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Essas Mulheres - Isis Baião - Cia. Atelie das Artes

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<strong>Essas</strong> <strong>Mulheres</strong>...<br />

ou<br />

SHE BY THREE OF THEM<br />

(MONÓLOGO PARA TRÊS ATRIZES)<br />

de ISIS BAIÃO<br />

EM 1 ATO<br />

Esta peça foi escrita a partir de uma<br />

idéia que me foi dada pela diretora<br />

de teatro, Mona Lazar)<br />

1993


MOMENTOS DE MULHER, EM UM PRÓLOGO E TRÊS MOVIMENTOS,<br />

REPRESENTANDO FASES DE UMA VIDA: JUVENTUDE, A BUSCA DO OUTRO,<br />

A PAIXÃO; MATURIDADE, A BUSCA DO EU, O SONHO PESSOAL;<br />

VELHICE, O ENCONTRO COM A VIDA, A LIBERDADE. E, PERMEANDO<br />

TUDO ISSO, O DELÍRIO, O HUMOR, A LOUCURA PESSOAL DE SHE.<br />

PERSONAGENS<br />

SHE - UMA ATRIZ (REPRESENTADA POR TRÊS ATRIZES)<br />

BOCA DA MÃE - BOCA CENSORA, ESPÉCIE DE SUPER-EGO DE SHE (PODE<br />

SER HUMANA OU MECÂNICA)<br />

O TEMPO - PERSONAGEM MUDO, ÁGIL, MEIO DANÇANTE. APENAS PASSA<br />

EM CENA, DEIXANDO MARCAS SIGNIFICATIVAS NO CENÁRIO, NOS<br />

OBJETOS. SURGE NAS PASSAGENS DE TEMPO E SUAS AÇÕES SÃO, EM<br />

SUA MAIORIA, INDICADAS PELO DIRETOR, LIMITANDO-SE A AUTORA A<br />

INDICAR APENAS AS SUAS ENTRADAS E ALGUMAS POUCAS ATUAÇÕES.<br />

APOLO - OS CACHORROS, QUE PODEM SER VERDADEIROS OU NÃO.<br />

CENÁRIO ÚNICO<br />

NO CENTRO DO ESPAÇO CÊNICO, ELEMENTOS DE UM PEQUENO<br />

APARTAMENTO DE CLASSE MÉDIA, COM LIVROS E POSTERS DE PEÇAS DE<br />

TEATRO.<br />

NÃO HÁ PAREDES.<br />

DE UM LADO E OUTRO DO PALCO, A RUA, O MUNDO.<br />

2


PRÓLOGO - ADOLESCÊNCIA<br />

MUSIQUINHA INFANTIL. SHE PULA AMARELINHA.<br />

LUZ VERMELHA.<br />

SHE ASSUSTA-SE E PÁRA. INTUITIVAMENTE, ENFIA A MÃO DENTRO DA<br />

CALCINHA.<br />

VÊ O SANGUE.<br />

ENTRE PERPLEXA E EMPANICADA, GRITA, DE PERNAS ABERTAS.<br />

SHE - O que que eu faço, mamãe?<br />

FOCO DE LUZ BRANCA, INTENSA, SOBRE UMA BOCA. A BOCA DA MÃE.<br />

BOCA DA MÃE - (REPREENDENDO) Feche as pernas, She! Você ficou mocinha!<br />

SHE FECHA RAPIDAMENTE AS PERNAS. CESSA A MÚSICA INFANTIL.<br />

SHE VESTE UMA SAIA JUSTA, CALÇA SALTOS ALTOS, EMPERTIGA-SE.<br />

MÚSICA: UM FOX TROTE DOS ANOS 50, SUPER-ROMÂNTICO.<br />

SHE DANÇA INEBRIADA, PENDURADA AO PESCOÇO DE UM NAMORADO<br />

IMAGINÁRIO.<br />

3


lº MOVIMENTO - A JUVENTUDE<br />

ACABOU DE ACONTECER A FESTA DOS SEUS 18 ANOS. SHE ESTÁ<br />

SOZINHA, DESLUMBRADA. SOBRE A CAMA COR-DE-ROSA, CHEIA DE<br />

PRESENTES, ABRAÇA E BEIJA UM CACHORRINHO POODLE E DESCOBRE,<br />

ENFIADA NA COLEIRA DO BICHO, UMA CARTA. EM ABSOLUTO ÊXTASE E<br />

EXCITAÇÃO, LÊ A CARTA DO NAMORADO ROLANDO NO CHÃO.<br />

SHE - (LENDO E COMENTANDO) "Meu amor, é só pra te dizer que te amo, que te<br />

amarei sempre, que sou o cara mais feliz do mundo!" Ai, que lindo! Como ele escreve!<br />

(AGORA LÊ EM SILÊNCIO, EMITINDO SUSPIROS E GRITINHOS, AGITANDO<br />

O CORPO) Não, não, é demais! Olha: (LENDO) "Invejo esse cachorrinho sacana.<br />

Tenho vontade de torcer-lhe o pescoço quando penso que ele vai dormir ao teu lado. E<br />

vai aspirar o perfume desse corpo de deusa". Ai, que coisa mais original! Eu vou pirar!<br />

(VOLTA A LER) "Quero acariciar teus cabelos longos e louros..." (ENCANTADA,<br />

SHE ENFIA A MÃO NOS CABELOS, QUE SÃO CURTOS E ESCUROS, MAS NÃO<br />

PERCEBE O ENGANO E A MÃO CONTINUA A DESLISAR PELO AR COMO<br />

SEGUINDO LONGOS FIOS) Que bárbaro! Meu amor, você é um poeta! (CONTINUA<br />

A LER AOS SUSPIROS E GEMIDOS) "Pense em mim cada vez que acariciar esse<br />

cachorrinho safado. Teu, para sempre, Alfredo" (ELA GRITA DE EXCITAÇÃO,<br />

ABRAÇA FORTE E COBRE DE BEIJOS O CACHORRINHO) Ai, como eu te amo,<br />

como eu te amo, como eu te amo! Ai, vou explodir!...<br />

BOCA DA MÃE - She!, dia de muito, véspera de pouco!<br />

SHE BATE NA MADEIRA TRÊS VEZES.<br />

SHE - Isola , isola, isola!<br />

MAS A ADVERTÊNCIA DEIXA-A MEIO INQUIETA. SHE COMEÇA A<br />

ARRUMAR A SALA. SÚBITO, LEMBRA-SE:<br />

SHE - Meu Deus, o teste! Droga, a mulher devia ter direito a, pelo menos, três dias de<br />

folga, quando faz 18 anos! Principalmente quando tem na vida um homem maravilhoso!<br />

Ai! (RODOPIA NUM RÁPIDO SURTO DE ÊXTASE, MAS VOLTA À REAL) Mas<br />

claro que os professores, aquelas múmias, não amam. Dona Estelita deve ter teias de<br />

aranha no coração, e na xoxota. Cadê o texto do tal de Gorki? Um baixo astral, carinha<br />

mais deprimido! Merda, onde botei? (NA PROCURA DO TEXTO, VÊ O<br />

4


CACHORRO. PEGA-O COM TERNURA) Meu amor lindo, você precisa de um nome!<br />

Deix'eu ver de que que você tem cara... sei não! Você não tem cara de nada? Ah, já sei,<br />

você vai ter o nome de um deus grego, Apolo! Viu, Apolo! Gostou?<br />

BOCA DA MÃE - Querida, primeiro a obrigação!...<br />

SHE SOLTA O CACHORRO, AFLIGE-SE. VOLTA A PROCURAR O TEXTO.<br />

SHE - Merda, onde botei esse texto?(ACHANDO O TEXTO) Olha ele aqui. (ABRE O<br />

TEXTO) Vamos lá, cadê a tal de "Tatiana". Mulher mais enfossada! Dona Estelita tinha<br />

que me dar esta personagem, tinha? Que que essa mulher tem a ver comigo?<br />

(IMITANDO A PROFESSORA GRINGA) "Nada, querida. Se tivesse, eu te daria outra<br />

personagem!" Nojenta!<br />

SHE TENTA ENSAIAR.<br />

SHE - (TENTANDO O TOM DEPRÊ DE TATIANA) "Porque eu não tenho nem onde,<br />

nem com que, nem pra que viver... E eu não sei porque estou tão cansada, porque sinto<br />

tanta angústia... você entende?... Uma angústia que quase chega ao horror!" Ai, que<br />

horror! "Tenho só vinte e oito anos e tenho vergonha... vergonha de me sentir tão<br />

fraca... tão inexistente. Dentro de mim, está tudo vazio... Tudo secou, ardeu, ardeu como<br />

fogo; eu sinto, eu sinto isso e isso me dói. Foi acontecendo, pouco a pouco, sem eu<br />

perceber... foi crescendo... um vazio!" (PRA PLATÉIA) Está mais ou menos, pelo<br />

menos? Vou repetir... Coitada desta mulher, isto é falta de amor! Tá na cara, arranja um<br />

homem que passa, "Tatiana". (TENTA UM OUTRO TOM) "Dentro de mim, está tudo<br />

vazio... Tudo secou..." Não consigo. Será que melhorou? Não, né? Gente, a vida não<br />

pode ser essa deprê! Que carinha sacal! "Dentro de mim, está tudo vazio..." Não<br />

consigo sentir isso e tenho que sentir. Dona Estelita é stanilavskiana. "Porque eu não<br />

tenho onde, nem porque, nem pra que viver..." Eu não aguento... Se eu fosse escrever<br />

uma peça... Não, um poema, acho que tenho mais jeito pra poesia. A poesia está mais<br />

perto do amor. Eu faria um poema juramento. Juro, pelo meu amor, que nesta noite me<br />

deu plena luz, que o amor será a razão primeira da minha existência. E se um dia trair<br />

este juramento, cortarei a garganta, para não cortar minhas asas e meu vôo! Ai, que<br />

bonito! Ouviu, Apolo? (EMITE UM LONGO SUSPIRO E VOLTA A DANÇAR,<br />

REPETINDO) E se um dia trair o meu juramento, cortarei a garganta, para não cortar<br />

minhas asas e meu vôo, minhas asas e meu vôo, minhas asas...<br />

SHE CONTINUA A DANÇAR. VAI AGORA EM BUSCA DO NAMORADO.<br />

5


SHE - Alfredo! Eu preciso te dizer uma coisa, importantíssima! (BEIJA-O<br />

APAIXONADAMENTE) (COM A BOCA PRÓXIMA À DELE) Fiz um juramento.<br />

Jurei que o amor será sempre a única razão da minha vida. Da sua também? Responde.<br />

