônio relembra estas ocasiões, do traba-
~ 105 ~<br />
lho durante o dia, a limpeza da roça, o roçado do pasto e, durante a noite, da festa, momento em que<br />
se dançava a chiba e o jongo.<br />
Seu Antônio acompanha a Congada de São Benedito, sobretudo, por gostar das cantorias e<br />
pela sociabilidade que os momentos de devoção proporcionam. Entretanto, o fato de não participar<br />
do grupo nos dias atuais não anula seus conhecimentos sobre a manifestação e a contribuição que é<br />
capaz de oferecer ao grupo. Indagado sobre o que é ser um bom congueiro, seu Antônio nos explica:<br />
Prá ser bom, ele tem que sabê batê bem o bastão, tem que sabê dançá, pegá o compasso certinho,<br />
que, aquele guiso que eles marra na perna, eles têm que pegá o compasso da batida do bastão.<br />
Conforme eles bate o bastão, eles dança e entoa com o bastão, o guizo, né?<br />
<strong>De</strong>voção e festa são dois elementos que caminham juntos na Congada de São Benedito. A dança e o<br />
canto são significados como reza e reverência ao santo de devoção para os congueiros. Alguns destes<br />
participam do grupo por razões religiosas, como menciona seu Jozé Bideco: “Eu tenho como religião<br />
mesmo, até na Congada eu converso, brinco com meus irmãos, mas tenho respeito pela bandeira, a<br />
gente respeita a bandeira, a bandeira de São Benedito (...)”. Entretanto, as constantes viagens proporcionam<br />
momentos importantes de sociabilidade e convívio entre devotos e congueiros que compartilham<br />
o modo de ver a vida e suas diferentes dimensões. Todas as atividades do grupo e gastos são<br />
arcados com recursos dos próprios congueiros, o que reforça a importância da Congada para seus<br />
participantes.<br />
Ao contrário do que acontecia antigamente, quando a Congada era festejada no ambiente ru-<br />
ral, sobretudo nas festas juninas, nos dias atuais<br />
o grupo cumpre sua devoção em festas dedicadas<br />
aos santos católicos em diferentes cidades e<br />
estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro. No<br />
geral, a Congada participa de cortejos simples em<br />
eventos com a presença de outros grupos.<br />
A equipe do projeto “<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>”<br />
observou a “Congada de São Benedito”<br />
de Cunha na cidade de Guaratinguetá, em festa<br />
dedicada ao santo padroeiro deste grupo. Conhecemos<br />
os congueiros nesta cidade e, posteriormente,<br />
viajamos a Cunha para entrevistarmos seu<br />
José Ferraz da Silva, cujo apelido é José Bideco, e<br />
seu Antônio Monteiro, no seu sítio nos arredores<br />
da cidade. A Congada de Cunha, que impressiona<br />
pela riqueza de detalhes e organização, parte do<br />
patrimônio imaterial da cidade, é referência viva<br />
para seus congueiros, que, com certeza, darão<br />
continuidade aos meneios entre guizos e manejos<br />
de bastões, como bem afirma o mestre Zé Bideco:<br />
“Eu nasci aqui em Cunha, tenho sessenta e oito<br />
ano. Meu pai viveu setenta e quatro, morava aqui.<br />
Meu bisavô morava aqui. Então, nasceu aqui em<br />
Cunha mesmo. (...) Os cansado vai parando e vai<br />
ficando os <strong>mais</strong> novo”.
