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por uma concepção psicanalítica de corpo pelas bordas da pulsão

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UFRJ<br />

FIGURAÇÕES DA CORPOREIDADE<br />

Por <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong><br />

Diane Almei<strong>da</strong> Viana<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresenta<strong>da</strong> ao<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Teoria<br />

Psicanalítica do Instituto <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro -<br />

UFRJ, como parte dos requisitos necessários<br />

à obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em Teoria<br />

Psicanalítica.<br />

Orientador: Joel Birman<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

1


Janeiro/2004<br />

FIGURAÇÕES DA CORPOREIDADE<br />

Por <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong><br />

Diane Almei<strong>da</strong> Viana<br />

Orientador<br />

Joel Birman<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

Teoria Psicanalítica do Instituto <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título <strong>de</strong><br />

Mestre em Teoria Psicanalítica.<br />

Aprova<strong>da</strong> <strong>por</strong>:<br />

_______________________________<br />

Presi<strong>de</strong>nte, Prof. Joel Birman<br />

_______________________________<br />

Prof. Maria Teresa <strong>da</strong> Silveira Pinheiro<br />

_______________________________<br />

Prof. Carlos Augusto Peixoto Junior<br />

2


Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Janeiro/2004<br />

FICHA CATALOGRÁFICA<br />

Viana, Diane Almei<strong>da</strong><br />

Figurações <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>por</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> / Diane Almei<strong>da</strong> Viana. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: UFRJ/IP, 2004.<br />

x, 95f; 29,7cm.<br />

Orientador: Joel Birman<br />

Dissertação (mestrado) – UFRJ, Instituto <strong>de</strong> Psicologia,<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2004.<br />

Referências Bibliográficas: f. 92-95.<br />

1.Histeria. 2.Corpo. 3.Pulsão. 4.Psicanálise. I.Birman, Joel.<br />

II.Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Instituto <strong>de</strong> Psicologia,<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Teoria Psicanalítica.<br />

III.Figurações <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>por</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

3


AGRADECIMENTOS<br />

A Joel Birman <strong>por</strong> ter acolhido o meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> realizar essa pesquisa, pela escuta<br />

atenta com que orientou esse trabalho, e <strong>por</strong> ter me lançado e sustentado na<br />

aventura <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> criação e escrita em psicanálise.<br />

A Teresa Pinheiro e Regina Herzog <strong>pelas</strong> consi<strong>de</strong>rações feitas no exame <strong>de</strong><br />

qualificação, que me possibilitaram <strong>de</strong>limitar contornos mais nítidos a esse<br />

trabalho.<br />

Ao grupo <strong>de</strong> pesquisa coor<strong>de</strong>nado pela Prof. Teresa Pinheiro e <strong>por</strong> Julio Verztman, pelo<br />

acolhimento e pela interlocução.<br />

Ao CNPQ, pelo financiamento.<br />

A meus pais, que me transmitiram a coragem <strong>de</strong> lutar pelos meus sonhos. Pelo<br />

investimento e incentivo, com todo o meu amor, muito obriga<strong>da</strong>!<br />

A meus irmãos, familiares e amigos, que mesmo <strong>de</strong> longe souberam estar perto,<br />

apostando junto comigo na realização <strong>de</strong>sse projeto.<br />

A Leila Ripoll, Luciana Vieira, Cláudia Andra<strong>de</strong>, Salete Salles e Nelma, pelo<br />

acolhimento, pela amiza<strong>de</strong>, pelo apoio, pela troca; <strong>por</strong> apostarem em mim e<br />

compartilharem intensamente comigo esse trajeto.<br />

A Luciana Vieira, pela aju<strong>da</strong> preciosa na elaboração do résumé.<br />

A Mario Bruno, pela leitura atenta, pela constante disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir<br />

comigo esse trabalho e pelo estímulo.<br />

A Fernan<strong>da</strong> Montes, colega e amiga que dividiu comigo, incansavelmente, os<br />

bons e os difíceis momentos <strong>de</strong>sse percurso. A Ricardo Salztrager, pelo apoio e<br />

disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>; e aos <strong>de</strong>mais colegas, cujo convívio certamente contribuiu para a<br />

realização <strong>de</strong>sse trabalho.<br />

4


A Bruno Vieira, que soube pacientemente respeitar e compreen<strong>de</strong>r as ausências.<br />

Por ter compartilhado comigo, incondicionalmente, ca<strong>da</strong> alegria e ca<strong>da</strong> tropeço<br />

<strong>de</strong>ssa caminha<strong>da</strong>, pelo constante apoio e incentivo, muito obriga<strong>da</strong>!<br />

...<strong>por</strong>que jamais um gesto pô<strong>de</strong> ser feito sem um <strong>corpo</strong>,<br />

nem um pensamento teve lugar sem um <strong>corpo</strong>,<br />

e quanto mais há <strong>corpo</strong> mais há pensamento,<br />

5


mais há pensamento e menos há <strong>corpo</strong>,<br />

então é preciso matar o pensamento pelo <strong>corpo</strong>.<br />

Antonin Artaud<br />

RESUMO<br />

FIGURAÇÕES DA CORPOREIDADE<br />

Por <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong><br />

Diane Almei<strong>da</strong> Viana<br />

Orientador: Joel Birman<br />

Resumo <strong>da</strong> Dissertação <strong>de</strong> Mestrado submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Teoria Psicanalítica do Instituto <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à<br />

obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em Teoria Psicanalítica.<br />

O tema <strong>da</strong> presente pesquisa refere-se à questão do <strong>corpo</strong> na psicanálise, mais<br />

especificamente seu objetivo é buscar configurações <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong>. Para tanto, essa pesquisa visa percorrer a obra freudiana em busca <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />

indicações que auxiliem estabelecer o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> na psicanálise. Nesse sentido,<br />

julgamos im<strong>por</strong>tante partir <strong>de</strong> um estudo sobre a histeria e avançar no pensamento <strong>de</strong> Freud<br />

elegendo a teoria pulsional e suas reformulações como fio condutor.<br />

O primeiro passo consiste em <strong>de</strong>marcar o nascimento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong><br />

para a psicanálise a partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> discussão acerca <strong>da</strong> conversão histérica, problemática<br />

essa que lança Freud no terreno do inconsciente e <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, <strong>por</strong>tanto, no rumo <strong>da</strong><br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo saber. Em segui<strong>da</strong>, mapearemos a vertente sexual e pulsional do<br />

<strong>corpo</strong> a partir <strong>da</strong> conceitualização <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e do primeiro tempo <strong>da</strong> teoria<br />

pulsional.<br />

Por fim, apontaremos para o segundo tempo <strong>da</strong> teoria pulsional com a introdução <strong>da</strong><br />

<strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, visando circunscrever a dimensão traumática do impacto pulsional.<br />

Analisaremos, então, as possíveis conseqüências <strong>de</strong>ssa vira<strong>da</strong> na teoria <strong>da</strong>s pulsões no que<br />

diz respeito à <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que nos propomos discutir no pensamento freudiano.<br />

6


Palavras-chave: Dissertação, Psicanálise, Histeria, Corpo, Pulsão.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Janeiro/2004<br />

RÉSUMÉ<br />

FIGURATIONS CORPORELLES<br />

Par une conception psychanalitique du corps à bords <strong>de</strong> la pulsion<br />

Diane Almei<strong>da</strong> Viana<br />

Orientador: Joel Birman<br />

Résumé <strong>da</strong> Dissertação <strong>de</strong> Mestrado submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Teoria Psicanalítica do Instituto <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à<br />

obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em Teoria Psicanalítica.<br />

Le thème <strong>de</strong> ce recherche se rap<strong>por</strong>te à la question du corps <strong>da</strong>ns la psychanalyse, tout<br />

particulièrement son objectif est <strong>de</strong> chercher <strong>de</strong>s configurations d’une conception<br />

psychanalytique du corps. Pour cela, ce recherche vise parcourir l’ouevre <strong>de</strong> Freud<br />

poursuivant les pistes qui puissent etablir le statut du corps <strong>da</strong>ns la psychanalyse. Dans ce<br />

sens-là, il est im<strong>por</strong>tant <strong>de</strong> commencer par les étu<strong>de</strong>s sur l’hystérie et d’avancer <strong>da</strong>ns la<br />

pensée <strong>de</strong> Freud en choisissant la théorie pulsionelle et ses reprises en tant que fil<br />

condcteur.<br />

Nous nous proposons <strong>de</strong> délimiter tout d’abord la naissance d’une conception du<br />

corps pour la théorie psychanalytique, a partir d’un débat au sujet <strong>de</strong> la convertion<br />

hysterique, problematique qui lance Freud <strong>da</strong>ns le terrain du inconscient et <strong>de</strong> la sexualité<br />

et, par conséquence, <strong>da</strong>ns le chemin <strong>de</strong> la spécificité d’un nouveau savoir. Ensuite, nous<br />

allons faire une cartographie du coté sexuelle et pulsionelle du corps, a partir <strong>de</strong> la<br />

conception <strong>de</strong> la sexualité infantile et du première temps <strong>de</strong> la theorie pulsionelle.<br />

Finalement, nous avons l’intention <strong>de</strong> présenter le <strong>de</strong>uxiéme temps <strong>de</strong> la thèorie<br />

pulsionelle, celui qui correspond à la rentrée <strong>de</strong> la pulsion <strong>de</strong> mort, en visant circonscrire la<br />

dimension tra<strong>uma</strong>tique du impact pulsionelle. À partir <strong>de</strong> cela, il faut voire donc les effets<br />

7


du bouleversement <strong>da</strong>ns la théorie <strong>de</strong>s pulsions pour la conception du corps que nous<br />

essayons d’établir vis à vis <strong>de</strong> la pensée <strong>de</strong> Freud.<br />

14<br />

21<br />

Mots-clé : Dissertation, Psychanalyse, Hystérie, Corps, Pulsion.<br />

SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1<br />

CAPÍTULO I<br />

HISTERIA: PRIMÓRDIOS DE UMA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DE CORPO....................... 7<br />

Formação <strong>de</strong> Freud – passos iniciais............................................................................. 8<br />

Primórdios <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>................................................. 11<br />

Primeiros apontamentos sobre a neurose histérica...................................................... 13<br />

Economia/Intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s................................................................................................<br />

Em busca <strong>da</strong> etiologia <strong>da</strong> histeria................................................................................ 16<br />

Psiconeurses x Neuroses atuais................................................................................... 17<br />

A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> na etiologia <strong>da</strong> neurose histérica..........................................................<br />

Segun<strong>da</strong> teoria freudiana sobre a histeria.................................................................... 22<br />

Sobre a conversão histérica......................................................................................... 24<br />

A relação psíquico-somática: <strong>de</strong> Descartes à Freud.................................................... 29<br />

Desfechos.................................................................................................................... 35<br />

CAPÍTULO II<br />

O CORPO SEXUAL......................................................................................................... 38<br />

Concepção <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>..................................................................... 38<br />

Sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> Infantil.................................................................................................... 42<br />

Teoria <strong>da</strong>s pulsões....................................................................................................... 46<br />

Apoio: <strong>por</strong> que e para quê?......................................................................................... 51<br />

Pulsão: um conceito fun<strong>da</strong>mental............................................................................... 52<br />

Corpo e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> nos domínios do pulsional...................................................... 56<br />

Corpo e intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.......................................................................................... 58<br />

CAPÍTULO III<br />

8


O CORPO NO LIMITE DO IRREPRESENTÁVEL.................................................................. 65<br />

Para além – ou aquém – do princípio do prazer: a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte........................... 66<br />

A <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte e suas implicações para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> psiquismo...................... 70<br />

Pulsão e alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>: o fun<strong>da</strong>mento mortalista............................................................. 71<br />

O <strong>corpo</strong> no limite do irrepresentável........................................................................... 73<br />

Entre o psíquico e o somático – o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> na psicanálise............................ 77<br />

Registros <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>........................................................................................... 80<br />

Pelas <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>: o dualismo e o paradoxo freudiano....................................... 83<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 87<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 92<br />

9


INTRODUÇÃO<br />

O tema <strong>da</strong> presente pesquisa gira em torno <strong>da</strong> questão do <strong>corpo</strong> na psicanálise, mais<br />

especificamente seu objetivo é buscar configurações <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong>. O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> é o eixo fun<strong>da</strong>mental a partir do qual preten<strong>de</strong>mos nos<br />

<strong>de</strong>bruçar no pensamento <strong>de</strong> Freud em busca <strong>de</strong> tal <strong>concepção</strong>. Apontaremos, nesse<br />

percurso, para um estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> marcado pela coexistência <strong>de</strong> figurações <strong>da</strong><br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>, registros que se refazem constantemente <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

O interesse pelo tema surgiu <strong>de</strong> <strong>uma</strong> experiência clínica que trouxe alg<strong>uma</strong>s questões.<br />

Pacientes que apresentavam sua queixa principal em torno <strong>de</strong> um sofrimento corpóreo,<br />

queixas físicas insistentes sem qualquer origem orgânica e que não conseguiram ser<br />

aplaca<strong>da</strong>s pelo saber médico. Pacientes que só se referiam a si mesmo a partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

história <strong>de</strong> sofrimento físico, que dificilmente se entregavam a <strong>uma</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> associativa ou<br />

se referiam a um conflito que não fosse através <strong>da</strong> dor senti<strong>da</strong> na concretu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />

<strong>corpo</strong>s.<br />

Essa situação clínica me levou a investigar o que se passava com esses<br />

sujeitos e que relações eles tinham com seus <strong>corpo</strong>s. O registro do<br />

organismo/somático imperava nesses discursos e é a partir disso que me<br />

proponho a buscar na psicanálise <strong>uma</strong> entra<strong>da</strong> para se (re)pensar o <strong>corpo</strong> que se<br />

apresenta na clínica hoje.<br />

Embora a presente pesquisa não tenha a pretensão <strong>de</strong> se ocupar <strong>da</strong> questão do <strong>corpo</strong><br />

tal como se apresenta nas configurações subjetivas atuais, o trabalho se encaminha na<br />

direção <strong>de</strong> buscar, na obra freudiana, ferramentas para se pensar em <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong><br />

<strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que forneça subsídios para a compreensão <strong>da</strong>s dinâmicas envolvi<strong>da</strong>s<br />

na constituição <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O pano <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>sse trabalho não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o<br />

10


âmbito <strong>da</strong> clínica, contudo, o objetivo principal é <strong>de</strong>bruçar-se especificamente sobre o texto<br />

<strong>de</strong> Freud, percorrendo em sua obra as indicações para pensar o <strong>corpo</strong> na psicanálise.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos esse passo fun<strong>da</strong>mental para, posteriormente, investir na pesquisa <strong>da</strong>s novas<br />

formas <strong>de</strong> subjetivação, já que pro<strong>por</strong>cionará <strong>uma</strong> fun<strong>da</strong>mentação teórica absolutamente<br />

necessária para novas empreita<strong>da</strong>s no campo psicanalítico.<br />

Sob o aspecto clínico, atualmente a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> encontra-se fortemente marca<strong>da</strong> <strong>por</strong><br />

<strong>uma</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> queixas que envolvem diretamente o <strong>corpo</strong>. Birman (2000) aponta que a<br />

problemática do <strong>corpo</strong> foi excluí<strong>da</strong> pela psicanálise, <strong>da</strong>ndo margens para a redução do<br />

mesmo ao registro puramente biológico. A freqüência massiva <strong>da</strong>s <strong>de</strong>pressões, dos quadros<br />

<strong>de</strong> somatizações, a intensa busca pelos psicotrópicos e pelos tratamentos cor<strong>por</strong>ais refletem<br />

esse “esquecimento” do <strong>corpo</strong>.<br />

Nesse sentido, consi<strong>de</strong>ramos relevante um resgate <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> em psicanálise,<br />

na medi<strong>da</strong> em que <strong>uma</strong> melhor compreensão <strong>de</strong>ssa questão implicaria um encaminhamento<br />

mais efetivo dos incessantes casos <strong>de</strong> queixas físicas sem qualquer origem ou causa<br />

orgânica que chegam aos profissionais <strong>da</strong> área psi hoje. Sem falar nos gran<strong>de</strong>s impasses em<br />

que os médicos se encontram diante <strong>de</strong>sses casos, não sabendo muitas vezes como tratar<br />

seu paciente.<br />

É pelo <strong>corpo</strong> se fazer tão representativo e, ao mesmo tempo, se constituir como objeto<br />

<strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>sdobramentos teóricos (acerca <strong>de</strong> sua natureza) que se julga im<strong>por</strong>tante a<br />

presente pesquisa.<br />

Em termos teóricos Freud não se <strong>de</strong>teve especificamente em <strong>de</strong>finir qual a <strong>concepção</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise, <strong>por</strong>ém há <strong>uma</strong> noção do mesmo constantemente perpassa<strong>da</strong> em<br />

sua obra, que fun<strong>da</strong>menta sua <strong>concepção</strong> acerca <strong>da</strong> constituição do ser h<strong>uma</strong>no.<br />

Apontaremos, ao longo <strong>de</strong>sse trabalho, para formulações freudianas que nos auxiliem a<br />

circunscrever <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, vale ressaltar que a medicina tornou o <strong>corpo</strong> um objeto <strong>de</strong> saber,<br />

produzindo um discurso objetivante sobre ele. A idéia <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> somático ou <strong>de</strong> um<br />

organismo é constituí<strong>da</strong> pelo discurso médico. Conforme nos aponta Foucault (1980) em O<br />

Nascimento <strong>da</strong> Clínica, a medicina mo<strong>de</strong>rna é pensa<strong>da</strong> a partir do mo<strong>de</strong>lo<br />

anátomopatológico. A medicina dos sintomas <strong>de</strong>u lugar, no século XIX, à medicina dos<br />

11


órgãos, através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> clínica or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> pela anatomia patológica, mo<strong>de</strong>lo clínico baseado<br />

sobretudo na divisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> espacial do <strong>corpo</strong>.<br />

A abertura <strong>de</strong> cadáveres permitiu que o olhar médico penetrasse no <strong>corpo</strong>, indo além<br />

<strong>de</strong> sua superfície visível, <strong>de</strong>scobrindo a doença na profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas entranhas. O<br />

mo<strong>de</strong>lo clínico <strong>da</strong> anátomopatologia surge <strong>de</strong>sse encontro mais íntimo entre médico e<br />

doente, a partir do qual se tornou possível interrogar, apalpar e auscultar o <strong>corpo</strong> em sua<br />

espessura orgânica. Assistiu-se, assim, a um esquadrinhamento do organismo, a <strong>uma</strong><br />

especificação do volume do <strong>corpo</strong>, bem como a <strong>de</strong>marcações anátomo-patológicas.<br />

Desse modo, o <strong>corpo</strong> para a medicina, ao qual nos referiremos no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sse<br />

trabalho, é aquele cujo olhar médico <strong>de</strong>finiu, <strong>de</strong>talhou e anatomizou; dimensão<br />

propriamente orgânica, on<strong>de</strong> a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong> h<strong>uma</strong>no se dá pela inter-relação <strong>de</strong> vastos<br />

sistemas <strong>de</strong> tecido. O <strong>corpo</strong> para a psicanálise, em contraparti<strong>da</strong>, situaremos em <strong>uma</strong> outra<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fruto <strong>de</strong> um outro olhar e <strong>de</strong> outras bases metodológicas: o olhar <strong>de</strong><br />

Freud e a experiência <strong>psicanalítica</strong>.<br />

A inserção <strong>de</strong> Freud no meio médico foi <strong>de</strong> certo modo controversa. Em seus<br />

primeiros trabalhos, consi<strong>de</strong>rados ain<strong>da</strong> como pré-psicanalíticos, Freud começa a operar<br />

<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> rupturas com o mo<strong>de</strong>lo anátomopatológico <strong>da</strong> medicina e com as concepções<br />

até então vigentes no que tange a relação entre <strong>corpo</strong> e alma. O nascimento <strong>da</strong> psicanálise,<br />

<strong>de</strong>sse modo, foi pautado pela emergência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova forma <strong>de</strong> conceber a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

o <strong>corpo</strong>.<br />

A problemática <strong>da</strong> histeria foi o terreno a partir do qual Freud <strong>de</strong>svendou <strong>uma</strong> outra<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em questão, a dos processos psíquicos. A partir <strong>de</strong> um outro olhar sobre<br />

o <strong>corpo</strong> histérico Freud vislumbra a <strong>de</strong>terminação psíquica e não anatômica dos sintomas.<br />

Através <strong>de</strong> sua leitura do fenômeno conversivo ele coloca em jogo a inter-relação entre<br />

<strong>corpo</strong> e psiquismo, problemática essa presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> investigação freudiana, que<br />

permeia boa parte <strong>de</strong> seu pensamento e alcança maiores <strong>de</strong>sdobramentos com o conceito <strong>de</strong><br />

<strong>pulsão</strong>.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que a <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que nos propomos investigar a<br />

partir <strong>de</strong> Freud encontra seu ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> exatamente nesses momentos iniciais do<br />

pensamento freudiano, pois foi junto a seus primeiros passos que o <strong>corpo</strong> começou a ganhar<br />

novas configurações. Para compreen<strong>de</strong>r esse percurso em Freud e a inserção <strong>da</strong><br />

12


problemática do <strong>corpo</strong> em seu discurso, reconhecemos ser necessário atentar para as<br />

matrizes <strong>de</strong> seu pensamento e para o contexto do qual ele nos fala.<br />

Nesse sentido, junto à pesquisa acerca <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> em Freud tentaremos<br />

contextualizar seu pensamento, partindo do início <strong>de</strong> seu percurso e <strong>de</strong> sua relação com o<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> ciência. Pensamos ser imprescindível <strong>uma</strong> reflexão acerca <strong>da</strong>quilo que movia<br />

Freud à construção <strong>de</strong> um novo campo <strong>de</strong> saber, para melhor compreen<strong>de</strong>r em que bases<br />

po<strong>de</strong>mos fun<strong>da</strong>mentar um estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise. Essa reflexão, então<br />

subjacente a nossa leitura, far-se-á à luz <strong>da</strong>s discussões presentes em Foucault e Derri<strong>da</strong> em<br />

torno do saber psicanalítico.<br />

Partiremos <strong>da</strong> histeria como lócus fun<strong>da</strong>mental dos primórdios <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

<strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>. O primeiro capítulo é então <strong>de</strong>dicado ao início<br />

do percurso freudiano pela psicanálise, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> nascem questões cruciais como a<br />

preocupação <strong>de</strong> Freud com a relação entre o psíquico e o somático e com o<br />

“enigma” dos sintomas histéricos.<br />

Nesse contexto, analisaremos a ruptura <strong>de</strong> Freud com a abor<strong>da</strong>gem médicocientífica<br />

vigente no século XIX acerca <strong>da</strong> histeria e apresentaremos seus passos<br />

em torno <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teoria <strong>da</strong>s neuroses sob novas bases <strong>de</strong><br />

pensamento. Acompanharemos, pelo viés do <strong>corpo</strong> histérico, as <strong>de</strong>sconstruções<br />

iniciais opera<strong>da</strong>s <strong>por</strong> Freud em direção a um outro <strong>corpo</strong> e <strong>uma</strong> outra cena: aquela<br />

do inconsciente e <strong>da</strong> fantasia, até então inexplorados em função <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

supremacia conferi<strong>da</strong> pela ciência à razão e à consciência.<br />

As inovadoras formulações freudianas acerca <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e psiquismo advin<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong> sua longa investigação sobre as neuroses encontrarão certamente maiores<br />

<strong>de</strong>sdobramentos com as concepções <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil. No segundo<br />

capítulo, nos voltaremos para a <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e para o<br />

conceito fun<strong>da</strong>mental que Freud <strong>de</strong>signou para a psicanálise, qual seja: a <strong>pulsão</strong>.<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> vai circunscrever em termos mais específicos aquilo<br />

que se evi<strong>de</strong>nciou no pensamento freudiano com a teorização sobre as neuroses,<br />

ou seja, <strong>uma</strong> dinâmica psíquica <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>por</strong> dois pólos constituintes, um<br />

representacional e outro intensivo. Nos propomos, a partir <strong>de</strong>ssa configuração,<br />

buscar subsídios para analisar o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise, enfatizando<br />

essas duas dimensões <strong>da</strong> esfera psíquica. Retomaremos indicações no texto<br />

freudiano que ilustrem o domínio representacional bem como o aspecto<br />

intensivo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> que permeia os processos psíquicos, no intuito <strong>de</strong> conferir<br />

13


<strong>uma</strong> dupla vertente à <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>, advin<strong>da</strong> <strong>da</strong>s várias reformulações que<br />

Freud realiza em sua elaboração teórica acerca <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Desse modo, o segundo capítulo versará sobre a entra<strong>da</strong> e sistematização do<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> no texto freudiano e se realizará a partir <strong>de</strong> três principais<br />

analisadores <strong>de</strong> leitura: Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica (FREUD, 1895a/1996),<br />

Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (FREUD, 1905/1996) e Pulsões e suas<br />

vicissitu<strong>de</strong>s (FREUD, 1915a/1996). Nesse percurso sinalizaremos para os mo<strong>de</strong>los a<br />

partir dos quais Freud circunscreve o primeiro momento <strong>da</strong> teoria pulsional, bem<br />

como para suas implicações no que tange à <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>. Emerge <strong>de</strong>sse<br />

contexto <strong>uma</strong> noção <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pela <strong>pulsão</strong> sexual; <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cujos domínios situaremos do auto-erotismo ao narcisismo.<br />

O enquadre do segundo capítulo circunscreve a esfera representacional <strong>da</strong><br />

investigação freudiana centra<strong>da</strong> na primeira tópica e num primeiro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

<strong>pulsão</strong>. Em contraparti<strong>da</strong>, o terceiro capítulo será <strong>de</strong>dicado a <strong>uma</strong> visa<strong>da</strong><br />

intensiva <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> prioriza<strong>da</strong> <strong>por</strong> Freud mais radicalmente com a vira<strong>da</strong><br />

pulsional dos anos <strong>de</strong> 1920, que implicou <strong>uma</strong> re<strong>de</strong>finição <strong>da</strong> tópica psíquica e<br />

<strong>da</strong> teoria pulsional. Nesse ínterim, apontaremos para o limite do irrepresentável<br />

com a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte e, assim, para <strong>uma</strong> nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> pulsional: além <strong>de</strong> sua vertente representacional passa a<br />

abarcar também conexões com o pólo intensivo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> e do aparelho psíquico.<br />

Apostamos em <strong>uma</strong> leitura do que essa dimensão do mais além po<strong>de</strong><br />

propiciar para <strong>uma</strong> discussão sobre o <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>ntro do contexto psicanalítico. A<br />

hipótese é <strong>de</strong> que esse caráter disruptivo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, que extrapola o<br />

domínio <strong>da</strong> representação, inaugure para o sujeito a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> rearranjar<br />

constantemente sua cartografia cor<strong>por</strong>al, suas configurações subjetivas, enfim, a<br />

configuração erógena <strong>de</strong> seu <strong>corpo</strong>.<br />

Desse modo, <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> chegaremos às figurações <strong>da</strong><br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>, rearranja<strong>da</strong>s e remaneja<strong>da</strong>s constantemente pela força pulsional, o<br />

que nos faz apostar em <strong>uma</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> configurações corpóreas que não se<br />

reduzem ao campo <strong>da</strong> representação, mas que também abrangem o domínio<br />

intensivo, irrepresentável e indomável <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Nesse percurso que vai <strong>da</strong> histeria aos diferentes momentos <strong>da</strong> teoria<br />

pulsional, atentaremos para o quanto a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> presente no<br />

pensamento <strong>de</strong> Freud se aproximou e se distanciou <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> organismo.<br />

Preten<strong>de</strong>mos analisar o quanto Freud ficou preso a um registro orgânico e o<br />

quanto se <strong>de</strong>svinculou <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>terminismo, invertendo até mesmo a relação <strong>de</strong><br />

14


apoio inicialmente pensa<strong>da</strong> entre organismo e <strong>corpo</strong> sexual. Do vitalismo ao<br />

mortalismo diferentes horizontes se abrem para pensarmos a questão do <strong>corpo</strong><br />

no discurso freudiano.<br />

Por fim, indicaremos o quanto através do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> Freud <strong>de</strong>lineou<br />

um campo <strong>de</strong> saber absolutamente inovador para a psicanálise, no interior do<br />

qual a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e sua relação com o psíquico adquirem contornos<br />

diferentes <strong>da</strong>queles estabelecidos pela tradição cartesiana. Vale ressaltar que<br />

apontaremos, retomando a proposta inicial <strong>de</strong> contextualizar o pensamento <strong>de</strong><br />

Freud em relação ao mo<strong>de</strong>lo científico, para o dualismo freudiano, que o inscreve<br />

em <strong>uma</strong> tradição <strong>de</strong> saber que vai na contramão dos parâmetros <strong>da</strong> ciência.<br />

A título <strong>de</strong> conclusão nos permitiremos questionar sobre os <strong>de</strong>stinos do<br />

pensamento psicanalítico na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, bem como in<strong>da</strong>gar sobre a presença do<br />

<strong>corpo</strong> nas novas formas <strong>de</strong> sofrimento, apontando para <strong>uma</strong> reflexão sobre o que<br />

suscitou essa pesquisa: o <strong>corpo</strong> na clínica.<br />

Para realizarmos esse trabalho elegemos o texto freudiano como referência<br />

principal para nossas investigações. A fim <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentarmos os<br />

questionamentos que levantamos, procuramos aqueles comentadores que<br />

cui<strong>da</strong>dosamente se <strong>de</strong>tiveram na obra <strong>de</strong> Freud, principalmente aqueles que<br />

contribuíram com alg<strong>uma</strong> leitura em torno <strong>da</strong> questão do <strong>corpo</strong>. No que tange à<br />

teoria pulsional, privilegiamos a leitura <strong>de</strong> Birman, que em gran<strong>de</strong> parte volta-se<br />

para o aspecto do <strong>corpo</strong> à luz <strong>da</strong> teoria freudiana, fornecendo-nos elementos<br />

im<strong>por</strong>tantes <strong>de</strong> discussão e argumentação. Tendo em vista as inúmeras<br />

formulações que Birman nos apresenta atualmente sobre a problemática do<br />

<strong>corpo</strong>, tanto em Freud quanto na clínica <strong>psicanalítica</strong> atual, compartilharemos <strong>de</strong><br />

seu pensamento e <strong>de</strong> sua leitura <strong>de</strong> Freud que constituirão a principal referência<br />

contem<strong>por</strong>ânea para pensar na questão a que essa pesquisa se <strong>de</strong>dica.<br />

Da<strong>da</strong>s as linhas a serem teci<strong>da</strong>s nesse percurso, iniciemos nossa aventura<br />

pelos caminhos traçados <strong>por</strong> Freud e a experiência <strong>psicanalítica</strong>.<br />

15


CAPÍTULO I<br />

HISTERIA: PRIMÓRDIOS DE UMA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA<br />

DE CORPO<br />

Freud sem sombra <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> não fugiu à regra <strong>de</strong> seu tempo. Dentro dos parâmetros<br />

<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> não abriu mão <strong>da</strong> pretensão <strong>de</strong> fazer ciência. No entanto, a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu pensamento em muitos momentos extrapolou os estatutos científicos levando-o a<br />

explorar domínios para além dos limites <strong>da</strong> cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Certamente não foi sem conflito<br />

que isso se <strong>de</strong>u, pois se lhe <strong>de</strong>dicamos <strong>uma</strong> leitura atenta observamos seus avanços e recuos<br />

em direção aos padrões <strong>da</strong> ciência.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos, assim, que a teoria freudiana trava um embate <strong>de</strong> forças com<br />

um mo<strong>de</strong>lo científico, ora filiando-se a ele, ora distanciando-se <strong>de</strong>le,<br />

estabelecendo <strong>uma</strong> relação <strong>de</strong> paradoxo que exclui o princípio <strong>da</strong> contradição e<br />

que se mantém na tensão, no enfrentamento <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> forças diversas. Nesse<br />

sentido, consi<strong>de</strong>ramos constitutivos do discurso freudiano os impasses e as<br />

16


ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, embates que escolhemos contextualizar e até mesmo conferir <strong>uma</strong><br />

certa positivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A nossa hipótese é <strong>de</strong> que a problemática do <strong>corpo</strong> em Freud não escapa a tais<br />

condições. O modo como Freud faz alusão ao <strong>corpo</strong> encontra-se também nesse paradoxo.<br />

Ora Freud o toma n<strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> biológica ain<strong>da</strong> muito ligado à fisiologia e a <strong>uma</strong><br />

causali<strong>da</strong><strong>de</strong> científica (o que se evi<strong>de</strong>ncia em suas primeiras formulações acerca <strong>da</strong><br />

conversão histérica) ora ele o inscreve n<strong>uma</strong> produção absolutamente inovadora (o que vem<br />

a se evi<strong>de</strong>nciar com os Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>).<br />

A proposta é <strong>de</strong> mapear e eluci<strong>da</strong>r as coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s às quais Freud se vincula em um<br />

momento e em outro em relação ao <strong>corpo</strong>, o quanto em alg<strong>uma</strong>s passagens ele ain<strong>da</strong> se<br />

encontra respon<strong>de</strong>ndo ao saber médico-científico e em outras rompe com esse discurso<br />

inaugurando um novo campo <strong>de</strong> saber.<br />

Desse modo, impõe-se a nós fazer <strong>uma</strong> leitura crítica dos impasses e paradoxos,<br />

mapear as linhas <strong>de</strong> força que envolvem <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>. No âmbito<br />

<strong>de</strong>sse capítulo, nos <strong>de</strong>teremos especificamente no percurso dos Estudos sobre a histeria<br />

(FREUD, 1893-1895/1996) aos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (FREUD,<br />

1905/1996), enfatizando o <strong>corpo</strong> histérico e o nascimento <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> pulsional.<br />

Formação <strong>de</strong> Freud – passos iniciais 1<br />

Freud forma-se em medicina em 1881. Durante seu percurso acadêmico<br />

interessou-se especialmente pelos cursos <strong>de</strong> Brücke (na área <strong>de</strong> fisiologia), <strong>de</strong><br />

Claus (na área <strong>da</strong> biologia e zoologia) e <strong>de</strong> Brentano (na área <strong>de</strong> filosofia).<br />

Continuou <strong>por</strong> vários períodos acompanhando o pensamento <strong>de</strong>sses mestres, que<br />

contribuíram em muito para sua formação e cujos mo<strong>de</strong>los transparecem em<br />

muitas <strong>de</strong> suas posteriores concepções <strong>psicanalítica</strong>s.<br />

A influência <strong>de</strong> Brücke marcou <strong>de</strong> forma especial a formação médica <strong>de</strong><br />

Freud. Fisiologista renomado, Brücke coor<strong>de</strong>nava o laboratório <strong>de</strong> fisiologia <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Viena na qual Freud estu<strong>da</strong>va. Seu trabalho fazia parte do<br />

1 Sobre esse tópico pesquisamos em JONES, E. (1975) “Vi<strong>da</strong> e obra <strong>de</strong> Sigmund Freud”, Rio <strong>de</strong> Janeiro: JZE.<br />

17


abrangente movimento científico mais conhecido como a Escola <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong><br />

Helmholtz, que reunia o pensamento dos principais fisiologistas e professores <strong>de</strong><br />

medicina alemães e <strong>da</strong> qual Brücke era um dos integrantes.<br />

O aspecto dinâmico <strong>da</strong> fisiologia <strong>de</strong> Brücke cativou Freud, <strong>de</strong> modo que em<br />

pouco tempo Freud foi aceito <strong>por</strong> ele como pesquisador <strong>de</strong> seu instituto. Atrás<br />

do microscópio Freud executava um trabalho eminentemente ligado à histologia<br />