(AFASTA-SE UM POUCO) Se gostei do seu presente? Amei, adorei, super criativo!<br />

Adivinha o nome que botei nele! Adivinha, o nome de um Deus grego. Jesus Cristo?<br />

Bobo. Jesus Cristo era judeu. (DÁ UMA RISADA) Não, Apolo. (...) Tua carta? Claro<br />

que li, reli, trili! Fantástica, linda, super-criativa! Amor, você é um escritor! É sim. E<br />

vai escrever muitas peças pra mim. É tão lindo um casal de artistas! (...) (MEIO<br />

CHOCADA) O que, você não gosta de teatro? Não acredito, Alfredo! (...) Se você<br />

nunca viu, não pode dizer que não gosta. Vou te levar e você vai ver que nem só de<br />

futebol vive o homem!... (...)Estou brincando. Você não tem senso de humor? Ficou<br />

zangado por que? (...) Mas, meu amor, eu não podia deixar de convidar o Paulo, é meu<br />

amigo de infância! (...) Por que homem não pode ser amigo de mulher? Pois eu tenho<br />

muitos amigos. Você não tem amigas? (RECUA UM POUCO) Eu não acredito, você<br />

nunca me disse isso! (MEIO ZANGADA) Olha aqui, Alfredo, tudo bem, teu pai acha<br />

que mulher séria não faz teatro, mas eu não namoro teu pai. Isola esse coroa, tá?<br />

(PERPLEXA, QUASE CHORANDO) Eu não posso escolher entre você e uma<br />

profissão! Não tem nada a ver! (...) Juro, você é a razão da minha vida, mas... E se eu te<br />

dissesse: "Ou eu ou a engenharia"? (...) É diferente, por que? Não, não vai embora!<br />

ELE SAI E BATE A PORTA.<br />

SHE - Alfredo!... Merda! (SOCA A PORTA) Não, não, não, Alfredo, você não pode<br />

fazer isso. O amor não pode cortar as asas e o vôo.<br />

BOCA DA MÃE - O amor corta as asas e o vôo sim! E pra que diabo você quer asas,<br />

She?, você não é galinha!<br />

SHE - Não, eu não acredito, eu não posso acreditar! (PARA O CACHORRO) Apolo,<br />

você mijou sobre o meu texto! (APLICA UMAS PALMADAS NO CACHORRO)<br />

Tome, tome e tome! Ai, que ódio! (ABRAÇA-O) Desculpa, não é em você que eu quero<br />

bater. Desculpa, meu amor lindo. Ai, que merda! O que que eu faço agora? Vou ensinar<br />

você a fazer xixi na rua.<br />

PEGA O CACHORRO E SAI.<br />

O TEMPO PASSA.<br />

SHE VOLTA. ESTÁ AGORA COM 25 ANOS, CASADA.<br />

SHE - Acordado, me esperando? (...) Mas, Alfredo, hoje era meu dia de plantão! (...)<br />

Pelo amor de Deus, poupa os meus ouvidos. Fiquei oito horas ouvindo reclamações.<br />

6


Você não sabe o que é isso, a vida de uma telefonista! Sempre o mesmo texto, de um e<br />

do outro lado da linha! (SÓ ENTÃO PERCEBE QUE AINDA TEM OS<br />

HEAD-PHONES AOS OUVIDOS. TIRA-OS E OS ATIRA LONGE) Inferno! Eu devia<br />

ter feito faculdade de direito, filosofia, até curso normal servia pra arrumar emprego<br />

melhor. (...) Não, não estou te culpando de nada. Se eu queria me casar, não devia ter<br />

estudado teatro. O erro foi meu, sou mesmo errada, mamãe sempre me disse. Ai, tô<br />

exausta! (...) Com quem eu vim? Você sabe que eu sempre venho com a Alice! (...)<br />

Não, Alfredo, ela não está me cantando. E se estivesse? Agora você tem ciúme também<br />

de mulher, é? (SORRI) Bobão. (APROXIMA-SE DA CADEIRA ONDE<br />

SUPOSTAMENTE ELE ESTÁ SENTADO) (COM MALÍCIA) Você sabe muito bem<br />

de que que eu gosto! Vim correndo, só pensando em me deitar pertinho de você. Adoro<br />

tirar um sarro no meu homem adormecido. Me sinto tão taradinha! Você dormindo e eu<br />

ali, cheia de desejos pecaminosos! (SUBITAMENTE AFLITA) O que? O Alfredinho tá<br />

com febre? 39 graus? Meu Deus!<br />

BOCA DA MÃE - She, você abandonou seu filho doente? Que espécie de mãe você é?<br />

SHE - (NERVOSÍSSIMA) Vou ligar pro pediatra. Pode ser uma outra pneumonia.<br />

(VAI DISCAR O TELEFONE, PÁRA) Ah, a febre já baixou? (RESPIRA FUNDO) Ai,<br />

graças a Deus! (ZANGADA) Mas parece que você tem prazer em me ver me<br />

descabelando. (ELE A ABRAÇA POR TRÁS. ELA SE DESMANCHA, SORRI) Posso<br />

perdoar, mas só se você disser que me ama, que me adora... Repete. Que me ama como<br />

da primeira vez. Diz. Que eu sou a mulher dos seus sonhos. Que me amará sempre.<br />

Sempre, repete. Jura? Quero que você jure. Jura? (ELA SE VIRA PARA ELE) Isso, me<br />

olha assim! Adoro que você me coma com os olhos! Já me molhei toda, todinha! Vem...<br />

Não, aqui não, na cama... (ELA ANDA COMO AGARRADA A ELE, TROPEÇA,<br />

CAI, RI, ROLA NO CHÃO)<br />

BOCA DA MÃE - Sheeee, homem não gosta de mulher fácil!<br />

ELA SE LEVANTA. ANDA ALGUNS PASSOS.<br />

O TEMPO PASSA.<br />

SHE ESTÁ COM 32 E NO SEGUNDO CASAMENTO.<br />

SHE - (DÁ UMA RISADA) Desculpa o atraso, querido. (BEIJA-O) Perdemos duas<br />

horas de ensaio porque o galã não conseguia dançar um tango. Dança como se<br />

deslisasse no lago dos cisnes, uma pluma! A coreógrafa enlouqueceu, agarrou-se a ele e<br />

berrava: "Me come, anda, você é homem ou não é?, que diabo você tem entre as<br />

pernas?" Foi pior, ele vomitou em cima dela! (DECEPCIONADA) Você não acha<br />

engraçado? Está na deprê? (IRRITADA) O que é desta vez, Mário? Diga. Eu não<br />

agüento mais ser saca-rolha. Fale. (...) Um tempo, outra vez? Um tempo pra que? Outra<br />

7


mulher, é isso? Não, não é isso. Você está novamente em dúvida se ainda me ama. (...)<br />

Não, não é isso. Então, o que é? (...) Você também não sabe. Quer que eu bote o Tarot,<br />

o I Ching? (VAI SAINDO, VOLTA, AFLITA) Não, não chore, meu amor. Mário, se<br />

você não me ama mais, pode dizer. Claro que eu vou chorar, me desesperar por um<br />

tempo, mas prefiro isso a viver nesta insegurança. Você que me parecia tão seguro!<br />

Lembra da primeira vez que você veio jantar? Chorei quando o castiçal caiu e quebrou.<br />

Achei que tinha quebrado o encanto. Você acendeu a luz e disse: "Assim, a gente se vê<br />

melhor!" Realmente, é tão melhor jantar no claro! Eu nunca tinha pensado nisso! Como<br />

eu admirava a tua segurança! Foi você que me convenceu a assumir a minha profissão<br />

de atriz. Eu achava que era tarde demais, que com trinta anos eu já não poderia ser a<br />

namoradinha do Brasil, mas você... (SORRI, VOLTA A FICAR AFLITA) Ai, meu<br />

Deus, ele está chorando mais alto! Deite aqui no meu colo, acalme-se. Não, Mário, pare<br />

com isso. Você vai acordar todos os vizinhos. (AFLITÍSSIMA, SEGUE-O PELA<br />

SALA) Nas paredes não, bata nas almofa<strong>das</strong>. Não se agrida. Aprendí isso na Gestalt.<br />