Hoje é o nosso dia. (...) não tem prefeito, não tem padre, não<br />
tem juiz, nem delegado no dia de hoje. Hoje a cidade tá em<br />
festa e a cidade hoje é de São Benedito. A cidade hoje é dos<br />
congueiros. (trecho de entrevista cedida por Dino, integrante<br />
da Congada de Ilhabela)
~ 108 ~<br />
As embaixadas e bailes relacionados ao rei Congo atravessaram séculos na cidade de Ilhabela,<br />
com suas cores, cantos e espadas. Tanto, que a “Congada de São Benedito” completa, no período<br />
atual, aproximadamente duzentos e cinquenta anos de tradição. <strong>De</strong> modo diverso as duas<br />
organizações abordadas neste capítulo, de Guaratinguetá e Cunha, a Congada de Ilhabela é celebrada<br />
em uma festa de três dias em homenagem a São Benedito. Ao invés de simples cortejo, a organização<br />
de Ilhabela realiza três bailes diferentes nos dias de festa com encenações de embaixadas e guerra,<br />
permeadas por falas e músicas, entre o rei do Congo e o embaixador pagão, o primeiro representando<br />
os cristão e o segundo, os mouros.<br />
A equipe do projeto “<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>” esteve em Ilhabela nos dias treze, quatorze e<br />
quinze de maio, os três dias da Festa de São Benedito, palco da atuação da Congada. A cidade litorânea<br />
contextualiza e ambientaliza toda a celebração desta expressão cultural que, antigamente, era<br />
praticada, sobretudo, por pescadores da própria cidade de Ilhabela. O período em que a Festa de São<br />
Benedito seria realizada estava condicionado ao ofício destes trabalhadores que, esperavam terminar<br />
o período de pesca de sardinha para iniciar as festividades dedicadas ao santo de devoção. A festa era,<br />
e ainda é, realizada no mês de maio, sem dia fixo, na lua cheia, no chamado “claro”, momento no qual<br />
já foram finalizadas as atividades pesqueiras (CORRÊA, 1981).<br />
Iracema Corrêa (1981) em seu estudo sobre a Congada local menciona que a presença de ne-
gros trazidos para o trabalho escravo nas lavouras<br />
comerciais, assim como contrabando no período<br />
posterior à proibição do tráfico negreiro, foi decisiva<br />
para a formação da Congada em Ilhabela.<br />
<strong>De</strong>vido à grande devoção por parte de todos os<br />
envolvidos com esta expressão cultural, nos dias<br />
de festa <strong>De</strong>us está no céu e São Benedito na terra,<br />
homenageado e reverenciado.<br />
Os preparativos para a grande festa são<br />
iniciados na cidade com antecedência de um mês<br />
e envolve toda a população local. Todos os alimentos<br />
oferecidos à população nos dias de festa<br />
são provenientes de doações, sobretudo de moradores<br />
e comerciantes locais. A prefeitura também<br />
contribui com os preparativos da festa, assim<br />
como cede uma escola para a realização da tradicional<br />
Ucharia. Alcedino José da Cruz, o Dino,<br />
soldado do embaixador na Congada, ilustra bem<br />
o que esta celebração significa para os congueiros.<br />
Em suas palavras:<br />
É difícil explicar o que é a Congada, né?<br />
A Congada, na verdade, é uma união<br />
do povo de Ilhabela, posso dizê isso.<br />
Porque, se num tiver igreja, num tem<br />
Congada. Se num tiver a levantação do<br />
mastro, não tem Congada. Se num tiver<br />
Ucharia, não tem Congada. Então, é um<br />
grupo. A Congada é a devoção dos congueiros<br />
com São Benedito e, como São<br />
Benedito é da igreja católica, a Congada<br />
é isso. É uma união de igreja, povo, é<br />
Ilhabela, a Congada é Ilhabela.<br />
Dino começou a participar do grupo com cinco<br />
anos de idade, por influência de seus avós, mãe e<br />
tios, familiares envolvidos com a prática da Congada<br />
local. Hoje o congueiro cumpre a função de<br />
soldado do embaixador, entretanto, já foi outrora<br />
~ 109 ~<br />
soldado, até os dezoito anos, permaneceu cinco<br />
anos como príncipe e, posteriormente, foi embaixador<br />