<strong>da</strong>s células nervosas. Assim, rapi<strong>da</strong>mente sua pesquisa neurológica a<strong>de</strong>riu à<br />

anatomia e à histologia. Por influência do trabalho <strong>de</strong> Brücke, Freud enveredou<br />

pela histologia 2 , centrado que estava nesse momento no estudo do <strong>corpo</strong><br />

anatômico.<br />

Ain<strong>da</strong> durante o curso <strong>de</strong> medicina Freud encontrou um outro foco <strong>de</strong><br />

interesse: as aulas <strong>de</strong> psiquiatria <strong>de</strong> Meynert – consi<strong>de</strong>rado o maior anatomista<br />

do cérebro <strong>da</strong> sua época -, campo novo para ele, já que se <strong>de</strong>dicava quase que<br />

exclusivamente às pesquisas <strong>de</strong> laboratório. Assim se constituíram suas principais<br />

influências na sua formação como médico.<br />

Freud se formou e iniciou sua carreira no campo <strong>da</strong> neurologia, <strong>por</strong>ém ligado<br />

ao instituto <strong>de</strong> Brücke e à pesquisa histológica <strong>de</strong> laboratório, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong><br />

prática clínica. Segundo Jones (1975), Freud tinha aversão à prática médica, não<br />

alimentava entusiasmo em tratar os doentes nas enfermarias ou em estu<strong>da</strong>r as<br />

doenças <strong>de</strong>les. Somente a partir <strong>de</strong> um conselho do próprio mestre Brücke, Freud<br />

abandonou a carreira teórica no campo <strong>da</strong> fisiologia para se <strong>de</strong>dicar à prática<br />

clínica, em função <strong>de</strong> sua precária situação econômica.<br />

Freud <strong>de</strong>cidiu, então, levar a vi<strong>da</strong> como clínico e ingressou no Hospital Geral<br />

<strong>de</strong> Viena. Durantes os três anos que Freud viveu e trabalhou no hospital passou<br />

um longo período pelo <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> doenças nervosas. Com suas publicações<br />

histológicas e clínicas Freud foi se afirmando como neuropatologista, sempre<br />

2 Liana Bastos (1998) comenta sobre isso: “Freud histologista foi aquele que estudou o <strong>corpo</strong> anatômico on<strong>de</strong><br />

o tecido era cortado, preparado e corado. Esta divisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> espacial buscava <strong>uma</strong> <strong>de</strong>scrição e localização<br />

geográfica, tópica” (p.31).<br />

18


implicado com pesquisas para <strong>de</strong>scobrir novos métodos para o exame do tecido<br />

nervoso.<br />

No período entre 1885-1886 propiciou-se a Freud um curso com Charcot, na<br />

Salpetrière em Paris. Charcot era consi<strong>de</strong>rado um mestre que como nenhum outro<br />

dominava o mundo <strong>da</strong> neurologia. Esse encontro possibilitou a aproximação <strong>de</strong> Freud com<br />

o campo <strong>da</strong> histeria inaugurando um período em que o interesse <strong>de</strong> Freud se centrou<br />

<strong>de</strong>finitivamente na neuropatologia <strong>de</strong>slocando-se, em segui<strong>da</strong>, para a psicopatologia. Freud<br />

fascinou-se pela psicopatologia que Charcot ministrava e, com isso, abandonou <strong>de</strong> vez o<br />

microscópio para tornar-se um clínico.<br />

As inovações <strong>de</strong>sse período se <strong>da</strong>vam principalmente no campo anátomo-clínico, cujo<br />

referencial permitia provar a alteração patológica e estabelecer sua localização. Esse era o<br />

pano <strong>de</strong> fundo a partir do qual a neuropatologia procurava <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s manifestações<br />

neuróticas e histéricas.<br />

A teorização científica acerca <strong>da</strong> histeria no século XIX apostava em <strong>uma</strong> etiologia <strong>de</strong><br />

fundo nervoso, ou seja, a histeria seria a resultante <strong>de</strong> <strong>uma</strong> alteração do sistema nervoso, <strong>de</strong><br />

caráter <strong>de</strong>generativo, que teria na hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong> o seu fun<strong>da</strong>mento. O tra<strong>uma</strong>tismo <strong>de</strong> base<br />

neuropatológica era estreitamente vinculado às formações sintomáticas histéricas n<strong>uma</strong><br />

relação <strong>de</strong> causa e efeito. Embora as alterações nervosas permanecessem <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s ao<br />

meio médico <strong>da</strong> época acreditava-se em seu esclarecimento através <strong>de</strong> avanços nas futuras<br />

pesquisas.<br />

Ao estu<strong>da</strong>r com Charcot e começar a se interessar pela histeria Freud fez a sua entra<strong>da</strong><br />

<strong>por</strong> esse viés <strong>da</strong> neuroanatomia e já em 1888 3 cogitou também explicações neurofisilógicas,<br />

<strong>da</strong>ndo as primeiras pistas <strong>de</strong> que provavelmente o mo<strong>de</strong>lo neuroanatômico fosse<br />

insuficiente para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> patologia histérica.<br />

Com seus estudos sobre as afasias (1891) Freud <strong>de</strong>finitivamente revelou que sua<br />

preocupação não residia na localização anatômica, visto que o <strong>corpo</strong> anatômico era incapaz<br />

<strong>de</strong> eluci<strong>da</strong>r os problemas psíquicos. Ao <strong>de</strong>slocar a nosologia <strong>da</strong> afasia <strong>da</strong> anatomia para a<br />

psicologia, Freud confirmou a falência do mo<strong>de</strong>lo neuroanatômico para suas investigações,<br />

partindo então em busca <strong>de</strong> <strong>uma</strong> anatomia psíquica.<br />

3 “Histeria” (FREUD, 1888/1996). Texto escrito <strong>por</strong> Freud para a enciclopédia Villaret.<br />

19


Os estudos <strong>de</strong> Freud sobre a histeria não fogem a essa regra, ao contrário, fazem parte<br />

<strong>de</strong>sse mesmo contexto <strong>de</strong> questionamento dos mo<strong>de</strong>los existentes. Freud volta-se então<br />

para o domínio dos processos psíquicos, localizando aí a matriz <strong>da</strong> problemática dos<br />

histéricos e afásicos. Embora tivesse se tornado um competente neurologista Freud nunca<br />

se <strong>de</strong>dicou a <strong>uma</strong> clínica neurológica, interessando-se especialmente pelo campo <strong>da</strong><br />

psicopatologia clínica.<br />

Emerge, então, o período <strong>de</strong> constituição <strong>da</strong> psicanálise, on<strong>de</strong> a relação entre o<br />

psíquico e o anátomo-fisiológico começa a ser eluci<strong>da</strong><strong>da</strong>. A relação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo<br />

é inerente ao nascimento <strong>da</strong> psicanálise. Freud vai explorar os domínios psíquicos,<br />

inserindo o psiquismo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> representações com o qual o <strong>corpo</strong> mantém<br />

estreita relação.<br />

Para constituir o campo específico <strong>da</strong> psicanálise Freud começa a questionar certos<br />

estatutos <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e psiquismo já estabelecidos pelo saber científico. Progressivamente ele<br />

vai operando rupturas com esses mo<strong>de</strong>los que o conduzirão a concepções propriamente<br />

<strong>psicanalítica</strong>s <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso se dá <strong>de</strong> forma bastante complexa e gradual na<br />

obra freudiana. Acompanharemos o percurso inicial <strong>de</strong> Freud acerca <strong>da</strong> histeria, buscando<br />

indicadores <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Primórdios <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong><br />

Discorrer sobre a histeria é abor<strong>da</strong>r o momento inaugural <strong>da</strong> psicanálise e os<br />

primórdios <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> sobre o <strong>corpo</strong>. É <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> histeria que a<br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do campo psicanalítico se configura e cujo estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> se <strong>de</strong>limita<br />

naquilo que lhe é particularmente inovador, a saber: a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Para chegarmos até o campo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>s fantasias e <strong>de</strong>sejos inconscientes -<br />

lócus <strong>da</strong> constituição <strong>de</strong> um estatuto inaugural <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise – é preciso antes<br />

trilhar o percurso que nos conduzirá a tais concepções. Nossa trajetória começa ain<strong>da</strong> nas<br />

teses e contribuições <strong>de</strong> Charcot acerca <strong>da</strong> histeria, nos primeiros passos <strong>de</strong> Freud atrelado<br />

20


ao gran<strong>de</strong> mestre e, principalmente, nos <strong>de</strong>svios que este começa a traçar na direção <strong>da</strong><br />

construção <strong>de</strong> um novo saber.<br />

A gran<strong>de</strong> contribuição <strong>de</strong> Charcot ao campo <strong>de</strong> estudos <strong>da</strong> histeria foi ter postulado<br />

que a lesão histérica era dinâmica e funcional e não propriamente anatômica como se<br />

acreditava. Além <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser hereditária Charcot introduziu a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

lesão histérica ser <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes mecânicos, configurando assim um tipo especial<br />

<strong>de</strong> histeria traumática ao lado <strong>da</strong>s hereditariamente adquiri<strong>da</strong>s.<br />

Freud volta <strong>de</strong>sse aprendizado com o mestre Charcot profun<strong>da</strong>mente mobilizado pela<br />

questão <strong>da</strong> histeria e estabelece <strong>uma</strong> clínica <strong>de</strong> doenças nervosas em Viena. Seu contato<br />

com Charcot o leva a escrever o artigo “Alg<strong>uma</strong>s consi<strong>de</strong>rações para um estudo<br />

comparativo <strong>da</strong>s paralisias motoras orgânicas e histéricas” (1893), o qual revela-se como<br />

um marco entre os escritos neurológicos e psicológicos <strong>de</strong> Freud.<br />

Nesse artigo Freud <strong>de</strong>svincula os sintomas histéricos <strong>de</strong> lesões neurológicas e<br />

aproxima-os <strong>de</strong> <strong>uma</strong> etiologia psíquica sem qualquer relação com lesões do sistema<br />

nervoso. A hipótese <strong>de</strong> Freud é <strong>de</strong> que a alteração implica<strong>da</strong> nos fenômenos histéricos não<br />

se refere a <strong>uma</strong> lesão no sistema nervoso adquiri<strong>da</strong> hereditariamente ou <strong>por</strong> tra<strong>uma</strong><br />

mecânico, e sim a <strong>uma</strong> abolição associativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s representações. Desse modo,<br />

Freud opera um <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong> problemática histérica <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong> anatomia e <strong>da</strong><br />

fisiologia para a lógica <strong>da</strong> representação. Freud (1893a/1996) salienta que “a histeria se<br />

com<strong>por</strong>ta como se anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento <strong>de</strong>sta”<br />

(p.212). A anatomia, então, não é a causa <strong>da</strong>s manifestações histéricas, mas está à<br />

disposição para a emergência <strong>de</strong> seus sintomas conversivos.<br />

“A histeria ignora a distribuição dos nervos. (...) Ela toma os órgãos pelo sentido<br />

comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o<br />

braço é o membro superior tal como aparece visível sobre a roupa” (FREUD, 1893a/1996,<br />

p.212). Essa <strong>concepção</strong> popular do <strong>corpo</strong> é regi<strong>da</strong> <strong>pelas</strong> percepções (táteis, visuais) que as<br />

pessoas têm e a partir <strong>da</strong>s quais vão conceber <strong>uma</strong> imagem (<strong>uma</strong> representação) <strong>de</strong> seus<br />

<strong>corpo</strong>s, o que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conhecimento aprofun<strong>da</strong>do <strong>de</strong> anatomia. Assim, a alteração<br />

21


implica<strong>da</strong> na histeria 4 vai respeitar essa <strong>concepção</strong> popular, <strong>de</strong>notando a <strong>de</strong>terminação<br />

psíquica, e não orgânica, do sintoma histérico.<br />

Sendo assim, o <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> histérica colocava em xeque o saber médico-científico <strong>da</strong><br />

época, revelando-se ser mais do que <strong>uma</strong> organização anátomo-fisiológica, mostrando-se<br />

num “<strong>da</strong>r-se a ver” insistente que não se calava diante <strong>da</strong>s intervenções médicas clássicas.<br />

Este foi o terreno sobre o qual Freud se <strong>de</strong>bruçou, apontando para <strong>uma</strong> dimensão que<br />

não se reduzia ao organismo nem a sua manipulação. Nasce, então, a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um<br />

outro <strong>corpo</strong>, que vai sendo significado à medi<strong>da</strong> que vai possuindo <strong>uma</strong> história. É a<br />

assunção <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> representado. Ao escutar os sintomas histéricos e <strong>de</strong>tectar aí a<br />

presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong> outra cena, <strong>de</strong> um outro <strong>corpo</strong>, Freud rompe com os pressupostos do<br />

campo médico-científico vigente e lança-se na construção <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do saber<br />

psicanalítico.<br />

Estabelece-se aí a primeira ruptura freudiana com a escola <strong>de</strong> Charcot ao substituir a<br />

etiologia nervosa <strong>da</strong> histeria <strong>por</strong> <strong>uma</strong> etiologia psíquica, retirando o <strong>corpo</strong> histérico do<br />

plano exclusivamente biológico e conferindo-lhe um novo estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> representado<br />

(FREUD, 1893a/1996). Há um distanciamento <strong>de</strong> Freud do mo<strong>de</strong>lo anátomopatológico e um<br />

movimento em direção a <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> propriamente <strong>psicanalítica</strong> dos sintomas<br />

histéricos. Assim, o momento inaugural <strong>da</strong> formulação freudiana é marcado <strong>por</strong><br />

reformulações que configuram outros <strong>de</strong>stinos à histeria.<br />

Primeiros apontamentos sobre a neurose histérica<br />

Freud juntamente com Breuer abrem em 1893 os estudos sobre a histeria com o<br />

trabalho <strong>de</strong>signado Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos: comunicação<br />

preliminar. Nesse estudo evi<strong>de</strong>ncia-se que a lesão em questão na histeria se passa no campo<br />

<strong>da</strong>s representações psíquicas e não no campo somático, conforme acreditava Charcot. Freud<br />

4 A representação <strong>da</strong> parte do <strong>corpo</strong> afeta<strong>da</strong> na histeria – vincula<strong>da</strong> ao tra<strong>uma</strong> - per<strong>de</strong> a acessibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

associativa com as outras representações que constituem o eu, tornando-se inacessível à ca<strong>de</strong>ia psíquica<br />

associativa, mesmo que seu substrato orgânico esteja intacto.<br />

22


<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então postulava a origem psíquica dos sintomas histéricos, apontando para um<br />

tra<strong>uma</strong> psíquico como o fator <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador <strong>da</strong> neurose.<br />

O caráter traumático <strong>de</strong> um acontecimento era entendido nesse momento como <strong>uma</strong><br />

ofensa no campo do eu que não pô<strong>de</strong> ser respondi<strong>da</strong>, acarretando perante esta <strong>uma</strong> postura<br />

passiva do sujeito. O psiquismo então se dividiria na tentativa <strong>de</strong> expulsar a certeza <strong>da</strong><br />

ofensa, sobrevindo assim <strong>uma</strong> conseqüente divisão <strong>da</strong> consciência entre um pólo oficial e<br />

outro latente, no qual resguar<strong>da</strong>va-se a reminiscência do acontecimento traumático. Diante<br />

disso instaura-se um conflito psíquico entre grupos <strong>de</strong> representações distintas, entre <strong>uma</strong><br />

vonta<strong>de</strong> e <strong>uma</strong> contra-vonta<strong>de</strong>. O sintoma surge como <strong>uma</strong> formação <strong>de</strong> compromisso entre<br />

os dois grupos, constituindo-se como fonte <strong>de</strong> dor e estranheza para o sujeito e, <strong>de</strong>sse<br />

modo, como <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> tratamento.<br />

A célebre frase “os histéricos sofrem <strong>de</strong> reminiscências” (FREUD, 1893b/1996, p.3)<br />

advém <strong>de</strong>sse mecanismo <strong>de</strong> ex<strong>pulsão</strong> <strong>da</strong> ofensa do campo <strong>da</strong> consciência, configurando-se<br />

como <strong>uma</strong> lembrança inesquecível <strong>da</strong> humilhação e <strong>da</strong> vergonha causa<strong>da</strong> para o sujeito. O<br />

sintoma na<strong>da</strong> mais é do que o signo <strong>de</strong>ssa reminiscência, o retorno <strong>da</strong> cena <strong>da</strong> ofensa. O<br />

tratamento consistia, através do método hipnótico, em fazer retornar o tra<strong>uma</strong> que foi<br />

expulso <strong>da</strong> primeira consciência e que estaria representado no núcleo do sintoma. O<br />

procedimento psicoterápico teria como objetivo promover um efeito catártico, on<strong>de</strong> o afeto<br />

referente à representação expulsa <strong>da</strong> consciência pu<strong>de</strong>sse ser ab-reagido através <strong>da</strong> fala do<br />

paciente.<br />

Há, nesse momento, <strong>uma</strong> causação direta entre tra<strong>uma</strong> psíquico (que se mantém como<br />

<strong>corpo</strong> estranho) e sintoma histérico, tanto que ao cessar a causa, cessaria o efeito. No<br />

momento em que o analista <strong>de</strong>sven<strong>da</strong> a ocasião <strong>da</strong> primeira ocorrência do sintoma e a razão<br />

<strong>de</strong> seu aparecimento o sintoma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfaz. (FREUD, 1893b/1996).<br />

Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar, a partir <strong>de</strong>ssa primeira teorização acerca <strong>da</strong> histeria, que Freud<br />

ao li<strong>da</strong>r com representações e marcas psíquicas se <strong>de</strong>sloca do campo somático para o<br />

campo do tra<strong>uma</strong> psíquico. Há aí o esboço <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teoria do tra<strong>uma</strong>, no entanto, o <strong>corpo</strong><br />

representado ain<strong>da</strong> não tem <strong>uma</strong> relação direta com o sexual.<br />

Economia/Intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

23


Po<strong>de</strong>mos notar nessas primeiras publicações freudianas sobre a histeria e as neuroses<br />

em geral um enfoque bastante econômico, centrado na preocupação do trânsito <strong>da</strong>s<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A teoria do tra<strong>uma</strong> como um excesso <strong>de</strong> excitação circulando pelo registro<br />

psíquico é conseqüência <strong>de</strong>ssa perspectiva econômica, que entre outras coisas, traz a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica <strong>de</strong> <strong>uma</strong> proposição tópica.<br />

É em As neuropsicoses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa (1894a) que Freud lança-se sozinho na <strong>de</strong>scoberta dos<br />

mecanismos <strong>da</strong>s neuroses, articulando conceitos como <strong>de</strong>fesa e conversão para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong><br />

economia psíquica dos neuróticos. Surge nesse texto a proposta <strong>de</strong> um mecanismo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa básico para as psiconeuroses. Estabelece-se um “caminho” <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa psíquica, a<br />

saber:<br />

- diante <strong>de</strong> <strong>uma</strong> idéia incompatível, o Eu procura tratá-la como inexistente. Explica<br />

Freud: “... o ego foi confrontado com <strong>uma</strong> experiência, <strong>uma</strong> idéia ou um sentimento<br />

que suscitavam um afeto tão aflitivo que o sujeito <strong>de</strong>cidia esquecê-lo, <strong>por</strong>que não<br />

confiava em sua possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resolver a contradição entre a idéia incompatível e<br />

seu ego <strong>por</strong> meio <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento” (FREUD, 1894a/1996, p.55).<br />

- Essa tarefa que o Eu se impõe não po<strong>de</strong> ser realiza<strong>da</strong>, pois tanto a representação<br />

(traço mnêmico) como o afeto (soma <strong>de</strong> excitação) ligado a ela estão inscritos no<br />

psiquismo <strong>de</strong>finitivamente.<br />

- Então, o Eu transforma a representação po<strong>de</strong>rosa em representação fraca, retirandolhe<br />

o afeto. A representação fraca não tem nenh<strong>uma</strong> exigência praticamente a fazer<br />

ao trabalho <strong>de</strong> associação. Porém, a soma <strong>de</strong> excitação (afeto) <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> <strong>de</strong>la<br />

precisa ser utiliza<strong>da</strong> <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> maneira. O <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>sse afeto é que vai caracterizar<br />

os diferentes quadros neuróticos. Nas fobias e obsessões o afeto tornado livre ligase<br />

a outra representação não incompatível. Na histeria a representação é torna<strong>da</strong><br />

inócua <strong>por</strong>que a soma <strong>de</strong> excitação é transforma<strong>da</strong> em somática.<br />

O termo conversão aparece pela primeira vez na obra freudiana exatamente para<br />

<strong>de</strong>signar essa passagem, ou ain<strong>da</strong>, essa transformação do afeto, que ficou isolado <strong>de</strong> sua<br />

respectiva representação, para o somático, sob a forma <strong>de</strong> um sintoma físico. Freud diz<br />

ain<strong>da</strong> que a inervação motora ou sensória resultante <strong>da</strong> conversão está relaciona<strong>da</strong>, em<br />

24


maior ou menor grau, com a experiência traumática que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou todo esse processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa.<br />

Através <strong>de</strong>ssa separação entre o afeto e a representação opera<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>fesa, o eu<br />

liberta-se do confronto com a idéia incompatível, <strong>por</strong>ém, irá sobrecarregar-se com um<br />

símbolo mnêmico <strong>de</strong> tal idéia que se fixa na consciência e que pe<strong>de</strong> pela conversão. Desse<br />

modo, Freud conclui que o traço <strong>de</strong> memória <strong>da</strong> idéia reprimi<strong>da</strong> não se dissolve,<br />

permanecendo como o núcleo <strong>de</strong> um segundo grupo psíquico.<br />

A divisão histérica <strong>da</strong> consciência, proposta <strong>por</strong> Freud, relaciona-se com essa noção<br />

<strong>de</strong> conversão e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa psíquica, no sentido <strong>de</strong> jogar para fora <strong>da</strong> consciência a idéia<br />

incompatível com o eu, formando grupos psíquicos cindidos. Essa seria a <strong>concepção</strong><br />

freudiana <strong>de</strong> histeria <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, <strong>por</strong>ém nesse momento Freud ain<strong>da</strong> concebe a existência <strong>da</strong><br />

histeria hipnói<strong>de</strong> – referi<strong>da</strong> à tese <strong>de</strong> Breuer – e <strong>da</strong> histeria <strong>de</strong> retenção, caracteriza<strong>da</strong> pela<br />

falta <strong>de</strong> reação a estímulos traumáticos, não havendo divisão <strong>da</strong> consciência.<br />

Posteriormente 5 , quando a noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa adquirir expressão mais significativa no<br />

pensamento freudiano, essas outras duas formas tornar-se-ão redutíveis à histeria <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa,<br />

não mais se originando <strong>de</strong> mecanismos diferentes.<br />

Em termos mais gerais, o fator característico <strong>da</strong> histeria nesse momento não se centra<br />

na divisão <strong>da</strong> consciência, mas na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conversão, que consiste no mecanismo <strong>de</strong><br />

formação <strong>de</strong> sintomas histéricos, on<strong>de</strong> um conflito psíquico é transposto para a esfera<br />

somática. O afeto, ao se <strong>de</strong>sligar <strong>da</strong> representação é transformado em energia <strong>de</strong> inervação.<br />

Os sintomas físicos provenientes <strong>da</strong> conversão po<strong>de</strong>m ser motores, como as paralisias, e<br />

sensitivos, como as anestesias e dores localiza<strong>da</strong>s. A predisposição para a histeria residiria<br />

nessa aptidão psicofísica para trans<strong>por</strong> enormes somas <strong>de</strong> excitação para a inervação<br />

somática (FREUD, 1894a/1996, p.57).<br />

Dessa forma, a idéia <strong>de</strong> tra<strong>uma</strong> psíquico está liga<strong>da</strong> à quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> excitação que a<br />

representação carrega consigo, que acaba sendo converti<strong>da</strong> em sintoma. O ponto <strong>de</strong> vista<br />

econômico a partir do qual Freud está enten<strong>de</strong>ndo aí o mecanismo histérico justifica tal<br />

acepção <strong>da</strong> conversão centra<strong>da</strong> na idéia <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> excitações e o caráter traumático<br />

<strong>da</strong> etiologia histérica.<br />

5<br />

“A psicoterapia <strong>da</strong> histeria” (FREUD, 1895b/1996) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa” (FREUD, 1896a/1996).<br />

25


Em busca <strong>da</strong> etiologia <strong>da</strong> histeria<br />

Diante <strong>da</strong> divergência em relação às concepções vigentes acerca <strong>da</strong> histeria cuja causa<br />

era coloca<strong>da</strong> em lesões neuroanatômicas ou na hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong>, Freud empreen<strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

anamnese minuciosa <strong>da</strong> história <strong>de</strong> seus pacientes e se <strong>de</strong>para com o fator sexual como<br />

presença constante no relato dos mesmos.<br />

A representação incompatível se refere ao campo <strong>da</strong> experiência e <strong>da</strong>s sensações<br />

sexuais. O afeto aflitivo capaz <strong>de</strong> ocasionar tra<strong>uma</strong>s psíquicos é proveniente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sexual,<br />

ou melhor, <strong>da</strong> relação <strong>de</strong> impasse e <strong>de</strong> renúncia que as pacientes histéricas mantinham com<br />

o prazer e o sexo em função <strong>da</strong> incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> moral que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> representava em<br />

suas vi<strong>da</strong>s. Desse modo, a dimensão sexual se constituía como âmbito <strong>de</strong> conflito.<br />

Sob essa perspectiva serão analisados os casos clínicos que suce<strong>de</strong>m à Comunicação<br />

preliminar (FREUD, 1893b/1996). Freud i<strong>de</strong>ntifica a presença do sexual, mas ain<strong>da</strong> não<br />

assevera a universali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> etiologia sexual <strong>da</strong> histeria, pois significaria um rompimento<br />

imediato com Breuer, com quem Freud ain<strong>da</strong> mantinha <strong>uma</strong> parceria nos estudos sobre a<br />

histeria.<br />

Freud observava que o fator sexual se apresentava <strong>de</strong> diversas formas na vi<strong>da</strong> dos<br />

pacientes, tanto relacionado a tra<strong>uma</strong>s <strong>de</strong> infância quanto a queixas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sexual atual.<br />

Nesse ínterim, Freud sentiu a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar a primeira separação no campo<br />

<strong>da</strong>s neuroses, visto que patologias semelhantes à histeria como a neurastenia e a neurose <strong>de</strong><br />

angústia surgiam no horizonte freudiano. Freud estabelece diferenciações <strong>de</strong> acordo com o<br />

modo <strong>de</strong> organização <strong>da</strong> excitação sexual.<br />

Psiconeuroses x Neuroses atuais<br />

Haja vista a separação <strong>de</strong> dois grupos no campo <strong>da</strong>s neuroses estar pauta<strong>da</strong><br />

pela economia sexual, consi<strong>de</strong>ramos <strong>por</strong> bem começar pela <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> Freud<br />

do processo sexual.<br />

26


Ele nos fala que a excitação sexual somática é produzi<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma contínua no<br />

organismo tornando-se um estímulo para a psique. Decorre então a transformação <strong>da</strong><br />

excitação somática em psíquica suprindo os grupos <strong>de</strong> representações psíquicas <strong>de</strong> energia<br />

até promover <strong>uma</strong> tensão libidinal que anseia <strong>por</strong> <strong>de</strong>scarga. Uma ação específica, passível<br />

<strong>de</strong> eliminar a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> excitação, é que tornará possível a <strong>de</strong>scarga psíquica. É pela<br />

passagem <strong>da</strong> excitação sexual do plano somático para o plano <strong>da</strong> representação psíquica<br />

que o organismo e a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na adquirem sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A<br />

satisfação sexual no organismo h<strong>uma</strong>no não se dá <strong>de</strong> forma direta e imediata como um<br />

simples reflexo que respon<strong>de</strong> ao aumento <strong>da</strong> tensão somática. É necessária <strong>uma</strong> operação<br />

<strong>de</strong> elaboração psíquica <strong>da</strong> excitação somática para que a satisfação seja possível.<br />

A partir do entendimento <strong>de</strong> tal processo Freud (1895[1894]/1996) faz <strong>uma</strong><br />

diferenciação no quadro <strong>da</strong>s neuroses <strong>de</strong> acordo com o trajeto percorrido pela excitação<br />

sexual. Quando a tensão física não consegue penetrar no âmbito psíquico permanecendo,<br />

<strong>por</strong>tanto, no trajeto somático, configura-se <strong>uma</strong> sintomatologia que Freud refere ao grupo<br />

<strong>da</strong>s neuroses atuais. Sob o nome <strong>de</strong> psiconeuroses Freud reúne um segundo grupo, on<strong>de</strong> a<br />

excitação somática adquire <strong>uma</strong> representação psíquica, <strong>por</strong>ém toma um caminho<br />

equivocado, voltando-se em direção ao domínio somático <strong>por</strong> meio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> conversão.<br />

O grupo <strong>da</strong>s neuroses atuais compreen<strong>de</strong> duas novas formas <strong>de</strong> manifestações<br />

neuróticas conheci<strong>da</strong>s como neurastenia e neurose <strong>de</strong> angústia. Tanto na primeira quanto na<br />

segun<strong>da</strong> a <strong>de</strong>scarga a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>da</strong> excitação sexual somática é substituí<strong>da</strong> <strong>por</strong> <strong>uma</strong> menos<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Na neurastenia a causa precipitante é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> masturbação, que levaria ao<br />

empobrecimento <strong>da</strong> excitação. Na neurose <strong>de</strong> angústia o principal exemplo <strong>de</strong> causa<br />

precipitante é o coito interrompido. Esta prática levaria a um acúmulo <strong>de</strong> excitação sexual<br />

somática que <strong>por</strong> não encontrar vias <strong>de</strong> ser psiquicamente transforma<strong>da</strong> <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>-se em<br />

reações ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s na esfera do somático. A angústia resultante <strong>de</strong>sse processo<br />

correspon<strong>de</strong> à tensão sexual que foi <strong>de</strong>svia<strong>da</strong> do campo psíquico, <strong>de</strong>ixando-se <strong>de</strong> se<br />

transformar em libido. Desse modo, as neuroses atuais referem-se aquelas patologias on<strong>de</strong> a<br />

excitação sexual não alcança caminho psíquico, permanecendo no <strong>corpo</strong> como disfunção<br />

sexual somática. Nesse caso, o sofrimento não advém <strong>por</strong> recor<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> um acontecimento<br />

passado e sim <strong>por</strong> <strong>uma</strong> disfunção sexual atual, ou seja, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m somática, atuando sobre<br />

um <strong>corpo</strong> somático.<br />

27


A histeria, a fobia, a neurose obsessiva compreen<strong>de</strong>m o grupo <strong>da</strong>s psiconeuroses.<br />

Estas, ao contrário <strong>da</strong>s neuroses atuais, se <strong>de</strong>finem pela excitação sexual alcançando a<br />

esfera psíquica e transformando-se em libido pela ligação que estabelece com grupos <strong>de</strong><br />

representações. Exatamente <strong>por</strong> ganharem um caminho psíquico que foram <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s<br />

<strong>por</strong> Freud <strong>de</strong> psiconeuroses. O <strong>corpo</strong> em questão aí não é nem o anatômico nem o somático,<br />

mas o <strong>corpo</strong> representado. Essa primeira <strong>de</strong>limitação já aponta para um diferencial do <strong>corpo</strong><br />

histérico. Freud <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado o campo <strong>da</strong>s neuroses atuais, <strong>de</strong>dicando-se às psiconeuroses,<br />

cuja etiologia psíquica mais o interessava.<br />

Essa classificação <strong>de</strong>ntro do campo <strong>da</strong>s neuroses levou Freud a postular etiologias<br />

específicas para ca<strong>da</strong> tipo <strong>de</strong> manifestação neurótica. Como já vimos, a causa específica <strong>da</strong>s<br />

neuroses atuais residia em perturbações sexuais somáticas <strong>de</strong> caráter contem<strong>por</strong>âneo na<br />

vi<strong>da</strong> do indivíduo, enquanto a causa específica <strong>da</strong>s psiconeuroses residia em um conflito<br />

psíquico situado no plano <strong>da</strong> representação.<br />

Embora fizesse essa distinção, Freud concebia que as neuroses se<br />

apresentavam freqüentemente <strong>de</strong> forma mista, on<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>uma</strong> etiologia<br />

específica se misturava. A noção <strong>de</strong> equação etiológica surge <strong>de</strong>ssa pressuposição<br />

<strong>de</strong> que diferentes espécies <strong>de</strong> causas estão envolvi<strong>da</strong>s na geração <strong>de</strong> <strong>uma</strong> neurose.<br />

A causa específica é aquela que <strong>de</strong>termina o efeito neurótico, mas está<br />

necessariamente em inter-relação com as precondições e, na maioria <strong>da</strong>s vezes,<br />

com as causas banais e o fator <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante. As neuroses atuais atuam<br />

freqüentemente como causas precipitantes <strong>da</strong>s psiconeuroses, ao passo que <strong>uma</strong><br />

forma <strong>de</strong> psiconeurose po<strong>de</strong> se constituir como base subjacente para <strong>uma</strong><br />

sintomatologia sexual atual.<br />

Nesse sentido, esses estudos iniciais <strong>de</strong> Freud acerca <strong>da</strong> histeria e <strong>da</strong>s neuroses em<br />

geral revelam-nos <strong>uma</strong> particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> interessante no tocante a <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong><br />

<strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>. Há um eixo fun<strong>da</strong>mental que perpassa a teoria <strong>da</strong>s neuroses que é a<br />

oposição entre um <strong>corpo</strong> biológico, sempre referido às neuroses atuais e um <strong>corpo</strong><br />

representado, referido às psiconeuroses. Há aí <strong>uma</strong> significativa diferenciação entre um<br />

<strong>corpo</strong> somático, do qual provém a excitação sexual somática e um <strong>corpo</strong> psiquicamente<br />

representado, <strong>por</strong> on<strong>de</strong> circula a excitação sexual psíquica <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> libido. A teorização<br />

28


freudiana atravessa esses dois grupos sexuais distintos, realizando <strong>uma</strong> inter-relação entre o<br />

psíquico e o somático através do registro do sexual.<br />

Há inegavelmente aí a idéia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fronteira somático-psíquico on<strong>de</strong> esses dois<br />

registros são concebidos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente um do outro e cuja articulação se dá através <strong>da</strong><br />

transposição <strong>da</strong> excitação sexual <strong>de</strong> <strong>uma</strong> esfera para a outra, <strong>de</strong>finindo assim diferentes<br />

estatutos para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>, quais sejam: <strong>corpo</strong> biológico, que permanece na esfera<br />

do somático e <strong>corpo</strong> representado, que ace<strong>de</strong> à representação psíquica.<br />

Liana Bastos (1998) faz <strong>uma</strong> interpretação interessante quanto a esse aspecto. Na sua<br />

compreensão mesmo opondo neuroses atuais e psiconeuroses Freud não teria <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong><br />

estabelecer correlações entre o <strong>corpo</strong> somático e o <strong>corpo</strong> representado. Ela nos diz que<br />