(GRITA) O aparelho de som, não!, é muito caro! Olha o vidro da janela, você vai se<br />

cortar...<br />

BARULHO DE VIDRO QUEBRANDO.<br />

SHE - Eu não disse! Quase decepou o dedo! (SENTE ÂNSIAS DE VÔMITO.<br />

VIRA-SE DE COSTAS PRA ELE) Eu não posso ver sangue. Tira o lenço e aperta.<br />

Segura a tua barra. Vou te levar pro pronto socorro. Ah, vai sim, não quero ficar com<br />

um homem sem dedo. Dedo é muito importante, mesmo pra homem. Aperta a merda<br />

deste lenço pro sangue não ir todo embora. (...) Parou de sangrar? Mas, como? Ai,<br />

graças a Deus! (SENTA-SE , EXAUSTA) Sente aqui. Está mais calmo agora? (...) Eu?<br />

Estou calmíssima, tranquilíssima! Pode falar. (ELA ASSUME UMA ATITUDE<br />

PACIENTE, MAS VAI FICANDO PROGRESSIVAMENTE NERVOSA) Muito bem.<br />

Você diz que me ama, que eu sou a mulher da sua vida, mas que você precisa se sentir<br />

livre. Livre pra ter outras mulheres, é isso? (...) Pra isso, inclusive. Eu não entendo,<br />

Mário. Você diz que se sente sufocado. Sufocado, como? Você faz o que quer, entra e<br />

sai, não te pergunto nada. Eu teria bem mais motivos pra me sentir sufocada! Você até<br />

poderia ter outra mulher que eu não saberia! (...) Claro que não aceitaria! Você aceitaria<br />

que eu tivesse outro homem? (...) (COM RAIVA) É, homem é diferente mesmo. O amor<br />

de vocês dura o tempo de um tesão, um tesão de pavio curto. (INDIGNADA) O que<br />

você está querendo me dizer é que acabou o teu tesão e você tem que ir à luta. Será<br />

possível que o teu amor se reduza a um festival de ereções?<br />

ELA DÁ ALGUNS PASSOS.<br />

8


NOVAMENTE O TEMPO, QUE AGORA TRAZ À CENA UMA ESCULTURA DE<br />

APOLO.<br />

ELA ESTÁ COM 39 ANOS, NO TERCEIRO CASAMENTO.<br />

SHE - (SEGURANDO A RAIVA) - Tudo bem, Ronaldo, vá sozinho, as férias são<br />

suas. Não posso deixar o meu trabalho pra curtir o Pantanal! E detesto mosquito, prefiro<br />

a poluição. (...) Ronaldo, você nunca pensou que eu existo independente de você, que eu<br />

tenho desejos diferentes dos seus? (ENFURECIDA) Eu, egoista? Egoista é você.<br />

Egoista, egocêntrico e mimado. Você tem um ego do tamanho de um elefante. Ou<br />

melhor, um ego com elefantíase! (ANDA, AGITA-SE) Meu Deus, e eu tenho vivido<br />

incensando esse ego, pra que você me ame. Delírio meu! Você só ama a você mesmo.<br />

Você só quer uma mamãezinha, que te espere em casa e te faça as vontades. Você não<br />

me ama, você nunca me amou. Sou uma idiota! (CHORA. ELE QUER ABRAÇÁ-LA.<br />

ELA O REJEITA VIOLENTAMENTE) Não me toque. Conheço este jogo. Ano<br />

passado deixei de fazer um filme nos Estados Unidos porque você me propôs uma nova<br />

lua-de-mel. Tudo mentira, golpe. Só pra que eu não fosse. Você não suporta que eu<br />

exista independente de você. (RI, COM AMARGURA) E eu que pensei ter encontrado<br />

o homem da minha vida! Homem, o que será um homem? Só tenho encontrado meninos<br />

sedentos. Estou com os peitos caídos de tanto dar de mamar! (DEBOCHADA) Olha o<br />

beicinho do nenê, que gracinha! (RECUA SUBITAMENTE E SE RETESA) Não ouse<br />

levantar a mão pra mim, Ronaldo. Não tenho medo da tua violência. Tenho medo é da<br />

tua perversidade. Aquela, com que você me convenceu a entregar meu filho pro pai<br />

dele. Aquele blá-blá-blá de que ele estava muito na minha saia e ia terminar virando<br />

bicha. Mais um golpe. Como fui idiota!<br />

BOCA DA MÃE - Bem feito! Abandonar um filho pra satisfazer o amante! Pobre de<br />

mim que pari u'a desalmada!<br />

SHE - E como eu me puní por isso! (DESCONTROLANDO-SE TOTALMENTE)<br />

Filho da puta! Você não diz nada? Você se lixa pra minha dor, não é? Me responde,<br />

pelo amor de Deus, me responde: Você algum dia me amou? (...) (BERRA E COMEÇA<br />

A JOGAR OBJETOS NELE) Mentira! Você não tem sentimento. Você é um molusco,<br />

uma barata! Vai embora, agora, vai. E leva tudo, tudo o que é teu... O cachorro não, o<br />

cachorro é meu. (DÁ ALGUNS PASSOS, ABRE UMA PORTA, ABRAÇA O<br />

CACHORRO) Apolo, você me ama? Diga-me uma coisa, Apolo, você acha justo que<br />

chamem um mau caráter de cachorro? Nunca vi cachorro roubando a alma de ninguém!<br />

Você só rouba bifes, não é, meu querido? Vou te dar todos os bifes da geladeira. (DÁ<br />

COMIDA PARA ELE)<br />

9


O TEMPO PASSA.<br />

2º MOVIMENTO - A MATURIDADE<br />

SHE ESTÁ COM 42 ANOS E SOZINHA. AO SEU LADO, "APOLO", QUE JÁ NÃO<br />

É UM "POODLE", MAS UM CÃO DE GRANDE PORTE.<br />

ELA ESTÁ AO TELEFONE E FALA DE MANEIRA AFETADA.<br />

SHE - "Oh! Como és tola, Olga! Amo. Era o meu destino... Já estava escrito... E ele<br />

também me ama. Assusta, não é verdade? Não está certo, não é isso? Minha querida! Se<br />

pudéssemos saber como vamos viver nossa vida, o que será feito de nós... Quando<br />

lemos um romance, tudo nos parece tão fácil, tão claro... Mas basta que nós mesmos<br />

amemos, para vermos que ninguém sabe nada e que cada um deve decidir por si..."<br />

(AFASTA O FONE DO OUVIDO) Ai, como está falso! Não consigo sentir este texto!<br />

Mas também que idéia, ensaiar Tchekhov ao telefone! (LARGA O TELEFONE)<br />

(TENTA UM NOVO TOM) "Oh! Como és tola, Olga! Amo. (NT) Amo. (NT) Amo...<br />

TOCA O TELEFONE. ELA O ATENDE.<br />

SHE - Alô... Tudo bem, Alfredo? (...) Eu? Estou ótima! (...) Hum-rum... sei, sei...<br />

(PARA O CACHORRO) Ele se queixa do nosso filho. (AO TELEFONE) Falo sim, falo<br />

com ele. (...) Claro, não é carreira que dê futuro, eu sei... muito menos neste país. (PRO<br />

CACHORRO) O menino quer ser ator! (AO TELEFONE) Tentarei convencê-lo, sem<br />

dúvida. (...) Mamãe? Está ótima, a esclerose faz bem a ela. Acha tudo um barato, às<br />

vezes diz palavrão demais! (RI) Ah, sabe quem foi ontem ao teatro? Aquele teu amigo -<br />

como é mesmo o nome dele? Aquele, de barba. Meu Deus, ele foi falar comigo no<br />

camarim e não o reconhecí! Ele implantou um chumaço de cabelo na careca! Tá tão<br />

engraçado! (...) O que? Você também tá ficando careca? (ENFIA A MÃO NOS<br />

CABELOS) Sabe que meu cabelo anda caindo loucamente? Como é o nome do xampu?<br />

Espera, vou anotar. (PEGA CANETA E PAPEL) Não sei onde botei os meus óculos.<br />

Apolo, você andou escondendo os meus óculos? (ACHA TRÊS ÓCULOS NUMA<br />

GAVETA. ATRAPALHA-SE. COLOCA UM DELES) Xampu de que? (ANOTA) E no<br />

mais, tudo bem? (...) Dor nas juntas? Alfredo, você está ficando velho? (...) (RI) Ah, o<br />

"fundamental" ainda funciona bem! Menos mal. (...) Quero, chame ele. (PRO<br />

CACHORRO) É o meu filho. (AO TELEFONE) Filhinho, quando que você vem ver<br />

sua mãe? (...) Não admito que você fale desse jeito comigo, Alfredinho!<br />

(NOVAMENTE TERNA) Meu filho, precisamos conversar sobre o seu futuro. Teatro<br />

não é carreira segura para um homem... (À PARTE) Ai, meu Deus, falei igualzinho à<br />

10


minha mãe! (AO TELEFONE) Não grite, Alfredinho! Tudo bem, se é isso que você<br />

quer... bom, vamos conversar primeiro, tá legal? Passe no teatro hoje , vamos sair pra<br />

jantar juntos. (...) Sem "entourage", só nós dois, prometo. <strong>Cia</strong>o, filhinho. (POUSA O<br />

FONE NO APARELHO. PERPLEXA) "<strong>Cia</strong>o, velha", ele disse! <strong>Cia</strong>o, velha!<br />