durante quatorze anos consecutivos. Há<br />
dois anos Dino abandonou este posto, devido a<br />
um problema de coluna que o impede de realizar<br />
os esforços que o cargo demanda. Com cinquenta<br />
e um anos, Dino completa quarenta e seis anos na<br />
Congada de Ilhabela. A trajetória deste congueiro<br />
ilustra muito bem a composição da Congada local,<br />
que comporta integrantes de diferentes faixas<br />
etárias, desde crianças aprendizes, até idosos com<br />
histórias parecidas com a de Dino.<br />
A festa de São Benedito é composta por<br />
diversas atividades religiosas festivas e de entretenimento,<br />
apresentações musicais durante a noite.<br />
A festa é iniciada na sexta-feira com o levanta-<br />
mento do mastro do santo homenageado, seguido<br />
de apresentação da Congada Mirim, formada<br />
por trinta crianças. Logo depois, há a distribuição<br />
do bolo de São Benedito e da “concertada”, bebida<br />
elaborada com pinga, cravo, canela e açúcar. Já no<br />
sábado pela manhã ocorre a “Meia Lua”, pequena<br />
procissão em que congueiros caminham ao som<br />
da marimba e dos atabaques, carregando o andor<br />
de São Benedito, com coreografia própria. Após a<br />
Meia Lua ocorrem dois bailes das ruas da Vila, no<br />
centro da cidade. Aproximadamente ao meio dia<br />
e meia ocorre a Ucharia, almoço servido a toda<br />
a população presente na localidade nos dias de<br />
festa. Já às duas e meia da tarde a Congada realiza<br />
três bailes completos. No domingo, dia de<br />
encerramento da festa de São Benedito, ocorre a<br />
Meia Lua às oito e meia da manhã. Às nove horas<br />
ocorre a Missa dos Congos na Igreja Matriz Nossa<br />
Senhora D’Ajuda e Bom Sucesso. Já por volta<br />
das dez e meia são iniciados dois bailes. Na hora<br />
do almoço ocorre a Ucharia, sendo que no início<br />
da tarde é iniciado o primeiro dos três bailes que<br />
encerrarão a festa de São Benedito. Após o último<br />
baile é realizada uma procissão com o andor de<br />
São Benedito junto com queima de fogos.<br />
Conforme nos explica Corrêa (1981), a Congada<br />
de Ilhabela simboliza a luta de dois grupos que<br />
se desentendem pelo fato ambos reivindicarem<br />
para si o direito de festejar São Benedito. Dino<br />
também ressalta que a Congada representa uma<br />
guerra entre pai e filho, já que o embaixador é filho<br />
do rei, fato revelado do último baile. Sem que<br />
este fato seja desvendado, o embaixador tenta<br />
tomar o reinado do rei. <strong>De</strong>vido à complexidade<br />
desta congada, são diversos os personagens presentes<br />
no momento do folguedo. Iracema Corrêa,<br />
em pesquisa realizada sobre a Congada em Ilha-
~ 110 ~<br />
bela, confirma a influência do livro “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, e do complexo mouro<br />
cristão, conforme foi mencionado no início deste capítulo, nessa celebração. O grupo do rei, que representa<br />
os cristãos, é todo vestido com indumentária preponderantemente azul. São estes o príncipe,<br />
o secretário, o cacique e os soldados. O grupo do embaixador, todo com vestimentas vermelhas, representando<br />
os mouros, também mantém o cacique, o príncipe, o secretário e um grupo de soldados. A<br />
celebração é composta por dramatizações com partes ora faladas, ora cantadas, e também pela dança<br />
e o choque entre espadas. Sobre a representação, Corrêa (1981, p. 40) nos explica a sua organização:<br />
Os congos ou congueiros, para a representação, são divididos em dois grupos: o dos Congos de<br />
Cima, que compreendem os Fidalgos ou Vassalos do Rei, considerados “cristãos” e que simbolizam<br />
de forma confusa, os “Pares de França” com seu Rei; e o dos Congos de Baixo, ou Congos<br />
do Embaixador, que são os “não batizados”, pagãos, mouros ou infiéis (...) os novatos começam<br />
sendo Congo de Baixo, não havendo número fixo para estes, podendo entrar à vontade.<br />
Quando toda a encenação tem início, estão sentados o rei e a rainha, como os instrumentistas<br />