“esse imbricamento do <strong>corpo</strong> somático com o <strong>corpo</strong> representado não confun<strong>de</strong>, no entanto,<br />

a <strong>de</strong>limitação fun<strong>da</strong>mental que o conceito <strong>de</strong> neurose atual traz. Há, no sujeito, um <strong>corpo</strong><br />

somático e um <strong>corpo</strong> representado coexistindo, mas abor<strong>da</strong>dos distintamente” (BASTOS,<br />

1998, p.43).<br />

Para Joel Birman (1991a, p.145) essa é <strong>uma</strong> oposição estrutural entre duas or<strong>de</strong>ns<br />

diversas <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que funciona como critério para estabelecer os limites<br />

epistemológicos do campo psicanalítico e suas fronteiras com o campo médico-psiquiátrico.<br />

Há <strong>uma</strong> ruptura com a or<strong>de</strong>m médica implica<strong>da</strong> aí no sentido <strong>de</strong> que a psicanálise não se<br />

ocupa do <strong>corpo</strong> anátomo-fisiológico e sim do <strong>corpo</strong> representado, cujos mecanismos<br />

psíquicos que se inscrevem no campo <strong>da</strong> representação são passíveis <strong>de</strong> eluci<strong>da</strong>ção pelo<br />

método psicanalítico.<br />

Enten<strong>de</strong>mos, então, a partir <strong>da</strong> visão <strong>de</strong>sses autores, que essa oposição tão presente<br />

nos textos freudianos iniciais correspon<strong>de</strong> a <strong>uma</strong> estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação do saber<br />

propriamente psicanalítico. É somente a partir <strong>de</strong>ssa separação que a psicanálise constrói<br />

um objeto específico <strong>de</strong> saber.<br />

Além disso, com a diferenciação dos sintomas neuróticos <strong>por</strong> conta do caminho<br />

percorrido pela excitação sexual, ficou <strong>de</strong>finitivamente estabelecido <strong>por</strong> Freud que a<br />

etiologia <strong>da</strong>s neuroses residiria na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Segundo Bastos (1998), “a etiologia sexual<br />

<strong>da</strong>s neuroses continuou presente e <strong>de</strong>terminante não mais apenas como prática sexual –<br />

<strong>corpo</strong> do sexo -, mas como sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que se organiza em torno <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> libido”<br />

(p.44).<br />

29


A partir <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> etiologia sexual para as psiconeuroses o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

ganha centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> no entendimento <strong>de</strong> Freud acerca dos mecanismos <strong>de</strong> formação dos<br />

sintomas psiconeuróticos. A conseqüência maior disso é que to<strong>da</strong> a histeria passa a ser<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa (FREUD, 1896a/1996), permitindo, então, Freud abandonar as outras<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> histeria – como a hipnói<strong>de</strong> e a <strong>de</strong> retenção - que ele há muito tempo já<br />

suspeitava não se sustentarem.<br />

Segundo Birman (1991a), com tal afirmação do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa se<br />

consoli<strong>da</strong> <strong>de</strong>finitivamente o campo <strong>da</strong> representação como algo que é universal e<br />

não particular a certas patologias. Decorrem <strong>da</strong>í <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> rupturas<br />

fun<strong>da</strong>mentais que Freud acaba <strong>por</strong> operar. Uma <strong>de</strong>las é a ruptura com Breuer e<br />

com sua <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um estado inicial anômalo <strong>de</strong> consciência que<br />

<strong>de</strong>terminaria a patologia histérica. E <strong>uma</strong> ruptura ain<strong>da</strong> mais fun<strong>da</strong>mental se<br />

configura em relação ao lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque que a hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />

<strong>de</strong>generescência ocupavam no campo médico-psiquiátrico. Com a constituição<br />

do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, Freud se <strong>de</strong>sloca <strong>de</strong>sse lugar <strong>da</strong> <strong>de</strong>generação em direção à<br />

autonomia do campo psíquico para enten<strong>de</strong>r as psiconeuroses.<br />

Com a assunção <strong>da</strong>s causas específicas, a hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong> per<strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> etiologia<br />

primordial <strong>da</strong>s neuroses <strong>de</strong>ntro do pensamento freudiano, sendo relega<strong>da</strong> à função <strong>de</strong><br />

precondição. A hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong> nervosa é incapaz <strong>de</strong> produzir qualquer tipo <strong>de</strong> neurose se a<br />

etiologia específica estiver ausente. Segundo Birman (1991a), “a temática fun<strong>da</strong>mental<br />

passa a ser a constituição do sujeito no percurso <strong>de</strong> sua história. [...] A noção <strong>de</strong> adquirido<br />

se <strong>de</strong>sloca para o primeiro plano na teoria <strong>da</strong>s neuroses, substituindo a noção <strong>de</strong> inato que<br />

ocupava posição primordial” (p.154).<br />

Essas rupturas foram cruciais para a constituição do saber psicanalítico na medi<strong>da</strong> em<br />

que significaram o distanciamento <strong>de</strong> Freud <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> médica e <strong>de</strong> seu respectivo<br />

objeto <strong>de</strong> saber circunscrito pelo <strong>corpo</strong> anátomo-patológico e biológico. Ao <strong>de</strong>screver a<br />

problemática neurótica em função do conflito psíquico e <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa no plano <strong>da</strong><br />

representação Freud conquista um campo <strong>de</strong> saber específico para a psicanálise, situando<br />

fora <strong>de</strong> seus domínios a abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> anátomo-clínica.<br />

30


A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> na etiologia <strong>da</strong> neurose histérica<br />

Até esse momento Freud está li<strong>da</strong>ndo com a histeria sob o viés <strong>da</strong> teoria do tra<strong>uma</strong>,<br />

on<strong>de</strong> qualquer fator que <strong>de</strong>terminasse um excesso no psiquismo era consi<strong>de</strong>rado como<br />

traumático, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando assim a formação do sintoma histérico.<br />

Como pu<strong>de</strong>mos notar, as vivências sexuais foram progressivamente se tornando <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> im<strong>por</strong>tância para a etiologia <strong>da</strong>s psiconeuroses e é nesse contexto que a etiologia<br />

sexual na histeria se afirmou. Através do método catártico “rastreava-se” os tra<strong>uma</strong>s<br />

psíquicos que originavam os sintomas histéricos e, a partir disso, encontrava-se sempre as<br />

vivências infantis relaciona<strong>da</strong>s à vi<strong>da</strong> sexual. Mesmo quando o sintoma era ocasionado <strong>por</strong><br />

<strong>uma</strong> emoção dita banal (<strong>de</strong> natureza não sexual) havia <strong>uma</strong> causa sexual presente.<br />

Freud (1896b/1996) concebe então a etiologia específica <strong>da</strong> histeria como <strong>uma</strong><br />

experiência sexual passiva ocorri<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> puber<strong>da</strong><strong>de</strong> e que se inscreve psiquicamente<br />

como <strong>uma</strong> lembrança inconsciente. Na puber<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> esse<br />

traço que permaneceu inconsciente é <strong>de</strong>spertado. Os eventos que são subseqüentes à<br />

puber<strong>da</strong><strong>de</strong> só têm influência no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> histeria como agentes provocadores,<br />

no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertarem o traço psíquico inconsciente do evento infantil.<br />

Aqui se está consi<strong>de</strong>rando a teoria <strong>da</strong> sedução elabora<strong>da</strong> <strong>por</strong> Freud entre os anos <strong>de</strong><br />

1895 e 1897, on<strong>de</strong> ele atribui o papel <strong>de</strong>terminante <strong>da</strong> etiologia <strong>da</strong>s neuroses às lembranças<br />

<strong>de</strong> cenas reais <strong>de</strong> sedução. O tra<strong>uma</strong> sexual advém <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cena real em que a criança sofre<br />

passivamente <strong>da</strong> parte <strong>de</strong> um outro (geralmente um adulto) <strong>uma</strong> manipulação sexual, <strong>uma</strong><br />

sedução. O sujeito nesse momento ain<strong>da</strong> não tem condições <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um sentido a essa<br />

experiência e a essa cena <strong>de</strong> sedução que só retroativamente será liga<strong>da</strong> a <strong>uma</strong> ca<strong>de</strong>ia<br />

associativa. Quando ocorre um fato novo a posteriori (<strong>por</strong> ocasião <strong>da</strong> puber<strong>da</strong><strong>de</strong>) essas<br />

experiências se reorganizam, adquirem <strong>uma</strong> significação inconsciente <strong>de</strong> modo retroativo.<br />

Através <strong>da</strong>s associações atuais o que estava sem sentido passa a adquirir <strong>uma</strong> significação,<br />

traumática <strong>por</strong> excelência, que então sofrerá a ação do recalque.<br />

É a noção <strong>de</strong> a posteriori que aí está em jogo; a cena anterior (cena <strong>da</strong> sedução) é<br />

permanentemente reinterpreta<strong>da</strong> <strong>pelas</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que um momento posterior oferece<br />

(<strong>por</strong> exemplo, o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> na puber<strong>da</strong><strong>de</strong>).<br />

31


O excesso traumático conferido a <strong>uma</strong> ofensa ou a <strong>uma</strong> representação intolerável aos<br />

poucos vai se <strong>de</strong>lineando como sexual, levando Freud a asseverar a universali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

etiologia sexual <strong>da</strong> histérica. A teoria do tra<strong>uma</strong> adquire novos contornos, elabora<strong>da</strong> agora<br />

em termos <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> sedução.<br />

Po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar então que Freud até esse momento estabelece <strong>uma</strong> primeira<br />

formulação a respeito <strong>da</strong> histeria, enfocando o conflito psíquico, a <strong>de</strong>fesa e a formação do<br />

sintoma <strong>por</strong> via <strong>da</strong> conversão, enfatizando também a etiologia sexual aí envolvi<strong>da</strong>. Nesse<br />

contexto ele está ain<strong>da</strong> muito voltado para a busca do conflito psíquico intolerável,<br />

atentando para sua passagem à inervação somática, distante ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> privilegiar os<br />

processos inconscientes que estão <strong>por</strong> trás <strong>da</strong>s mobilizações do <strong>corpo</strong> durante a<br />

revivescência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cena intolerável.<br />

No entanto, a generalização do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa para o campo <strong>da</strong> histeria consoli<strong>da</strong><br />

o campo <strong>da</strong> representação no qual essa se inscreve, levando Freud a romper <strong>de</strong>finitivamente<br />

com a dimensão anátomo-patológica e biológica com as quais o saber médico-científico se<br />

<strong>de</strong>bruçava sobre a questão histérica.<br />

Segun<strong>da</strong> teoria freudiana sobre a histeria<br />

N<strong>uma</strong> célebre carta a seu amigo Fliess, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1897, Freud revela não acreditar<br />

mais na sua neurótica, colocando em dúvi<strong>da</strong> a teoria <strong>da</strong> etiologia sexual traumática <strong>da</strong>s<br />

neuroses. Entre os motivos que o levaram a tal afirmação estava a <strong>de</strong>ban<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas<br />

cujos casos ele parecia estar dominando com segurança e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ter sempre que<br />

apontar um adulto como pervertido.<br />

Entretanto, mesmo questionando a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua teoria <strong>da</strong> sedução esse fato só vai<br />

ser revelado publicamente <strong>por</strong> Freud com o anúncio <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil em 1905. Isso<br />

<strong>por</strong>que os subsídios para <strong>uma</strong> nova teorização ain<strong>da</strong> estavam sendo elaborados <strong>por</strong> Freud,<br />

que preparava o terreno para a vira<strong>da</strong> radical em Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a emergência do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> e do campo <strong>da</strong>s fantasias e <strong>de</strong>sejos<br />

inconscientes.<br />

32


Com isso, Freud começa a reformular um pouco sua <strong>concepção</strong> sobre a neurose<br />

histérica. Ele abandona o entendimento <strong>da</strong> cena <strong>da</strong> sedução e passa a entendê-la como um<br />

produto <strong>de</strong> reconstruções fantasísticas do sujeito. Coloca-se em evidência a noção <strong>de</strong><br />

fantasia inconsciente.<br />

A representação concebi<strong>da</strong> como intolerável, foco <strong>da</strong> primeira teoria, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

oriun<strong>da</strong> <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> sedução sexual praticado <strong>por</strong> um adulto. O <strong>de</strong>senvolvimento do <strong>corpo</strong><br />

pulsional, as experiências vivi<strong>da</strong>s no nível <strong>da</strong>s diferentes zonas erógenas (boca, ânus, pele,<br />

olhos, etc) adquirem o valor <strong>de</strong> tra<strong>uma</strong>.<br />

Há aí, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>uma</strong> reformulação do conceito <strong>de</strong> tra<strong>uma</strong>, o qual <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se referir<br />

a um acontecimento real e externo, aproximando-se mais <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> um evento psíquico<br />

carregado <strong>de</strong> afeto, que mantém estreita ligação com alg<strong>uma</strong> região erógena do <strong>corpo</strong>. Daí<br />

se constitui a ficção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cena traumática. Essa ficção é o que se <strong>de</strong>nomina <strong>por</strong> fantasia,<br />

sendo ou não construí<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> um evento real e <strong>da</strong>tável. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica e não<br />

mais a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> material se apresenta como fator <strong>de</strong>terminante <strong>da</strong> sedução.<br />

Por trás <strong>de</strong>ssas fantasias encontra-se a vi<strong>da</strong> sexual <strong>da</strong> criança, que é fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>por</strong><br />

exemplo, nos primeiros cui<strong>da</strong>dos, quando a mãe toca seu bebê, erotizando-o. Esse<br />

investimento libidinal que a mãe provoca no bebê, ao mantê-lo sob seus cui<strong>da</strong>dos, é a fonte<br />

do <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong>s zonas erógenas e <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil do mesmo.<br />

O próprio eu infantil, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> maturação sexual, constitui-se<br />

como se<strong>de</strong> natural do <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> tensão excessiva. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil é<br />

essencialmente exacerba<strong>da</strong>, extrema<strong>da</strong>. Ela é foco inconsciente <strong>de</strong> sofrimento, é<br />

<strong>de</strong>spro<strong>por</strong>cional aos meios físicos e psíquicos <strong>da</strong> criança. A tensão libidinal é intensa<br />

<strong>de</strong>mais para o eu infantil, a criança é ain<strong>da</strong> muito prematura e <strong>de</strong>sprepara<strong>da</strong> para su<strong>por</strong>tar e<br />

elaborar essa tensão que aflora em seu <strong>corpo</strong>. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil é, assim, traumática<br />

<strong>por</strong> excelência <strong>de</strong>vido a esse seu caráter excessivo.<br />

Desse modo, o evento psíquico traumático não provém mais do exterior, mas é<br />

produzido pelo próprio <strong>corpo</strong> erógeno <strong>da</strong> criança. Esse <strong>corpo</strong> é tomado <strong>por</strong> essa sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

transbor<strong>da</strong>nte que, diante <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfação completa leva o sujeito a<br />

fantasiar. As fantasias vêm para <strong>da</strong>r conta do excesso pulsional original do sujeito,<br />

<strong>de</strong>spertado pela erotização através do toque <strong>de</strong> quem cui<strong>da</strong> o bebê.<br />

33


O sintoma dos histéricos é, assim, oriundo <strong>de</strong> tra<strong>uma</strong>tismos fictícios, as cenas <strong>de</strong><br />

sedução são fantasia<strong>da</strong>s com o intuito <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um encaminhamento psíquico para as<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s auto-eróticas infantis.<br />

Um novo cenário se constitui com essa vira<strong>da</strong> no pensamento freudiano. A entra<strong>da</strong> em<br />

cena <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e <strong>da</strong> dimensão pulsional traz consigo <strong>de</strong>sdobramentos<br />

absolutamente fun<strong>da</strong>mentais para pensarmos a questão do estatuto do <strong>corpo</strong> para a<br />

psicanálise, visto que com isso Freud inaugura novos remanejamentos e rupturas ain<strong>da</strong> mais<br />

marcantes em sua obra.<br />

O próximo capítulo terá como foco a análise <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sdobramentos. Por hora, nos<br />

cabe ain<strong>da</strong> refletir sobre o im<strong>por</strong>tante papel <strong>da</strong> conversão na teorização freudiana sobre a<br />

histeria. Consi<strong>de</strong>ramos esse um conceito-chave para pensarmos as relações entre o psíquico<br />

e o somático estabeleci<strong>da</strong>s nesses primeiros passos <strong>de</strong> Freud, que são também, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

nossos passos iniciais em busca <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Sobre a conversão histérica<br />

As mu<strong>da</strong>nças e rupturas que Freud realizou na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1890 conferiram conotações<br />

específicas para o termo conversão. Vamos acompanhar um pouco como essa noção vai<br />

adquirindo relevo no pensamento <strong>de</strong> Freud na medi<strong>da</strong> em que ele avança no estudo sobre a<br />

histeria.<br />

A suposta duali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> registros entre o somático e o psíquico se faz notar também,<br />

senão principalmente, em torno do conceito <strong>de</strong> conversão. O entendimento <strong>de</strong> Freud acerca<br />

do sintoma conversivo revela esse embate freudiano entre o psíquico e o somático,<br />

evi<strong>de</strong>nciando seu percurso através <strong>da</strong> histeria até o nascimento do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, a<br />

partir do qual essa problemática adquire novos contornos.<br />

Num primeiro momento, na abertura dos Estudos sobre a histeria, Freud parte <strong>da</strong><br />

relação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> conexão causal entre um evento <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador (tra<strong>uma</strong>) e o fenômeno<br />

patológico (histeria). A conversão <strong>por</strong> associação torna-se o eixo principal a partir do qual<br />

Freud vai explicar a formação sintomática <strong>de</strong> suas pacientes histéricas. A conversão<br />

associativa vinculava <strong>por</strong> simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> dor física e afeto psíquico <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

34


emoção traumática. Não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que Freud está consi<strong>de</strong>rando nesse<br />

momento <strong>uma</strong> hipótese econômica a respeito <strong>da</strong> histeria. Na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> excitação<br />

psíquica ser ab-reagi<strong>da</strong> ou ganhar <strong>de</strong>stino na re<strong>de</strong> associativa <strong>da</strong>s representações ela é<br />

converti<strong>da</strong> em sintomas somáticos crônicos. A noção <strong>de</strong> conversão adquire aí sentidos<br />

como o <strong>de</strong> transposição <strong>da</strong> excitação <strong>da</strong> esfera psíquica para a esfera somática, com a<br />

conseqüente transformação <strong>da</strong> excitação psíquica em energia <strong>de</strong> inervação somática.<br />

Nesse sentido, Freud partia do pressuposto <strong>de</strong> que haveria <strong>de</strong> ter <strong>uma</strong> facilitação no<br />

caminho em direção à conversão para o âmbito somático. Por esse motivo, os sintomas<br />

conversivos teriam a sua origem em bases orgânicas que <strong>de</strong>pois seriam a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s para as<br />

finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s neuroses. A partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> dor somática já existente <strong>uma</strong> trilha específica<br />

seria aberta para a conversão. A dor somática <strong>de</strong> <strong>uma</strong> paciente histérica, <strong>por</strong> exemplo, não<br />

teria sido cria<strong>da</strong> pela neurose, mas apenas utiliza<strong>da</strong>, aumenta<strong>da</strong> e manti<strong>da</strong> <strong>por</strong> ela. No início<br />

teria estado presente <strong>uma</strong> dor autêntica, <strong>de</strong> base orgânica, à qual se sobre<strong>por</strong>ia <strong>uma</strong><br />

expressão psíquica.<br />

Freud, em outros momentos, dá a esse processo o nome <strong>de</strong> complacência somática ou,<br />

até mesmo, submissão somática, as quais se referem à idéia <strong>de</strong> um fator constitucional ou<br />

adquirido predis<strong>por</strong> o indivíduo à conversão. 6<br />

Assim, <strong>por</strong> exemplo, no caso Elizabeth sua dor na perna, que era reumática na sua<br />

origem, tornou-se símbolo mnêmico <strong>de</strong> suas excitações psíquicas penosas <strong>por</strong> estar<br />

diretamente envolvi<strong>da</strong> com a cena do tra<strong>uma</strong>. A partir <strong>da</strong>í o sofrimento mental <strong>da</strong> paciente<br />

passa a ser representado <strong>por</strong> suas dores na perna. Aparece assim <strong>uma</strong> primeira hipótese<br />

sobre o caráter simbólico <strong>de</strong> <strong>uma</strong> relação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo, o que leva Freud a<br />

admitir dois mecanismos <strong>de</strong> conversão: associativa e simbólica.<br />

No entanto, Freud pressupõe que primeiramente o sintoma se dá <strong>por</strong> <strong>uma</strong> conversão<br />

associativa à qual, posteriormente, adiciona-se um caráter simbólico. A regra geral que<br />

Freud observa na análise dos casos clínicos é <strong>de</strong> que o mecanismo <strong>de</strong> simbolização é<br />

6 “[A histeria] não po<strong>de</strong> ocorrer sem a presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong> complacência somática forneci<strong>da</strong> <strong>por</strong> algum processo<br />

normal ou patológico no interior <strong>de</strong> um órgão ou com ele relacionado” (FREUD, 1905[1901]/1996, p.47-48,<br />

grifo <strong>de</strong> Freud), “Os processos psíquicos em to<strong>da</strong>s as psiconeuroses são os mesmos durante um extenso<br />

percurso, até que entre em cena a ‘complacência somática’ que pro<strong>por</strong>ciona aos processos psíquicos <strong>uma</strong><br />

saí<strong>da</strong> no cor<strong>por</strong>al”. (FREUD, 1905[1901]/1996, p.48-49), “[...] a parte constitucional <strong>da</strong> disposição para<br />

adoecer <strong>de</strong> perturbações psicogênicas e neuróticas. Este é o fator ao qual, quando aplicado a histeria, <strong>de</strong>i o<br />

nome provisório <strong>de</strong> ‘submissão somática’” (FREUD, 1910/1996, p.227).<br />

35


elegado a <strong>uma</strong> im<strong>por</strong>tância secundária, sendo geralmente agregado a <strong>uma</strong> conversão<br />

associativa já realiza<strong>da</strong> (FREUD, 1893-1895/1996).<br />

Somente no caso Caecilie é que Freud se <strong>de</strong>para com os melhores exemplos <strong>de</strong><br />

conversão <strong>por</strong> simbolização, on<strong>de</strong> aí sim a gênese <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus sintomas histéricos<br />

residia apenas na simbolização. Freud i<strong>de</strong>ntifica nesse caso sensações físicas que<br />

normalmente eram <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s <strong>por</strong> causas orgânicas revelarem-se <strong>de</strong> origem psíquica,<br />

possuindo um significado psíquico (FREUD, 1893-1895/1996). Por exemplo, Caecilie diante<br />

do olhar vigilante <strong>da</strong> avó subitamente sentiu <strong>uma</strong> dor intensa na testa, entre os olhos, que<br />

durou semanas. Ao relatar essa cena a Freud a paciente disse que a avó lhe dirigira <strong>uma</strong><br />

olhar tão penetrante que fora direto até o cérebro. A mesma paciente sofria <strong>de</strong> nefralgia<br />

facial a qual Freud, no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> análise, <strong>de</strong>scobriu sua origem n<strong>uma</strong> conversa que<br />

Caecilie tivera com o marido on<strong>de</strong> este lhe insultara e ela teria sentido esse insulto como<br />

“<strong>uma</strong> bofeta<strong>da</strong> no rosto” (FREUD, 1893-1895/1996, p.199).<br />

Fica evi<strong>de</strong>nte aí a relação simbólica entre a causa <strong>de</strong>terminante e o sintoma histérico.<br />

Segundo Freud (1893c/1996), “é como se houvesse a intenção <strong>de</strong> expressar o estado mental<br />

através <strong>de</strong> um estado físico; e o uso lingüístico fornece <strong>uma</strong> ponte pela qual isso po<strong>de</strong> ser<br />

efetuado” (p.43). O sintoma conversivo, então, representa a expressão cor<strong>por</strong>al <strong>da</strong>s<br />

emoções, se apropriando <strong>de</strong> expressões lingüísticas <strong>de</strong> uso comum.<br />

Monique David-Ménard (2000) em A histérica entre Freud e Lacan faz <strong>uma</strong> análise<br />

minuciosa <strong>da</strong> teorização freudiana sobre a histeria, apontando que o primeiro momento <strong>da</strong><br />

conversão em Freud permaneceu tributário do dualismo através <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

Freud propõe entre as duas séries história psíquica e perturbações motoras, um dualismo<br />

pre<strong>de</strong>terminado <strong>por</strong> dois modos: causal e associativo. Nesse sentido, a autora também<br />

indica que a primeira hipótese sobre o caráter simbólico entre <strong>corpo</strong> e alma – a<br />

transformação <strong>da</strong>s dores do <strong>corpo</strong> em símbolo <strong>da</strong>s dores <strong>da</strong> alma – está apoia<strong>da</strong> sobre <strong>uma</strong><br />

oposição metafísica <strong>de</strong> duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que exige que algo passe, <strong>de</strong> forma causal,<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> or<strong>de</strong>m à outra. Inicialmente, a conversão <strong>por</strong> simbolização só é invoca<strong>da</strong> como um<br />

mecanismo complementar, limitado e apoiado na associação <strong>de</strong> modo que o teor simbólico<br />

não é apresentado como o lugar <strong>de</strong> origem <strong>da</strong> conversão.<br />

Assim, segundo ela, o discurso oficial <strong>de</strong> Freud sobre a conversão impe<strong>de</strong> que se<br />

reconheçam questões im<strong>por</strong>tantes como a fantasia, os <strong>de</strong>sejos inconscientes e o <strong>corpo</strong> do<br />

36


prazer, justamente pelo fato <strong>da</strong> duali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> registros aí implica<strong>da</strong> limitar o <strong>corpo</strong> erógeno<br />

ao <strong>corpo</strong> fisiológico. Ao se ater sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fisiológica do <strong>corpo</strong>, ao seu caráter visível<br />

e a sua relação com o psíquico, torna-se obscuro o terreno específico <strong>da</strong> histeria, qual seja:<br />

o estatuto inconsciente do <strong>corpo</strong>.<br />

Somente quando Freud se <strong>de</strong>parou com dores <strong>de</strong> suas pacientes que se revelavam<br />

multiformes e <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s <strong>por</strong> acontecimentos múltiplos que ele percebeu que precisava<br />

mu<strong>da</strong>r sua maneira <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r a paciente histérica, atentando para a espaciali<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong><br />

sob outra ótica, <strong>de</strong>tendo-se sobre a dor não em seu aspecto <strong>de</strong> perturbação orgânica, mas<br />

escutando a linguagem <strong>de</strong>ssa dor que aponta não mais para um espaço <strong>de</strong>finido pela<br />

anatomia, mas pela atenção que um sujeito <strong>de</strong>dica ao seu <strong>corpo</strong> e a certas posições.<br />

Nesse sentido, David-Ménard (2000) comenta que para perceber o terreno <strong>da</strong><br />

conversão histérica é necessária <strong>uma</strong> ruptura que a teoria freudiana acaba <strong>por</strong> operar: o<br />

sujeito não tem <strong>uma</strong> relação imediata, natural e direta com seu <strong>corpo</strong>, é somente a partir <strong>de</strong><br />

um certo tipo <strong>de</strong> simbolização <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo que o sujeito po<strong>de</strong> percebê-lo. Assim, Freud<br />

passa a consi<strong>de</strong>rar que é no âmbito do investimento do <strong>corpo</strong> que se situa a origem do<br />

processo <strong>de</strong> conversão, o que faz com que a conversão histérica se enuncie <strong>de</strong> um novo<br />

modo, ou seja, elucidá-la significa reconstituir a história <strong>de</strong>sse investimento e não mais<br />

procurar <strong>uma</strong> causa para os efeitos assinalados como sintomáticos.<br />

Assim, para a compreensão <strong>da</strong> histeria o sistema sensório-motor do <strong>corpo</strong> não po<strong>de</strong><br />

ser visto como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> simbolização do <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>sejante. O <strong>corpo</strong> não po<strong>de</strong> ser<br />

concebido como um conjunto <strong>de</strong> inervações cor<strong>por</strong>ais na medi<strong>da</strong> em que ele só existe para<br />

o sujeito a partir <strong>da</strong>quilo que ele po<strong>de</strong> simbolizar <strong>de</strong>le, ou seja, o <strong>corpo</strong> só existe enquanto<br />

atravessado pela linguagem. O interesse se <strong>de</strong>sloca do sintoma histérico com <strong>uma</strong><br />

perturbação orgânica em seu fun<strong>da</strong>mento para um exame do <strong>corpo</strong> tomado na linguagem e,<br />

assim, <strong>uma</strong> primeira abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong> erógeno emerge na teorização<br />

freudiana.<br />

É com a <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil que essa dimensão erógena do <strong>corpo</strong> se<br />

<strong>de</strong>sven<strong>da</strong> e com isso a configuração <strong>de</strong> um novo momento para a teoria <strong>da</strong> histeria em<br />

Freud, visto que a teoria <strong>da</strong> complacência somática assentava o <strong>corpo</strong> falante em um <strong>corpo</strong><br />

fisiológico, ao passo que a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil traz consigo a exigência <strong>de</strong> se<br />

consi<strong>de</strong>rar um outro <strong>corpo</strong>. Para Freud ultrapassar o <strong>corpo</strong> representado e constituir o <strong>corpo</strong><br />

37


<strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> faltavam a problemática <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e a teoria pulsional que<br />

ganham espaço então em 1905 com os Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<br />

esteira dos estudos sobre a histeria, como um <strong>de</strong>sdobramento <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> sedução.<br />

No segundo momento teórico <strong>de</strong> Freud acerca <strong>da</strong> histeria, centrado em função <strong>da</strong>s<br />

fantasias inconscientes, Freud não parte mais <strong>da</strong> conversão, mas <strong>da</strong> relação estreita e<br />

específica que a formação do sintoma mantém com a história <strong>da</strong>s zonas erógenas. Segundo<br />

David-Ménard (2000), Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é o primeiro texto on<strong>de</strong><br />

Freud se interroga sobre a pertinência do vocabulário fisiológico para <strong>de</strong>screver a or<strong>de</strong>m do<br />

<strong>corpo</strong> em questão na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Freud enuncia que a sensação <strong>de</strong> prazer não po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> no registro <strong>da</strong> psicofisiologia, pois o lugar <strong>da</strong> realização do prazer está ligado a<br />

<strong>uma</strong> constelação significante e não a sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> fisiológica.<br />

As zonas histerógenas são forma<strong>da</strong>s <strong>pelas</strong> zonas erógenas cujo <strong>de</strong>slocamento rege a<br />

história <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>sejante. É <strong>de</strong>sse princípio que parte David-Ménard (2000) ao dizer<br />

que a noção <strong>de</strong> conversão é imprecisa e contraditória quando adquire sentidos como o <strong>de</strong><br />

transformação, transposição, transcrição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> energia psíquica em <strong>uma</strong> energia cor<strong>por</strong>al.<br />

Para construir <strong>uma</strong> teoria clara sobre a histeria é preciso sair <strong>de</strong>ssas metáforas e partir <strong>da</strong><br />

teoria <strong>da</strong> conversão em direção ao <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong>s zonas erógenas, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro lócus <strong>de</strong><br />

formação do <strong>corpo</strong> histérico, isto é, terreno <strong>de</strong> exercício e elaboração do <strong>de</strong>sejo.<br />

Visualiza-se, então, um campo homogêneo que se afasta <strong>da</strong> relação metafísica <strong>de</strong> duas<br />

or<strong>de</strong>ns diferentes que reunia a primeira <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> conversão associativa, “a duali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do <strong>corpo</strong> e <strong>da</strong> linguagem na<strong>da</strong> tem a ver com aquela do psíquico e do fisiológico... do ato à<br />

linguagem e do sintoma aos seus constituintes, não se sai dos roteiros do prazer” (DAVID-<br />

MENÁRD, 2000, p.58). Nesse sentido, não há mais associação entre <strong>uma</strong> história psíquica e<br />

um sintoma fisiológico, mas a história homogênea <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> <strong>de</strong> dor e <strong>de</strong> prazer. David-<br />

Ménard sublinha que entre o sintoma e a cena narra<strong>da</strong> não há mais diferença <strong>de</strong> natureza, o<br />

sintoma não é mais consi<strong>de</strong>rado um produto <strong>da</strong> conversão, mas <strong>uma</strong> continuação <strong>da</strong> cena,<br />

visto que a homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> é invoca<strong>da</strong> para caracterizar tanto o que acontece nas cenas<br />

eróticas conta<strong>da</strong>s quanto no sintoma, sem pressu<strong>por</strong> nenh<strong>uma</strong> totalização do <strong>corpo</strong> e <strong>da</strong><br />

alma.<br />

A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>sse novo campo exige <strong>uma</strong> teoria do simbolismo que teria ficado <strong>de</strong> lado<br />

nos primeiros escritos <strong>de</strong> Freud, mas que surge com força total caracterizando a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

38


eali<strong>da</strong><strong>de</strong> legítima para conceber a histeria. Os <strong>de</strong>sejos inconscientes, as fantasias, o <strong>corpo</strong><br />

erógeno, mediados pela simbolização, constituem o campo específico do procedimento<br />

psicanalítico. O sintoma cor<strong>por</strong>al <strong>da</strong> histérica é simbólico, sobre<strong>de</strong>terminado, regido <strong>pelas</strong><br />

fantasias que, <strong>por</strong> sua vez, são gera<strong>da</strong>s pelos <strong>de</strong>sejos sexuais infantis inconscientes. O<br />

sintoma se configura, então, assim como os sonhos, como a realização disfarça<strong>da</strong> <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

A histeria vem con<strong>de</strong>nsar <strong>corpo</strong> e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, evi<strong>de</strong>nciando o caráter pulsional,<br />

<strong>de</strong>sejante e sexual do <strong>corpo</strong> histérico, efeito <strong>de</strong> um investimento alteritário, <strong>de</strong> um encontro<br />

<strong>da</strong> matéria viva do <strong>corpo</strong> com o campo <strong>da</strong> linguagem e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo que lhe é, <strong>de</strong> início,<br />

exterior. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> configura-se, então, como fator constituinte do estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong><br />

para a psicanálise; trata-se não mais <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> <strong>de</strong> órgãos, mas <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> erógeno,<br />

investido <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, produzido pela sedução e pela erotização provenientes<br />

do investimento <strong>de</strong> um capital erótico.<br />

O giro que Freud operou na teoria <strong>da</strong> sedução foi o que permitiu chegar a essa<br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>, on<strong>de</strong> a sedução opera<strong>da</strong> através dos cui<strong>da</strong>dos e <strong>da</strong> manipulação do<br />

<strong>corpo</strong> do infante é erotizante e positivamente estruturante do psiquismo. Diante <strong>da</strong> condição<br />

primordial <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo e prematuri<strong>da</strong><strong>de</strong>, o investimento do outro fornece a viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

existência biológica (na medi<strong>da</strong> em que fornece os suprimentos necessários para o<br />

organismo) e psíquica (na medi<strong>da</strong> em que promove a circulação <strong>da</strong> libido e <strong>da</strong> erogenei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

através do olhar, do gesto, do toque, <strong>da</strong> palavra). O <strong>corpo</strong>, assim, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pertencer apenas<br />

ao registro <strong>da</strong> natureza enquanto organismo, adquirindo <strong>uma</strong> dimensão construí<strong>da</strong> <strong>por</strong> esse<br />

investimento.<br />

A relação psíquico-somática: <strong>de</strong> Descartes à Freud<br />

Certamente concor<strong>da</strong>mos com essa análise <strong>de</strong> David-Ménard, é inegável o fato <strong>de</strong> que<br />