RECOMEÇA A ENSAIAR O TEXTO, SEM CONSEGUIR O TOM ADEQUADO.<br />

SHE - "Oh! Como és tola, Olga! Amo. Era meu destino... Já estava escrito... "(TENTA<br />

UM OUTRO TOM) Amo. Era meu destino... " Que merda! Devo estar sem voz. (FAZ<br />

UM EXERCÍCIO DE VOZ) (NUMA NOVA INTERPRETAÇÃO, AINDA PIOR) "Oh!<br />

Como és tola, Olga! Amo. Era meu destino... Amo..." (SÚBITO, ANGUSTIADA,<br />

PENSANDO ALTO) Eu já não sei dizer um texto de amor?... Será que... a fonte secou?<br />

De repente, o vazio... aquela falta de resposta nas cor<strong>das</strong> da emoção... as cor<strong>das</strong><br />

afrouxaram e soam sur<strong>das</strong> ao toque dos dedos... Há quem acabe assim...(FALANDO<br />

PARA O PÚBLICO) Não, isto não pode estar acontecendo comigo. Sempre fui, sou e<br />

serei uma mulher vibrante. É isto que faz de mim uma atriz! Mas, então, o que está<br />

acontecendo comigo?<br />

BOCA DA MÃE - É falta de homem, minha filha! Case-se que passa.<br />

SHE - Ah, mamãe, mamãe! Casar?, nem morta! Quero morrer solteira! Não quero<br />

nenhum homem segurando a alça do meu caixão! (REFLETE) É bem verdade que nessa<br />

matéria não tenho o menor caráter. Da última vez em que jurei não mais me casar, 24<br />

horas depois havia uma segunda escova de dentes no meu banheiro. É, mas agora<br />

mudei. A gente precisa ter uma visão dinâmica de si mesma... a vida é movimento,<br />

mutação constante... a gente muda, muda sempre... (COM MAIS ÊNFASE) Tem que<br />

mudar. Não pode ficar se despedaçando por aí. Três casamentos arrebentados, é demais!<br />

Claro que tiveram coisas lin<strong>das</strong>. Não me arrependo. Mas não precisava aquele desgaste,<br />

aquele "barraco" todo. Sabe, sinto que fui deixando pedacinhos importantes de mim<br />

nessa trajetória conjugal! É, com o primeiro, She, você deixou os sonhos de amor<br />

eterno! Com o segundo, o que restava de suas ilusões! E com o terceiro? Ah, com o<br />

terceiro... você quase perde a dignidade e perdeu um dente.(DÁ UMA RISADA).<br />

Estávamos jantando num restaurante chiquérrimo e entediados, como qualquer casal<br />

normal. De repente, aquele osso na boca! Tinha osso no filé?, mas que absurdo!, grito<br />

pro garçon, que se desmancha em desculpas, enquanto eu saco da boca a arma do crime.<br />

Não era osso, era o meu canino! (GRITA) Ronaldo, a culpa é sua! (À PARTE) Ronaldo<br />

era dentista. (PAUSA) Mas valeu a pena! A gente se perde, mas se acha, não é mesmo?<br />

Gosto de me perder... Quando me reencontro, tenho novidades. Vou me perder sempre...<br />

só quero mudar o estilo! Um quarto casamento, não, beira o desfrute! Não é, Apolo?<br />

Vamos dar uma volta.<br />

11


ELA BOTA A GUIA NA COLEIRA DO CACHORRO E SAI. ANDA ALGUNS<br />

PASSOS E O TEMPO PASSA.<br />

ENCONTRA ALGUÉM.<br />

SHE - Frederico! (TROCA DOIS BEIJOS COM ELE) Tudo ótimo! Não, não me<br />

esquecí. É amanhã, não é? Tá, tudo bem. <strong>Cia</strong>o, querido. (PRA PLATÉIA) Frederico é o<br />

meu namorado. Tem 25 aninhos! Ah!, "Madame Cleci" tinha razão, as mulheres só<br />

deviam amar meninos! A princípio fiquei meio assim... é, ele podia ser meu filho...<br />

podia, mas não é, pronto, relaxei. Os jovens são ótimos! Sem "grilos", sem encucações,<br />

sem preconceitos, "light", totalmente "light"! Frederico me convidou pra irmos a uma<br />

gafieira. Pensou que eu tivesse esquecido. Imagina, eu adoro dançar!, principalmente os<br />

rítmos quentes!, (COMEÇA A FAZER UNS MOVIMENTOS DE GAFIEIRA) que<br />

exigem <strong>das</strong> coxas e dos quadris... que se dança agarradinho...<br />

ENTRA UM SAMBA GOSTOSO E ELA DANÇA COM UM PARTNER INVISÍVEL.<br />

SHE - Como você dança, Frederico! O puladinho, vamos... (ACELERA O SAMBA)<br />

BARULHO DE COPOS E CADEIRAS QUEBRANDO. A MÚSICA PÁRA.<br />

SHE - Que houve? (...) "Pintou um barraco"? Vamos embora, tenho horror.(...) Vai<br />

parar coisa nenhuma, vai é sobrar pra gente. Vamos.<br />

ELA SAI APRESSADA.<br />

NA RUA.<br />

SHE - Pare de gritar. A gente vem outro dia. (...) Pois volte, eu vou sozinha pra casa,<br />

não me importo. Amanhã tenho ensaio às dez da manhã. (...) (PÁRA) Que que você<br />

disse? Não quer que eu faça teatro? (COMEÇA A RIR) Não acredito. Menino, você<br />

enlouqueceu? (...) Ou você ou o teatro?(RI MAIS AINDA) Acho que já ouvi esta frase,<br />

mas não estou a fim de voltar a ser telefonista. Fica frio, Frederico. (...) Espere, não seja<br />

tolo.(...) Tá, então ciao!. (PRA PLATÉIA) Ele se foi! Mas o que será que se passa na<br />

cabeça dos homens que eles põem e dispõem da vida da gente, sem a menor cerimônia e<br />

sem nenhuma culpa? E ainda saem ofendidos! Ele se foi mesmo! Que pena, era tão<br />

gostoso namorar o Frederico!<br />

PASSA O TEMPO.<br />

ELA VOLTA PRA CASA E PASSARAM-SE MAIS 5 ANOS.<br />

12


SHE ESTÁ COM 47 ANOS.<br />

ACARICIA O CACHORRO.<br />

SHE - Apolo, acho que não sei ser mãe. Não precisa me consolar, digo isso sem culpa.<br />

Tenho tanta peninha de você aqui dentro deste apartamento! Apartamento não foi feito<br />

pra cachorro.<br />

SENTE UM SÚBITO MAL ESTAR: UM CALOR SUBINDO DO PEITO PRA<br />

CABEÇA.<br />

SHE - Nossa, que calor horrível! E assim, de repente... (CORRE A ABRIR A<br />

JANELA) Esta cidade tem três temperaturas por dia. Haja saúde! (ABANA-SE) Ai, que<br />

sufoco! Apartamento não foi feito pra cachorro, tampouco pra gente. Quero botar o pé<br />

na rua quando abrir a porta. Sabe o que vou fazer? Vou vender este apê e comprar um<br />

sítio. Você vai ter muito espaço pra correr e fazer cocô, Apolo. Vou criar patos,<br />

galinhas, porcos. Você vai-se acostumar com essa bicharada. Vou ter um cavalo<br />

também. Monto no cavalo e visito os vizinhos. É horrível a gente não conhecer nem o<br />

vizinho do lado. Mal um "bom dia" no elevador! Isso não é vida de gente... nem de<br />

cachorro. Um sítio aqui perto, é isso. Quando estiver trabalhando, irei à noite e voltarei<br />

depois do espetáculo. Segunda e terça-feira ficarei direto. Os amigos irão me visitar.<br />

Aqui ninguém se visita, só se fala pelo telefone!<br />

TOCA O TELEFONE.<br />

SHE - (AO TELEFONE) Ocupadíssima. Estou fazendo um projeto de vida. (...) Nosso<br />

não, meu! (...) Você é o meu amor, tem alguma dúvida? Mais do que amante, você é<br />

cúmplice! Mas, projeto de vida, já não faço a três. Dois chegam, eu e Apolo. (...) Não,<br />

não se zangue, é apenas uma esquisitice minha. Já tenho idade para ter esquisitices. (...)<br />

Também estou com saudades. Volte logo. Te adoro, neguinha! (DESLIGA)<br />

BOCA DA MÃE - Vergonha! <strong>Essas</strong> coisas jamais aconteceram na nossa família!<br />

Desgraçada de mim que parí uma filha tarada!<br />

SHE - Tudo bem, mamãe. Só não me diga que arrumei uma mulher porque não acertei<br />

com os homens. A minha sexualidade era mais abrangente do que eu pensava! É,<br />

também me assustei... mas agora, é tão bom ter amor e cumplicidade numa só pessoa!<br />

(VOLTA O PAPO COM APOLO) No inverno, Apolo, nós ficaremos ao pé da lareira,<br />

olhando pela vidraça a chuva caindo lá fora! Quando o sol sair, vamos fazer bonecos de<br />

neve... É, você tem razão, aqui não tem neve. Compraremos então um sítio na Bolívia.<br />

Posso fazer teatro também na Bolívia, é só aprender espanhol: coração vira corazón,<br />