ao fundo, um tocador de marimba e dois tocadores de atabaques. As figuras principais da Congada
são o rei e o embaixador, a presença da rainha é<br />
apenas decorativa. O rei, chamado também como<br />
“reis” nas falas dos congueiros é principal personagem<br />
da Congada. Corrêa menciona que este<br />
cargo é vitalício, transmitido por meio de herança<br />
familiar. Já a rainha é uma personagem ilustrativa,<br />
não tem nenhuma fala, permanece sentada<br />
ao lado do rei durante toda a encenação, e é<br />
escolhida anualmente dentre jovens que tenham<br />
promessas para cumprir. A rainha deve ter entre<br />
doze e quatorze anos e deve ser virgem. A figura<br />
do embaixador representa um dos filhos do rei,<br />
o qual saiu de casa ainda pequeno e foi criado e<br />
educado por pagãos. As vestimentas utilizadas<br />
no momento da celebração são ricas em detalhes,<br />
com o uso de capas e chapéus minuciosamente<br />
ornamentados e diversos entre si.<br />
O que diferencia os bailes encenados e cantados<br />
são elementos como o canto e o texto. Como bem<br />
explica Dino a respeito dos três bailes realizados:<br />
O primeiro baile tem uma guerra só. O<br />
segundo são duas guerras e o terceiro<br />
uma também. Só que o terceiro baile, o<br />
secretário do rei, ele vai comunicá que<br />
o embaixador é filho dele. Até então ele<br />
não sabia. (...) Se você não conseguir<br />
assistir os três bailes, você não entende<br />
a Congada. E, principalmente o último<br />
baile de domingo que é onde o embaixador<br />
pede perdão ao rei e se apresenta<br />
realmente como filho dele.<br />
Como exemplo, transcrevemos a seguir<br />
algumas embaixadas transcritas por Iracema<br />
Corrêa (1981, p. 71-72), falas dos soldados do rei,<br />
direcionadas ao soberano do Congo no início da<br />
encenação:<br />
~ 111 ~<br />
Rei e embaixador da congada<br />
1<br />
Soberano Rei do Congo<br />
O Cacique lá de baixo<br />
Uma nova veio dá<br />
O Embaixador de Luana (Luanda)<br />
Contra nós vai guerreá<br />
E diz que tem certeza<br />
Vencê nosso império reá.<br />
2<br />
Soberano Rei de Congo<br />
Mas que nos pés de Jesus Cristo,<br />
Navio plantado na areia<br />
A gente do Embaixador<br />
Tudo aquilo é fantasia<br />
Sendo ele fantasia<br />
Nós teremos um vencedor<br />
Pela voz do secretário<br />
Ele intimida o Embaixador<br />
3<br />
Soberano Rei de Congo<br />
Brilha ouro e brilha a prata<br />
Brilha a flor de maravilha<br />
Também brilha Santana<br />
Com sua filha Maria (...)<br />
4<br />
Soberano Rei de Congo<br />
São Benedito lá no céu<br />
É um santo verdadeiro<br />
No reino de sua glória<br />
<strong>De</strong> <strong>De</strong>us foi ele (grande) cozinheiro<br />
Sendo ele cozinheiro<br />
Porque foi merecedor<br />
Dos pães que dava pros pobres
Na cesta tornou-se em flor<br />
Asflores eram brilhantes<br />
Mais lindas que a luz do sol<br />
Mas brilha São Benedito<br />
No seu império maior.<br />
Os instrumentos musicais utilizados no<br />
festejo são uma marimba e dois atabaques. No<br />
ano de 1981, Iracema Corrêa observou a presença<br />
de uma viola também. A marimba, que na época<br />
pesquisada pela autora tinha cento e cinquenta<br />
anos, permanece sempre disposta entre os dois<br />
atabaques. Instrumento de origem banto-africana,<br />
a marimba de arco utilizada em Ilhabela possui<br />
seis teclas de madeira, presas em outra madeira<br />
em baixo destas com uma corda de couro.<br />
E por baixo de cada tabuleta de madeira há uma<br />
cabaça cortada um pouco acima de sua metade.<br />
<strong>De</strong> acordo com pesquisa feita por Corrêa, as madeiras<br />
utilizadas para a elaboração da marimba<br />
eram o ipê, canela preta e a peroba, por exemplo.<br />
No momento da Meia Lua o instrumento é<br />
percutido pelo tocador em pé, porém em todos<br />
os outros atos da celebração o tocador permanece<br />