Freud está tratando o psíquico e o somático como duas or<strong>de</strong>ns heterogêneas, conforme<br />

constatamos anteriormente, e essa idéia se reflete no conceito <strong>de</strong> conversão. Entretanto, se<br />

levarmos em consi<strong>de</strong>ração a idéia <strong>de</strong> um paralelismo psicofísico que reinava na psicologia<br />

39


clássica, veremos que Freud já está introduzindo, com a noção <strong>de</strong> conversão, ruídos nessa<br />

relação psico-somática.<br />

A psicologia empirista do século XIX sustentava a afirmação <strong>de</strong> que os processos<br />

psíquicos e os processos cor<strong>por</strong>ais transcorriam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong> um modo paralelo,<br />

mas sem recíprocas influências. Essa é a tese do paralelismo psicofísico, doutrina<br />

evi<strong>de</strong>ntemente dualista, cujo objetivo principal é a negação <strong>da</strong> ação recíproca entre <strong>corpo</strong> e<br />

alma (DORSCH, 1976).<br />

Essa oposição foi introduzi<strong>da</strong> na filosofia <strong>por</strong> Descartes, que caracterizava a alma<br />

como <strong>uma</strong> substância, cujo atributo era o pensamento, e o <strong>corpo</strong> como <strong>uma</strong> substância <strong>de</strong><br />

natureza totalmente distinta, cujo atributo seria a extensão que ele ocupa no espaço. As<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> extensão e <strong>de</strong> pensamento são caracteriza<strong>da</strong>s como mutuamente<br />

incompatíveis no pensamento <strong>de</strong> Descartes: <strong>uma</strong> coisa extensa é <strong>uma</strong> coisa não-pensante e<br />

<strong>uma</strong> coisa pensante é <strong>uma</strong> coisa não-extensa. Daí advém o caráter incorpóreo <strong>da</strong> mente na<br />

doutrina cartesiana (COTTINGHAM, 1995). Essa <strong>concepção</strong> marcou to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong><br />

psicologia e tornou particularmente <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> união <strong>da</strong> alma e do <strong>corpo</strong>.<br />

Assim, a hipótese do paralelismo psicofísico se constituiu como um <strong>de</strong>sdobramento<br />

contem<strong>por</strong>âneo ao problema <strong>da</strong> duali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma e do <strong>corpo</strong> instaurado <strong>por</strong> Descartes. A<br />

idéia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> correspondência não recíproca entre fenômeno psíquico e fenômeno<br />

fisiológico levou a <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> restritiva <strong>de</strong> um epifenomenismo, isto é, a consciência<br />

(equivalente nesse mo<strong>de</strong>lo aos processos psíquicos) como um fenômeno acessório, ou<br />

melhor, como um epifenômeno dos processos nervosos, já que apenas esses eram acessíveis<br />

à observação.<br />

Essa <strong>concepção</strong> marcou também o campo <strong>da</strong> neuropatologia do século XIX, o que<br />

po<strong>de</strong>mos observar através dos estudos neurológicos sobre as afasias, centrados n<strong>uma</strong><br />

<strong>concepção</strong> localizacionista <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> psiquismo (FREUD, 1891/1987). No intuito <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s clínicas <strong>de</strong> afasia a neuropatologia, através <strong>de</strong> representantes<br />

como Broca, Wernicke e Meynert, <strong>de</strong>finiu <strong>uma</strong> teoria localizacionista <strong>da</strong>s funções mentais,<br />

on<strong>de</strong> estas eram reduzi<strong>da</strong>s à estrutura anatômica do cérebro. As funções <strong>da</strong> linguagem eram<br />

concebi<strong>da</strong>s como localiza<strong>da</strong>s em centros cerebrais motores e sensoriais. Uma lesão em <strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> parte do cérebro ocasionava um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> afasia, <strong>de</strong> acordo com a<br />

função <strong>da</strong> linguagem comprometi<strong>da</strong>.<br />

40


Em linhas gerais, essa era <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> elementarista <strong>da</strong> linguagem, on<strong>de</strong> esta se<br />

constituiria pela associação <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s elementares (palavras). Estas eram incor<strong>por</strong>a<strong>da</strong>s<br />

pelo pólo sensorial do sistema nervoso (a partir dos órgãos do sentido como audição e<br />

visão) aos centros cerebrais sensorial e motor <strong>da</strong> linguagem, responsáveis, respectivamente,<br />

pela sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras e pela articulação motora <strong>da</strong> linguagem. A dimensão mais<br />

complexa <strong>da</strong> linguagem, como o enunciado <strong>de</strong> conceitos e a associação <strong>de</strong> idéias, era<br />

resultante <strong>da</strong> associação <strong>de</strong> tais uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s elementares. Desse modo, a linguagem se<br />

constituiria como cópia do mundo <strong>da</strong>s coisas a partir do registro <strong>de</strong> suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

elementares nos diferentes centros cerebrais.<br />

A relação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo à luz <strong>de</strong>ssa <strong>concepção</strong> elementarista <strong>da</strong> linguagem<br />

fica clara com a teoria <strong>de</strong> Meynert segundo a qual o <strong>corpo</strong> é projetado no córtex cerebral<br />

através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> projeção ponto a ponto, <strong>de</strong> modo que no cérebro existiria <strong>uma</strong> cópia fiel <strong>da</strong><br />

periferia do <strong>corpo</strong>.<br />

Dentro <strong>de</strong>ssa perspectiva, o processo psicológico <strong>da</strong> constituição <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

representação é conseqüência (epifenômeno) do processo fisiológico <strong>de</strong> percepção,<br />

fun<strong>da</strong>ndo n<strong>uma</strong> relação <strong>de</strong> causali<strong>da</strong><strong>de</strong> – os eventos fisiológicos do sistema nervoso tem<br />

como efeito os eventos mentais.<br />

Diante <strong>de</strong> tal conjuntura, Freud (1891/1987) lança um estudo crítico <strong>da</strong>s concepções<br />

vigentes acerca <strong>da</strong> afasia, questionando seus pressupostos a fim <strong>de</strong> construir <strong>uma</strong> nova<br />

leitura acerca <strong>da</strong> mesma. Para isso propõe como conceito central a noção <strong>de</strong> aparelho <strong>de</strong><br />

linguagem, ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> parte para pensar <strong>uma</strong> nova teoria <strong>da</strong>s afasias, <strong>de</strong>stituindo as<br />

bases teóricas <strong>da</strong> neuropatologia.<br />

A crítica freudiana resi<strong>de</strong> sobre tal <strong>concepção</strong> localizacionista <strong>da</strong>s afasias e <strong>da</strong><br />

linguagem. Freud contrapõe <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> mais funcionalista dos distúrbios afásicos,<br />

conciliando perturbação funcional com lesão localiza<strong>da</strong> e, <strong>de</strong>sse modo, transpondo a<br />

hegemonia anátomo-topográfica <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> neuropatológica. Com isso Freud supõe a<br />

inter<strong>de</strong>pendência dos centros <strong>de</strong> linguagem, on<strong>de</strong> a função <strong>da</strong> linguagem encontra-se<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em complexos processos <strong>de</strong> associação que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m a recíproca articulação dos<br />

diferentes centros <strong>da</strong> linguagem, ou seja, o córtex cerebral seria capaz <strong>de</strong> abrigar processos<br />

funcionais <strong>da</strong> linguagem.<br />

41


Desse modo, Freud recusa a hipótese <strong>de</strong> <strong>uma</strong> projeção topográfica do <strong>corpo</strong> no<br />

cérebro, substituindo-a <strong>por</strong> <strong>uma</strong> hipótese que consi<strong>de</strong>ra a representação funcional. A<br />

representação não seria <strong>uma</strong> cópia idêntica <strong>da</strong> sensação, mas sim o produto <strong>de</strong> um processo<br />

dinâmico, “na medi<strong>da</strong> que existiriam <strong>de</strong>legados intermediários neuro-funcionais entre a<br />

periferia e o centro nervoso” (FREUD apud BIRMAN, 1991, p.103).<br />

Para repensar a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> linguagem Freud propõe a idéia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> área <strong>de</strong><br />

linguagem que só po<strong>de</strong>ria ser pensa<strong>da</strong> em sua indivisibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>por</strong><br />

centros corticais – sensório-auditivo, visual e motor – a função <strong>da</strong> linguagem exige a<br />

<strong>concepção</strong> do território em sua integrali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, o aparelho <strong>de</strong> linguagem ganha o<br />

estatuto <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> trama <strong>de</strong> representações em associações, ao contrário <strong>da</strong> tese<br />

elementarista que diferenciava representação e associação fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na pretensa distinção<br />

dos lugares nos quais elas se processariam.<br />

De acordo com Birman (1991b):<br />

“A <strong>concepção</strong> freudiana aponta para <strong>uma</strong> leitura combinatória <strong>da</strong> linguagem,<br />

superando pois a <strong>concepção</strong> elementarista e criticando qualquer realismo no<br />

campo <strong>da</strong> significação. Desta maneira, se formula também no discurso freudiano<br />

<strong>uma</strong> nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> relação entre os registros do <strong>corpo</strong> e o do psiquismo,<br />

que se realizaria sob a forma <strong>da</strong> representação. Vale dizer, o psiquismo não é um<br />

simples epifenômeno mecânico do <strong>corpo</strong>, como era concebido no mo<strong>de</strong>lo<br />

localizacionista <strong>da</strong> linguagem, nem é constituído pela reunião dispersa <strong>de</strong><br />

imagens <strong>da</strong>s coisas, mas representa o <strong>corpo</strong> e o universo <strong>da</strong>s coisas segundo <strong>uma</strong><br />

lógica específica” (p.105).<br />

Nesse ensaio sobre as afasias Freud construiu <strong>uma</strong> teoria <strong>da</strong> linguagem atribuindo-lhe<br />

<strong>uma</strong> relevância que trouxe implicações para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> psiquismo, tanto que<br />

posteriormente, com a constituição do saber psicanalítico, o aparelho <strong>de</strong> linguagem se<br />

reconfigura como aparelho psíquico.<br />

O que queremos discutir com essa breve apresentação do ensaio crítico sobre a afasia<br />

é que, pelo viés <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> linguagem, já nos primórdios <strong>de</strong> seu discurso, Freud concebe<br />

<strong>uma</strong> forma própria e diferencia<strong>da</strong> <strong>de</strong> articulação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo, subvertendo,<br />

<strong>de</strong>ssa forma, o dualismo cartesiano e seus <strong>de</strong>rivados contem<strong>por</strong>âneos. Psiquismo não é um<br />

epifenômeno do <strong>corpo</strong>, não se reduz ao somático, já que fun<strong>da</strong>do é pela linguagem como o<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> representação <strong>por</strong> excelência (BIRMAN, 1991b).<br />

42


Essas novas concepções que Freud <strong>de</strong>senvolve sobre as afasias exerceram gran<strong>de</strong><br />

influência na sua compreensão sobre os fenômenos histéricos (GABBI Jr, 1991) e,<br />

principalmente, sobre a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> aí envolvi<strong>da</strong>. No texto que comentamos sobre<br />

o estudo comparativo entre paralisias motoras orgânicas e paralisias histéricas (FREUD,<br />

1893a/1996) é pelo mo<strong>de</strong>lo pensado <strong>por</strong> Freud no texto sobre as afasias, caracterizado pela<br />

representação mais do que pela projeção, que Freud vai enten<strong>de</strong>r as paralisias histéricas. A<br />

natureza <strong>da</strong> “lesão” na paralisia histérica resi<strong>de</strong> em <strong>uma</strong> alteração <strong>de</strong> tipo funcional entre as<br />

representações e não em <strong>uma</strong> alteração anatômica. Assim, a compreensão do fenômeno<br />

histérico se dá <strong>pelas</strong> lesões dinâmicas, cujas perturbações são fixa<strong>da</strong>s pela linguagem.<br />

Nesse sentido Freud “troca a anatomia pela linguagem enquanto universal para a sua teoria<br />

sobre a histeria” (GABBI Jr, 1991, p.197). Desse modo, para enten<strong>de</strong>r afasia e histeria é<br />

preciso passar para o terreno dos processos psíquicos – campo <strong>da</strong>s representações e <strong>da</strong><br />

linguagem. Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que nessa perspectiva o <strong>corpo</strong> não é mais um <strong>da</strong>do natural,<br />

um amontoado anatômico e fisiológico que é projetado no córtex cerebral. Corpo e<br />

psiquismo são constituídos pelo atravessamento <strong>da</strong> linguagem.<br />

Portanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os estudos neurológicos a problemática <strong>da</strong> articulação <strong>corpo</strong>-alma já<br />

estava presente em Freud e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então ele confere encaminhamentos inovadores para essa<br />

questão, o que se tornou fun<strong>da</strong>mental para a constituição <strong>da</strong> psicanálise. Para Birman<br />

(1991a, p.115), a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa vira<strong>da</strong> teórica que Freud esboçou no ensaio sobre as<br />

afasias só se alcançou quando a <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> se <strong>de</strong>fine como <strong>corpo</strong><br />

pulsional – o outro pólo constituinte do psíquico ao lado <strong>da</strong> linguagem. No capítulo II<br />

veremos como o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> circunscreve em sua <strong>de</strong>finição as relações até então<br />

biunívocas entre <strong>corpo</strong> e psiquismo. Digamos que a “semente” <strong>de</strong> todo esse <strong>de</strong>sdobramento<br />

posterior <strong>de</strong> Freud já estava presente nos seus estudos sobre as afasias.<br />

Em Tratamento psíquico Freud (1905[1890]/1996) igualmente trata <strong>da</strong> im<strong>por</strong>tância <strong>da</strong><br />

linguagem e <strong>da</strong> relação recíproca entre <strong>corpo</strong> e alma. Freud propõe que “as palavras são<br />

também a ferramenta essencial do tratamento anímico” (FREUD, 1905[1890]/1996, p.271),<br />

inscrevendo-o então no plano <strong>da</strong> linguagem. Sobre a reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong> comenta a influência <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> psíquica, ou seja, <strong>da</strong> linguagem sobre o <strong>corpo</strong>, apontando que nenhum estado psíquico<br />

“carece <strong>de</strong> manifestações físicas e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> modificar os processos cor<strong>por</strong>ais”<br />

43


(FREUD, op.cit, p.275). Nesse sentido, ao contrário <strong>da</strong> tradição cartesiana, Freud nos diz que<br />

o psíquico tem efeitos sobre o <strong>corpo</strong> e vice-versa.<br />

Quando Freud se <strong>de</strong>para com a questão histérica e propõe o termo conversão ele<br />

também está absolutamente imerso na problemática <strong>da</strong> relação <strong>corpo</strong>-mente, psíquicosomático,<br />

<strong>corpo</strong> e espírito, como quer que queiramos <strong>de</strong>nominar esse dualismo. Freud<br />

mantém a pressuposição <strong>de</strong> duas or<strong>de</strong>ns diferentes, mas o mais im<strong>por</strong>tante – e é isso que<br />

queremos enfatizar – é que ele começa a embaralhar essas relações, mostrando que são<br />

duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> autonomia relativa, já que passíveis <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa comunicação entre si,<br />

passíveis <strong>de</strong> <strong>uma</strong> inter-relação.<br />

O conceito <strong>de</strong> conversão vem nos falar disso, mesmo que marcado pela idéia <strong>de</strong><br />

transposição. A passagem <strong>de</strong> um plano psíquico para um plano cor<strong>por</strong>al <strong>de</strong>marca em Freud<br />

<strong>uma</strong> interação entre esses registros. O <strong>corpo</strong> passa a expressar, <strong>por</strong> transposição, aquilo que<br />

estava no domínio psíquico do pensamento. Enfim, o <strong>corpo</strong> fala o tempo inteiro na<br />

sintomatologia conversiva histérica. É possível pensar através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> dor, <strong>por</strong> exemplo,<br />

como observamos no caso Caecilie.<br />

A idéia <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong>marca duas esferas heterogêneas, mas ao mesmo tempo<br />

remete a um registro que passa a falar sobre o outro. Ao contrário do paralelismo<br />

psicofísico, encontramos em Freud a idéia do psiquismo incidindo sobre o <strong>corpo</strong> e vice-<br />

versa, havendo já aí <strong>uma</strong> linguagem envolvi<strong>da</strong>. São esses “ruídos” que Freud introduz na<br />

relação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo que o permitirão chegar ao campo <strong>da</strong> fantasia, do<br />

inconsciente e <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>mos notar, assim, que o <strong>corpo</strong> vai adquirindo <strong>uma</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> própria na<br />

perspectiva freudiana. Ele não é apenas o organismo ou o somático. Ele vai adquirindo um<br />

recobrimento simbólico no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> história do sujeito e <strong>de</strong> suas conformações<br />

subjetivas. Encontramos em Birman <strong>uma</strong> interpretação no sentido <strong>da</strong> que estamos trilhando.<br />

Ele nos diz:<br />

“Freud transforma a histeria no paradigma para <strong>de</strong>linear <strong>uma</strong> nova leitura sobre a<br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso <strong>por</strong>que existiria <strong>uma</strong> certa <strong>por</strong>osi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os registros do<br />

psiquismo e do <strong>corpo</strong> na histeria, revelado pelo conceito <strong>de</strong> conversão, o que<br />

melhor permitia circunscrever os processos <strong>de</strong> encorpação e incorpação <strong>de</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>” (BIRMAN, 1998, p.17).<br />

44


Ressaltamos a palavra <strong>por</strong>osi<strong>da</strong><strong>de</strong> que Birman traz para <strong>de</strong>screver a subversão que<br />

Freud está realizando na <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> relação psíquico-somática até então estabeleci<strong>da</strong><br />

pela tradição cartesiana e her<strong>da</strong><strong>da</strong> pela psicologia clássica. A idéia <strong>de</strong> <strong>por</strong>osi<strong>da</strong><strong>de</strong> vem ao<br />

encontro <strong>da</strong> dimensão <strong>de</strong> inter-relação que conferíamos acima ao conceito freudiano <strong>de</strong><br />

conversão. Os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong>ssa questão apontam certamente para <strong>uma</strong> postura anticartesiana<br />

<strong>da</strong> psicanálise, já que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, mesmo ain<strong>da</strong> sob um véu dualista, Freud se<br />

<strong>de</strong>dica a <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sconstrução <strong>da</strong> oposição entre os registros do <strong>corpo</strong> e do espírito. Mais do<br />

que um dualismo Freud concebe <strong>uma</strong> relação entre ambos. Desse modo, essa leitura nos<br />

oferece os primeiros indicadores <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Desfechos<br />

Depois <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sdobramentos retornamos a nossa afirmativa inicial – com a qual<br />

iniciamos esse capítulo – <strong>de</strong> que foi no período <strong>de</strong> constituição <strong>da</strong> psicanálise que a relação<br />

entre o psíquico e o somático se colocava para Freud, <strong>de</strong> modo que agora já temos os<br />

subsídios necessários para sustentar tal posicionamento.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> prática teórica e clínica para a psicanálise implicou <strong>uma</strong><br />

distinção entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fisiológica e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psicológica e no conseqüente<br />

ultrapassamento <strong>da</strong> linguagem fisiológica para abor<strong>da</strong>r os fenômenos psíquicos. Desse<br />

modo, a relação entre o psíquico e o somático se fez muito presente exatamente <strong>por</strong>que<br />

Freud precisava <strong>de</strong>limitar seu campo <strong>de</strong> investigação e diferenciá-lo do objeto <strong>de</strong> estudo<br />

<strong>da</strong>s ciências médicas e naturais.<br />

Como já vimos, a visão freudiana <strong>da</strong> relação psico-somática foi inovadora. A idéia <strong>de</strong><br />

que haveria <strong>uma</strong> <strong>por</strong>osi<strong>da</strong><strong>de</strong> implica<strong>da</strong> nessa relação foi o que permitiu com que conceitos<br />

como fantasia inconsciente e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil surgissem. Mesmo pressupondo dois tipos<br />

<strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> diferentes o modo <strong>de</strong> articulação que Freud propunha entre elas já<br />

<strong>de</strong>monstrava sua não-filiação aos pressupostos do paralelismo psicofísico.<br />

No entanto, <strong>por</strong> ser formado pela tradição médica clássica Freud guardou muitos <strong>de</strong><br />

seus mo<strong>de</strong>los como fun<strong>da</strong>mento e não abandona tão facilmente sua relação com a anatomia<br />

e a fisiologia. Freud <strong>de</strong>sloca o estudo dos processos psicológicos do domínio <strong>da</strong><br />

45


neuropatologia, mas ain<strong>da</strong> em muitos momentos se refere a este mo<strong>de</strong>lo para explicá-los,<br />

ain<strong>da</strong> que ao mesmo tempo opere rupturas im<strong>por</strong>tantes. Sem dúvi<strong>da</strong>s os mo<strong>de</strong>los médicos<br />

estão presentes em Freud, não para endossá-los, mas para a partir <strong>de</strong>les promover<br />

subversões. Segundo Bastos (1998), não há em Freud abandono repentino dos mo<strong>de</strong>los<br />

epistemológicos, <strong>por</strong>ém rupturas gra<strong>da</strong>tivas advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> insuficiência dos mesmos.<br />

Apontamos então, mais <strong>uma</strong> vez, para o paradoxo presente no pensamento freudiano,<br />

característica que optamos <strong>por</strong> positivar, na medi<strong>da</strong> em que acreditamos que é no embate <strong>de</strong><br />

Freud entre a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> e a <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação ao saber científico <strong>de</strong> sua época<br />

que se consoli<strong>da</strong>ram os conceitos fun<strong>da</strong>mentais do saber psicanalítico. No contexto que<br />

escolhemos nos <strong>de</strong>bruçar aqui não fica difícil visualizar um Freud que ora subverte o<br />

campo científico, ora se atrela a ele, instaurando um jogo <strong>de</strong> forças cuja tensão o levou à<br />

constituição <strong>de</strong> um novo saber.<br />

Todo esse remanejamento <strong>de</strong> paradigmas e conceitos que o discurso psicanalítico<br />

opera se dá inicialmente no campo <strong>da</strong> histeria. Foi ao suspen<strong>de</strong>r o olhar sobre o <strong>corpo</strong><br />

histérico, passando a escutá-lo através do discurso <strong>da</strong> histérica que Freud chegou ao<br />

conflito sexual, aos impasses do prazer e às fantasias inconscientes implica<strong>da</strong>s na dinâmica<br />

psíquica <strong>da</strong> histeria. É pelo viés <strong>da</strong> histeria que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> alcança um estatuto<br />

primordial para a psicanálise e que a cena do inconsciente se <strong>de</strong>svela, fazendo nascer um<br />

lugar inaugural no campo do saber.<br />

Nessa articulação entre histeria e nascimento <strong>da</strong> psicanálise, o <strong>corpo</strong> se faz presente<br />

mais do que nunca na obra freudiana. O <strong>corpo</strong> histérico <strong>de</strong>spertou em Freud a aventura<br />

<strong>psicanalítica</strong> exatamente <strong>por</strong> ele ter sido o único a escutá-lo, mais do que olhá-lo e apalpá-<br />

lo. Freud pô<strong>de</strong> então visualizar o quanto esse <strong>corpo</strong> é tecido, tramado, construído pela<br />

linguagem, pelo <strong>de</strong>sejo, pela sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, arrancado-o <strong>da</strong>s amarras biológicas que<br />

encerravam a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nos confins <strong>da</strong> anatomia e <strong>da</strong> fisiologia.<br />

Nossa incursão sobre a histeria em Freud nos permite, então, visualizar que o <strong>corpo</strong><br />

para a medicina e o <strong>corpo</strong> para a psicanálise começam a ganhar configurações distintas. As<br />

inovações freudianas acerca <strong>da</strong>s fantasias inconscientes e <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>limitam as origens <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> propriamente <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

O registro do somático e do orgânico permanece presente no horizonte freudiano, mas<br />

passa a figurar em segundo plano com a emergência do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, nosso próximo<br />

46


objeto <strong>de</strong> estudo. Veremos nesse nosso percurso que o biológico vai ce<strong>de</strong>ndo espaço para<br />

<strong>uma</strong> constituição pulsional do <strong>corpo</strong>, on<strong>de</strong> o somático opera como fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>. A<br />

duali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre esses registros vai permanecer <strong>por</strong> mais um tempo até que a introdução do<br />

narcisismo provoque <strong>uma</strong> vira<strong>da</strong> radical ao colocar a esfera <strong>da</strong> auto-conservação do<br />

organismo sob a égi<strong>de</strong> do investimento libidinal. Assistiremos, então, no próximo capítulo<br />

a <strong>uma</strong> mu<strong>da</strong>nça essencial no que diz respeito ao estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise.<br />

47


Concepção <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

CAPÍTULO II<br />

O CORPO SEXUAL<br />

Esses novos contornos que a histeria adquire na <strong>concepção</strong> freudiana são resultantes<br />

<strong>da</strong> emergência do conceito <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, conquista crucial para a afirmação do<br />

referencial psicanalítico no cenário <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A originali<strong>da</strong><strong>de</strong> do pensamento <strong>de</strong> Freud só se consoli<strong>da</strong> quando ele passa a visualizar<br />

o campo do inconsciente, <strong>da</strong> fantasia, do prazer e do <strong>de</strong>sejo para os quais apontavam as<br />

manifestações histéricas. Juntamente com isso a conceituação <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil<br />

circunscreveu a invenção freudiana num campo do sexual absolutamente inovador.<br />

Esses <strong>de</strong>sdobramentos freudianos acerca <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> são exaustivamente<br />

apresentados e trabalhados em Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (FREUD,<br />

1905/1996), texto im<strong>por</strong>tante que enuncia os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> psicanálise. Ao longo <strong>da</strong><br />

construção do saber psicanalítico muitas reformulações ocorreram e este texto sofreu<br />

transformações para acompanhar as mu<strong>da</strong>nças do pensamento freudiano, elabora<strong>da</strong>s em<br />

longas e diversas notas <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página. Freud publicou várias edições <strong>de</strong>sse ensaio, a<br />

versão original em 1905 e quatro posteriores edições: 1910, 1915, 1920 e 1924.<br />

Não nos cabe aqui analisar <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente essas diferentes inserções no texto dos<br />

Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas é im<strong>por</strong>tante ressaltar que essas<br />

modificações são <strong>de</strong>correntes <strong>da</strong>s concepções posteriormente elabora<strong>da</strong>s <strong>por</strong> Freud como<br />

narcisismo, dualismo pulsional, complexo <strong>de</strong> Édipo, <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte e masoquismo.<br />

A construção freudiana <strong>da</strong> teoria pulsional, principal responsável pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

a<strong>de</strong>ndos aos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, será um <strong>de</strong> nossos principais focos<br />

<strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>sse capítulo, mas antes precisamos nos <strong>de</strong>ter sobre a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que Freud vem introduzir no início do século XX.<br />

48


O discurso sexológico vigente na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX consi<strong>de</strong>rava o<br />

sexual como um atributo biológico, regulado pelo instinto e cuja finali<strong>da</strong><strong>de</strong> se restringia à<br />

reprodução <strong>da</strong> espécie. A <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> para a sexologia se <strong>de</strong>finia pelos<br />

parâmetros do instinto sexual, ou seja, baseava-se em um com<strong>por</strong>tamento biologicamente<br />

<strong>de</strong>terminado. Qualquer mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que não se i<strong>de</strong>ntificasse com a<br />

genitali<strong>da</strong><strong>de</strong> e não visasse a reprodução seria, <strong>por</strong> <strong>de</strong>finição, anti-natural e consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />

como anomalia sexual, enquadra<strong>da</strong> no gênero <strong>da</strong>s perversões e <strong>de</strong>generações <strong>da</strong> espécie, em<br />

função do <strong>de</strong>svio operado em relação à norma. A homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> nesse mo<strong>de</strong>lo era vista<br />

como o paradigma <strong>da</strong> perversão <strong>por</strong> ferir o estatuto reprodutivo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Esse mo<strong>de</strong>lo pautado <strong>por</strong> <strong>uma</strong> normativização científica do sexual foi introduzido <strong>por</strong><br />

Kraft-Ebing na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX. Partindo do ramo <strong>da</strong> psicopatologia esse<br />

autor publica Psychopathia sexualis (1887/1958) <strong>de</strong>flagrando <strong>uma</strong> on<strong>da</strong> <strong>de</strong> criminalização<br />

<strong>de</strong> certas práticas sexuais que fugiam à norma <strong>da</strong> reprodução <strong>da</strong> espécie.<br />

No primeiro <strong>de</strong> seus três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> Freud amplia o<br />

conceito <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, repensando os conceitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio e perversão. De sua observação<br />

clínica Freud parte do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que a disposição para as perversões é <strong>uma</strong><br />

característica originária e universal <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual h<strong>uma</strong>na e que somente a partir <strong>de</strong><br />

modificações orgânicas e inibições psíquicas advin<strong>da</strong>s com a maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolve o<br />

com<strong>por</strong>tamento sexual normal. Freud aponta então na infância essa disposição originária,<br />

encaminhando a discussão para o segundo ensaio, on<strong>de</strong> a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil ganha então o<br />

caráter <strong>de</strong> perversão-polimorfa.<br />

A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> para Freud visa primordialmente o prazer e não a reprodução <strong>da</strong><br />

espécie. Essa é a gran<strong>de</strong> inversão opera<strong>da</strong> <strong>por</strong> Freud em relação à sexologia. A condição<br />

fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> freudiana <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> baseia-se na característica perversopolimorfa,<br />

o que quer dizer <strong>de</strong> imediato duas coisas: que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se afirma<br />

originalmente como perversa e que admite <strong>uma</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> formas sexuais. Desse<br />

modo, a genitali<strong>da</strong><strong>de</strong> é apenas <strong>uma</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sendo que esta po<strong>de</strong> se<br />

realizar em qualquer outra região do <strong>corpo</strong>. Ca<strong>da</strong> região do <strong>corpo</strong> po<strong>de</strong> tornar-se um órgão<br />

sexual, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que seja capaz <strong>de</strong> promover gozo ou prazer. A genitali<strong>da</strong><strong>de</strong> apenas<br />

possibilitaria maior <strong>de</strong>scarga do que outros órgãos do <strong>corpo</strong>. Desse modo, Freud nos aponta<br />

49


que a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> seria <strong>uma</strong> forma tão legítima <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto a<br />

heterossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O que era consi<strong>de</strong>rado um <strong>de</strong>svio no mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> sexologia Freud localiza na matriz <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a saber: seu caráter perverso-polimorfo, conferindo <strong>uma</strong> positivi<strong>da</strong><strong>de</strong> à<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a sua dimensão erógena enquanto constitutivas do sujeito. Ao introduzir que<br />

to<strong>da</strong> a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é perversa e que nos constituímos <strong>de</strong>ssa condição, Freud vai na<br />

contramão <strong>da</strong> sexologia normativa <strong>da</strong> época que classificava diversas patologias sexuais e<br />

perversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, transformando assim os valores que sustentam a relação do indivíduo com<br />

seu <strong>corpo</strong>.<br />

Com essa perspectiva, Freud rompe com <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> cientificista que i<strong>de</strong>ntificava<br />

sexo exclusivamente com genitali<strong>da</strong><strong>de</strong> e reprodução <strong>da</strong> espécie e insere a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

registro <strong>da</strong> fantasia e do erotismo 7 (BIRMAN, 1999a). Visualizaremos melhor essa nova<br />

conjuntura a seguir, com a <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil. 8<br />

7 Quinze anos <strong>de</strong>pois, em Além do princípio do prazer, encontramos um comentário <strong>de</strong> Freud (1920/1996)<br />

acerca <strong>de</strong>ssa <strong>concepção</strong> inovadora que assumiu em relação à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “O conceito <strong>de</strong> ‘sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>’ e, ao<br />

mesmo tempo, <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> sexual, teve, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> ser ampliado <strong>de</strong> modo a abranger muitas coisas que não<br />

podiam ser classifica<strong>da</strong>s sob a função reprodutora, e isso provocou não pouco alarido num mundo austero,<br />

respeitável, ou simplesmente hipócrita” (p.62).<br />

8 Foucault (1976/1988) traz <strong>uma</strong> crítica muito interessante sobre essa tradição oci<strong>de</strong>ntal que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XIX construiu sobre a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>uma</strong> scientia sexualis em oposição a <strong>uma</strong> ars erótica presente em outras<br />

tradições. Segundo ele, um projeto político e científico construiu em torno do sexo um imenso aparelho para<br />

produzir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. O século XIX marcou o Oci<strong>de</strong>nte mo<strong>de</strong>rno <strong>por</strong> <strong>uma</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber relativa ao sexo que<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou um projeto <strong>de</strong> discurso científico acerca <strong>de</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nesse ínterim, Foucault aponta que<br />

nossa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> constituiu assim <strong>uma</strong> scientia sexualis, tentando ajustar o antigo procedimento <strong>da</strong> confissão<br />

(Oci<strong>de</strong>nte cristão) às regras do discurso científico. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se constituiu como um campo a ser<br />

explorado <strong>por</strong> tal projeto científico, visto que foi consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um domínio penetrável <strong>por</strong> processos<br />

patológicos, solicitando intervenções terapêuticas ou <strong>de</strong> normalização. Assistiu-se, então, a <strong>uma</strong> multiplicação<br />

<strong>de</strong> discursos referindo-se às condutas, às normas, às doenças, às perversões, o que levou Foucault à hipótese<br />

<strong>de</strong> que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> era objeto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> scientia sexualis, produzi<strong>da</strong>, incita<strong>da</strong> e implanta<strong>da</strong> nos <strong>corpo</strong>s dos<br />

indivíduos. Na opinião <strong>de</strong> Foucault, a psicanálise vem alojar-se nesse contexto. Primeiramente ela assume<br />

<strong>uma</strong> posição singular no final do século XIX, operando <strong>uma</strong> ruptura em relação ao sistema perversãohereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong>-<strong>de</strong>generescência<br />

em pleno vigor, libertando o sexo <strong>de</strong> suas correlações com a hereditarie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Assim, a psicanálise provocou <strong>uma</strong> revolução do sexo, <strong>uma</strong> luta anti-repressiva; <strong>por</strong>ém, e aí inci<strong>de</strong> a crítica <strong>de</strong><br />

Foucault, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu sucesso se <strong>da</strong>va no próprio dispositivo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e não fora ou contra<br />

ele. Por dois motivos: a psicanálise se inscreve no dispositivo <strong>da</strong> confissão (colocação do sexo em discurso),<br />

assim como reinscreve a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> no sistema <strong>da</strong> lei, pois Freud confere à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e ao <strong>de</strong>sejo a lei<br />

como princípio (lei <strong>da</strong> aliança, <strong>da</strong> consangüini<strong>da</strong><strong>de</strong> interdita, do Pai-Soberano).<br />

A critica foucaultiana paira principalmente sobre essa categoria <strong>de</strong> lei, questionando o<br />

mo<strong>de</strong>lo psicanalítico <strong>de</strong> constituição psíquica centra<strong>da</strong> na lei <strong>da</strong> interdição (Complexo <strong>de</strong> Édipo e<br />

castração) e na renúncia, fun<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> hipótese repressiva. Nesse sentido, o mo<strong>de</strong>lo psicanalítico<br />

é consi<strong>de</strong>rado <strong>por</strong> Foucault como disciplinar, estando a serviço do dispositivo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e do<br />

po<strong>de</strong>r característicos <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> do século XX.<br />