13


sensibilidade é sensibilidad, morte-muerte, terra-tierra, Deus-Dios, irmãos-hermanos,<br />

paixão-passion! Passion! Soa como um tango! Gotas de sangue pingando de uma<br />

lâmina afiada e manchando o branco da neve! Ai, adoraria esquiar naquelas montanhas<br />

de neve suiças! Não deve ser difícil comprar um sítio na Suiça, basta abrir conta num<br />

banco suiço. São sigilosíssimos! Não falam nem pra salvar a mãe moribunda! Você vai<br />

adorar a Suiça, Apolo. Já pensou?, a casa toda coberta de neve como num cartão postal!<br />

Vou te comprar várias roupas de lã. Não é chic? Ai, que frio! (CORRE A FECHAR A<br />

JANELA)<br />

VOLTA E FAZ UM CARINHO NO CACHORRO.<br />

SHE - Apolo, você tá quente! Falo em neve e você continua com essa temperatura dos<br />

trópicos! Que falta de imaginação! Por falar em falta de imaginação, lembra daquela<br />

peça que eu fiz - como era mesmo o nome? Foi há uns 5 anos, mais ou menos... A<br />

minha personagem era uma mulher - como era mesmo o nome dela? Bom, não<br />

interessa. Ela estava apaixonadíssima e dizia assim pro amante, ao telefone... Como era<br />

mesmo? Ando tão esquecida! Ah, não tem importância. (ABRAÇA O CACHORRO)<br />

Vou te confessar uma coisa, meu amiguinho, há momentos em que me sinto tão só!<br />

BOCA DA MÃE - Não estaria se sentindo só se tivesse sabido prender o seu marido!<br />

ELA DÁ UMA GARGALHADA.<br />

SHE - Seus maridos, mamãe! Masculino plural! Mas por uma estranha coincidência,<br />

todos eles me viam loura, de olhos azuis! Você vai dizer que não custava pintar o<br />

cabelo e botar lentes de contato pra agradá-los. Também acho, mamãe, mas eu não<br />

percebia a forma como eles me viam! Vai ver que me viam magra e eu nem precisava<br />

ter feito aquelas dietas! É por não perceberem o imaginário masculino que as mulheres<br />

passam tanta fome! É, já dizia uma velha amiga, homens e mulheres são culturas<br />

diferentes! Tá ouvindo, Apolo, é melhor você continuar donzelo. Ou arrumar um<br />

amiguinho...<br />

APOLO ROSNA.<br />

SHE- Ai, novamente esse calor! É o efeito estufa! (ABANA-SE) Pois é, Apolo, as<br />

fêmeas já não são compreensivas como antigamente. Mamãe diria que é porque elas já<br />

não querem se sacrificar, já não temem os castigos de Deus. Graças a Deus! Ah, velha,<br />

como você odeia as mulheres! Azar seu! Mas que elas são algumas vezes insuportáveis,<br />

ah, isso são, não acha, Apolo? Esquecí que você ainda não conhece fêmea.<br />

14


TOCA O TELEFONE.<br />

SHE - (AO TELEFONE) Verinha? (...) Tudo na mais perfeita desordem. E você? (...)<br />

Ah, minha amiga, grilo de idade é uma coisa cultural. Se você se deixar levar por um<br />

peito que cai, a cabeça desaba! Por isso, não tomo conhecimento dessas ações da lei da<br />

gravidade. No ano 2.025, o Brasil terá deixado de ser um país de jovens, vai ter 14 por<br />

cento de velhos na sua população. (...) Bom, eu também provavelmente não estarei viva<br />

em 2.025, mas não custa colaborar com a posteridade! (...) Mas, Verinha, pára com isso,<br />

você está muito mais interessante do que há l0 anos atrás! Olha, com o corpo que você<br />

tem, você pode até ser eleita a musa do próximo verão. Dina Sfat não foi, aos 45 anos?<br />

A partir daí o mito da juventude já não era mais aquele! Foi como quando Leila Diniz<br />

vestiu biquini grávida. Mostrou que mulher grávida também pode ser bonita. Pois é,<br />

caem os mitos, fica o ser humano, pra criar novos mitos, querida! (...) Não, não sou<br />

sábia, apenas me defendo! (DÁ UMA RISADA). <strong>Cia</strong>o, minha querida, cuide-se!<br />

DESLIGA. O TELEFONE VOLTA A TOCAR. ELA O ATENDE, MEIO<br />

IMPACIENTE.<br />

SHE - Alô. (...) É, é ela. (...) Oi, não reconhecí tua voz. Há muito que a gente não se<br />

fala, não é? (...) Viajar? Não posso, nega. A peça está fazendo sucesso, não vai sair de<br />

cartaz tão cedo. Mas que viagem é essa, me conte. (...) Ah, adoraria percorrer de carro a<br />

Espanha e Portugal. (...) Leste europeu também? Que fantástico! (...) Ilhas gregas?<br />

Puxa! (...) Bom, Oriente Médio acho meio perigoso, aquilo lá é um barril de pólvora<br />

com petróleo pra todos os lados. Não, querida, prefiro emoções mais singelas. (...)<br />

África do Sul? Adoraria!, mas só com a Vanessa Redgrave. Com ela, deve ser mais<br />

seguro fazer manifestação anti-apartheid. Quando decola?(...) Ah, ainda não sabe? (...)<br />

Não, não sabia que você estava na novela <strong>das</strong> oito. Não vejo televisão! É boa? (...) Bom,<br />

um diálogo razoável já é alguma coisa menos desesperadora, não? (...) Está bem,<br />

quando marcar a viagem, me ligue, quem sabe... (...) Tá bem... tá legal. <strong>Cia</strong>o. Um beijo.<br />

DESLIGA. REFLETE.<br />

SHE - Mas como que ela vai fazer essa viagem?! Não tem onde cair morta!. Um velho<br />

rico ela não arrumou. Essa minha amiga faz a linha navio escola... Eu, hein! Tem muita<br />

gente tendo orgasmos múltiplos em páginas de projetos! Eu, heim!<br />

OLHA PRO CACHORRO. PERCEBE-O INQUIETO.<br />

15


SHE - Está querendo fazer o seu cocô, Apolo? É a sua contribuição diária para a sujeira<br />

pública, não é, meu amor? Tadinho! Quando tivermos a fundação teatral, você não vai<br />

precisar participar desse ato selvagem de emporcalhamento <strong>das</strong> calça<strong>das</strong>. Vai ter muito<br />

terreno pra você fazer as suas necessidades. Você vai ser o mascote e o cão de guarda<br />

da Fundação. Mas vai ter que perder este ar idiota de cachorro de apartamento pra<br />

impor respeito. Quer ver a planta que eu fiz? (PEGA A PLANTA) Olha, aqui é a oficina<br />

de confecção de cenários. Vai dar emprego pra muita gente! E aqui, o bar e o<br />

restaurante fazendo um bloco com o teatro. O nosso apartamentinho vai ficar neste<br />

canto, bem isolado, pra manter a privacidade. Sabe que sala é esta, Apolo? A sala do<br />

Grotovsky. Já pensou, uma oficina permanente com o Grotovsky, o que vai representar<br />

para o teatro brasileiro? E uma oficina de texto, coordenada pela Marguerite Duras,<br />

aquela d' "O Amante"? (...) O que, a velhota bebe? E daí, Apolo? Antes uma bêbada<br />

internacional do que uma sóbria municipal! Vou chamar também o Maurice Béjart pra<br />

dar um curso de dança. É imprescindível que a fundação tenha um caráter internacional.<br />

Só assim poderemos ter representação na Unesco. Ih, Apolo, que pum horroroso!<br />

Vamos rápido, antes que resolva contribuir pra sujeira doméstica.<br />

ELA VAI PEGAR A GUIA DO CACHORRO.<br />

SENTE-SE MAL. PÁRA.<br />

SHE - Segura o cocô, Apolo, que a barra tá pesada. (RESPIRA FUNDO) Uma<br />

tonteira... dei pra sentir essa coisa. Médico porra nenhuma, detesto essa máfia de<br />

branco.<br />

ELA SE SENTA PARA SE RECUPERAR.<br />

O TEMPO PASSA.<br />

PASSARAM-SE MAIS 3 ANOS. ELA ESTÁ COM 50 ANOS.<br />

TOCA A CAMPAINHA. ELA ABRE A PORTA IMAGINÁRIA E SURGE, SOLTO<br />

NO ESPAÇO, UM BOLO COM DUAS VELAS, FORMANDO O NÚMERO 50. ELA<br />

PEGA O BOLO E OUVE-SE O "PARABÉNS PRA VOCÊ".<br />

SHE - O que é isso, Alfredinho? (...) Meu aniversário, eu sei, mas e este número? (...)<br />

Eu, fazendo 50 anos? Você está enganado!... Faço... (CONTA MENTALMENTE) É, é<br />

isso mesmo... mas que absurdo! (DECIDIDA) Não, não aceito, ainda não estou<br />

preparada. Vamos colocar o bolo no freezer. (...) Sim, vou congelá-lo, até me acostumar<br />

à idéia... daqui dois, três anos, quem sabe!... (ENFIA O BOLO NO FREEZER COM<br />

VELA E TUDO) Obrigada, filhinho, pela lembrança. Agora me deixe só, preciso ficar<br />

sozinha, estou um pouco nervosa... (LEVA O FILHO ATÉ A PORTA) 50 anos... cinco<br />

16


déca<strong>das</strong>... meio século... como? Eu não senti esse tempo passar... mas que traição!<br />