sentado. Assim, uma tira de tecido é amarrada<br />
nas laterais no instrumento, a qual ficará presa ao<br />
pescoço do tocador. Já os atabaques são pintados<br />
com as cores azul, vermelha e branca, e possuem<br />
uma alça, a qual facilita que os tocadores toquem<br />
os instrumentos de pé, quando necessário.<br />
Homens e mulheres participam ativamente da<br />
Congada em Ilhabela, entretanto, com funções<br />
diferenciadas na grande festa dedicada a São Benedito.<br />
Enquanto os homens participam como<br />
congueiros, as mulheres contribuem com a Ucharia,<br />
termo que significa “despensa da casa real”, de<br />
~ 112 ~<br />
acordo com Iracema Corrêa. A Ucharia consiste no almoço gratuito oferecido a toda a comunidade<br />
presente na festa de São Benedito, para os congueiros, seus familiares, acompanhantes ou apenas visitantes.<br />
Todo o alimento preparado na Ucharia é proveniente de doações da comunidade, de comerciantes<br />
e da própria prefeitura local.<br />
Dino menciona algumas mudanças que ocorreram na celebração da Congada em Ilhabela. Uma das<br />
maiores modificações foi o aumento do alcance do festejo, que impulsionou a participação de toda<br />
cidade nas atividades da congada. O congueiro relembra que no passado existia o festeiro da igreja<br />
e o festeiro de rua, chamado como festeiro de São Benedito, este último responsável pela Ucharia.<br />
Eram selecionados casais que ficavam responsáveis pelo oferecimento do café da manhã de sexta-feira<br />
também. Nos dias atuais, a festa é realizada com doações de toda a comunidade de Ilhabela. Como
conclui Dino, hoje a cidade toda é festeira de São<br />
Benedito.<br />
Dino fala também dos congueiros antigos,<br />
grande parte deles com o nome de Benedito.<br />
Já quando crianças, algumas mães colocavam os<br />
filhos na Congada, com a intenção de pagamento<br />
de promessas. Muitos destes congueiros antigos<br />
faleceram e levaram consigo elementos importantes<br />
presentes nas falas cênicas da Congada, os<br />
quais estavam registrados apenas na memória e<br />
na oralidade. Dino menciona que pouco se entendia<br />
da fala de algumas figuras da Congada devido<br />
à grande quantidade de palavras de origem<br />
africana, misturadas ao modo de falar caiçara.<br />
Em pesquisa realizada por Iracema Corrêa,<br />
a autora menciona que houve momentos de<br />
repressão e até proibição da Congada pela igreja<br />
na cidade de Ilhabela. Esta atitude do poder religioso<br />
local esteve relacionada ao uso das imagens<br />
de santos junto com enfeites, compreendido pela<br />
igreja como uma aproximação da Congada com<br />
a religiosidade do universo afro-brasileiro. Se outrora<br />
a manifestação passou por estes episódios,<br />
nos dias atuais podemos afirmar que a Congada<br />
ocupa posição privilegiada de destaque na cidade<br />
em ocasião da festa dedicada ao santo padroeiro.<br />
Na Festa de São Benedito, a equipe do projeto<br />
“<strong>De</strong> <strong>Sambas</strong> e <strong>Congadas</strong>”, observou a Congada<br />
de Ilhabela e entrevistou o congueiro Dino.<br />
<strong>De</strong>vido à complexidade desta organização, os aspectos<br />
aqui apresentados apenas ilustram a prática<br />
deste grupo. Pesquisas aprofundadas como a<br />
realizada por Iracema Corrêa revelam a riqueza e<br />
sutileza das relações tecidas no seio desta expressão<br />
cultural que se mantém ativa, sobretudo, pela<br />
religiosidade e devoção dos congueiros. Concor-<br />
~ 113 ~<br />
damos com Dino, quando o congueiro menciona<br />
que o elemento que mantém e condiciona a participação<br />
dos envolvidos na Congada é a religiosidade.<br />
É a devoção, e não a obrigação, que caracteriza<br />
e define um bom congueiro em Ilhabela.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CORRÊA, Iracema França Lopes. A Congada de<br />
Ilhabela na Festa de São Benedito. São Paulo, Escola<br />
de Folclore, Ed. Livramento, 1981.