50


To<strong>da</strong> essa vira<strong>da</strong> freudiana só é possível com a emergência do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Esse novo estatuto <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> só se sustenta <strong>por</strong>que Freud pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>slocá-la do domínio<br />

biológico-naturalista do instinto para os domínios <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual.<br />

Vale ressaltar que Freud escolhe a palavra em alemão Trieb e não Instinkt para se<br />

referir à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que é suficiente para notarmos que ele faz <strong>uma</strong> distinção entre esses<br />

dois conceitos. Sabemos que o conceito <strong>de</strong> instinto refere-se a um impulso <strong>de</strong> reação a <strong>uma</strong><br />

situação <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>, com <strong>uma</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong> já <strong>da</strong><strong>da</strong> e um objeto pré-<strong>de</strong>terminado para sua<br />

total satisfação. Ele é concebido como <strong>uma</strong> característica inata, <strong>de</strong> caráter hereditário,<br />

biológico, que não varia e é inerente a todos os animais. Por exemplo, o instinto <strong>de</strong> se<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> fome que se satisfaz <strong>por</strong> completo, mesmo que tem<strong>por</strong>ariamente. O instinto relaciona-se,<br />

então, com as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s orgânicas dos indivíduos. Como vimos, ele é o conceito<br />

<strong>de</strong>finidor do sexo para a sexologia.<br />

Contudo, para Freud, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não é só a satisfação <strong>de</strong> impulsos fisiológicos, não<br />

é meramente <strong>uma</strong> questão orgânica e biológica. A <strong>pulsão</strong> surge, assim, como a<br />

característica marcante <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> para Freud. Ela tem o estatuto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> força<br />

constante, que não se acaba, se satisfaz apenas parcialmente e busca sempre <strong>uma</strong> nova<br />

experiência <strong>de</strong> satisfação, num movimento contínuo. Ela não possui um objeto<br />

<strong>de</strong>terminado, sendo este variado e também não alcança <strong>uma</strong> satisfação total e única.<br />

É, então, nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, para caracterizar a<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e romper com o discurso <strong>da</strong> ciência sexual normativa <strong>da</strong> época, que<br />

Freud cunha o termo <strong>pulsão</strong> sexual. O substrato <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> não é novo no<br />

pensamento freudiano, aparecendo até então sob outros nomes, tais como excitações, idéias<br />

afetivas, estímulos endógenos, etc.<br />

Freud envolve a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na em <strong>de</strong>sejos, excitações e energia que<br />

ultrapassam a satisfação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> fisiológica, o que difere <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

instintiva dos animais. Ela é ampla e varia<strong>da</strong>, po<strong>de</strong>ndo adquirir muitas formas <strong>de</strong>vido ao<br />

seu caráter pulsional.<br />

Birman (1999a), entretanto, faz um contraponto, conferindo à psicanálise um estatuto<br />

singular <strong>por</strong> ela não ser, na sua opinião, nem <strong>uma</strong> representante <strong>da</strong> arte erótica, nem <strong>uma</strong><br />

representante <strong>da</strong> ciência do sexual. Para esse autor, o discurso freudiano estaria entre os dois<br />

pólos <strong>de</strong>stacados <strong>por</strong> Foucault.<br />

51


Sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> Infantil<br />

De encontro a <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> popular <strong>de</strong> que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se manifestava na<br />

puber<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a conseqüente maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> do aparelho reprodutor, Freud revela os traços<br />

essenciais <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual na infância. Para ele a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> sexual se realiza já na criança,<br />

através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> satisfação sexual atrela<strong>da</strong> a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s básicas como a alimentação. Na<br />

sua <strong>concepção</strong> a produção <strong>de</strong> excitação sexual é intensa na criança e seus <strong>de</strong>sdobramentos<br />

marcam o que ele <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil.<br />

Para postular essa nova conceituação no terreno do sexual Freud precisou <strong>de</strong>scartar<br />

sua primeira teorização acerca <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> sedução e é no contexto dos Três ensaios sobre<br />

a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele admite textualmente ter superestimado a im<strong>por</strong>tância dos<br />

atos <strong>de</strong> sedução relatados <strong>por</strong> seus pacientes neuróticos. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> essa <strong>concepção</strong> não foi<br />

completamente abandona<strong>da</strong>, mas ganhou <strong>uma</strong> nova roupagem nesse novo momento do<br />

pensamento freudiano.<br />

A criança nasce absolutamente <strong>de</strong>sprepara<strong>da</strong> para se sustentar no mundo. Por seu<br />

estado <strong>de</strong> prematuri<strong>da</strong><strong>de</strong> não conta com condições próprias para manter sua existência. Os<br />

cui<strong>da</strong>dos maternos – ou <strong>da</strong> pessoa que exerça essa função – é que vão propiciar a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência até que o organismo h<strong>uma</strong>no adquira o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

necessário <strong>de</strong> suas condições biológicas para se auto-gerir na vi<strong>da</strong>.<br />

Os cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong>dicados ao <strong>corpo</strong> do bebê – o toque, o olhar, as carícias, a<br />

amamentação -, vão produzir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> excitação no infante, a<br />

partir <strong>da</strong> qual este encontra vias <strong>de</strong> satisfação sexual. Diz-nos Freud (1905/1996):<br />

“O trato <strong>da</strong> criança com a pessoa que a assiste é, para ela, <strong>uma</strong> fonte incessante<br />

<strong>de</strong> excitação e satisfação sexuais vin<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s zonas erógenas, ain<strong>da</strong> mais que essa<br />

pessoa – usualmente, a mãe – contempla a criança com os sentimentos <strong>de</strong>rivados<br />

<strong>de</strong> sua própria vi<strong>da</strong> sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro<br />

que a trata como o substituto <strong>de</strong> um objeto sexual plenamente legítimo” (pp.210-<br />

211).<br />

Inaugura-se, assim, a manifestação <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> nesse <strong>corpo</strong> infantil. Fato exemplar<br />

disso é o processo que a criança realiza <strong>de</strong> eleger um órgão <strong>de</strong>stinado a suprir <strong>uma</strong> função<br />

vital à categoria <strong>de</strong> zona erógena, como a boca. Esta não lhe serve somente para se<br />

52


alimentar, mas a criança <strong>de</strong>scobre através <strong>de</strong>la o prazer <strong>de</strong> sugar, mor<strong>de</strong>r e mais tar<strong>de</strong> o <strong>de</strong><br />

realizar os pequenos jogos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sexual. O prazer <strong>de</strong> sugar adquire in<strong>de</strong>pendência <strong>da</strong><br />

função <strong>de</strong> nutrição; não há satisfação <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas a repetição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> experiência<br />

<strong>de</strong> satisfação. Configura-se aí o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, que implica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já em<br />

sentimentos como prazer e afeto.<br />

Freud localiza nessa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> chupar o paradigma <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong> suas três características fun<strong>da</strong>mentais, quais sejam: nasce apoiando-se nas<br />

funções somáticas vitais (apoio), seu objeto encontra-se no próprio <strong>corpo</strong> (auto-erotismo), a<br />

satisfação se dá sob o domínio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> zona erógena.<br />

Inicialmente, a satisfação <strong>da</strong> zona erógena associa-se a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alimento. A<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> sexual apóia-se primeiramente n<strong>uma</strong> <strong>da</strong>s funções que servem à conservação <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, e só <strong>de</strong>pois se torna in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>las. A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> repetir a satisfação sexual<br />

dissocia-se então <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> absorção <strong>de</strong> alimento. A criança, <strong>por</strong> ain<strong>da</strong> não<br />

dominar o mundo externo, serve-se <strong>de</strong> seu próprio <strong>corpo</strong> como objeto para sua satisfação,<br />

inscrevendo a prática sexual infantil no registro do auto-erotismo.<br />

A partir <strong>de</strong>sse com<strong>por</strong>tamento auto-erótico é que se po<strong>de</strong> falar propriamente em<br />

<strong>pulsão</strong> sexual, inaugurando a oposição entre pulsões sexuais e pulsões <strong>de</strong> autoconservação.<br />

Nessa primeira formulação <strong>da</strong> teoria pulsional vemos Freud (1905/1996) estabelecendo aí<br />

um dualismo no qual, <strong>de</strong> um lado, coloca a <strong>pulsão</strong> sexual cuja energia é a libido e cuja<br />

economia é regi<strong>da</strong> pelo princípio do prazer e, <strong>de</strong> outro, as pulsões <strong>de</strong> autoconservação cuja<br />

energia (Freud usa a palavra “interesse”) visa a autoconservação do indivíduo. Vale dizer<br />

que <strong>por</strong> libido Freud enten<strong>de</strong> a energia psíquica, a expressão anímica <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual e que<br />

a energia a serviço do eu se trataria <strong>de</strong> <strong>uma</strong> energia diferente <strong>da</strong> libido, não <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

pulsões sexuais.<br />

A noção <strong>de</strong> apoio está centra<strong>da</strong> nessa polari<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional. As pulsões sexuais se<br />

apóiam nas pulsões <strong>de</strong> autoconservação, mas ao mesmo tempo se <strong>de</strong>sviam e se<br />

autonomizam. As zonas erógenas se constituem a partir do substrato orgânico, mas vão<br />

progressivamente se afastando e se tornando in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, levando a <strong>uma</strong> edificação <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica e do <strong>corpo</strong> erógeno. Assim, o registro do <strong>de</strong>sejo é instaurado e adquire<br />

primazia sobre o registro <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O <strong>corpo</strong> anatômico e fisiológico subvertido<br />

equivale ao <strong>corpo</strong> pulsional.<br />

53


No contexto do auto-erotismo, as pulsões sexuais auto-eróticas já estão presentes,<br />

dispersas, atuam com in<strong>de</strong>pendência <strong>uma</strong>s <strong>da</strong>s outras, visando à satisfação e não possuindo<br />

um objeto específico para esse fim. São pulsões parciais que se exercem <strong>de</strong> forma não<br />

unifica<strong>da</strong>, cuja satisfação se dá no próprio ponto do <strong>corpo</strong> on<strong>de</strong> ocorre a excitação, o que<br />

Freud (1905/1996) <strong>de</strong>nomina “prazer <strong>de</strong> órgão”. Desse modo, Freud inaugura o <strong>corpo</strong> como<br />

sendo um objeto sexual <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, esta que o toma como instrumento <strong>de</strong> prazer e garantia<br />

<strong>de</strong> satisfação pulsional. Porém, não se trata nesse momento <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> consi<strong>de</strong>rado como<br />

um todo, mas partes <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> vivido como fragmentado, sem uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não há, no autoerotismo,<br />

<strong>uma</strong> representação <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> como <strong>uma</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao contrário, há <strong>uma</strong><br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> zonas erógenas sem organização <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>da</strong>s quais a <strong>pulsão</strong> obtém<br />

satisfação local, sem recorrer a um objeto externo.<br />

O auto-erotismo, então, caracteriza-se pela inexistência <strong>de</strong> um eu como uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o princípio. Neste estado as pulsões se satisfazem <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma anárquica,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>uma</strong>s <strong>da</strong>s outras. Uma nova ação psíquica <strong>de</strong>ve somar-se ao auto-<br />

erotismo para que o eu se constitua e o narcisismo se instale (FREUD, 1914/1996). O que<br />

aciona essa ação psíquica é <strong>uma</strong> imagem unifica<strong>da</strong> através <strong>da</strong> qual o sujeito se representa<br />

para si mesmo. Segundo Laplanche & Pontalis (1992, p.288), “o narcisismo seria a<br />

captação amorosa do sujeito <strong>por</strong> essa imagem”, ou ain<strong>da</strong>, <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntificação narcísica com o<br />

objeto, objeto esse agora captado como total e não mais parcialmente como acontecia com<br />

as pulsões do auto-erotismo. O narcisismo nasce, assim, como <strong>uma</strong> etapa intermediária<br />

entre auto-erotismo e escolha <strong>de</strong> objeto, promove a intermediação entre investimento autoerótico<br />

e haloerótico, preparando para a escolha objetal.<br />

Po<strong>de</strong>-se pensar, enfim, que o surgimento do narcisismo é concomitante ao surgimento<br />

do eu, pois a constituição <strong>de</strong>ste já é o direcionamento <strong>da</strong> libido para o eu. É, então, em<br />

1914, ao estu<strong>da</strong>r o narcisismo que Freud expõe a imagem do <strong>corpo</strong> como <strong>uma</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

passando a situá-la em relação à constituição do eu.<br />

No <strong>de</strong>correr do <strong>de</strong>senvolvimento, as pulsões parciais se organizam sob o primado <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> única zona erógena – os genitais – e a obtenção <strong>de</strong> prazer se dá através <strong>da</strong> escolha <strong>de</strong><br />

um objeto sexual no mundo externo, tornando-se assim a serviço <strong>da</strong> função reprodutora.<br />

Com a introdução <strong>de</strong>ssa <strong>concepção</strong> propriamente freudiana <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> - perverso<br />

polimorfa - o <strong>corpo</strong> ganha novas configurações. Existe, <strong>de</strong> fato, o <strong>corpo</strong> como fonte <strong>de</strong><br />

54


excitações, como su<strong>por</strong>te <strong>da</strong> satisfação pulsional, base na qual se opera o apoio, <strong>corpo</strong> <strong>de</strong><br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> certa forma. O cor<strong>por</strong>al, longe <strong>de</strong> ser renegado, forma a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

subjacente do psíquico. Mas é através do lucro obtido à margem que o <strong>corpo</strong> erotizado se<br />

constitui e é <strong>de</strong>sse <strong>corpo</strong> que a psicanálise se ocupa (ASSOUN,1996).<br />

Vemos, assim, nesse primeiro momento <strong>da</strong> teoria pulsional - que articula conceitos<br />

cruciais como sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, auto-erotismo e zonas erógenas - um lócus fun<strong>da</strong>mental<br />

para a discussão a que essa pesquisa se propõe, visto que aponta para a <strong>de</strong>snaturalização do<br />

<strong>corpo</strong> opera<strong>da</strong> pela <strong>pulsão</strong> sexual que o toma como seu objeto <strong>de</strong> satisfação. O loteamento<br />

do <strong>corpo</strong> em zonas erógenas na<strong>da</strong> mais faz do que habitar o organismo e suas funções<br />

naturais, <strong>da</strong>ndo origem ao <strong>corpo</strong> erógeno. Com a formulação <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong><br />

teoria pulsional constitui-se um campo propício para o surgimento do <strong>corpo</strong> <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> 9 .<br />

Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong>ssas formulações freudianas que apresentamos que o<br />

<strong>corpo</strong> para Freud não se i<strong>de</strong>ntifica com a idéia <strong>de</strong> organismo 10 . Freud circunscreve o <strong>corpo</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um território sexual, erótico e pulsional. Esses novos atributos referidos à<br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, contribuem para a ruptura<br />

que Freud vem operando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus estudos sobre a histeria com o saber médico científico.<br />

Nesse contexto, Freud <strong>de</strong>marca agora com mais niti<strong>de</strong>z a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong> para a<br />

psicanálise: não se trata do organismo, do somático ou do anatômico, mas <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong><br />

produzido <strong>pelas</strong> tramas pulsionais.<br />

A <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> representado já tinha sido um passo fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> Freud<br />

em direção a um distanciamento em relação à racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> médica <strong>da</strong> anátomo-patologia.<br />

A assunção do <strong>corpo</strong> pulsional circunscreve essa mesma problemática pelo viés <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, acrescentando novos ingredientes ao campo <strong>de</strong> investigação freudiano. Nesse<br />

segundo momento, Freud aponta que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não se restringe ao <strong>corpo</strong> somático. O<br />

campo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> impõe para o sujeito que a força sexual seja transposta para o<br />

registro <strong>da</strong> representação, on<strong>de</strong> as experiências <strong>de</strong> prazer e gozo se realizam, caracterizando<br />

o que há <strong>de</strong> especificamente h<strong>uma</strong>no na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

9 O grifo é nosso.<br />

10 BIRMAN, J. (2000) “O <strong>corpo</strong>, o afeto e a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> em Psicanálise”, In: Mal-estar na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: a<br />

psicanálise e as novas formas <strong>de</strong> subjetivação. RJ: Civilização Brasileira. Voltaremos a esse ponto no<br />

capítulo III.<br />

55


Assim, o sujeito procura trans<strong>por</strong> o plano biológico e inserir a sua cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

campo <strong>da</strong> representação. Nesse sentido, o <strong>corpo</strong> erógeno não se i<strong>de</strong>ntifica com o somático,<br />

sendo marcado pelos efeitos <strong>de</strong>ssa transposição do plano do sexo para o <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> adquire im<strong>por</strong>tância fun<strong>da</strong>mental para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> <strong>concepção</strong><br />

<strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nos voltaremos então agora para essa questão.<br />

Teorias <strong>da</strong>s pulsões<br />

Como vimos, o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> ganha sua primeira sistematização no contexto dos<br />

Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> é precisamente <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como <strong>pulsão</strong><br />

sexual, <strong>por</strong>ém a idéia <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> já estava presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Projeto para <strong>uma</strong> psicologia<br />

científica em 1895. Nesse texto Freud realiza <strong>uma</strong> abor<strong>da</strong>gem do aparelho psíquico a partir<br />

<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista energético, li<strong>da</strong>ndo com duas hipóteses básicas: a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

energia (fun<strong>da</strong>mento econômico) e o neurônio (fun<strong>da</strong>mento tópico). O Projeto para <strong>uma</strong><br />

psicologia científica contém um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aparelho psíquico, ain<strong>da</strong> que muito referenciado<br />

a um mo<strong>de</strong>lo neurológico. O objetivo <strong>de</strong> Freud era explicar o funcionamento psíquico<br />

através <strong>de</strong> processos energéticos quantitativamente <strong>de</strong>terminados, articulando <strong>pulsão</strong> e<br />

representação.<br />

Freud parte do princípio <strong>de</strong> que a função primária do sistema nervoso seria a <strong>de</strong>scarga<br />

(princípio <strong>da</strong> inércia neuronal, on<strong>de</strong> os neurônios ten<strong>de</strong>m a se livrar <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

excitação recebi<strong>da</strong>). To<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia recebi<strong>da</strong> pelos neurônios estaria <strong>de</strong>stina<strong>da</strong><br />

a ser <strong>de</strong>scarrega<strong>da</strong> pelos mecanismos musculares <strong>de</strong> fuga do estímulo. No entanto, Freud<br />

observou que em organismos mais complexos o sistema nervoso receberia estímulos do<br />

próprio elemento somático, ou seja, estímulos endógenos, que precisavam também ser<br />

<strong>de</strong>scarregados como os estímulos externos. Tais estímulos endógenos se originariam <strong>da</strong>s<br />

células do <strong>corpo</strong> e seriam responsáveis <strong>pelas</strong> gran<strong>de</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como respiração e<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Encontramos, assim, nessa idéia <strong>de</strong> estímulos endógenos os precursores <strong>da</strong>s<br />

pulsões, ain<strong>da</strong> que n<strong>uma</strong> formulação eminentemente biológica, intrínseca ao pensamento<br />

freudiano <strong>de</strong>sse momento.<br />

56


Ao contrário do que acontece com os estímulos externos o organismo não po<strong>de</strong><br />

esquivar-se dos estímulos internos, po<strong>de</strong>ndo estes somente cessar sob certas condições<br />

realiza<strong>da</strong>s no mundo externo, <strong>por</strong> meio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ação específica. O ser h<strong>uma</strong>no não é capaz<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> ação específica automática, ou seja, <strong>de</strong> um aparelho reflexo que dê conta <strong>de</strong>sse<br />

montante <strong>de</strong> excitação interna. É preciso, então, que algo mu<strong>de</strong> no mundo externo para que<br />

seja possível <strong>uma</strong> ação específica. Assim, diante <strong>de</strong> tal “exigência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” o sistema<br />

nervoso é obrigado a abandonar a tendência original à inércia, visto que precisa tolerar e<br />

manter um certo acúmulo <strong>de</strong> excitação suficiente para satisfazer as exigências <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ação<br />

específica.<br />

Diante <strong>de</strong>sse imperativo vital representado pelos estímulos endógenos a or<strong>de</strong>m<br />

psíquica se constitui para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> tais excitações, articulando-as a objetos <strong>de</strong><br />

satisfação. Desse modo, Freud (1895a/1996) se apóia na idéia <strong>de</strong> um princípio <strong>de</strong><br />

constância, que consiste em manter a energia no nível mais baixo possível, mantê-la<br />

constante <strong>de</strong>ntro do aparelho psíquico, já que sua <strong>de</strong>scarga total impossibilitaria a<br />

preservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a constituição do psiquismo.<br />

O aparelho psíquico, então, assumiria a função <strong>de</strong> capturar e or<strong>de</strong>nar os estímulos<br />

pulsionais, que constantemente <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m <strong>por</strong> um <strong>de</strong>stino. A instância psíquica torna-se<br />

responsável <strong>por</strong> articular um campo <strong>de</strong> objetos on<strong>de</strong> os estímulos pulsionais possam<br />

encontrar satisfação, atenuando as fontes corpóreas <strong>de</strong> excitação, que <strong>de</strong> outro modo<br />

constituiriam <strong>uma</strong> fonte permanente <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprazer. As excitações se inscreveriam então no<br />

registro <strong>da</strong>s representações on<strong>de</strong> encontrariam um campo <strong>de</strong> objetos disponíveis para sua<br />

satisfação. A <strong>pulsão</strong>, assim, acaba <strong>por</strong> ser representa<strong>da</strong>, ou melhor, a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional<br />

adquire imediatamente <strong>uma</strong> inscrição psíquica e passa a ser regula<strong>da</strong> pelo princípio do<br />

prazer, correlato do princípio <strong>de</strong> constância, que estaria na origem <strong>da</strong> regulação <strong>de</strong>sse<br />

processo.<br />

Nessa primeira abor<strong>da</strong>gem freudiana do funcionamento psíquico o psiquismo h<strong>uma</strong>no<br />

remete a um aparelho <strong>de</strong> prazer-<strong>de</strong>sprazer que visa a obtenção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> satisfação, on<strong>de</strong> o<br />

prazer é equivalente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>de</strong>scarga energética. Face a um excesso energético disruptivo o<br />

psiquismo buscaria um equilíbrio homeostático através do funcionamento do princípio do<br />

prazer que regularia essas intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O prazer é <strong>de</strong>finido como diminuição <strong>da</strong> excitação<br />

pela <strong>de</strong>scarga e o <strong>de</strong>sprazer como aumento <strong>de</strong> excitação, que provoca <strong>uma</strong> tensão<br />

57


<strong>de</strong>sprazerosa a ser elimina<strong>da</strong>. Desse modo, o organismo buscaria na autoconservação e na<br />

representação <strong>uma</strong> maneira <strong>de</strong> se proteger do excesso pulsional.<br />

Para Birman (1999b), essa primeira metapsicologia freudiana está liga<strong>da</strong> a um mo<strong>de</strong>lo<br />

vitalista a qual Freud se filiava, no qual a vi<strong>da</strong> seria <strong>uma</strong> afirmação prévia do ser. A vi<strong>da</strong> é<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> e se impõe como força vital (“urgência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” ou “exigência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” como aparece<br />

no Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica) o que Freud chama <strong>de</strong> estímulos endógenos e<br />

que enten<strong>de</strong>mos como <strong>pulsão</strong>. A <strong>pulsão</strong> sexual seria a manifestação imediata <strong>de</strong> tal força<br />

vital, o que leva a i<strong>de</strong>ntificar nesse momento a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> com a or<strong>de</strong>m natural <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Para que o organismo pu<strong>de</strong>sse subsistir Freud nomeia o princípio <strong>de</strong> constância – também<br />

entendido em termos <strong>de</strong> princípio do prazer – <strong>de</strong>stinado a articular o circuito pulsional <strong>de</strong><br />

maneira originária, apoiando a constituição do psíquico no organismo. Surge a noção <strong>de</strong> um<br />

apoio interno, o psíquico emana <strong>da</strong>s exigências do organismo, cujos estímulos internos<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>m <strong>por</strong> um aparelho psíquico que os regule. Essa idéia <strong>de</strong> Freud levaria a <strong>uma</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação entre <strong>corpo</strong> e organismo.<br />

Em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>pulsão</strong> ganha <strong>uma</strong> nova<br />

abor<strong>da</strong>gem, com a introdução <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> pulsões sexuais e <strong>de</strong> componentes <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong><br />

como a fonte, o objeto e o alvo. O ponto <strong>de</strong> vista energético é mantido <strong>por</strong> Freud na medi<strong>da</strong><br />

em que a <strong>pulsão</strong> sexual precisa atingir a meta <strong>de</strong> supressão <strong>da</strong> excitação nasci<strong>da</strong> n<strong>uma</strong> parte<br />

do <strong>corpo</strong> (a fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>) através <strong>de</strong> um objeto. Contudo, a perspectiva aqui abor<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

juntamente com aquela realiza<strong>da</strong> no capítulo VII <strong>da</strong> Interpretação dos sonhos (1900) indica<br />

que a questão do excesso tão presente no Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica (1895) vai<br />

ce<strong>de</strong>ndo lugar para <strong>uma</strong> supremacia do registro tópico, on<strong>de</strong> o que vai ser priorizado é o<br />

representante psíquico <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> – a representação – e não a força pulsional.<br />

A fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> residiria primordialmente em algum processo endógeno, como a<br />

excitação <strong>da</strong>s zonas erógenas. Fonte calca<strong>da</strong> no somático, sem origem psíquica. O alvo<br />

remeteria a redução <strong>da</strong> tensão - provoca<strong>da</strong> pela fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> - através <strong>da</strong> satisfação<br />

conquista<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>scarga. E o objeto seria o meio pelo qual atingir a satisfação. A<br />

peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> que Freud acrescenta a esse aspecto é que o objeto é caracterizado pelo que<br />

há <strong>de</strong> mais variado na <strong>pulsão</strong>. Segundo Birman (1997), “a <strong>concepção</strong> polimorfa <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ria o arcabouço libidinal do psíquico, indicando assim a relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

objetos para a promoção <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> satisfação” (p.62).<br />

58


Bastos (1998) comenta que nesse contexto <strong>de</strong> 1905 “Freud buscava resolver a relação<br />

entre o <strong>corpo</strong> – como fonte dos estímulos endógenos – e o psiquismo. A <strong>pulsão</strong> não era<br />

mais apenas um estímulo endógeno. Ela não estava no <strong>corpo</strong> somático; ela nascia <strong>de</strong>le, mas<br />

não podia, a ele, ser reduzi<strong>da</strong>” (p.103). A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> paradigmática do chupar, a qual já<br />

aludimos anteriormente, evi<strong>de</strong>ncia a <strong>pulsão</strong> sexual apoia<strong>da</strong> n<strong>uma</strong> função vital, num <strong>corpo</strong><br />

biológico que confere um su<strong>por</strong>te para a emergência <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, mas cuja materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> não<br />

abarca a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> dimensão pulsional.<br />

Desse modo, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não é mais <strong>uma</strong> manifestação imediata do organismo<br />

conforme aparecia no Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica nos mol<strong>de</strong>s do instinto; ela<br />

nasce apoia<strong>da</strong> n<strong>uma</strong> função vital, <strong>de</strong> acordo com o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>. Nesse sentido, o<br />

<strong>corpo</strong> se <strong>de</strong>marca do organismo como <strong>uma</strong> produção a partir <strong>da</strong> incidência <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong><br />

sexual.<br />

A fonte no somático seria apenas um aspecto <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, a qual teria também<br />

<strong>de</strong>sdobramentos psíquicos através <strong>de</strong> seus representantes. A <strong>pulsão</strong> ganha então novas<br />

dimensões, não se confundindo com sua fonte.<br />

Assim, <strong>de</strong>finem-se dois registros diferentes, inaugurando a primeira duali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pulsional entre sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e autoconservação. As pulsões sexuais se apóiam nas pulsões<br />

<strong>de</strong> autoconservação para se constituir, mas posteriormente se opõem a elas. Cinco anos<br />

mais tar<strong>de</strong>, em 1910, essa oposição ganha um novo incremento: as pulsões <strong>de</strong><br />

autoconservação recebem a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> pulsões do eu e passam a se equivaler. Esse<br />

novo <strong>de</strong>sdobramento surge na investigação freudiana acerca dos fenômenos <strong>da</strong> cegueira<br />

histérica, on<strong>de</strong> vemos explicitar-se a oposição entre “as pulsões que favorecem a<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a consecução <strong>da</strong> satisfação sexual, e as <strong>de</strong>mais pulsões que têm <strong>por</strong> objetivo a<br />

autopreservação do indivíduo – as pulsões do ego” 11 (FREUD, 1910/1996, p.223).<br />

Freud parte <strong>da</strong> pressuposição <strong>de</strong>ssa oposição para explicar o conflito psíquico<br />

neurótico que residiria na luta entre as exigências do eu – nesse momento <strong>de</strong>ssexualizado –<br />

e as <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O sintoma, <strong>por</strong> exemplo, a cegueira histérica, resultaria do fato do<br />

mesmo órgão ou parte do <strong>corpo</strong> po<strong>de</strong>r ser objeto <strong>de</strong> investimento <strong>de</strong> ambas as pulsões.<br />

Freud (1910/1996) nos diz que os mesmos órgãos servem tanto às pulsões sexuais quanto<br />

11 Em to<strong>da</strong>s as citações que aparece a palavra instinto substituímos <strong>por</strong> <strong>pulsão</strong>, <strong>por</strong> consi<strong>de</strong>rarmos ser esta a<br />

tradução mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> para o termo Trieb no original.<br />

59


às egóicas. Se a satisfação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual prevalece, o eu opera no sentido do recalque,<br />

castigando o órgão através <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>de</strong> sua funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Em 1911, no texto Formulação sobre os dois princípios do funcionamento mental<br />

Freud evi<strong>de</strong>ncia melhor a natureza do conflito entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu<br />

ou <strong>de</strong> autoconservação. Enquanto a <strong>pulsão</strong> sexual é regi<strong>da</strong> pelo princípio do prazer<br />

buscando a satisfação em um objeto fantasmático, as pulsões do eu são regi<strong>da</strong>s pelo<br />

princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, necessitando, <strong>por</strong>tanto, <strong>de</strong> um objeto real para sua satisfação.<br />

Esse primeiro dualismo circunscreve então a oposição entre o sexual – sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

infantil perverso-polimorfa, centra<strong>da</strong> no registro do inconsciente – e o não sexual – or<strong>de</strong>m<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> autoconservação, centra<strong>da</strong> no registro <strong>da</strong> consciência e do eu.<br />

Em 1914 esse dualismo ain<strong>da</strong> se mantém, mas a questão se torna mais embaraçosa<br />

com a introdução do conceito <strong>de</strong> narcisismo. Nesse contexto Freud admite que o próprio eu<br />

se constituiria como objeto <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual, sendo também libidinizado. A libido se<br />

dividiria em libido objetal, referente aos objetos do mundo externo e libido do eu ou<br />

narcísica, cujo objeto é o próprio eu. Desse modo, nesse momento do pensamento freudiano<br />

tudo é sexual, o conflito psíquico se <strong>de</strong>sloca para a oposição entre libido do eu e libido<br />

objetal, mas a conflituali<strong>da</strong><strong>de</strong> é to<strong>da</strong> centra<strong>da</strong> na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Assim, com o narcisismo o eu não é mais neutro, é investido como objeto <strong>de</strong><br />

satisfação, constituindo-se como instância sexual unificadora <strong>da</strong>s pulsões auto-eróticas<br />

fragmenta<strong>da</strong>s. O estado originário <strong>de</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, parciali<strong>da</strong><strong>de</strong> e fragmentação que<br />

caracteriza o <strong>corpo</strong> auto-erótico dá lugar ao <strong>corpo</strong> narcísico (unificado) através do<br />

investimento narcísico <strong>da</strong>s figuras parentais no <strong>corpo</strong> do infante, possibilitando a<br />

configuração <strong>de</strong> <strong>uma</strong> auto-imagem totalizante e, conseqüentemente, a assunção do eu.<br />

O eu enquanto <strong>uma</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> não existe no indivíduo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio assim como<br />

existem as pulsões auto-eróticas, ele precisa ser <strong>de</strong>senvolvido. É então que <strong>uma</strong> nova ação<br />

psíquica é adiciona<strong>da</strong> ao auto-erotismo a fim <strong>de</strong> provocar o narcisismo (FREUD, 1914/1996,<br />

p.84). Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r essa nova ação psíquica como esse investimento do outro sobre o<br />

infante que lhe confere condição <strong>de</strong> adquirir <strong>uma</strong> imagem cor<strong>por</strong>al unifica<strong>da</strong> e <strong>de</strong> se<br />

apropriar <strong>de</strong>la.<br />

A presença <strong>de</strong>ssa alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é estruturante do eu na medi<strong>da</strong> em que investe<br />

libidinalmente a imagem do <strong>corpo</strong> do infante, produz subversão na teoria pulsional<br />

60


colocando a libido na base <strong>da</strong> constituição egóica, retirando com isso o eu do pólo estrito <strong>da</strong><br />

autoconservação <strong>de</strong> si. Até mesmo a energia <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a garantir a sobrevivência do<br />

indivíduo tem sua origem na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fato esse que <strong>de</strong>sloca o conflito entre duas<br />

pulsões <strong>de</strong> natureza diferentes para a tensão entre libido do eu e libido objetal. Esse impasse<br />

na teoria pulsional, ameaça<strong>da</strong> pelo monismo, só obterá solução com a introdução do<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, on<strong>de</strong> o dualismo se restabelece <strong>de</strong>finitivamente: as pulsões<br />

sexuais e as pulsões <strong>de</strong> autoconservação (agora também concebi<strong>da</strong> como sexual) são<br />

unifica<strong>da</strong>s sob o nome <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e são contrapostas à <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Voltaremos<br />

a essa questão.<br />

Apoio: <strong>por</strong> que e para quê?<br />

Da<strong>da</strong> essa configuração que Freud constrói em torno <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e <strong>da</strong><br />

primeira teoria pulsional, po<strong>de</strong>mos partir agora para as conseqüências <strong>de</strong>ssas concepções no<br />

que tange a questão do <strong>corpo</strong> na psicanálise. Nesse intuito precisamos necessariamente<br />

problematizar alguns pontos principais.<br />

A oposição que Freud faz entre as pulsões do eu ou <strong>de</strong> autoconservação e as pulsões<br />

sexuais é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>uma</strong> distinção embaraçosa. Partindo do princípio <strong>de</strong> que são pulsões<br />

<strong>de</strong> naturezas diferentes, conforme vimos acima, como Freud pô<strong>de</strong> empregar o termo <strong>pulsão</strong><br />

para <strong>de</strong>signar ambos os tipos <strong>de</strong> processo?<br />

Freud tinha a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manter esse dualismo pulsional, pois era nesse aspecto<br />

que se fun<strong>da</strong>mentava o conflito psíquico que ele pressupunha na origem dos sintomas<br />

neuróticos. Tudo leva a crer que apenas as pulsões sexuais po<strong>de</strong>riam legitimamente ser<br />

<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s <strong>de</strong> “pulsões”, mantendo as pulsões <strong>de</strong> autoconservação um caráter muito mais<br />

instintivo do que propriamente pulsional.<br />

Freud pressupõe, então, nesse momento, a existência <strong>de</strong> um organismo atrelado à<br />

lógica <strong>da</strong> autoconservação, on<strong>de</strong> a vi<strong>da</strong> se impõe como um interesse básico e primário que<br />

se autopreserva. Separa<strong>da</strong>mente, o registro <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se constitui através do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

apoio, sobrepondo-se à autoconservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