(PASSA A MÃO PELO PEITO. ANGUSTIADA, CORRE E ABRE A JANELA)<br />

LUZ VERMELHA PISCANDO.<br />

SHE - Meu Deus, que calor! Estou ardendo nas chamas do inferno! (GRITA) Mamãe, o<br />

que qué isso?<br />

BOCA DA MÃE - Não disfarce, She! Isso é menopausa!<br />

SHE - (CHOCADÍSSIMA) Menopausa? (DECIDIDA) Pois muito bem! Daqui pra<br />

frente, tudo é lucro!<br />

ABRE O FREEZER, RETIRA O BOLO. PARTE DOIS PEDAÇOS.<br />

SHE - Apolo, vamos comemorar a menopausa. Sua não, a minha, claro!<br />

JOGA UM PEDAÇO DE BOLO PRO CACHORRO. PEGA UMA GARRAFA DE<br />

CHAMPAGNE, ABRE-A.<br />

SHE - (BRINDANDO) Ao tempo, esse inexorável!<br />

SACODE O CHAMPAGNE E O ESPIRRA PELO ESPAÇO CÊNICO.<br />

17


3º MOVIMENTO - A VELHICE<br />

O TEMPO PASSA, MARCANDO SUA PASSAGEM SOBRE A ESCULTURA DE<br />

APOLO ESPECIFICAMENTE E LEVANDO PARA FORA DE CENA A BOCA DA<br />

MÃE.<br />

SHE VOLTA COM UM TERCEIRO CACHORRO, UM VIRA-LATAS. ESTÁ COM<br />

65 ANOS.<br />

SHE - Vamos, Apolo, acabou o passeio. Hoje você só deu vexame. Não fica bem pra<br />

uma senhora da minha idade correr atrás de cadelas no cio.<br />

TOCA O TELEFONE. ELA ATENDE.<br />

SHE - Fala. (...) Bem, mas exausta. O Apolo está com furor nos testículos. (...) E você<br />

gostaria que cortassem os seus? (RI) Estava pensando em você, filhinho. Por que me<br />

ligou? (...) Ah, aniversário da minha neta! Você sabe que não guardo datas! (...) O que?<br />

Você quer fazer a festa aqui em casa? Encher a minha casa de adolescentes e<br />

discoteque? Não, meu amor, estou até a fim de aprender aquela dança - como é mesmo<br />

o nome? Esquecí - mas prefiro um lugar público, onde eu possa entrar e sair. Faça a<br />

festa num clube, eu pago. Tenho uma boa notícia para você. Estou aqui com uma peça<br />

muito interessante, o papel me interessa: uma velha aristocrata, anárquica, engraçada.<br />

Talvez você se interesse em dirigí-la. (...) Claro que confio em você. Vamos brigar<br />

muito, não vai ser ótimo? Você terá boas desculpas pra xingar a sua mãe, um adianto na<br />

sua terapia. (NT) Filhinho, você foi aos "vigilantes do peso"? (...) Olha, vão começar a<br />

te chamar pra fazer papel de mordomo, hein! Um homem tão bonito... (...) Está bem, a<br />

vida é sua, não falarei mais no assunto. Passe aqui pra pegar o texto. Um beijo.<br />

DESLIGA. SENTA-SE. PARECE MUITO CANSADA.<br />

SHE - Apolo, acho que a sua dona entrou na terceira idade! O número três deve ter uma<br />

coisa kármica, trágica! Terceiro mundo! Há coisa mais trágica? Do segundo, ninguém<br />

fala. Você sabe qual é o segundo mundo? Nem eu! Agora, o terceiro! Vive no noticiário<br />

policial! Mas a terceira idade não me parece assim tão movimentada. O problema da<br />

velhice é a falta de problema, a não ser a própria velhice. Não consigo me imaginar num<br />

curso de atualização para a terceira idade, nem jogando cartas no Posto 6!<br />

ELA SE LEVANTA. VAI BUSCAR ALGUMA COISA. DÁ UM RASPÃO NO<br />

PINTO DA ESCULTURA E O PINTO DO APOLO DESPENCA.<br />

18


SHE - Novamente, Apolo? (PRO CACHORRO) Não é você, afaste-se!<br />

PEGA ESPARADRAPO PARA CONSERTAR O PINTO DA ESCULTURA.<br />

AGACHA-SE E TENTA FAZER O CONSERTO.<br />

SHE - Pensei que você fosse imune ao tempo, meu caro Apolo, mas o tempo não<br />

perdoa nem as pedras!<br />

LEVANTA-SE COM DIFICULDADE.<br />

SHE - Quanto mais os simples mortais! Aos 65 anos, as aulas de expressão corporal já<br />

não surtem tanto efeito!<br />

TOCA O TELEFONE. ELA O ATENDE, LÉPIDA E FAGUEIRA.<br />

SHE - Quem mais poderia ser? (...) (FAZENDO CHARME) Se muito não me engano,<br />

essa voz sussurrou-me coisas à noite passada! (...) Podemos nos encontrar. (...) Depois<br />

do ensaio, pelas duas da manhã... (...) (SEGURANDO O PINTO DO APOLO, QUE<br />

NÃO FICOU BEM COLADO) Estou fazendo um servicinho doméstico... (...) Qualquer<br />

dia desse te convido pra vir jantar. Sou boa cozinheira.<br />

O PINTO DO APOLO DESABA.<br />

SHE - (AFLITA) Ai, merda! Desculpe, é que desabou aqui o... braço do Apolo. (...) Do<br />

cachorro não, o da escultura. (PRO CACHORRO). Apolo, não se aproxime, te boto de<br />

castigo! (...) Estou falando com o Apolo, o meu cachorro. Por favor, querido, me liga<br />

mais tarde, preciso tomar uma providência. Um beijo.<br />

DESLIGA E CORRE A APANHAR O PINTO ANTES QUE O CACHORRO O<br />

ABOCANHE. RECOLOCA-O. SENTA-SE. PEGA UM JORNAL AO LADO.<br />

FOLHEIA-O SEM MUITO INTERESSE.<br />

SHE - Tenho uma amiga que só lê o obituário. "Vejamos quais as novidades", pensa<br />

ela, já enlutada. Não entendo isso. (UMA NOTÍCIA CHAMA-LHE A ATENÇÃO).<br />

Não é possível! Morreu o velho Palmeiras! É o terceiro amigo que se vai em menos de<br />

um ano. Meu querido Palmeiras, grande ator! Aprendí muito com você e quero te<br />

lembrar vivo, meu velho! Não vou ao teu velório. Detesto as cerimônias fúnebres. Tem<br />

sempre aquele pessoal da vela que fica querendo adivinhar qual será o próximo a ser<br />

19


velado. Tem gente que faz aposta: "Quer bater uma nota como o próximo vai ser aquele<br />

pé-na-cova de guarda-chuva?" "Nada, cara, a velha de corcundinha tá muito mais<br />

estragada!" "Aposto no Matusalém de gravatinha borboleta. É escritor. Já tem até<br />

candidato pra vaga dele na Academia Brasileira de Letras. Num dura um mês, quer<br />

apostar?" Eu, hein! Não indo a velório, pelo menos evito que apostem em mim!<br />

ATIRA O JORNAL PARA O LADO. ESPREGUIÇA-SE.<br />

SHE - Preciso achar as minhas lentes de contato. (PASSA A PROCURAR AS<br />

LENTES) Ontem, no ensaio, saí de cena pela porta da geladeira e quase engulo uma<br />

bola de gude pensando que era uma uva. Não consigo usar óculos por muito tempo.<br />

Tenho a sensação que o nariz vai desabar. Aliás, com a idade, o nariz desaba um pouco<br />

mesmo! (ACHA AS LENTES E PASSA A COLOCÁ-LAS) No teatro, pior do que<br />

enxergar mal é não ouvir. A Eleonora, coitada, tá surdinha! O filho dela trouxe dos<br />

Estados Unidos um aparelho pra surdez, moderníssimo, mas não adianta muito.<br />

Qualquer dramalhão vira comédia rasgada com a Eleonora no elenco. Ela responde a<br />

um sisudo "boa noite" com um "quero sim, obrigada". (VOLTA A OLHAR O<br />

JORNAL) E o meu velho amigo Palmeiras! Coitado, foi-se em boa hora! Ouvia<br />

perfeitamente, mas não conseguia decorar o texto dele. Não sei porque capricho da<br />

esclerose, só conseguia decorar as falas dos outros. As falas <strong>das</strong> mulheres, de<br />

preferência. Então, era hilariante ver o velho professor, com aquele vozeirão, dizer de<br />

repente: "Alberto, escolha, ou eu ou ela, antes que eu me mate!" (NT) Ai, o mundo visto<br />

com lentes de contato, é outra coisa! Agora posso fazer um pouco de expressão<br />

corporal.<br />

COLOCA A MALHA DE GINÁSTICA E COMEÇA A FAZER EXERCÍCIOS.<br />

SHE - Com música seria bem mais agradável. O corpo se comporta melhor quando<br />

acompanha um rítmo. Mas o som quebrou! Há quase um ano, aliás. Homem faz falta<br />

numa casa, sem dúvida nenhuma. Eles são ótimos pra levar objetos pro conserto. Às<br />

vezes até são bons eletricistas e bombeiros. Em compensação, deixam cuecas sujas no<br />

banheiro. (PÁRA O EXERCÍCIO, REFLETE) A mulher tem que pesar estas coisas<br />

antes de decidir se casar: Objetos consertados versus cuecas sujas no banheiro!... Não,<br />

ele não vai me convencer por causa de um som quebrado. Estou apaixonada, mas não<br />

me casarei com você, meu querido. Três casamentos foram o bastante pra me<br />

convencer: debaixo do mesmo teto, até um grande romance vira novela <strong>das</strong> oito!<br />

Continue a deixar as suas cuecas sujas no seu banheiro. Amanhã mesmo levarei o meu<br />

som para o conserto, está decidido. (VOLTA A FAZER O EXERCÍCIO).<br />

20


TOCA A CAMPAINHA. ELA OLHA POR UM OLHO MÁGICO DE PORTA<br />

IMAGINÁRIA.<br />

SHE - Você! Mas a esta hora, e sem avisar! (ENXUGA RAPIDAMENTE O SUOR DO<br />

ROSTO) Está bem, espere, vou abrir.<br />

PROCURA A CHAVE E A ENCONTRA EM ALGUM LUGAR BEM ESQUISITO.<br />

ABRE A PORTA IMAGINÁRIA.<br />

SHE - Não, não me beije, estou toda suada. Não, falando francamente, não estou feliz<br />

de te ver. Não é nada delicado chegar na casa de uma senhora, a esta hora, sem avisar.<br />

Não gosto que me veja assim. No amor, é preciso manter uma certa cerimônia, senão<br />

vai-se o encanto e começa o mau gosto. (...) Não, agora fique, você já está aí, já me viu<br />

assim! Mas o que houve, você está esbaforido! Sente-se, meu amor. (...) Sua neta, sei,<br />

teve um bebê? Quer dizer então que você se tornou bisavô? (DÁ UMA RISADA) Ora,<br />

não faça esta cara! Não estou debochando, estou achando lindo, maravilhoso! Dá cá um<br />

abraço! O mais jovem e belo bisavô da praça! (AFASTA-SE UM POUCO E O OLHA<br />

COM MUITO CARINHO) Vamos, sorria, fique feliz. Que que você quer ganhar como<br />

presente de bisavô, hein? (...) Ah, não diga bobagem. Você não ficou mais velho só<br />

porque sua neta teve um bebê. Daqui a pouco serei bisavó também, e daí? Os jovens<br />

hoje estão se casando cedo demais. Uma onda de conservadorismo abateu-se sobre eles,<br />

coitados! Minha neta quer casar virgem, você acredita? (ACARICIANDO-O) Meu<br />

querido, não seja tão infantil! Vamos comemorar este feliz evento. Aproveitemos que é<br />

segunda-feira e eu não trabalho. Vou fazer um jantar pra nós. Não, o menu é surpresa.<br />

Agora fora, que a grande cozinheira vai entrar em cena. Vá. (BEIJA-O LEVEMENTE<br />

NA BOCA) Um beijo na bisneta. <strong>Cia</strong>o, meu amor.<br />

SHE FECHA A PORTA E COMEÇA A TOMAR PROVIDÊNCIAS NA COZINHA.<br />

SHE - Ainda bem que ontem fiz compras! Camarão empanado, é uma boa como prato<br />

principal. Mas onde botei a receita? (COMEÇA A PROCURAR) Uma salada verde,<br />

como entrada. Arroz com passas. Uns bolinhos de peixe pra acompanhar o camarão.<br />

Não, ele me disse que não se dá bem com frituras. Bobagem, comida não faz mal a<br />

ninguém. (ENCONTRA A RECEITA EMBAIXO DA CAMA) Olha onde estava a<br />

receita. Esta casa deve ter algum espírito metido a engraçado. (LENDO) 300 gramas de<br />

camarão. Por que 300 gramas? A balança tá quebrada! Aliás, nunca foi usada. Detesto<br />

medir qualquer coisa. Vai no olho mesmo. (VAI LENDO OS INGREDIENTES E<br />

MISTURANDO) (ALGO CAI NO SEU OLHO) Merda, vou ter que tirar as lentes de<br />

21


contato. Lente de contato não foi feita pra cozinha. (TIRA AS LENTES DE<br />

CONTATO) Agora, cadê os óculos? Ah, não preciso de óculos pra cozinhar.<br />

(CANTAROLA ENQUANTO COZINHA. PERCEBE-SE QUE SHE TEM UMA<br />

ESPECIAL FALTA DE JEITO PARA ESTE OFÍCIO, MAS ESTÁ<br />

ABSOLUTAMENTE À VONTADE) Adoro cozinhar, mas nunca tenho tempo! Certa<br />

vez um repórter me perguntou se eu não fosse atriz o que seria. Respondí: cozinheira.<br />

Ou motorista de caminhão, daqueles de carga, enormes, que viajam à noite. O rádio<br />

ligado, a voz acariciante de uma locutora, dizendo: "pra você, caminhoneiro, aí solitário<br />

na boléia de seu caminhão, o coração cheio de lembranças daquela mulher que o<br />

espera..." E entra aquela música lindamente cafona! (CANTAROLA UMA MÚSICA<br />

CAFONA) A chuva fininha, aquele cheiro de terra molhada! Tenho uma amiga que foi<br />

caminhoneira, na Transamazônica! Hoje trabalha num banco. É impressionante a<br />

capacidade de adaptação do ser humano! (CHEIRA O SALEIRO) Mas isto é açúcar!<br />

Faz mal não. Os chineses botam açúcar na comida. Sempre achei que a Transamazônica<br />

era um colosso! Pois é uma porcaria de estrada: estreita, pontes caí<strong>das</strong>, os caminhões<br />

rolam nos despenhadeiros, um horror! Minha amiga viajava armada com uma bereta.<br />

Gostaria de saber atirar. Até tentei, mas nunca conseguí acertar o alvo. Deve ser uma<br />

coisa de cabeça, um desvio qualquer. Pontaria deve ter a ver com um certo tipo de<br />

equilíbrio mental que nunca tive. Mamãe dizia que eu andava feito caranguejo, meio de<br />

lado. Só consigo corrigir esta deformação no palco. Fora do palco, tropeço nas próprias<br />

pernas. Não, não é velhice, sempre fui assim. (OLHA O RELÓGIO) Nossa! Preciso<br />

começar a me arrumar, antes que ele me veja novamente neste estado.<br />

SAI. OUVE-SE O BARULHO DE CHUVEIRO. SHE CANTAROLA ENQUANTO<br />

TOMA BANHO.<br />

VOLTA ENROLADA NUMA TOALHA. ABRE O ARMÁRIO DE ROUPAS.<br />

SHE - Que roupa uma mulher deve vestir para agradar ao namorado que acaba de ser<br />

bisavô? Nunca pensei nisso! (RETIRA UM VESTIDO, EXAMINA-O) Sóbrio demais!<br />

Ele deve estar precisando de algo que o instigue! Os homens são eternos tolos! Vivem<br />

fixados no funcionamento de um instrumento que sobe e desce! (RETIRA UM OUTRO<br />

VESTIDO) Não, este é curto demais. Um primeiro jantar deve ter um clima de mistério<br />

nos mínimos detalhes. (RETIRA UM TERCEIRO VESTIDO)<br />

TOCA O TELEFONE.<br />

SHE - (AO TELEFONE) Alô! (...) Filho, diga-me uma coisa, o que deve vestir uma<br />

mulher pra agradar ao namorado que acaba de ser bisavô? (...) (DÁ UMA RISADA)<br />

Não seja cruel, ele está mais enxuto do que você, pelo menos, é magro. Fale rápido,<br />

22


estou enrolada numa toalha e com as panelas no fogo. (...) Ligue depois, então. Um<br />

beijo, filho.<br />

DESLIGA. OLHA O RELÓGIO E VESTE RAPIDAMENTE UMA SAIA E UMA<br />

BLUSA.<br />

COMEÇA A ESCURECER.<br />

ELA ARRUMA A MESA DO JANTAR. DEMORA NA ARRUMAÇÃO, POIS<br />

NUNCA ENCONTRA OS OBJETOS NOS LUGARES PLAUSÍVEIS.<br />

ACHA UMA LINDA TOALHA DE RENDAS.<br />

SHE - Ah, que pena, deu mofo na minha toalha! Comprei esta toalha quando fiz uma<br />

"tournée" pelo Nordeste, acho que no Piauí. Uma coisa rara. Não posso ir ao Piauí todos<br />

os dias. Esta cidade está que é mofo só! (ENCONTRA UMA OUTRA TOALHA,<br />

TODA AMARFANHADA. BUSCA O FERRO DE PASSAR E ESTENDE A<br />

TOALHA SOBRE A MESA DE JANTAR) Nunca fui boa passadeira. Das pren<strong>das</strong><br />

domésticas, só aprendí a cozinhar, por pura gulodice. Com a idade, a gula passou a ser o<br />

meu pecado capital predileto. Mais que a luxúria! Como sofro pra manter o peso! Uma<br />

coisa aprendí: dieta se começa na sexta ou no sábado. Quem diz, " na segunda-feira,<br />

pode deixar, eu começo a dieta", vai ser gordo sempre! (CHEIRA O AR) Ih, o camarão!<br />

(CORRE À COZINHA, DESLIGA O GÁS. VOLTA. DESLIGA O FERRO<br />

ELÉTRICO E O DEIXA DISTRAIDAMENTE SOBRE UMA CADEIRA. OLHA O<br />

RELÓGIO. RESOLVE MAQUIAR-SE) A mesa fica pra depois. Na minha idade, já não<br />

se pode aparecer de cara lavada. E precisa-se de lentes de contato para se maquiar.<br />