61


A noção <strong>de</strong> apoio surge para estabelecer a relação entre um <strong>corpo</strong> somático, fonte <strong>da</strong>s<br />

excitações, e um <strong>corpo</strong> erógeno, produzido pela ação <strong>da</strong>s pulsões sexuais. Observamos<br />

nesse contexto <strong>uma</strong> crença <strong>de</strong> Freud na existência <strong>de</strong> um organismo que se sustenta pela<br />

força <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ao mesmo tempo em que um <strong>corpo</strong> vai sendo produzido <strong>pelas</strong> tramas<br />

pulsionais. O <strong>corpo</strong> erógeno aparece na estrita <strong>de</strong>pendência do somático, pois tem nele a<br />

sua fonte, ou seja, a sua condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para se constituir.<br />

Para Bastos (1998) “a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> está em compatibilizar um <strong>corpo</strong> somático com um<br />

<strong>corpo</strong> sexual. A psicanálise não po<strong>de</strong> prescindir do <strong>corpo</strong> somático, mas não é <strong>de</strong>le que ela,<br />

efetivamente, se ocupa” (p.112). Nesse contexto que estamos analisando, Freud apesar <strong>de</strong><br />

estar <strong>de</strong>limitando <strong>uma</strong> outra dimensão para o <strong>corpo</strong> e a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> ain<strong>da</strong> se pren<strong>de</strong> muito<br />

às relações do sexual com o somático, visto que se referia a <strong>uma</strong> lógica <strong>da</strong> autoconservação<br />

centra<strong>da</strong> inteiramente no registro biológico. A noção <strong>de</strong> apoio foi fun<strong>da</strong>mental para que ele<br />

pu<strong>de</strong>sse configurar a or<strong>de</strong>m do sexual e do <strong>corpo</strong> pulsional, mas se tornou problemática <strong>por</strong><br />

ele assentar essa nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> no registro <strong>da</strong> autopreservação, sendo esta a responsável<br />

pela manutenção do organismo.<br />

Haveria, então, <strong>uma</strong> or<strong>de</strong>m biológica vincula<strong>da</strong> à existência e manutenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. O<br />

<strong>corpo</strong> biológico, somático conferia a viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> sexual, pulsional. Mesmo<br />

com a gran<strong>de</strong> inovação no campo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e com a <strong>de</strong>limitação do <strong>corpo</strong> sexual<br />

como o objeto <strong>da</strong> psicanálise, Freud permanecia atrelado a duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: o<br />

somático e o psíquico, o <strong>corpo</strong> biológico e o <strong>corpo</strong> pulsional.<br />

Essas relações ganham um novo <strong>de</strong>stino com a conceitualização <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> em 1915.<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> vai configurar-se como um ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong> dos <strong>de</strong>sdobramentos <strong>da</strong><br />

relação somático-psíquico que Freud vinha abor<strong>da</strong>ndo e que estamos apresentando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

primeiro capítulo com a questão histérica.<br />

Pulsão: um conceito fun<strong>da</strong>mental<br />

Por volta <strong>de</strong> 1915 Freud se <strong>de</strong>dica a constituição <strong>de</strong> seus escritos metapsicológicos,<br />

on<strong>de</strong> a <strong>pulsão</strong> ganha um lugar fun<strong>da</strong>mental. Por metapsicologia Freud <strong>de</strong>signa o conjunto<br />

<strong>de</strong> proposições e mo<strong>de</strong>los conceituais que <strong>da</strong>riam fun<strong>da</strong>mentação ao saber psicanalítico.<br />

62


Através <strong>da</strong> metapsicologia Freud pô<strong>de</strong> pensar o psiquismo como processo a partir <strong>de</strong> suas<br />

relações dinâmica, tópica e econômica.<br />

O termo metapsicologia foi então criado <strong>por</strong> Freud para qualificar o conjunto <strong>de</strong> sua<br />

<strong>concepção</strong> teórica e distingui-la <strong>da</strong> psicologia. O prefixo meta indica justamente o objetivo<br />

<strong>de</strong> Freud <strong>de</strong> pensar a psicanálise como algo que está além <strong>da</strong> psicologia.<br />

A psicologia clássica, <strong>de</strong>corrente <strong>da</strong> tradição cartesiana, voltava-se para a eluci<strong>da</strong>ção<br />

dos processos cognitivos. A subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> era concebi<strong>da</strong> como centra<strong>da</strong> no conhecimento,<br />

i<strong>de</strong>ntificando-se com a consciência e o eu.<br />

Freud então se lança na construção <strong>da</strong> metapsicologia para se <strong>de</strong>marcar <strong>de</strong>sse<br />

território <strong>da</strong> psicologia, visto que para ele a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> não se restringia ao campo <strong>da</strong><br />

consciência e do eu, indo além <strong>de</strong>ssas instâncias. Como vimos, o aspecto intensivo era<br />

muito marcante em Freud, o que o fez trazer para o campo <strong>da</strong> psicologia a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> e os<br />

afetos, afastando-se <strong>da</strong> tradição cartesiana centra<strong>da</strong> no aspecto intelectual e cognitivo <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Entretanto, os conceitos metapsicológicos não eram passíveis <strong>de</strong> verificação empírica,<br />

condição postula<strong>da</strong> pela ciência positivista <strong>da</strong> época como indispensável para a vali<strong>da</strong>ção<br />

<strong>de</strong> qualquer enunciado científico. O estatuto <strong>da</strong> metapsicologia freudiana <strong>de</strong>finitivamente<br />

não se enquadrava nos cânones científicos, sendo pautado muito mais pela especulação do<br />

que pela preocupação com os métodos <strong>de</strong> verificação científicos.<br />

Como já vimos na abertura do primeiro capítulo, Freud <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> seus estudos<br />

se aproxima <strong>da</strong> filosofia, campo que o <strong>de</strong>spertava mais interesse do que a prática médica.<br />

Contudo, a formação <strong>de</strong> base <strong>de</strong> Freud residiu no campo <strong>da</strong> anatomia e <strong>da</strong> fisiologia do<br />

sistema nervoso. Depois ele se <strong>de</strong>slocou para o campo <strong>da</strong> neurologia enquanto prática<br />

clínica e terapêutica. Com a metapsicologia Freud pô<strong>de</strong> sair <strong>da</strong> clínica neurológica como<br />

exigência <strong>de</strong> cura se reaproximando <strong>da</strong> filosofia como ciência básica. Freud mergulhou<br />

então no campo <strong>da</strong> especulação, estatuto fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> metapsicologia freudiana.<br />

Nesse contexto visualizamos mais <strong>uma</strong> vez as rupturas <strong>de</strong> Freud com o campo<br />

médico-científico. A metapsicologia, ao contrário dos sistemas filosóficos e dos mo<strong>de</strong>los<br />

médicos, volta-se para os acontecimentos singulares, circunscrevendo a experiência<br />

<strong>psicanalítica</strong> no registro <strong>da</strong> fantasia – nível <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> distante do empirismo científico.<br />

63


Para fun<strong>da</strong>mentar esse novo estatuto conferido ao saber psicanalítico nascem os<br />

ensaios metapsicológicos conhecidos como: Pulsões e suas vicissitu<strong>de</strong>s (1915), Recalque<br />

(1915), Inconsciente, Luto e melancolia (1917[1915]) e Suplemento metapsicológico à<br />

teoria dos sonhos (1917[1915]). 12<br />

A <strong>pulsão</strong> ganha lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nesse novo cenário, remanejando as principais<br />

problemáticas com as quais Freud vinha li<strong>da</strong>ndo até então. Não <strong>por</strong> acaso, o texto que<br />

inaugura a metapsicologia é Pulsões e suas vicissitu<strong>de</strong>s, no qual Freud se <strong>de</strong>bruça sobre o<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, conferindo-lhe o estatuto <strong>de</strong> conceito fun<strong>da</strong>mental.<br />

Até esse momento os registros quantitativo e qualitativo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> eram consi<strong>de</strong>rados<br />

<strong>por</strong> Freud, mas a ênfase se <strong>de</strong>tinha nesse último, on<strong>de</strong> a <strong>pulsão</strong> era cognoscível através <strong>de</strong><br />

sua inscrição no campo <strong>da</strong> representação. A partir do capítulo VII <strong>da</strong> Interpretação dos<br />

sonhos e dos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> fica claro que Freud concebe o<br />

aparelho psíquico sob um ponto <strong>de</strong> vista tópico e dinâmico, ou seja, em função <strong>da</strong> relação<br />

<strong>de</strong> forças já atuantes no psiquismo e <strong>de</strong> como essas forças se inscreviam nas diversas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> registros psíquicos – Inconsciente, Pré-consciente e Consciente. No<br />

referido ensaio inaugural <strong>da</strong> metapsicologia Freud acrescenta um quarto elemento essencial<br />

à <strong>pulsão</strong>: a força (Drang), rompendo com tal ênfase sobre o aspecto qualitativo ao <strong>de</strong>finir a<br />

<strong>pulsão</strong> eminentemente pelo aspecto quantitativo <strong>de</strong> força.<br />

A <strong>pulsão</strong> como força – pressão constante – começa a adquirir <strong>uma</strong> certa autonomia<br />

em relação à representação 13 , retomando a im<strong>por</strong>tância <strong>da</strong> economia <strong>da</strong>s intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e dos<br />

afetos. 14 Tendo em vista esse aspecto, Freud confere à <strong>pulsão</strong> <strong>uma</strong> <strong>de</strong>finição bastante<br />

con<strong>de</strong>nsa<strong>da</strong>, mas <strong>de</strong> s<strong>uma</strong> im<strong>por</strong>tância, que precisaremos analisar ponto a ponto.<br />

A primeira <strong>de</strong>rivação <strong>da</strong> introdução <strong>de</strong>ssa dimensão <strong>de</strong> força à <strong>pulsão</strong> é que esta passa<br />

a ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como “<strong>uma</strong> medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> exigência feita à mente no sentido <strong>de</strong> trabalhar em<br />

conseqüência <strong>de</strong> sua ligação com o <strong>corpo</strong>” (FREUD, 1915a/1996, p.127). O que po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa asserção freudiana é que a <strong>pulsão</strong> como força (pura energia pulsional,<br />

ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>stituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> inscrição psíquica) <strong>de</strong>man<strong>da</strong> um trabalho incessante <strong>de</strong> ligação,<br />

12 Ain<strong>da</strong> que não nomeados como metapsicológicos, <strong>por</strong> serem anteriores a essa <strong>de</strong>finição freudiana, trabalhos<br />

como o Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica (1895) e Interpretação dos sonhos (1900) po<strong>de</strong>m ser<br />

consi<strong>de</strong>rados como <strong>uma</strong> reflexão metapsicológica <strong>por</strong> tratarem sobretudo <strong>da</strong> articulação <strong>de</strong> um aparelho<br />

psíquico.<br />

13 Essa é <strong>uma</strong> leitura <strong>de</strong> Joel Birman (1999a) com a qual compartilhamos.<br />

14 Essa formulação alcançará um <strong>de</strong>sdobramento maior com a postulação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, on<strong>de</strong> Freud<br />

aponta para a existência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação. Voltaremos a esse ponto no capítulo III.<br />

64


transformação e interpretação no que tange a sua inscrição no universo psíquico <strong>da</strong><br />

representação. O aparelho psíquico se constitui então como aparelho <strong>de</strong> domínio <strong>da</strong>s<br />

excitações cor<strong>por</strong>ais que, através <strong>da</strong> mediação <strong>de</strong> um outro, opera esse processo <strong>de</strong><br />

simbolização <strong>da</strong> força pulsional, articulando-a num circuito on<strong>de</strong> possa encontrar<br />

satisfação. O psiquismo configura-se como <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação – lugar on<strong>de</strong> se<br />

realiza a inscrição <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> como força no campo <strong>da</strong> representação.<br />

Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que aqui Freud introduz um intervalo entre força pulsional e<br />

representação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> no psiquismo. Essa consi<strong>de</strong>ração traz alg<strong>uma</strong>s implicações. Em<br />

Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> Freud confere um estatuto psíquico à <strong>pulsão</strong>,<br />

sendo a própria o representante psíquico do cor<strong>por</strong>al. Em suas palavras: “Por ‘<strong>pulsão</strong>’<br />

po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r, a princípio, apenas o representante psíquico <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fonte<br />

endossomática <strong>de</strong> estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do ‘estímulo’ que<br />

é produzido <strong>por</strong> excitações isola<strong>da</strong>s vin<strong>da</strong>s <strong>de</strong> fora” (FREUD, 1905/1996, p.159). Até então<br />

não havia diferença entre a <strong>pulsão</strong> e seu representante psíquico.<br />

Somente nos artigos sobre metapsicologia a questão se esclarece. Em seu artigo sobre<br />

o inconsciente Freud (1915b/1996) pon<strong>de</strong>ra que “<strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> nunca po<strong>de</strong> tornar-se objeto<br />

<strong>da</strong> consciência – só a idéia que o representa po<strong>de</strong>. Além disso, mesmo no inconsciente, <strong>uma</strong><br />

<strong>pulsão</strong> não po<strong>de</strong> ser representa<strong>da</strong> <strong>de</strong> outra forma a não ser <strong>por</strong> <strong>uma</strong> idéia” (p.182). Com<br />

essa afirmação Freud <strong>de</strong>marca a exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> em relação ao psiquismo; ela<br />

própria não é psíquica em si mesma.<br />

No seu ensaio sobre o recalque Freud (1915c/1996) esclarece que a <strong>pulsão</strong> se faz<br />

representar no plano psíquico <strong>por</strong> seus representantes que são <strong>de</strong> duas or<strong>de</strong>ns:<br />

representante-representação e representante afetivo. A <strong>pulsão</strong> não é psíquica em si mesma,<br />

somente seus representantes alcançam representação no psiquismo.<br />

Desse modo, cai <strong>por</strong> terra a idéia inicial <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> como representante psíquico do<br />

cor<strong>por</strong>al. A <strong>pulsão</strong> não é nem psíquica nem cor<strong>por</strong>al, constituindo-se na fronteira entre<br />

ambos os registros. Decorre <strong>da</strong>í <strong>uma</strong> segun<strong>da</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> - conceito limite entre o<br />

psíquico e o somático. É exatamente essa <strong>de</strong>finição que vai circunscrever <strong>de</strong> forma original<br />

a problemática <strong>da</strong> relação entre os registros somático e psíquico.<br />

Com a ficção <strong>de</strong>sse conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> pela metapsicologia, Freud rompe com um<br />

discurso biológico que ele mesmo ain<strong>da</strong> mantinha e que pu<strong>de</strong>mos notar e problematizar<br />

65


quando tratamos dos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> questão do apoio. Ao<br />

postular a <strong>pulsão</strong> como limítrofe entre o psíquico e o somático Freud (1915a/1996) <strong>de</strong>limita<br />

um novo campo epistêmico, sem precisar mais prestar contas à biologia.<br />

A originali<strong>da</strong><strong>de</strong> epistêmica do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> Freud reunir no ser<br />

<strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> as relações até então biunívocas entre o somático e o psíquico. A oposição que<br />

caracterizava a relação entre esses registros se dissolve na idéia <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> proposta <strong>por</strong><br />

Freud, que incor<strong>por</strong>a o psíquico e o somático, não se reduzindo nem ao espaço psíquico<br />

nem às fontes somáticas.<br />

Birman (1993) faz <strong>uma</strong> leitura interessante <strong>de</strong>sse aspecto crucial <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>,<br />

enten<strong>de</strong>ndo-a como um ser <strong>de</strong> passagem e mediação que marca a transição entre o somático<br />

e o psíquico. Segundo ele, “Freud configura a existência <strong>de</strong> dois campos clínicos distintos,<br />

fun<strong>da</strong>dos em registros teóricos diferentes, mas que estabelecem relações entre si, pois a<br />

or<strong>de</strong>m do <strong>corpo</strong> e a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação estão em permanente interação, sendo a <strong>pulsão</strong><br />

o mediador fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong>ssa passagem” (BIRMAN, 1993, p.126).<br />

Esse conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> surge, então, como um <strong>de</strong>sdobramento <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> relação<br />

entre o psíquico e o somático. Vimos que Freud se <strong>de</strong>dica a essa problemática <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

estudo sobre as afasias, atravessando sua investigação sobre as neuroses – que se<br />

presentificou na oposição entre neuroses atuais e psiconeuroses – e se intensificando na<br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> conversão. O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> é, como já aludimos, o ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

todo esse <strong>de</strong>senvolvimento, que emerge para circunscrever um novo campo para essas<br />

relações. Através <strong>de</strong>ssa visa<strong>da</strong> original sobre a <strong>pulsão</strong> Freud vislumbra <strong>uma</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> articulação inextricável entre os dois registros, inaugurando <strong>de</strong>finitivamente um novo<br />

objeto <strong>de</strong> saber, diferente <strong>da</strong>quele <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong> psicologia.<br />

Corpo e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> ganham, com a perspectiva freudiana <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, novos<br />

contornos e <strong>uma</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação ao <strong>corpo</strong> para a medicina e a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> para<br />

a psicologia.<br />

66


Corpo e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> nos domínios do pulsional<br />

O conceito limite entre o somático e o psíquico polariza a <strong>pulsão</strong> entre a força e seus<br />

representantes, ou seja, entre o somático e o universo <strong>da</strong> representação. O somático<br />

continuou sendo consi<strong>de</strong>rado <strong>por</strong> Freud como a fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, mas esta não se reduziria a<br />

sua fonte, trazendo também consigo <strong>uma</strong> exigência <strong>de</strong> trabalho para que a excitação<br />

provoca<strong>da</strong> na fonte pulsional encontrasse inscrição psíquica.<br />

As pulsões, irredutíveis tanto ao âmbito somático quanto ao âmbito representacional,<br />

se constituem como a matéria-prima do <strong>corpo</strong> para a psicanálise. Já nos Três ensaios sobre<br />

a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> vimos que o somático serve <strong>de</strong> fonte para a <strong>pulsão</strong>, mas que o<br />

organismo passa a ser colonizado, habitado pela <strong>pulsão</strong> através <strong>da</strong> sedução <strong>de</strong> um outro,<br />

transformando-se num <strong>corpo</strong> pulsional.<br />

De acordo com Birman (1997):<br />

“O <strong>corpo</strong> implica <strong>uma</strong> economia <strong>de</strong> satisfações e <strong>de</strong> insatisfações que<br />

transcen<strong>de</strong>m o registro do somático, <strong>de</strong> forma a se inscrever no campo do outro e<br />

dos objetos. Assim, no discurso freudiano, o <strong>corpo</strong> não está na origem, mas é um<br />

dos <strong>de</strong>stinos <strong>da</strong>s pulsões, <strong>de</strong>vendo ser constituído conforme as regulações do<br />

sistema <strong>de</strong> satisfação” (p.171).<br />

Enten<strong>de</strong>mos então que a conseqüência maior que o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> como limítrofe<br />

entre o psíquico e o somático traz para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> é que a cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> para a<br />

psicanálise não se reduz ao organismo ou a um registro biológico <strong>da</strong> matéria, mas se afirma<br />

e se constitui como produção pulsional.<br />

Esse <strong>corpo</strong> marcado pela pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>por</strong> um psiquismo que o abarque,<br />

conferindo-lhe um su<strong>por</strong>te no plano <strong>da</strong> representação. É o <strong>corpo</strong> pulsional como <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> trabalho para o psiquismo. 15 A or<strong>de</strong>m psíquica se institui, então, a partir <strong>de</strong> um registro<br />

cor<strong>por</strong>al <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pulsionais. O psiquismo, como também o <strong>corpo</strong>, é movido <strong>pelas</strong><br />

pulsões. Compartilhamos, assim, com a leitura <strong>de</strong> Birman (1999a) <strong>de</strong> que a <strong>pulsão</strong> ancora o<br />

psiquismo no <strong>corpo</strong>. O campo pulsional que Freud <strong>de</strong>lineia nos fornece ferramentas para a<br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um psiquismo encorpado.<br />

15 Essa idéia do <strong>corpo</strong> pulsional como <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho ao psíquico é <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ênfase mais<br />

intensiva na <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>. Desenvolveremos mais esse aspecto no capítulo seguinte, on<strong>de</strong> o intervalo<br />

entre força e representação no campo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> alcançará maiores <strong>de</strong>sdobramentos.<br />

67


Desse modo, Freud contribui para a superação do dualismo cartesiano entre <strong>corpo</strong> e<br />

mente e <strong>da</strong>s teses psicológicas que centravam a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> na consciência e no eu.<br />

Quando Freud aproxima e articula <strong>corpo</strong> e psiquismo ele se afasta dos impasses impostos<br />

pelo paralelismo psicofísico, construindo um modo inovador <strong>de</strong> pensar sobre o h<strong>uma</strong>no.<br />

Isso só se tornou possível com o advento do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> – dimensão originária <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong> e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> para Freud.<br />

Corpo e intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Na análise que até agora realizamos propositalmente não introduzimos um aspecto<br />

fun<strong>da</strong>mental que Freud nos aponta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica,<br />

exatamente <strong>por</strong> o consi<strong>de</strong>rarmos merecedor <strong>de</strong> <strong>uma</strong> discussão particular, qual seja: o papel<br />

fun<strong>da</strong>mental exercido pelo outro na constituição do <strong>corpo</strong> e do psiquismo.<br />

Digamos que a categoria <strong>de</strong> intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> não existe sob um aspecto formal no<br />

discurso freudiano. No entanto, po<strong>de</strong>mos inferir a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> do pensamento <strong>de</strong><br />

Freud <strong>uma</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a leitura <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois esta se encontra<br />

pulveriza<strong>da</strong> em diversos aspectos <strong>da</strong> formulação freudiana.<br />

No Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica Freud (1895a/1996) indica a im<strong>por</strong>tância<br />

<strong>de</strong> um outro ser h<strong>uma</strong>no para a constituição do aparelho psíquico, visto que o organismo<br />

h<strong>uma</strong>no <strong>por</strong> si só seria incapaz <strong>de</strong> fazer frente às “exigências <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”. É a eliminação <strong>da</strong><br />

tensão <strong>de</strong>corrente dos estímulos endógenos, através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> outra pessoa que vem executar<br />

<strong>uma</strong> ação específica, que dá lugar à experiência <strong>de</strong> satisfação. Esse outro que pro<strong>por</strong>ciona a<br />

ação específica 16 e a conseqüente experiência <strong>de</strong> satisfação pro<strong>por</strong>cionam junto com isso a<br />

produção <strong>de</strong> imagens mnêmicas, ou seja, representações, a partir <strong>da</strong>s excitações sensoriais<br />

provenientes <strong>da</strong> <strong>de</strong>scarga reflexa à ação específica.<br />

Sendo assim, o psiquismo vai se organizando a partir <strong>de</strong>sse investimento do outro,<br />

<strong>de</strong>ssa relação com o exterior. O <strong>corpo</strong> está aí implicado: seus movimentos, suas sensações<br />

16 Nas palavras <strong>de</strong> Freud (1895a/1996): “O organismo h<strong>uma</strong>no é, a princípio, incapaz <strong>de</strong> promover essa ação<br />

específica. Ela se efetua <strong>por</strong> aju<strong>da</strong> alheia, quando a atenção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pessoa experiente é volta<strong>da</strong> para um<br />

estado infantil <strong>por</strong> <strong>de</strong>scarga através <strong>da</strong> via <strong>de</strong> alteração interna. Essa via <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga adquire, assim, a<br />

im<strong>por</strong>tantíssima função <strong>da</strong> comunicação, e o <strong>de</strong>samparo inicial dos seres h<strong>uma</strong>nos é a fonte primordial <strong>de</strong><br />

todos os motivos morais” (p.370, grifos <strong>de</strong> Freud).<br />

68


provenientes <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> satisfação vão sendo representados. Nesse sentido, a<br />

memória psíquica é também <strong>uma</strong> memória cor<strong>por</strong>al.<br />

Ain<strong>da</strong> no Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica Freud nos aponta que é em relação a<br />

seu semelhante que o ser h<strong>uma</strong>no apren<strong>de</strong> a conhecer, a discernir entre um traço constante e<br />

um traço variável no outro, no objeto. Freud (1895a/1996, p.384) <strong>de</strong>nominou essa relação<br />

<strong>de</strong> “complexo do próximo” on<strong>de</strong> a partir <strong>da</strong> expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro<br />

(primeiro objeto <strong>de</strong> satisfação) o infans dá sentido a sua própria cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os traços do<br />

objeto percebido <strong>de</strong>spertam a lembrança dos próprios traços do sujeito e <strong>de</strong> suas<br />

experiências.<br />

A partir do seu <strong>corpo</strong> e do <strong>corpo</strong> do outro o infans apren<strong>de</strong> então a representar. Freud<br />

(1895a/1996) coloca que a base do juízo é a presença <strong>de</strong> experiências cor<strong>por</strong>ais, sensações<br />

e imagens motoras <strong>de</strong> si próprio. Nenh<strong>uma</strong> experiência sexual, <strong>por</strong> exemplo, produz efeito<br />

enquanto o sujeito ignora qualquer sensação sexual. O juízo é a associação entre catexias<br />

que chegam do exterior e catexias oriun<strong>da</strong>s do próprio <strong>corpo</strong>. Assim, o psíquico não se<br />

fun<strong>da</strong> sem o <strong>corpo</strong>. As capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s psíquicas estão no seu fun<strong>da</strong>mento liga<strong>da</strong>s à<br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>, e o <strong>corpo</strong> vai sendo representado nesse psiquismo.<br />

Em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> vemos novamente surgir no<br />

texto freudiano essa referência ao papel do outro na constituição do <strong>corpo</strong> e do psiquismo.<br />

Dessa vez o outro é representado pela figura materna que com seu investimento libidinal<br />

sobre o infans permite a sexualização do <strong>corpo</strong> infantil e a constituição do <strong>corpo</strong> erógeno. O<br />

olhar, o toque, o <strong>de</strong>sejo materno dirigido à criança “perverte” seu <strong>corpo</strong>, conduzindo-o à<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil.<br />

Desse encontro com a mãe (ou com aquele que realiza a função materna) aflora <strong>uma</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> transbor<strong>da</strong>nte que se pulveriza n<strong>uma</strong> plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> zonas erógenas espalha<strong>da</strong>s<br />

pelo <strong>corpo</strong>. O <strong>corpo</strong> é fragmentado em tantas quantas forem as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> gozo e<br />

satisfação pulsional. Desse modo, as zonas erógenas <strong>de</strong>marcam um campo <strong>de</strong> intersecção<br />

entre o eu e o outro e, <strong>de</strong> acordo com Birman (1999a), indicam a “<strong>por</strong>osi<strong>da</strong><strong>de</strong>” cor<strong>por</strong>al e a<br />

<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do <strong>corpo</strong>. Como nos lembra esse autor, a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> cor<strong>por</strong>al<br />

seria <strong>uma</strong> ilusão biológica e anatômica, <strong>de</strong>sconstruí<strong>da</strong> pela sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O infans encontra-se em condição <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sorganização e impotência, inun<strong>da</strong>do<br />

<strong>por</strong> intensa tensão pulsional. Diante <strong>de</strong> tamanho <strong>de</strong>samparo são as experiências <strong>de</strong><br />

69


satisfação, geralmente propicia<strong>da</strong>s pelo cui<strong>da</strong>do materno, que vão garantir alento e<br />

orientação ao caos pulsional do pequeno ser. A mãe é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira referência para a<br />

criança, faz um trabalho <strong>de</strong> mediadora entre o bebê e o meio externo e sua presença<br />

propicia que experiências <strong>de</strong> satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais básicas se realizem. A<br />

criança, através <strong>da</strong> rememoração <strong>de</strong>ssas experiências <strong>de</strong> satisfação obti<strong>da</strong>s com a mãe,<br />

inaugura um mundo <strong>de</strong> sonhos, fantasias, alucinações, enfim, ingressa na dimensão <strong>da</strong><br />

or<strong>de</strong>m simbólica e <strong>da</strong> elaboração psíquica. Essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s fantasísticas são <strong>de</strong><br />

fun<strong>da</strong>mental im<strong>por</strong>tância para que a criança elabore o acúmulo <strong>de</strong> tensão em seu aparelho.<br />

Desse modo, a função materna exerce um papel indispensável no sentido <strong>de</strong> conduzir<br />

o bebê a construir ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> fantasia e representação. O bebê, <strong>por</strong> sua vez, balizado<br />

nessas aquisições e na <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sejante passa a estabelecer suas relações com o<br />

outro e a constituir sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Esse processo todo que se dá na relação entre a mãe e o bebê na<strong>da</strong> mais é do que a<br />

inserção do <strong>corpo</strong> biológico <strong>da</strong> criança na dimensão <strong>da</strong> linguagem. A mãe vai aos poucos<br />

conferindo sentido às sensações do bebê, transformando-as num dizer. A linguagem dá<br />

sentido e forma às experiências cor<strong>por</strong>ais, <strong>de</strong> modo que não há existência para o ser<br />

h<strong>uma</strong>no num âmbito exterior a ela. Assim, o <strong>corpo</strong> biológico vai sendo tecido e colocado<br />

em <strong>uma</strong> posição inscrita pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um outro.<br />

Segundo Pinheiro (2002, p.239), o <strong>corpo</strong> para a psicanálise é um <strong>corpo</strong> concebido na<br />

linguagem. “É a partir do universo simbólico do adulto que a hierarquia do prazer ocupará a<br />

superfície cor<strong>por</strong>al do bebê”, conferindo ao <strong>corpo</strong>, segundo ela, o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>linguagem.<br />

A incompletu<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong> são, então, o que coloca o sujeito na<br />

<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> um outro para realizar a experiência <strong>de</strong> satisfação. O <strong>corpo</strong> como <strong>uma</strong><br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> não é originário, ao contrário, é <strong>uma</strong> conquista a partir <strong>de</strong> um imagem cor<strong>por</strong>al<br />

prefigura<strong>da</strong> e antecipa<strong>da</strong> <strong>por</strong> um outro, representado <strong>pelas</strong> figuras parentais com o advento<br />

do narcisismo.<br />

A construção do eu e do <strong>corpo</strong> totalizado é resultante <strong>da</strong> i<strong>de</strong>alização <strong>da</strong>s figuras<br />

parentais sobre o infans. Po<strong>de</strong>-se falar em um projeto narcísico dos pais em relação à<br />

criança: esse <strong>corpo</strong> que adquire <strong>uma</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> já era falado pelos pais, já estava engajado em<br />

<strong>uma</strong> história, em um mito familiar. O narcisismo infantil é, assim, fruto do narcisismo dos<br />

70


pais, <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> perdi<strong>da</strong> pelos pais e reedita<strong>da</strong> na criança, que vive então seu<br />

momento <strong>de</strong> onipotência – “sua majesta<strong>de</strong> o bebê” - estado original do eu em que ele é<br />

inteiramente investido pela libido, é o que Freud (1914/1996) <strong>de</strong>limita como narcisismo<br />

primário marcado <strong>por</strong> um eu i<strong>de</strong>al onipotente. É o narcisismo se constituindo como barreira<br />

contra o <strong>de</strong>samparo e a precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> característicos do h<strong>uma</strong>no.<br />

É somente através <strong>de</strong> um outro que a criança vai se perceber diferente e ser capaz <strong>de</strong><br />

construir <strong>uma</strong> representação mental <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem unifica<strong>da</strong> <strong>de</strong> si, e o narcisismo é essa<br />

operação psíquica que faz com que o sujeito ass<strong>uma</strong> a imagem <strong>de</strong> seu <strong>corpo</strong> como sua e se<br />

i<strong>de</strong>ntifique com ela. 17<br />

O outro, através <strong>da</strong> linguagem e comunicação que <strong>de</strong>tém, liga ao sujeito os<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> história na qual se inscrevem um passado e um futuro. O sujeito,<br />

então, advém <strong>da</strong>s marcas <strong>de</strong> um investimento pulsional do outro, que inscreve as insígnias<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo que não é originalmente do sujeito. A <strong>pulsão</strong> inicia o seu circuito num campo<br />

alteritário, exterior tanto ao sujeito quanto ao <strong>corpo</strong>. Esse lugar exterior é <strong>da</strong>í que a <strong>pulsão</strong><br />

investe o <strong>corpo</strong>. O processo <strong>de</strong> constituição do sujeito se origina, então, nesse investimento<br />

pulsional do outro associado aos elementos <strong>da</strong> linguagem.<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir que a intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, pauta<strong>da</strong> pela linguagem, é a condição <strong>de</strong><br />

viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> produção singular <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> e <strong>de</strong> um sujeito do inconsciente. É <strong>de</strong>ssa<br />

relação intersubjetiva, basea<strong>da</strong> na primazia do sentido, que o enunciado freudiano está<br />

tratando. O sujeito só se constitui através <strong>de</strong> um outro que sirva <strong>de</strong> su<strong>por</strong>te para a<br />

transformação, interpretação e inscrição <strong>da</strong> força pulsional no campo <strong>da</strong> representação.<br />

17 Lacan (1949/1998) <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> estádio do espelho esse momento inaugural <strong>da</strong> constituição do eu que<br />

Freud estabelece a partir do narcisismo, no qual o infans prefigura <strong>uma</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> cor<strong>por</strong>al a partir <strong>de</strong> sua<br />

própria imagem no espelho, através do apoio (su<strong>por</strong>te) e do assentimento <strong>de</strong> um outro. Isso ocorre ain<strong>da</strong> em<br />

<strong>uma</strong> fase anterior à aquisição <strong>da</strong> linguagem. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, há <strong>uma</strong> antecipação <strong>da</strong> imagem do eu diante <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

prematuri<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica (tanto do aspecto neurológico quanto do aspecto motor) do pequeno ser. A criança,<br />

mergulha<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> em <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> impotência motora, se precipita na direção do que Lacan chama <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

forma ortopédica, representa<strong>da</strong> <strong>por</strong> <strong>uma</strong> Gestalt <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>corpo</strong>. A constituição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem<br />

unificadora do <strong>corpo</strong> se dá pela visão <strong>de</strong> um semelhante e pela visão <strong>de</strong> seu próprio <strong>corpo</strong> através <strong>de</strong> sua<br />

imagem refleti<strong>da</strong> no espelho. O sujeito apanhado na i<strong>de</strong>ntificação espacial elabora ilusoriamente a passagem<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> sensação <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> <strong>de</strong> seu <strong>corpo</strong> até <strong>uma</strong> imagem <strong>de</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> próprio. A<br />

criança <strong>de</strong>scobre no espelho a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> imaginária <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> são apenas sensações múltiplas<br />

e dispersas. Para Lacan (1949/1998), a imagem totaliza<strong>da</strong> <strong>de</strong> si tem sua origem no campo do outro,<br />

constituindo-se na <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> relação intersubjetiva que <strong>de</strong>marca dois eixos: o do sujeito e seu <strong>corpo</strong><br />

e o do outro. O eu ganha consistência a partir <strong>da</strong> relação com o outro; a percepção <strong>de</strong> seu <strong>corpo</strong> como inteiro<br />

se dá através <strong>de</strong> um outro que lhe sustenta e lhe dirige o olhar.<br />

71


Esse é um aspecto im<strong>por</strong>tante a ser consi<strong>de</strong>rado, visto que a <strong>pulsão</strong> não é mais<br />

imediatamente representa<strong>da</strong>, é preciso o investimento <strong>de</strong> um outro para que a força<br />

pulsional se ligue aos objetos e que o psiquismo se constitua. Na leitura <strong>de</strong> Birman (2000,<br />

p.136), a <strong>pulsão</strong> como força e medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> exigência <strong>de</strong> trabalho seria um primeiro momento<br />