(PROCURA AS LENTES E NÃO ACHA) Precisa-se, mas nunca se acha. (GRUDA A<br />

CARA NO ESPELHO) Que escuridão! (ACENDE AS LUZES E VOLTA PRO<br />

ESPELHO)<br />

CAI MAIS UMA VEZ O PINTO DO APOLO, MAS ELA NÃO PERCEBE.<br />

SHE - Apolo, você está tão quieto, mon petit vira-lata!<br />

APOLO, O CACHORRO, GRUNHE.<br />

SHE ACABA DE MAQUIAR-SE. AFASTA-SE UM POUCO DO ESPELHO, OLHA<br />

O TODO, FAZ UM CHARME, COLOCA BRINCOS, PULSEIRAS, ETC.<br />

BLACKOUT.<br />

SHE - Não, isto é sacanagem! Eu não pretendia fazer um jantar à luz de velas. É tão<br />

demodé! (TATEIA, ACHA UM ISQUEIRO) Se é que existem velas nesta casa!<br />

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(PROCURA PELO CHÃO. ACHA O PINTO DO APOLO E PENSA QUE É UMA<br />

VELA. TENTA ACENDÊ-LO) Preciso de uma governanta pra botar ordem nesta casa.<br />

Vela sem pavio, era só o que me faltava!<br />

TOCA A CAMPAINHA. TATEANDO, ELA VAI ABRIR A PORTA, COM O<br />

ISQUEIRO NA MÃO E O PINTO DO APOLO NA OUTRA.<br />

SHE - Entre, meu amor. Só vejo o teu vulto, mas sinto o teu perfume. Hum,<br />

embriagador! Veja que desastre, logo agora este blackout. (ABRAÇA-O) Sente-se aqui.<br />

OUVE-SE UM GEMIDO CONTIDO.<br />

SHE - Que foi? Ah, meu Deus, esquecí o ferro de passar na cadeira! Desculpe, meu<br />

querido, você se machucou muito?<br />

VOLTA A LUZ. ELA PERCEBE QUE ESTÁ COM O PINTO DO APOLO NA MÃO.<br />

DESCARTA-SE DELE RAPIDAMENTE.<br />

SHE - Ah, sangue de Cristo é poder! Fiat lux! (RECEBE UM GALANTEIO, FAZ UM<br />

CHARME) Obrigada, você é muito gentil. Desculpe, nem terminei de arrumar a mesa,<br />

mas o jantar está pronto. Aceita um drink? (BUSCA UMA GARRAFA E DOIS<br />

COPOS. SERVE A BEBIDA, SENTA-SE) Tim-tim, à sua bisneta! Ah, pelo visto, já<br />

está curtindo! Ela se parece com o bisavô? (...) Pretencioso! (ACARICIA-O) Está<br />

faltando música. Vamos reinaugurar o som. Este som esteve quebrado durante meses!<br />

Nada como o amor pra consertar as coisas! (COLOCA O DISCO) Tira-me pra dançar,<br />

cavalheiro? (MEIO DECEPCIONADA) Não sabe dançar? Eu te ensino, vem. Que é<br />

isso, não fique nervoso. Segure firme na minha cintura. Isso. Relaxe. Deixe-se levar<br />

pelo rítmo da música. Não endureça os joelhos, meu amor. Por que está paralisado?<br />

Deixe os pés saírem do chão. (...) Bobagem, se pisar não tem importância, tenho pés<br />

fortes, fiz balé. (ELE NÃO CONSEGUE DESGRUDAR OS PÉS DO CHÃO) Tente<br />

sentir o rítmo no meu corpo, cole-se a mim. (ELE DESISTE.) Você desiste assim tão<br />

fácil <strong>das</strong> coisas? Isso não existe! Aprende-se qualquer coisa em qualquer idade. Mas, se<br />

você não quer... (DECEPCIONADA, PASSA A ARRUMAR A MESA EM SILÊNCIO<br />

POR INSTANTES) Sim, estou decepcionada, estou. Adoro dançar. (...) Não sabe, mas<br />

pode aprender. Acabei de aprender a dançar reggae e estou programando uma viagem à<br />

Argentina pra conhecer casas de tango autênticas. Pensei que você fosse gostar de ir<br />

comigo, mas você não dança nem bolero! Bom, jantemos. Espero que goste do meu<br />

camarão. (COMEÇAM A JANTAR EM SILÊNCIO) Mesmo? Não está querendo me<br />

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agradar? É, este prato é uma <strong>das</strong> minhas especialidades. Sei também fazer uma lagosta<br />

deliciosa, de gemer! Caça? Gosto muito. Já comeu tatu? Fantástico! (...) Rã? Ah, sei<br />

preparar uma rã! Estou vendo que você é um bom "gourmet", talvez até um grande<br />

guloso, como eu. (...) (RI) Eu não disse? Como consegue manter esta elegância?<br />

Cooper? Diariamente? Tentei fazer, mas cheguei à conclusão de que só consigo fazer<br />

trabalho de corpo que esteja ligado à dança ou ao teatro. O mais, me entedia<br />

mortalmente. Ih, esquecí a sobremesa! Só tenho frutas, aceita? Vou fazer um café então.<br />

Não toma café? E um licor? (SERVE O LICOR) Quando fumava, gostava de molhar o<br />

filtro no licor. Evito o licor para não pegar o cigarro. Parei de fumar há dez anos, mas<br />

até hoje mantenho o maço de cigarros na bolsa. Faço de conta que não fumo porque não<br />

quero. Detesto proibições, as médicas principalmente. (SUBITAMENTE<br />

MARAVILHADA) Para mim? Que lindo! Hoje fazemos dois meses de namoro? É,<br />

confesso que não me lembrei, não guardo datas. Esmeral<strong>das</strong>??? (COQUETE,<br />

ESTENDE A MÃO PARA QUE ELE COLOQUE O ANEL) Você não devia ter feito<br />

isso, querido. Deve custar uma fortuna! Afinal, temos apenas dois meses de namoro...<br />

(SUBITAMENTE DECEPCIONADA) Ah, era da falecida? E você está me dando o<br />

anel da ... (AFLITA, RETIRA O ANEL) Esperaí, espera, não, eu não posso... É lindo,<br />

eu adoraria, mas você deve dá-lo à sua filha. (...) Gostei, adorei, estou encantada, mas...<br />

Olha, pra ser franca, eu tenho muito medo de alma do outro mundo. A falecida pode não<br />

gostar... Não, obrigada Por favor, guarde, guarde logo este anel. (...) Ora, não fique<br />

assim, meu querido. Juro que gostei, estou até comovida com o seu gesto, mas que que<br />

eu posso fazer?, sou tão supersticiosa! (...) O que? Isto era um pedido de casamento?<br />

Com o anel da outra? (AFLITÍSSIMA) Vou colocar um tango. (LEVANTA-SE E VAI<br />

ATÉ O SOM)<br />

O RELÓGIO TOCA MEIA-NOITE.<br />

SHE - (VAI COLOCAR O DISCO E PÁRA) Tem que ir por que? Sim, deu meia-noite,<br />

mas você não é Cinderela! (...) Ora, faz Cooper mais tarde ou não faz Cooper amanhã!<br />

Esta é uma noite especial, não? (...) Claro que pensei que você ia ficar comigo! E você<br />

vai embora porque precisa correr feito um idiota em volta da Lagoa? (...) Não, não<br />

desculpo. (...) Não, não entendo. (...) Pois pensou errado, não sou compreensiva. Estou<br />

mais pra megera do que pra Madre Tereza de Calcutá. (...) Pois vá e não volte. Não<br />

quero do meu lado um homem que não sabe dançar e tem que dormir à meia-noite.<br />

Passe bem, cavalheiro. (MOSTRA A PORTA)<br />

FECHA A PORTA. COLOCA O TANGO NO TOCA-DISCO.<br />

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VAI LÁ DENTRO E VOLTA VESTINDO UM ELEGANTE "TAILLEUR".<br />

CARREGA UMA MALA E A GUIA DO CACHORRO. COLOCA A GUIA NA<br />

COLEIRA DO CACHORRO.<br />

SHE - Vamos à Argentina, Apolo. Já não tenho tempo de fazer projetos e não<br />

realizá-los.<br />

ELA VAI SAINDO, O TANGO SUBINDO.<br />

SURGE O TEMPO E DANÇA COM ELA, ENQUANTO A LUZ VAI MORRENDO.<br />

FIM<br />

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Sinopse<br />

<strong>Essas</strong> <strong>Mulheres</strong>...ou She by Three of Them<br />

Monólogo para 3 atrizes<br />

Momentos de mulher, em um prólogo e três movimentos que representam<br />

as fases de uma vida: Juventude, a busca do outro, a paixão; Maturidade, a<br />

busca do eu, a realização do sonho pessoal; Velhice, o encontro com a vida,<br />

a liberdade. E, permeando tudo isso, o delírio, o humor, a loucura pessoal<br />

da protagonista, que se chama simplesmente She.<br />

Três outros personagens interferem na ação da peça: o cachorro Apolo ,<br />

companheiro de to<strong>das</strong> as horas; a Boca da Mãe, uma espécie de super-ego<br />

de She; e o Tempo.<br />

Encenada em 1995, no Rio de Janeiro.<br />

Elenco - 3 atrizes:<br />

de 25 a 35 anos<br />

de 45 a 55 anos<br />

com mais de 65 anos<br />

1 atriz/ator ou bailarino/bailarino (personagem do Tempo)<br />

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