<strong>da</strong> formulação <strong>da</strong> hipótese <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, na medi<strong>da</strong> em que sem a intervenção do<br />

outro para mediar a inscrição psíquica o movimento seria para a morte. Encaminharemos,<br />

então, essa discussão para nosso próximo capítulo, <strong>de</strong>dicado à vira<strong>da</strong> na teoria pulsional.<br />

Contudo, esse aspecto ain<strong>da</strong> não é eluci<strong>da</strong>do <strong>por</strong> Freud nessa primeira etapa do<br />

pensamento freudiano, centra<strong>da</strong> na primeira tópica – Inconsciente, Pré-consciente,<br />

Consciente – e eminentemente no campo <strong>da</strong> representação. Mesmo com a introdução do<br />

elemento força à <strong>pulsão</strong> em 1915, que enten<strong>de</strong>mos como um im<strong>por</strong>tante precursor <strong>da</strong><br />

introdução <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, a <strong>pulsão</strong> acaba <strong>por</strong> ser representa<strong>da</strong> pela mediação do outro,<br />

pois não havia ain<strong>da</strong> a idéia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação, que somente surge em 1920<br />

com Além do princípio do prazer. Há, então, <strong>uma</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> inscrição necessária <strong>da</strong><br />

<strong>pulsão</strong> no campo <strong>da</strong> representação.<br />

Retomando Freud em A Interpretação dos Sonhos - capítulo VII – , quando<br />

propõe o aparelho psíquico como um aparelho <strong>de</strong> memória, é <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong><br />

representação e articulação <strong>de</strong> vias simbólico-associativas que ele está tratando.<br />

As impressões referentes às primeiras vivências infantis, vivências <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong><br />

auto-erótico, repleto <strong>de</strong> zonas erógenas são a expressão <strong>de</strong> pura intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Essas impressões, segundo esse primeiro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tópica freudiano, seriam<br />

inscritas no sistema <strong>de</strong> memória, transformando-se em traços mnêmicos, os quais<br />

<strong>por</strong> sua vez, em conjunto, formariam um registro <strong>de</strong> associações, <strong>uma</strong> trama<br />

associativa.<br />

O traço mnêmico, resultado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> inscrição <strong>da</strong> impressão, é constitutivo <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> zona erógena sendo, <strong>por</strong>tanto, imediatamente cor<strong>por</strong>al. Vê-se, assim, que a<br />

memória psíquica é, antes <strong>de</strong> tudo, cor<strong>por</strong>al. Esse conjunto <strong>de</strong> traços inscritos<br />

que forma o aparelho psíquico é ao mesmo tempo psíquico e cor<strong>por</strong>al. Constata-<br />

se aí, já no começo <strong>da</strong> elaboração freudiana <strong>de</strong> aparelho psíquico a forte presença<br />

do <strong>corpo</strong> e a fronteira que <strong>de</strong>limita o que vem do <strong>corpo</strong> e o que se inscreve como<br />

72


psíquico, que para Freud nesse momento significa inscrições simbólicas,<br />

representações.<br />

Quando a impressão não se inscreve, ou seja, não vira traço e, <strong>por</strong>tanto, não é<br />

mediatiza<strong>da</strong> pela lembrança, ela adquire o estatuto <strong>de</strong> marca 18 . As marcas<br />

estariam, então, para além do domínio do princípio do prazer, apontando para<br />

<strong>uma</strong> outra or<strong>de</strong>m que não a <strong>da</strong> representação. Freud se <strong>de</strong>teve no domínio dos<br />

traços <strong>por</strong>que nesse momento ele estava preocupado com o sistema associativo-<br />

representativo.<br />

A partir <strong>de</strong>ssa breve retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> constituição do aparelho psíquico <strong>por</strong> Freud<br />

em A Interpretação dos Sonhos, po<strong>de</strong>mos ver aí não só a fronteira entre o psíquico e<br />

o cor<strong>por</strong>al na base <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> freudiana <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

como também a fronteira entre o campo <strong>da</strong> representação (com a idéia <strong>de</strong> traço e<br />

inscrição) e o campo <strong>da</strong> não representação (com a idéia <strong>de</strong> impressão e marca).<br />

Esses dois âmbitos coexistem no psiquismo e se Freud priorizou o limite do<br />

representável na primeira parte <strong>de</strong> sua teoria foi para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s<br />

psicopatologias <strong>de</strong> sua época, ou seja, as chama<strong>da</strong>s psiconeuroses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa,<br />

caracteriza<strong>da</strong>s <strong>por</strong> um sintoma neurótico cuja via <strong>de</strong> formação é simbólica.<br />

Até este momento Freud concebia a força pulsional como inscrita no campo <strong>da</strong>s<br />

representações, liga<strong>da</strong> aos objetos através <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> satisfação, sendo a <strong>pulsão</strong><br />

representa<strong>da</strong> como sexual e regula<strong>da</strong> pelo princípio do prazer. Esse fato nos convoca a<br />

<strong>de</strong>limitar a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que Freud nos aponta nesse momento. Parece-nos viável<br />

conceber o <strong>corpo</strong> nos limites <strong>da</strong> representação, <strong>da</strong> inscrição pulsional no aparelho psíquico,<br />

<strong>corpo</strong> possuído pelo simbólico. O domínio <strong>da</strong> força pulsional, ou ain<strong>da</strong>, o amansamento <strong>da</strong>s<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pulsionais ficaria <strong>de</strong>stinado à criação <strong>de</strong> vias simbólico-associativas.<br />

Visualizamos, <strong>de</strong>sse modo, a hegemonia representacional <strong>de</strong>ssa primeira<br />

metapsicologia freudiana, on<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> e psiquismo se constituem centrados no campo <strong>da</strong><br />

representação. Da mesma maneira, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r também a escuta <strong>psicanalítica</strong><br />

18 Garcia-Roza (1991b) aponta que não há <strong>uma</strong> distinção clara em Freud entre os termos impressão e traço,<br />

mas sinaliza que a impressão, referente à idéia <strong>de</strong> eindrücke em Freud, indica para o que ele chama <strong>de</strong> marca<br />

(prägung), ou seja, algo que não recebeu inscrição e que permanece como pura intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

73


volta<strong>da</strong> para o <strong>de</strong>ciframento <strong>da</strong>s inscrições, <strong>de</strong>limitando a sua metodologia no campo <strong>da</strong><br />

interpretação. O analista é, em última instância, o intérprete dos representantes <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Nesse contexto, tornar consciente o inconsciente era o objetivo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> análise. O<br />

trabalho analítico se direcionava para a busca <strong>de</strong> significações recalca<strong>da</strong>s. O entendimento<br />

do sintoma e do psiquismo se enquadrava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa perspectiva representacionista, on<strong>de</strong><br />

as intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pulsionais se inscreviam no campo <strong>da</strong>s representações, n<strong>uma</strong> relação<br />

dinâmica entre os diferentes sistemas ou instâncias psíquicas (Ics, Pcs-Cs). Desse modo,<br />

num primeiro momento, a psicanálise só po<strong>de</strong>ria examinar os sintomas que se inscreveriam<br />

no universo <strong>da</strong> representação, tanto que, como vimos no capítulo I, as neuroses atuais (on<strong>de</strong><br />

a excitação não alcançava representação psíquica) ficaram <strong>de</strong> fora dos domínios do<br />

analisável.<br />

A emergência, no horizonte freudiano, <strong>de</strong> sintomas como a repetição, o apego à<br />

doença, o sentimento <strong>de</strong> culpa, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> punição e os fenômenos do masoquismo<br />

vão colocar em xeque o princípio do prazer, atestando que os eventos mentais não são<br />

exclusivamente governados <strong>por</strong> ele e indicando a presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova categoria pulsional<br />

que Freud vai <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Nesse segundo momento, o limite do<br />

irrepresentável vai se fazer presente tanto em sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong> clínica quanto na sua obra.<br />

Freud só veio a se <strong>de</strong>ter nesse domínio do irrepresentável com a introdução do conceito <strong>de</strong><br />

<strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte.<br />

A dimensão intensiva <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> vai ganhar <strong>de</strong>staque, constituindo-se como um divisor<br />

<strong>de</strong> águas no pensamento freudiano. As repercussões <strong>de</strong>ssa nova categoria pulsional para a<br />

questão do <strong>corpo</strong> na psicanálise <strong>de</strong>limitam nosso próximo passo: o <strong>corpo</strong> no limite do<br />

irrepresentável.<br />

74


CAPÍTULO III<br />

O CORPO NO LIMITE DO IRREPRESENTÁVEL<br />

A introdução do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte e a conseqüente vira<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra freudiana<br />

caracteriza<strong>da</strong> pela segun<strong>da</strong> teoria pulsional são o foco <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>sse capítulo.<br />

A ênfase no aspecto <strong>de</strong> força <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> introduzido <strong>por</strong> Freud em 1915, no artigo<br />

Pulsões e suas vicissitu<strong>de</strong>s, atinge maiores pro<strong>por</strong>ções com a conceituação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte, on<strong>de</strong> a força pulsional se autonomiza do campo <strong>da</strong> representação, <strong>de</strong>notando a<br />

existência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação.<br />

Até 1915 Freud vinha trabalhando com a questão <strong>da</strong> força pulsional já atuante no<br />

conflito psíquico, ou seja, com a força já inscrita no registro <strong>da</strong> representação. A energia era<br />

trabalha<strong>da</strong> <strong>por</strong> Freud no interior do aparelho psíquico; a energia era psíquica. Com a<br />

conceituação pulsional <strong>de</strong> 1915 Freud pressupõe que a força precisa ser trabalha<strong>da</strong> para que<br />

ingresse no campo psíquico <strong>da</strong> representação, <strong>da</strong>í a idéia que mencionamos <strong>de</strong> um intervalo<br />

entre força e representação. Há aí a formulação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pura energia que precisa passar <strong>por</strong><br />

um processo <strong>de</strong> inscrição no domínio psíquico.<br />

Esse conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> limítrofe entre força e representação e como medi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

exigência <strong>de</strong> trabalho estabelece as bases energéticas para o funcionamento do psiquismo.<br />

As conseqüências mais radicais e im<strong>por</strong>tantes que a ênfase na questão <strong>da</strong> força pulsional<br />

vai trazer só serão elabora<strong>da</strong>s e sistematiza<strong>da</strong>s com a introdução <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte.<br />

Desse modo, o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> 1915 abriu um novo horizonte para Freud, ain<strong>da</strong><br />

que centrado eminentemente no campo <strong>da</strong> representação. Entretanto, essa hegemonia<br />

representacional começa a ser relativiza<strong>da</strong> com a questão <strong>da</strong> força <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, sendo a partir<br />

75


<strong>de</strong> 1920, então contraposta com a emergência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação - a <strong>pulsão</strong><br />

<strong>de</strong> morte. A <strong>pulsão</strong> atinge, assim, maior radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> conceitual com as postulações <strong>da</strong><br />

segun<strong>da</strong> teoria pulsional.<br />

Nesse momento trataremos <strong>de</strong> circunscrever a dimensão traumática do impacto<br />

pulsional para o sujeito, atentando para as possíveis conseqüências <strong>de</strong>ssa vira<strong>da</strong> na teoria<br />

<strong>da</strong>s pulsões para o que se propõe como <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Para além – ou aquém – do princípio do prazer: a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte<br />

A teoria <strong>da</strong>s pulsões sofre <strong>uma</strong> mu<strong>da</strong>nça radical a partir <strong>de</strong> 1920 com a introdução do<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Até aqui, <strong>de</strong>ntro dos limites <strong>da</strong> primeira tópica/primeira teoria<br />

pulsional Freud se <strong>de</strong>tém nas pulsões já captura<strong>da</strong>s pelo aparelho psíquico, pensando-as<br />

<strong>de</strong>ntro do domínio <strong>da</strong>s representações. A <strong>pulsão</strong> não é pensa<strong>da</strong> autonomamente como tendo<br />

<strong>uma</strong> existência fora <strong>da</strong> configuração representativa do aparelho. O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte vem para abarcar exatamente essa dimensão <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> que até então não tinha sido<br />

suficientemente explora<strong>da</strong>. Freud se <strong>de</strong>teve <strong>por</strong> um bom tempo atrelado ao <strong>de</strong>ciframento<br />

<strong>da</strong>s representações. No entanto, o que tinha sido <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado retorna: a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

afeto é retoma<strong>da</strong> nos escritos <strong>de</strong> 1915-20.<br />

O campo psicanalítico até então constituído pela or<strong>de</strong>m abre espaço para o caos, para<br />

o acaso, transformando assim a própria prática <strong>psicanalítica</strong>. O primeiro dualismo pulsional<br />

que teria ficado fragilizado com a introdução do narcisismo é mantido até esse período <strong>de</strong><br />

1920 quando Freud então sustenta um novo dualismo: pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> (que passam a<br />

englobar as pulsões sexuais e as pulsões do eu ou <strong>de</strong> autoconservação) e a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte.<br />

A situação que fez Freud promover a chama<strong>da</strong> vira<strong>da</strong> <strong>da</strong> teoria pulsional po<strong>de</strong> ser<br />

assim situa<strong>da</strong>: Freud (1920/1996) começava a se <strong>de</strong>parar com o fenômeno <strong>de</strong> com<strong>pulsão</strong> à<br />

repetição, evi<strong>de</strong>nciado principalmente nos sonhos <strong>da</strong>s neuroses traumáticas e na neurose <strong>de</strong><br />

transferência. O <strong>de</strong>sprazer se evi<strong>de</strong>nciava nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> repetição, colocando em<br />

xeque o princípio do prazer e trazendo a exigência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> remo<strong>de</strong>lação teórica.<br />

Nos sonhos <strong>da</strong>s neuroses traumáticas o paciente revivia repeti<strong>da</strong>mente a situação<br />

traumática <strong>por</strong> ele vivencia<strong>da</strong>, com to<strong>da</strong> a carga <strong>de</strong> terror e angústia a ela referi<strong>da</strong>. Na<br />

relação analítica <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s neuroses <strong>de</strong> transferência o paciente repetia<br />

compulsivamente to<strong>da</strong>s as suas dores e fracassos. Em ambos os casos, Freud (1920/1996)<br />

76


observava que a repetição não visava nenh<strong>uma</strong> satisfação pulsional, como rege o princípio<br />

do prazer, mas antes a dominação <strong>de</strong> um excesso <strong>de</strong> excitação ain<strong>da</strong> não tramitado <strong>pelas</strong><br />

vias associativas.<br />

Nesse contexto, o aparato simbólico não <strong>da</strong>va conta integralmente do pulsional, <strong>da</strong>í a<br />

repetição, a atualização e a <strong>de</strong>sorganização. O que se repete é o que não se consegue<br />

simbolizar, há sempre um resto não simbolizável referente a <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> que <strong>de</strong>sagrega ao<br />

mesmo tempo em que confere movimento ao sistema. Nas palavras <strong>de</strong> Freud (1937a/1996):<br />

“Se tomarmos em consi<strong>de</strong>ração o quadro total formado pelos fenômenos <strong>de</strong><br />

masoquismo imanentes em tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o<br />

sentimento <strong>de</strong> culpa encontrados em tantos neuróticos, não mais po<strong>de</strong>remos<br />

a<strong>de</strong>rir à crença <strong>de</strong> que os eventos mentais são governados exclusivamente pelo<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> prazer. Estes fenômenos constituem indicações inequívocas <strong>da</strong><br />

presença <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r na vi<strong>da</strong> mental que chamamos <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, segundo seus objetivos, e que remontamos a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte<br />

original <strong>da</strong> matéria viva” (p.259).<br />

Assim, a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte é o que está “para além do princípio do prazer”, para além<br />

<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m e do próprio aparato psíquico. Ela almeja sua própria extinção, atuando na busca<br />

<strong>de</strong> um retorno ao estado mais primitivo, inorgânico. Enquanto as pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> são<br />

numerosas e ruidosas e trabalham em prol <strong>da</strong> eliminação <strong>da</strong>s diferenças exercendo <strong>uma</strong><br />

função conservadora e <strong>de</strong> resistência à anulação, a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte é invisível e silenciosa e<br />

trabalha no sentido <strong>da</strong> dissolução, <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição. No entanto, Freud (1920/1996) as concebe<br />

sempre mistura<strong>da</strong>s, nunca em estado puro. E é <strong>por</strong> elas existirem juntas que o movimento<br />

pulsional não se extingue, ao contrário, está em permanente movimento.<br />

Desse modo, com a vira<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, Freud (1920/1996) estabelece a autonomia <strong>da</strong><br />

força pulsional e aponta para o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte como <strong>pulsão</strong> sem<br />

representação.<br />

Como há <strong>uma</strong> autonomia <strong>da</strong> força pulsional que agora ten<strong>de</strong> à quietu<strong>de</strong> absoluta<br />

possibilita<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>scarga total é preciso primeiro um domínio <strong>de</strong>ssa força e sua inscrição<br />

psíquica para que, então, passe a reger o princípio do prazer. Nesse sentido, há um além, ou<br />

melhor dizendo, um aquém do princípio do prazer que é a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, assim nomea<strong>da</strong><br />

<strong>por</strong> almejar a extinção (FREUD, 1920/1996).<br />

Desse modo, a com<strong>pulsão</strong> à repetição é “mais primitiva, mais elementar, mais<br />

pulsional que o princípio do prazer que ela domina” (FREUD, 1920/1996, p.34). A função<br />

77


epetitiva é anterior ao princípio do prazer, refere-se ao tempo <strong>de</strong> inscrição <strong>da</strong>s impressões<br />

no psiquismo. O reinado do princípio do prazer é contrariado <strong>por</strong> tendências mais<br />

originárias <strong>de</strong> inércia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (<strong>de</strong>scarga total <strong>da</strong> excitação). A função <strong>da</strong> com<strong>pulsão</strong> à<br />

repetição é a <strong>de</strong> dominar ou ligar a excitação para que então possa se estabelecer o primado<br />

do princípio do prazer, tendência então secundária ao movimento para a <strong>de</strong>scarga.<br />

A <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte remete para um excesso pulsional como força fora <strong>da</strong><br />

representação que irrompe <strong>de</strong>ntro do aparelho psíquico e que <strong>por</strong> esse motivo se configura<br />

como traumático. Diante <strong>de</strong>ssa invasão <strong>da</strong> pura força pulsional o psiquismo terá <strong>uma</strong> tarefa<br />

prévia ao acionamento do princípio do prazer, que consiste n<strong>uma</strong> primeira ligação <strong>de</strong>ssa<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia para que, então, possa se <strong>da</strong>r a <strong>de</strong>scarga.<br />

No mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aparelho psíquico do Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica (1895) e<br />

do capítulo VII <strong>da</strong> Interpretação dos sonhos (1900) a ligação pertencia ao registro do<br />

processo secundário do funcionamento psíquico, on<strong>de</strong> a energia livre que tendia a <strong>de</strong>scarga<br />

total do processo primário se convertia em energia liga<strong>da</strong> à representação através <strong>da</strong><br />

regulação do princípio <strong>de</strong> prazer, cujo imperativo <strong>de</strong> manter constante a energia no aparelho<br />

impedia tanto um excesso <strong>de</strong> energia acumula<strong>da</strong> quanto a <strong>de</strong>scarga total <strong>da</strong> mesma.<br />

A idéia <strong>de</strong> ligação presente em Além do princípio do prazer, ao contrário, está<br />

referi<strong>da</strong> ao registro do processo primário a partir <strong>da</strong> qual se tornará possível a instalação do<br />

processo secundário regido pelo princípio do prazer. Essa primeira ligação é que vai<br />

permitir a posterior captura pela representação e a <strong>de</strong>scarga do estímulo.<br />

Desse modo, a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte que ten<strong>de</strong> a um retorno à quietu<strong>de</strong> e ao inanimado é<br />

regi<strong>da</strong> pelo princípio <strong>de</strong> nirvana 19 que busca alcançar um ponto zero <strong>de</strong> tensão através <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>scarga total, apontando para <strong>uma</strong> dimensão conservadora <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> (FREUD, 1920/1996).<br />

Sendo assim, Freud enuncia <strong>uma</strong> dupla <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. A primeira<br />

relaciona<strong>da</strong> à <strong>pulsão</strong> como excesso, vincula<strong>da</strong> ao tra<strong>uma</strong> <strong>por</strong> sua dimensão intensiva que<br />

pressiona constantemente o psiquismo à inscrição <strong>da</strong> força pulsional e à reor<strong>de</strong>nação <strong>da</strong>s<br />

representações já inscritas no aparelho. A segun<strong>da</strong> relaciona<strong>da</strong> à tendência primeira do<br />

19 Em O problema econômico do masoquismo Freud evi<strong>de</strong>ncia a diferença entre princípio do prazer e<br />

princípio <strong>de</strong> nirvana: “O princípio <strong>de</strong> Nirvana expressa a tendência <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte; o princípio <strong>de</strong> prazer<br />

representa as exigências <strong>da</strong> libido, e a modificação do último princípio, o princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, representa a<br />

influência do mundo externo” (FREUD, 1924/1996, p.178, grifos <strong>de</strong> Freud).<br />

78


organismo à <strong>de</strong>scarga total que se associa ao princípio <strong>de</strong> nirvana na busca <strong>de</strong> um<br />

escoamento total <strong>da</strong> tensão e do retorno ao inanimado.<br />

Ao aniquilamento referente à <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte Freud (1920/1996) contrapõe a força <strong>de</strong><br />

Eros que se refere às pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, as quais propiciam ligação para o excesso disruptivo<br />

<strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Se a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um dualismo tão crucial para Freud havia sido<br />

abala<strong>da</strong> com a introdução do narcisismo ela se restabelece sob a oposição entre <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte e pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>mos observar textualmente a satisfação <strong>de</strong> Freud em po<strong>de</strong>r<br />

recuperar e então consoli<strong>da</strong>r, com a segun<strong>da</strong> teoria pulsional, sua perspectiva dualista:<br />

“Nossas concepções, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, foram dualistas e são hoje ain<strong>da</strong> mais <strong>de</strong>finitivamente<br />

dualistas do que antes, agora que <strong>de</strong>screvemos a oposição como se <strong>da</strong>ndo, não entre pulsões<br />

do ego e pulsões sexuais, mas entre pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e pulsões <strong>de</strong> morte” (FREUD,<br />

1920/1996, p.63).<br />

Novamente a conflituali<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>marca entre o sexual (aglutinação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual<br />

com a <strong>pulsão</strong> do eu – agora também concebi<strong>da</strong> como sexual - sob a rubrica <strong>de</strong> pulsões <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>) e o não sexual (<strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte). Se no primeiro dualismo o sexual <strong>de</strong>tinha <strong>uma</strong><br />

dimensão diabólica <strong>de</strong> perturbador <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m que precisava ser censurado <strong>pelas</strong> pulsões do<br />

eu não-sexuais, nesse segundo dualismo a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a condição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na medi<strong>da</strong> em<br />

que propicia as ligações necessárias para fazer frente à tendência originária à morte. Se<br />

antes a <strong>pulsão</strong> do eu ou <strong>de</strong> autoconservação visava preservar a vi<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual,<br />

agora é Eros que exerce essa função diante <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte.<br />

A <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte e suas implicações para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> psiquismo<br />

Com a <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte Freud teve que se abrir para <strong>uma</strong> nova<br />

perspectiva <strong>de</strong> psiquismo 20 . Já que a <strong>pulsão</strong> não é só representação, e Freud aponta para<br />

isso com o próprio conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, ele precisou pensar um pólo <strong>de</strong><br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um espaço para além <strong>da</strong> representação no psiquismo. Com isso, logo após a<br />

segun<strong>da</strong> teoria pulsional, Freud (1923/1996) elabora um segundo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tópica.<br />

20 Esse tópico visa somente apontar, <strong>de</strong> modo geral, para os principais <strong>de</strong>sdobramentos para a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong><br />

psiquismo <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte no pensamento freudiano, visto que a mesma se constitui como o fio<br />

condutor que perpassa o presente capítulo. Não preten<strong>de</strong>mos, nos limites <strong>de</strong>sse trabalho, <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> tais<br />

implicações que sabemos terem repercussões maiores na obra <strong>de</strong> Freud, mas apenas indicar que a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte se fará presente também no aparelho psíquico.<br />

79


A primeira tópica (FREUD, 1900/1996) se constituía <strong>por</strong> diferentes sistemas <strong>de</strong><br />

representação – Inconsciente, Pré-consciente, Consciente – sendo o Inconsciente<br />

equivalente ao material recalcado (ou seja, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> perverso polimorfa) pelo Eu<br />

consciente à serviço <strong>da</strong> autoconservação. A instância do Eu estaria protegi<strong>da</strong> do<br />

Inconsciente e <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> pela ação do recalque.<br />

A segun<strong>da</strong> tópica passa a abarcar um pólo no psiquismo puramente pulsional,<br />

<strong>de</strong>svinculado ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer representação – o Isso, que abrange o lugar <strong>da</strong> não<br />

inscrição pulsional e <strong>da</strong> energia não liga<strong>da</strong> referente à <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Desse modo, o Isso<br />

é maior que o inconsciente recalcado (composto <strong>pelas</strong> representações <strong>da</strong> força pulsional),<br />

pois além <strong>de</strong>ste com<strong>por</strong>ta a existência <strong>da</strong>s pulsões sem representação: todo recalcado é<br />

inconsciente, mas nem todo inconsciente é recalcado (FREUD, 1923/1996, p.31).<br />

O Isso é consi<strong>de</strong>rado o reservatório <strong>da</strong> energia psíquica, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> advirá o Eu e o<br />

Supereu, as outras duas instâncias que junto com o Isso compõem a segun<strong>da</strong> tópica<br />

freudiana. Tanto o Eu como o Supereu possuem <strong>uma</strong> parte liga<strong>da</strong> ao Isso. Desse modo,<br />

Freud (1923/1996) aponta que o Eu possui <strong>uma</strong> parte que é inconsciente, sendo também<br />

agido <strong>por</strong> forças incontroláveis: “O ego está sujeito também à influência <strong>da</strong>s pulsões, tal<br />

como o id” (p.53).<br />

Assim, ao autonomizar o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> do registro <strong>da</strong> representação,<br />

posicionando-o entre força e representação, Freud vai além do campo <strong>da</strong>s representações<br />

priorizado na primeira tópica, concebendo na segun<strong>da</strong> tópica um lugar para a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte no psiquismo.<br />

Consi<strong>de</strong>raremos, então, a seguir, as implicações <strong>de</strong>ssa vira<strong>da</strong> <strong>da</strong> teoria pulsional no<br />

pensamento freudiano.<br />

Pulsão e alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>: o fun<strong>da</strong>mento mortalista<br />

Freud realiza então <strong>uma</strong> outra leitura do h<strong>uma</strong>no e <strong>da</strong> constituição psíquica e<br />

subjetiva, pautando-se num fun<strong>da</strong>mento mortalista (BIRMAN, 1999a). A vi<strong>da</strong> não se afirma<br />

<strong>por</strong> si só como ele havia pensado. A existência <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte indica que o movimento<br />

básico do organismo é para a morte (FREUD, 1920/1996). Nesse sentido, Freud se inscreve<br />

80


n<strong>uma</strong> tradição inicia<strong>da</strong> <strong>por</strong> Bichat, cujo postulado é <strong>de</strong> que a “vi<strong>da</strong> é o conjunto <strong>de</strong> forças<br />

que lutam contra a morte” (BICHAT apud BIRMAN, 1999a, p.158). A vi<strong>da</strong>, então, é o<br />

resultado <strong>de</strong> um esforço contínuo para dominar essa tendência originária à morte. Segundo<br />

Birman (op.cit., p.158), nessa perspectiva, a vi<strong>da</strong> seria <strong>uma</strong> construção contínua e um vir-aser<br />

permanente, não sendo <strong>uma</strong> tendência originária do organismo h<strong>uma</strong>no.<br />

Visualizamos, com isso, <strong>uma</strong> mu<strong>da</strong>nça em relação ao mo<strong>de</strong>lo vitalista presente no<br />

discurso freudiano até esse rompimento <strong>de</strong> 1920. Conforme apresentamos no segundo<br />

capítulo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica Freud postula <strong>uma</strong> “exigência <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>” que faz o organismo funcionar e o psiquismo se constituir. Nos Três ensaios sobre a<br />

teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao postular o primeiro quadro <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s pulsões – opondo<br />

pulsões <strong>de</strong> autoconservação e pulsões sexuais – Freud reserva um papel <strong>de</strong> su<strong>por</strong>te<br />

biológico à conservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a partir do qual a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se constituiria.<br />

Na seqüência <strong>de</strong>sse pensamento, em 1910, pulsões do eu e pulsões <strong>de</strong><br />

autoconservação tornam-se equivalentes e, assim, o eu aparece como estrutura psíquica<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na autoconservação do indivíduo. O eu seria a instância que po<strong>de</strong>ria manter os<br />

interesses vitais do mesmo.<br />

Vimos que esse quadro começa a se reverter com a introdução do narcisismo, em<br />

1914, on<strong>de</strong> o eu passa a ser sexualizado, objeto <strong>de</strong> investimento libidinal. No entanto, Freud<br />

ain<strong>da</strong> se referia ao interesse no que diz respeito à natureza <strong>da</strong>s pulsões do eu, para manter o<br />

dualismo em relação às pulsões sexuais, tornando esse ponto obscuro.<br />

No entanto, é somente com a vira<strong>da</strong> para a segun<strong>da</strong> teoria pulsional que Freud<br />

consoli<strong>da</strong> a sua mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> posição <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo vitalista para um mo<strong>de</strong>lo mortalista,<br />

questionando <strong>de</strong>finitivamente o peso que ele conferira a autoconservação biológica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>mos constatar isso nas suas próprias palavras:<br />

“A hipótese <strong>de</strong> pulsões <strong>de</strong> autoconservação, tais como as atribuímos a todos os<br />

seres vivos, alteia-se em acentua<strong>da</strong> oposição à idéia <strong>de</strong> que a vi<strong>da</strong> pulsional,<br />

como um todo, sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a im<strong>por</strong>tância<br />

teórica <strong>da</strong>s pulsões <strong>de</strong> autoconservação, auto-afirmação e domínio diminui<br />

gran<strong>de</strong>mente [...] Não temos mais <strong>de</strong> levar em conta a enigmática <strong>de</strong>terminação<br />

do organismo (tão difícil <strong>de</strong> encaixar em qualquer contexto) <strong>de</strong> manter sua<br />

própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato <strong>de</strong> que o<br />

organismo <strong>de</strong>seja morrer apenas do seu próprio modo” (FREUD, 1920/1996,<br />

p.50).<br />

81


Com isso, Freud contrasta sua visão prévia <strong>de</strong> que a <strong>pulsão</strong> era um fator impelidor no<br />

sentido <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça e do <strong>de</strong>senvolvimento com sua mais nova <strong>concepção</strong>, na direção<br />

oposta, <strong>de</strong> que a <strong>pulsão</strong> é a expressão <strong>da</strong> natureza conservadora do ser vivo. Assim, Freud<br />

<strong>de</strong>strona o fun<strong>da</strong>mento vitalista <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> e condiciona o <strong>de</strong>senvolvimento e a manutenção<br />

<strong>da</strong> sobrevivência à influências externas <strong>de</strong>cisivas, as quais “obrigam a substância ain<strong>da</strong><br />

sobrevivente a divergir mais amplamente <strong>de</strong> seu original curso <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e a efetuar détours<br />

mais complicados antes <strong>de</strong> atingir seu objetivo <strong>de</strong> morte” (FREUD, 1920/1996, p.49).<br />

Isso remete para <strong>uma</strong> outra lógica no pensamento freudiano. A existência subjetiva<br />

passa a estar inevitavelmente atrela<strong>da</strong> à externali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao investimento do outro. Essa nova<br />

abor<strong>da</strong>gem será sustenta<strong>da</strong> nessa vira<strong>da</strong> pulsional, com o enunciado <strong>de</strong> que o organismo<br />

ten<strong>de</strong> para a morte. O aparelho psíquico, o <strong>corpo</strong> e o sujeito só se constituem e se mantêm<br />

pelo investimento do outro que vai conferir viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a vi<strong>da</strong> erógena e psíquica e,<br />

<strong>de</strong>sse modo, oferecer <strong>uma</strong> ligação à força pulsional.<br />

Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>marcar aí não mais um apoio interno do psiquismo no orgânico – como<br />

aparece nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> -, mas um apoio externo, lançado<br />

na relação do organismo com o outro. Nesse sentido, o organismo só sobrevive com a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> constituição psíquica, dito <strong>de</strong> outra forma, o psiquismo é a condição <strong>de</strong><br />

viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do organismo.<br />

No Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica e nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> o outro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já assume um papel im<strong>por</strong>tante, seja <strong>de</strong> promover a ação<br />

específica, seja <strong>de</strong> sexualizar o <strong>corpo</strong> do infante, mas o outro ain<strong>da</strong> não tem o estatuto <strong>de</strong><br />

condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> existência, pois há a crença <strong>de</strong> Freud na autopreservação <strong>de</strong> si<br />

referi<strong>da</strong> ao plano <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> biologia.<br />

Com a introdução do narcisismo que sexualiza até mesmo a autoconservação e com a<br />

ênfase na força pulsional a partir <strong>de</strong> 1915 Freud se encaminha para a vira<strong>da</strong> na teoria<br />

pulsional, vislumbrando o mortalismo. O outro passa a ser condição <strong>de</strong> existência e<br />

viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> constituição psíquica (BIRMAN, 1999b), plano esse antes referido a <strong>uma</strong><br />

or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que se impunha.<br />

O que fica explícito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o contexto <strong>da</strong> introdução do narcisismo (FREUD,<br />

1914/1996) é que o eu não é originário, não existe inicialmente a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> eu,<br />

82


mas apenas a dispersão <strong>da</strong>s pulsões auto-eróticas. Se o eu não é originário ele se constitui a<br />

partir do outro, assim como o <strong>corpo</strong> pulsional e a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Em O Ego e o Id Freud (1923/1996, p.39) vai indicar que “o ego é, primeiro e acima<br />

<strong>de</strong> tudo, um ego cor<strong>por</strong>al”, isto é, ele “não é simplesmente <strong>uma</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superfície, mas<br />

é, ele próprio, a projeção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> superfície”, retomando assim, à luz <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> teoria<br />

pulsional, o que ele já tinha formulado em 1914 quando pensou o narcisismo. O que<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa asserção freudiana é que o <strong>corpo</strong> confere um estatuto <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ao eu. Freud nos aponta para a constituição egóica através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> representação cor<strong>por</strong>al<br />

só torna<strong>da</strong> possível pelo assentimento <strong>de</strong> um outro. A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representar o <strong>corpo</strong><br />

próprio lança<strong>da</strong> na alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> nos aponta, mais <strong>uma</strong> vez, para a im<strong>por</strong>tância do outro para a<br />

existência subjetiva.<br />

O <strong>corpo</strong> no limite do irrepresentável<br />

Diante <strong>de</strong>ssa nova configuração pulsional consi<strong>de</strong>ramos que novos horizontes se<br />

abrem para pensar a questão do <strong>corpo</strong> para a psicanálise. Partiremos <strong>de</strong> duas questões, quais<br />

sejam: como o <strong>corpo</strong> passa a ser concebido pela psicanálise com a introdução do conceito<br />

<strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte? Como o <strong>corpo</strong> se configura a partir <strong>da</strong> emergência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> força<br />

pulsional capaz <strong>de</strong> estremecer o campo <strong>da</strong>s representações?<br />

Po<strong>de</strong>mos estabelecer aí a <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> um limite, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fronteira, capaz <strong>de</strong> nos<br />

fazer (re)pensar o <strong>corpo</strong> na psicanálise. Tal fronteira, em última instância, nos remete para<br />

o limite entre, <strong>de</strong> um lado a precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> dos meios <strong>de</strong> que dispõe o nosso aparelho<br />

psíquico para dominar ou liqui<strong>da</strong>r a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, e <strong>de</strong> outro, a força sob a forma<br />

<strong>de</strong> excesso pulsional. Já que a força pulsional não po<strong>de</strong> ser inteiramente domina<strong>da</strong>, já que<br />

há sempre um resto que não é passível <strong>de</strong> simbolização pelo aparelho psíquico, o <strong>corpo</strong> vai<br />

ser constantemente passível <strong>de</strong> remanejamentos e passível <strong>de</strong> irrupções <strong>de</strong>ssa força<br />

pulsional bruta, sem representação.<br />

Joel Birman também parece estar aludindo a essa fronteira quando diz:<br />

“É preciso consi<strong>de</strong>rar também que o campo psicanalítico freudiano se abre, com<br />

a segun<strong>da</strong> teoria pulsional e a segun<strong>da</strong> tópica, para o que não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

83


linguagem e que insiste em se o<strong>por</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> simbolização. Assim, a reabertura<br />

do psiquismo para o pólo pulsional, orienta a pesquisa freudiana para o que, <strong>por</strong><br />

um lado, não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação e que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, pelo outro, um<br />

trabalho <strong>de</strong> simbolização. Então, se o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte tem<br />

epistemologicamente algum sentido na teoria <strong>psicanalítica</strong>, é no espaço crucial <strong>de</strong><br />

confronto entre a força pulsional (Drang) e o universo <strong>da</strong> representação<br />

(Vorstellung) que se realiza este embate <strong>de</strong>cisivo”. (BIRMAN, 1991b, p.70).<br />

Tendo em vista essa fronteira, a noção <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise po<strong>de</strong> ser<br />

complexifica<strong>da</strong> e situa<strong>da</strong> para mais além dos confins <strong>da</strong> representação. O <strong>corpo</strong> não é mais<br />

apenas um todo representado como po<strong>de</strong>ríamos pensar através <strong>da</strong> unificação narcísica e <strong>da</strong><br />

<strong>concepção</strong> eminentemente representativa do aparelho psíquico na primeira tópica. Ele passa<br />

a ser também palco <strong>da</strong> irrupção <strong>de</strong>ssa força pulsional autônoma, não liga<strong>da</strong> pelo aparelho,<br />

não representa<strong>da</strong> que então, no <strong>corpo</strong>, encontra <strong>uma</strong> via <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga. De acordo com<br />

Birman (2000) “o <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>verá se remanejar sem cessar, inevitavelmente, para dominar o<br />

impacto traumático <strong>da</strong> força pulsional” (p.65).<br />

Assim, a introdução <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte - com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem<br />

representação-, nos aponta para pensar a questão do <strong>corpo</strong> para a psicanálise, mais<br />

especificamente, pensar as implicações <strong>de</strong> tal reformulação na constituição do que Birman<br />

(2000) chama <strong>de</strong> “<strong>corpo</strong>-sujeito”. Essa <strong>de</strong>nominação marca a inexistência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> duali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre o sujeito e seu <strong>corpo</strong>, sendo essa duali<strong>da</strong><strong>de</strong> somente precursora do modo <strong>de</strong> exercer a<br />

psicanálise hoje, que <strong>de</strong>ixa gran<strong>de</strong> parte do mal-estar <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> fora <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> escuta, segundo o autor.<br />

A partir <strong>de</strong>ssa revisão teórica, reafirmamos a im<strong>por</strong>tância fun<strong>da</strong>mental do conceito <strong>de</strong><br />

<strong>pulsão</strong> para se pensar na questão do <strong>corpo</strong> em psicanálise, visto que todo o processo <strong>de</strong><br />

constituição do eu e do <strong>corpo</strong> do sujeito se dá através dos incessantes remanejamentos<br />

pulsionais.<br />

Ain<strong>da</strong> que a psicanálise tenha o pulsional como principal estatuto <strong>de</strong> sua <strong>concepção</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong>, é preciso lembrar que esse pulsional nem sempre é sinônimo <strong>de</strong> representação.<br />

Com o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte o <strong>corpo</strong> é também palco <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem<br />

representação, ou ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> um irrepresentável, que se presentifica. E estão aí to<strong>da</strong>s essas<br />

novas formas <strong>de</strong> subjetivação para apontar nesse sentido. Portanto, é com o representável e<br />

o irrepresentável, é com essa fronteira que a psicanálise é confronta<strong>da</strong> a li<strong>da</strong>r nos dias <strong>de</strong><br />

hoje.<br />

84


Tal fronteira, longe <strong>de</strong> ser um impasse, consi<strong>de</strong>ramos como a condição <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abarcar as múltiplas formas <strong>da</strong> experiência subjetiva, que nem sempre são<br />

passíveis <strong>de</strong> serem dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentido, que nem sempre po<strong>de</strong>m ser abarca<strong>da</strong>s pela<br />

representação e que nem <strong>por</strong> isso <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser legítimas.<br />

Retomando as diversas pontuações que já realizamos em torno <strong>de</strong>ssa questão do <strong>corpo</strong><br />

na obra <strong>de</strong> Freud e consi<strong>de</strong>rando essas reformulações na teoria pulsional, pu<strong>de</strong>mos observar<br />

que novos elementos são acrescentados a essa discussão. Des<strong>de</strong> seus Estudos sobre a<br />

histeria Freud (1893-1895) trabalha em direção a <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sconstrução, ou pelo menos, a um<br />

distanciamento em relação à or<strong>de</strong>m do <strong>corpo</strong> toma<strong>da</strong> pela medicina – <strong>corpo</strong> somático,<br />

anatômico, puramente fisiológico, <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> Natureza.<br />

No contexto histérico Freud já circunscreve o <strong>corpo</strong> num registro inovador, centrado<br />

na linguagem e no erotismo. Nos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> esse novo<br />

estatuto do <strong>corpo</strong> ganha mais <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>, concebido como produzido pela incidência do<br />

sexual, marcado pela erogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> e pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa <strong>concepção</strong> já <strong>de</strong>marca <strong>uma</strong><br />

diferença para com o registro puramente orgânico. Contudo, esse estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong><br />

pulsional configurava-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um horizonte ain<strong>da</strong> marca<strong>da</strong>mente representativo do<br />

pensamento freudiano, já que contem<strong>por</strong>âneo <strong>da</strong> primeira tópica e primeira teoria pulsional.<br />

Com a introdução do que nomeamos aqui <strong>de</strong> fronteira do irrepresentável o <strong>corpo</strong><br />

passa a ser alvo <strong>de</strong> um impacto pulsional – <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte – que o insere mais<br />

radicalmente no âmbito <strong>de</strong> <strong>uma</strong> economia. As intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pulsionais, nem sempre<br />

abarca<strong>da</strong>s pelo campo <strong>da</strong> representação, lhe conferem a exigência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> constante<br />

construção e reconstrução, num movimento incessante e continuado <strong>de</strong> configuração<br />

corpórea.<br />

Nesse sentido, com o relevo que essa dimensão econômica adquire no pensamento<br />

freudiano, o outro enquanto externali<strong>da</strong><strong>de</strong> ganha, como vimos, função im<strong>por</strong>tante no que<br />

estamos estabelecendo como estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise. Se num primeiro<br />

momento Freud concebe o <strong>corpo</strong> pulsional a partir <strong>da</strong> concretu<strong>de</strong> orgânica, o <strong>corpo</strong> se<br />

constituindo a partir do registro somático, como fica claro nas teses dos Três ensaios sobre<br />

a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, num segundo momento, segun<strong>da</strong> teoria pulsional, um outro<br />

registro - o <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> - é enfatizado para pensarmos a constituição do <strong>corpo</strong>.<br />

85


Freud se <strong>de</strong>satrela um pouco <strong>da</strong> concretu<strong>de</strong> orgânica e biológica na qual ele se<br />

apoiava para pensar a constituição do <strong>corpo</strong> e passa a se referir mais ao outro como<br />

condição libidinal para se constituir. O estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> em Freud está, assim, pautado<br />

minimamente <strong>por</strong> esses dois registros que lhe conferem contornos absolutamente<br />

inovadores. Digamos que, com essa <strong>concepção</strong> original, Freud retira o <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> assepsia e<br />

calculabili<strong>da</strong><strong>de</strong> anatômica para lançá-lo como construção na relação com o fora, com o<br />

outro e com cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>s outras igualmente.<br />

Nesse sentido, compartilhamos e reiteramos a formulação fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> Birman <strong>de</strong><br />

que <strong>corpo</strong> não é organismo e que não po<strong>de</strong>mos confundir esses dois registros. O organismo<br />

é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estritamente biológica, ao passo que o <strong>corpo</strong> é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sexual e pulsional<br />

(BIRMAN, 2000, p.58). Na visão <strong>de</strong>sse autor, o <strong>corpo</strong> se constitui pela transformação <strong>da</strong><br />

or<strong>de</strong>m do organismo através dos diferentes <strong>de</strong>stinos <strong>da</strong>s forças pulsionais que o<br />

territorializam. O <strong>corpo</strong> é concebido como um “território ocupado do organismo, isto é,<br />

como um conjunto <strong>de</strong> marcas impressas sobre e no organismo pela inflexão promovi<strong>da</strong> pelo<br />

Outro” (BIRMAN, 2000, p.62). Nessa linha <strong>de</strong> pensamento o <strong>corpo</strong> é <strong>uma</strong> produção<br />

pulsional, é antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong> <strong>de</strong>stino.<br />

Essa <strong>concepção</strong> é <strong>de</strong>corrente, sobretudo, <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sdobramentos que apresentamos em<br />

relação à teoria pulsional, principalmente <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, que <strong>de</strong>flagra a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mediação do outro para a sobrevivência e constituição psíquica. Isso aponta<br />

para <strong>uma</strong> condição originária insuperável <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo, que lança o sujeito em <strong>uma</strong> eterna<br />

<strong>de</strong>pendência do investimento alteritário.<br />

O que fica claro sob esse ponto <strong>de</strong> vista mortalista em Freud é que o organismo<br />

h<strong>uma</strong>no é incompetente para sobreviver sem o outro, ou melhor, sem o investimento<br />

libidinal do outro que o ofereça meios <strong>de</strong> conferir <strong>de</strong>stinos ao impacto <strong>da</strong> força pulsional.<br />

Por si só o organismo é incompleto, irrepresentável e incapaz do ponto <strong>de</strong> vista vital. Sua<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação está na constituição <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> via investimento. E isso<br />

implica consi<strong>de</strong>rar <strong>uma</strong> constituição psíquica e libidinal.<br />

Nesse sentido, a oposição <strong>corpo</strong> e psiquismo não se sustenta no pensamento <strong>de</strong> Freud.<br />

Ao contrário, i<strong>de</strong>ntificamos em seu discurso um esforço contínuo em superar tal dualismo.<br />

A produção do <strong>corpo</strong> indica exatamente sua relação inextrincável com o psíquico no intuito<br />

<strong>de</strong> conferir <strong>uma</strong> condição <strong>de</strong> existência. O constante impacto <strong>da</strong> força pulsional é que vai<br />

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conferir movimento às configurações corpóreas e subjetivas, como <strong>uma</strong> via possível para o<br />

sujeito <strong>de</strong> <strong>uma</strong> constante (re)criação e reinvenção <strong>de</strong> si.<br />

Nesse contexto, gostaríamos apenas <strong>de</strong> apontar que a posição do analista <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

somente a <strong>de</strong> intérprete <strong>da</strong>s inscrições pulsionais, como se configurou em boa parte do<br />

discurso freudiano, para se voltar a essa dimensão intensiva como um possível su<strong>por</strong>te para<br />

a realização <strong>de</strong> simbolizações primordiais. Mais do que um trabalho <strong>de</strong> rememoração e<br />

interpretação, a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte traz à tona para Freud a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> construções em<br />

análise. (FREUD, 1937b/1996).<br />

Entre o psíquico e o somático – o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> na psicanálise<br />

A partir <strong>de</strong> tudo que vimos dizendo, apontamos que Freud nunca excluiu <strong>de</strong> sua linha<br />

<strong>de</strong> pensamento a referência biológica, no entanto, construiu <strong>uma</strong> outra <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

O registro do somático e do organismo sempre esteve no horizonte freudiano e não é à<br />

toa que ao postular a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil Freud ancora a <strong>pulsão</strong> sexual no somático,<br />

comprometendo-se com <strong>uma</strong> noção <strong>de</strong> apoio que partia do princípio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> separação<br />

entre pulsões <strong>de</strong> autoconservação e pulsões sexuais. Nesse momento Freud ain<strong>da</strong> li<strong>da</strong> com<br />

<strong>uma</strong> dimensão <strong>de</strong> autopreservação <strong>da</strong> espécie intoca<strong>da</strong> pela dimensão sexual. A partir <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil e <strong>de</strong>sse primeiro dualismo pulsional Freud circunscreve um novo<br />

estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> – o <strong>corpo</strong> é sexual, é produzido, “colonizado” pela <strong>pulsão</strong>. Porém, ain<strong>da</strong><br />

se mantém preso a <strong>uma</strong> or<strong>de</strong>m somática vital, sob a qual se apoiaria o <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Esse quadro se reverte quando Freud insere a libido também no âmbito <strong>da</strong><br />

autopreservação. Nesse sentido até mesmo a autoconservação torna-se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um<br />

investimento libidinal, o que provoca <strong>uma</strong> mu<strong>da</strong>nça no pensamento freudiano – em última<br />

instância po<strong>de</strong>mos dizer que Freud passa a conceber que a existência biológica não é<br />

possível sem o investimento libidinal. A vi<strong>da</strong> biológica não se sustentaria sem um<br />

investimento erógeno, estando na estrita <strong>de</strong>pendência do auto-erotismo e do investimento<br />

alteritário. O <strong>corpo</strong> tem que ser permanentemente investido para que a autoconservação<br />

seja possível.<br />

87


Assim sendo, po<strong>de</strong>mos indicar <strong>uma</strong> contraposição no que tange à <strong>concepção</strong> do <strong>corpo</strong><br />

no primeiro mo<strong>de</strong>lo freudiano e no segundo. Se naquele o <strong>corpo</strong> erógeno aparece na<br />

<strong>de</strong>pendência do somático, tendo nele a sua condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se constituir via<br />

apoio, neste o <strong>corpo</strong> erógeno <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é que se configura como a condição <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a sobrevivência via investimento libidinal, que propicia contenção <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> pulsional evitando a <strong>de</strong>scarga total que levaria à morte.<br />

Dentro <strong>de</strong>ssa perspectiva a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise não se i<strong>de</strong>ntifica ao<br />

somático ou ao organismo. O <strong>corpo</strong> é mais do que isso, é um território sexual e erótico<br />

resultante <strong>de</strong> um investimento sexual e libidinal sobre o organismo. O <strong>corpo</strong>, diferente do<br />

organismo solipsista, se constitui na estreita <strong>de</strong>pendência <strong>da</strong> relação com um outro que o<br />

possa investir libidinalmente. A cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>, assim, requer um processo permanente <strong>de</strong><br />

produção e manutenção, sem nunca prescindir do investimento erógeno e libidinal.<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong>finido como limítrofe entre o psíquico e o somático (FREUD,<br />

1915a/1996) vem exatamente conferir ao <strong>corpo</strong> um estatuto original <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> pulsional,<br />

lugar intermediário entre natureza e cultura, força e representação, somático e psíquico. O<br />

<strong>corpo</strong> não é um <strong>da</strong>do natural a priori, ele é produzido e tecido pela dinâmica pulsional.<br />

Resi<strong>de</strong> aí a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> epistêmica do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, cuja ficção permite a Freud não<br />

mais prestar contas a biologia, visto que inaugurou um objeto <strong>de</strong> saber que não mais se<br />

confun<strong>de</strong> com o <strong>da</strong>s ciências biológicas.<br />

É então através do conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> que Freud opera <strong>uma</strong> ruptura epistemológica<br />

com o campo <strong>da</strong> biologia, <strong>de</strong>marcando bem a fronteira <strong>de</strong>sta com a psicanálise. É nesse<br />

sentido que em Pulsões e suas Vicissitu<strong>de</strong>s ele nos diz que o estudo <strong>da</strong> fonte <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, <strong>por</strong><br />

ser somática, está fora do âmbito <strong>da</strong> psicologia. Enten<strong>de</strong>mos <strong>por</strong> essa posição freudiana que<br />

o que pertence à biologia está fora do campo <strong>de</strong> interesse <strong>da</strong> psicanálise e que a <strong>pulsão</strong><br />

como um novo campo epistêmico inaugurado <strong>por</strong> Freud circunscreve <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong> absolutamente original e diferencia<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela pauta<strong>da</strong> pela biologia.<br />

Para a psicanálise, o <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pertencer apenas ao registro <strong>da</strong> natureza enquanto<br />

organismo, adquirindo <strong>uma</strong> dimensão construí<strong>da</strong> pelo investimento libidinal. Enfim, o<br />

<strong>corpo</strong> na psicanálise é sempre um <strong>corpo</strong> investido e pulsional, fun<strong>da</strong>do no campo <strong>da</strong><br />

linguagem e <strong>da</strong> fantasia. Com isso, a pregnância do biológico e do somático vai se<br />

relativizando ao longo do pensamento freudiano à medi<strong>da</strong> que ele vai tecendo as costuras<br />

88


do pulsional. Quando Freud inverte as bases do vitalismo para o mortalismo e a vi<strong>da</strong><br />

biológica se torna então <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, qualquer tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo<br />

biológico que pu<strong>de</strong>sse estar presente no pensamento freudiano se esmaece.<br />

Se antes, nos mol<strong>de</strong>s do Projeto para <strong>uma</strong> psicologia científica o somático<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>va pelo psiquismo, com o conceito <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> não se reduzindo a sua fonte<br />

somática, já que ocupa <strong>uma</strong> posição limítrofe entre o somático e o psíquico (FREUD,<br />

1915a/1996), é o <strong>corpo</strong> como <strong>uma</strong> produção pulsional agenciado pela sedução <strong>de</strong> um outro<br />

que <strong>de</strong>man<strong>da</strong> trabalho do psiquismo; <strong>corpo</strong> como essa dimensão intensiva <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> que<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>por</strong> um psiquismo que o abarque.<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que o <strong>corpo</strong> é a base <strong>da</strong> constituição do eu e do sujeito, visto que é a<br />

partir <strong>de</strong> um investimento alteritário sobre ele que a dimensão pulsional se instaura. Essa<br />

dimensão <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> é, <strong>por</strong>tanto, fun<strong>da</strong>mental para a edificação psíquica, para a<br />

passagem <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çado à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do eu e para a constituição do sujeito, na<br />

medi<strong>da</strong> em que inscreve um conjunto <strong>de</strong> significantes que vem marcá-lo, conferindo-lhe<br />

um nome e <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> psicanálise, então, é o <strong>corpo</strong> erógeno, pulsionalmente investido pelo outro.<br />

Ele não é um elemento natural <strong>da</strong> experiência direta ou imediata do sujeito é, ao contrário, a<br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> fantasmático, construído na trama pulsional, o que permite que a<br />

psicanálise adquira a sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>, rompendo com o objeto <strong>da</strong>s ciências naturais,<br />

aquele <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> constata<strong>da</strong>, cuja <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> constatação<br />

biológica.<br />

O princípio constituinte do <strong>corpo</strong> para Freud está na abor<strong>da</strong>gem que ele faz <strong>de</strong> um<br />

<strong>corpo</strong> auto-erótico. O auto-erotismo inaugura o <strong>corpo</strong> como objeto <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, <strong>por</strong>ém vai ser<br />

com a introdução do narcisismo que esse <strong>corpo</strong> adquire unificação através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem<br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> totalizado, constituindo a imagem do eu. O <strong>corpo</strong> tem seu estatuto marcado pela<br />

<strong>pulsão</strong> e pela constituição do eu. Do ponto <strong>de</strong> vista psicanalítico o <strong>corpo</strong> é, assim, a se<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conflitos pulsionais e falar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>psicanalítica</strong> do <strong>corpo</strong> é referir-se a <strong>uma</strong><br />

escuta que reconhece um <strong>corpo</strong> cuja “anatomia” é construí<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> investimentos<br />

libidinais.<br />

89


Registros <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

A teoria pulsional possui pelo menos três tempos marca<strong>da</strong>mente <strong>de</strong>finidos no<br />

pensamento freudiano, os quais optamos <strong>por</strong> apresentar sistematicamente aqui para <strong>de</strong>finir<br />

o campo a partir do qual pu<strong>de</strong>mos pensar o <strong>corpo</strong>. No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste trabalho vimos<br />

apontando para os <strong>de</strong>sdobramentos e reformulações <strong>de</strong>ssa questão pulsional, principalmente<br />

no que se refere à relação do somático e do psíquico e às nuances que as mu<strong>da</strong>nças no<br />

discurso freudiano pu<strong>de</strong>ram trazer para <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

Feito isso nos cabe agora retomar alguns momentos capitais <strong>da</strong> formulação <strong>da</strong> teoria<br />

<strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, não mais para indicar e problematizar seus contrastes, mas para pontuar<br />

diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>s que consi<strong>de</strong>ramos serem resultantes dos diferentes<br />

momentos <strong>da</strong> apreensão do pulsional <strong>por</strong> Freud.<br />

O primeiro momento pontuamos em 1905 no texto dos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, no qual emerge a noção <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> sexual e a <strong>de</strong>corrente duali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o<br />

sexual e o não sexual. Nesse contexto, a partir <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil<br />

perverso polimorfa Freud <strong>de</strong>fine o registro do <strong>corpo</strong> auto-erótico, marcado pela<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> zonas erógenas e <strong>pelas</strong> pulsões parciais que se satisfazem anarquicamente<br />

nesse <strong>corpo</strong> que é pura dispersão e fragmentação.<br />

O segundo momento vem com a introdução do narcisismo em 1914 que com a idéia<br />

<strong>de</strong> um Eu sexualizado, objeto <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual e do investimento alteritário circunscreve a<br />

noção <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> unificado. A dimensão dispersiva do <strong>corpo</strong> auto-erótico assume <strong>uma</strong><br />

totalização que se or<strong>de</strong>na em torno <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem cor<strong>por</strong>al unifica<strong>da</strong> concebi<strong>da</strong> a partir do<br />

outro, nos termos freudianos representado <strong>pelas</strong> figuras parentais.<br />

Temos aí então esboça<strong>da</strong> <strong>uma</strong> passagem do auto-erotismo para o narcisismo,<br />

evi<strong>de</strong>nciando o que preferimos consi<strong>de</strong>rar como dois registros <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

90


marca<strong>da</strong>mente pulsionais. O <strong>corpo</strong> erógeno pulsional tem sua dimensão auto-erótica bem<br />

como narcísica, diferindo apenas na sua forma <strong>de</strong> estar no mundo e <strong>de</strong> se organizar. Na<br />

leitura <strong>de</strong> Birman (1999a, p.36) são duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> erotismo que convivem lado a<br />

lado, n<strong>uma</strong> transformação permanente do auto-erotismo para o narcisismo. Nesse sentido,<br />

concor<strong>da</strong>mos inteiramente com ele <strong>de</strong> que não se trata <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

seqüência genético-evolutiva, mas <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> existência <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

resultantes <strong>de</strong> um processo constante <strong>de</strong> trabalho e transformação imposto pela força<br />

pulsional.<br />

Até aqui, nesses dois primeiros tempos <strong>da</strong> teoria pulsional que correspon<strong>de</strong>m a <strong>uma</strong><br />

ênfase <strong>de</strong> Freud no campo <strong>da</strong> representação e, <strong>por</strong>tanto, muito mais voltado para os<br />

aspectos dinâmico e tópico do que propriamente econômico, o <strong>corpo</strong> erógeno, pulsional,<br />

<strong>corpo</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é concebido no registro <strong>da</strong> representação. É um <strong>corpo</strong> cuja incidência<br />

<strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> já era captura<strong>da</strong> pelo aparelho e pela linguagem, já que pauta<strong>da</strong> pelo mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong><br />

<strong>pulsão</strong> sexual.<br />

Porém, o <strong>corpo</strong> para a psicanálise não se restringe apenas a essa tonali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

representativa, já que a própria <strong>pulsão</strong> se <strong>de</strong>sloca <strong>de</strong>ssa polari<strong>da</strong><strong>de</strong>, passando a estar na<br />

tensão entre força e representação. Isso nos é sugerido <strong>por</strong> Freud com o que <strong>de</strong>nominamos<br />

como o terceiro momento <strong>da</strong> teoria pulsional, prefigurado em Pulsões e suas Vicissitu<strong>de</strong>s<br />

com a ênfase na força <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, retomando seu aspecto intensivo.<br />

A vira<strong>da</strong> pulsional estabeleci<strong>da</strong> em 1920 radicaliza, com a introdução <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte como <strong>uma</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação, a noção com a qual trabalhamos<br />

<strong>de</strong> um intervalo entre força e representação no campo pulsional. Um lugar reservado no<br />

pensamento freudiano a <strong>uma</strong> irrupção <strong>da</strong> pura intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional nos remete a <strong>uma</strong><br />

possível leitura <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> como ação, indicação essa que encontramos esboça<strong>da</strong> no próprio<br />

Freud em 1915 quando ele nos diz que “to<strong>da</strong> a <strong>pulsão</strong> é <strong>uma</strong> parcela <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>” (FREUD,<br />

1915a/1996, p.127).<br />

Desse modo, como vimos, a <strong>pulsão</strong> se constitui como <strong>de</strong>man<strong>da</strong> permanente <strong>de</strong><br />

trabalho ao psiquismo fazendo-o remanejar constantemente as tramas <strong>de</strong> representações,<br />

assim como operar novas simbolizações. Nesse aspecto intensivo <strong>de</strong> força e <strong>de</strong> ação a<br />

<strong>pulsão</strong> adquire <strong>uma</strong> dimensão <strong>de</strong> imprevisível. É somente num segundo momento que a<br />

<strong>pulsão</strong> se constitui nas suas <strong>de</strong>rivações representativas, adquirindo quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e sentidos. A<br />

91


partir <strong>de</strong>ssa <strong>concepção</strong> é possível <strong>de</strong>sconstruir a idéia (ou ilusão) <strong>de</strong> essência ou enti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

originária e permanente do ser. Corpo, eu e sujeito serão permanentemente construídos em<br />

função do imperativo pulsional <strong>da</strong> ação, se constituindo na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong>sses<br />

<strong>de</strong>sdobramentos <strong>da</strong> ação pulsional no psiquismo.<br />

Depois <strong>de</strong> aberta essa janela para o insondável <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, lá on<strong>de</strong> ela toca sua<br />

polari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pura força, <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar que o <strong>corpo</strong> pulsional <strong>de</strong>ve igualmente se<br />

abrir para essa dimensão que estamos chamando aqui <strong>de</strong> irrepresentável. Esse terceiro<br />

tempo <strong>da</strong> teoria pulsional nos remete necessariamente, se quisermos tirar to<strong>da</strong>s as<br />

conseqüências disso, para um alargamento <strong>da</strong>s fronteiras do <strong>corpo</strong> pulsional. A <strong>pulsão</strong> não<br />

se encontra mais restrita, no pensamento freudiano, à esfera <strong>da</strong> captura pelo aparelho<br />

psíquico. É assim então que o <strong>corpo</strong> pulsional é mais do que o <strong>corpo</strong> pulsional representado<br />

do auto-erotismo e do narcisismo, ele é também um <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> propriamente dita<br />

enquanto força. O <strong>corpo</strong> em psicanálise, e essa é a nossa proposta <strong>de</strong> leitura, abrange mais<br />

do que a dimensão do representável, ele abarca também a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte, com<strong>por</strong>tando na<br />

sua própria <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> pulsional a dimensão do irrepresentável.<br />

Nessa direção é que apontamos e apostamos em diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> registro <strong>da</strong><br />

cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>. O <strong>corpo</strong> para a psicanálise não é só o <strong>corpo</strong> auto-erótico e o <strong>corpo</strong> narcísico<br />

enquanto <strong>corpo</strong>s-linguagem, é mais do que isso, é também esse <strong>corpo</strong> intensivo que se<br />

aproxima <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. São mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferencia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

coexistem, on<strong>de</strong> a <strong>pulsão</strong> vai produzir marcas que refazem constantemente os registros do<br />

<strong>corpo</strong>. Este nunca vai ser todo representado, vai ter sempre, imanente a sua constituição, o<br />

impacto <strong>da</strong> pura intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional.<br />

Os dois mo<strong>de</strong>los freudianos (primeira teoria pulsional/primeira tópica, segun<strong>da</strong> teoria<br />

pulsional/segun<strong>da</strong> tópica) não se excluem, se complementam sob nosso ponto <strong>de</strong> vista. Se<br />

com o primeiro dualismo pulsional e a primeira tópica Freud pô<strong>de</strong> circunscrever o <strong>corpo</strong><br />

representado, com a questão <strong>da</strong>s histéricas, e um <strong>corpo</strong> também erógeno, com a questão <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>; num segundo momento ele pô<strong>de</strong> acrescentar a essa <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> a<br />

questão do impacto pulsional, ou seja, <strong>de</strong>sse <strong>corpo</strong> permanentemente sendo produzido,<br />

<strong>de</strong>ssa cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> intensiva que está sempre se constituindo.<br />

Desse modo, a <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> pulsional não é redutível ao <strong>corpo</strong> sexual,<br />

representado e linguageiro <strong>de</strong>finido no âmbito dos Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong><br />

92


sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte o acrescenta <strong>uma</strong> dimensão <strong>de</strong> força anterior a esse <strong>corpo</strong><br />

que se representa, fazendo remanejar suas configurações.<br />

Força, erotismo, uni<strong>da</strong><strong>de</strong>: figurações <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> teci<strong>da</strong>s e imbrica<strong>da</strong>s pela<br />

costura <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>. Eis o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise.<br />

Pelas <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>: o dualismo e o paradoxo freudiano<br />

Da<strong>da</strong> a nossa leitura acerca do estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise <strong>pelas</strong> <strong>bor<strong>da</strong>s</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>pulsão</strong>, é chega<strong>da</strong> a hora <strong>de</strong> retomarmos um posicionamento que assumimos em relação ao<br />

pensamento freudiano e que apontamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> nosso percurso, qual seja: a<br />

pesquisa freudiana se realiza num solo configurado <strong>por</strong> um campo <strong>de</strong> embate <strong>de</strong> forças que<br />

se afirma <strong>por</strong> <strong>uma</strong> constante tensão. Po<strong>de</strong>mos visualizar isso naquilo que constantemente<br />

assinalamos no trajeto <strong>de</strong> Freud: sua <strong>concepção</strong> dualista, a qual ele sempre lutou <strong>por</strong> manter<br />

em seu pensamento.<br />

Vimos que esse dualismo assumiu roupagens diferentes na obra <strong>de</strong> Freud <strong>de</strong> acordo<br />

com os diferentes momentos <strong>da</strong> teoria pulsional, seja num primeiro momento centrado<br />

<strong>de</strong>ntro do campo <strong>da</strong> representação, seja num segundo momento centrado entre o campo <strong>da</strong><br />

representação e o <strong>da</strong> não representação, entre força pulsional e representação <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>.<br />

Portanto, Freud continuou se mantendo no dualismo até o final <strong>de</strong> sua obra. O conceito <strong>de</strong><br />

<strong>pulsão</strong> <strong>de</strong>finido como limite entre o psíquico e o somático foi o que lhe <strong>de</strong>u condição <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sustentar tal <strong>concepção</strong> dualista sem cair em reducionismos, pois a idéia <strong>de</strong><br />

limite é exatamente o que faz a <strong>pulsão</strong> tocar ambos os registros sem se reduzir a nenhum<br />

<strong>de</strong>les.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que Freud nos dá indícios <strong>de</strong> pensar a <strong>pulsão</strong> como um limite tênue, <strong>uma</strong><br />

fronteira móvel que permeia os espaços psíquicos 21 , conferindo mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao aparelho e<br />

<strong>uma</strong> dinâmica <strong>de</strong> constante reconstrução cor<strong>por</strong>al e subjetiva.<br />

21 Ao tratar <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> tópica Freud (1933[1932]/1996) chega a seguinte constatação: “Ao pensar nessa<br />

divisão <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> em um ego, um superego e um id, naturalmente, os senhores não terão imaginado<br />

fronteiras níti<strong>da</strong>s como as fronteiras artificiais <strong>de</strong>linea<strong>da</strong>s na geografia política. Não po<strong>de</strong>mos fazer justiça às<br />

características <strong>da</strong> mente <strong>por</strong> esquemas lineares como os <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pintura primitiva, mas <strong>de</strong><br />

preferência <strong>por</strong> meio <strong>de</strong> áreas colori<strong>da</strong>s fundindo-se <strong>uma</strong>s com as outras, segundo as apresentam os artistas<br />

mo<strong>de</strong>rnos” (pp.83-84).<br />

93


É nesse sentido que consi<strong>de</strong>ramos que Freud inaugura um novo campo <strong>de</strong> saber a partir <strong>de</strong><br />

tal <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong> apostando num jogo <strong>de</strong> forças que solapa as bases do<br />

cartesianismo, já que produz ruídos na separação <strong>corpo</strong>-mente ao apontar para <strong>uma</strong><br />

permeabili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre esses registros.<br />

A marca do texto freudiano está no dualismo enquanto permanente jogo <strong>de</strong> oposições e <strong>de</strong><br />

forças. Tal <strong>concepção</strong> provoca <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sestabilização nos mo<strong>de</strong>los científicos fortemente<br />

influenciados pela divisão cartesiana, fazendo emergir <strong>uma</strong> nova forma <strong>de</strong> pensar o<br />

h<strong>uma</strong>no. Essa posição freudiana vem exatamente <strong>de</strong>sbancar a ontologização referi<strong>da</strong> ao<br />

<strong>corpo</strong> e ao psiquismo. Freud os retira <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s separa<strong>da</strong>s e os lança num<br />

jogo <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se permeiam e se constituem em permanente relação.<br />

A título <strong>de</strong> conclusão nos permitiremos um breve diálogo com Michel Foucault,<br />

pois pensamos que seu olhar genealógico traz contribuições para a reflexão que estamos<br />

travando aqui a respeito do pensamento freudiano e <strong>da</strong> temática do <strong>corpo</strong> em Freud. De<br />

acordo com Foucault o <strong>corpo</strong> é o lugar <strong>da</strong> proveniência, na medi<strong>da</strong> em que é proveniente <strong>de</strong><br />

um confronto <strong>de</strong> forças – “superfície <strong>de</strong> inscrição dos acontecimentos, lugar <strong>de</strong> dissociação<br />

do Eu (que supõe a quimera <strong>de</strong> <strong>uma</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> substancial), volume em perpétua<br />

pulverização. A genealogia, como análise <strong>da</strong> proveniência, está <strong>por</strong>tanto no ponto <strong>de</strong><br />

articulação do <strong>corpo</strong> com a história. Ela <strong>de</strong>ve mostrar o <strong>corpo</strong> inteiramente marcado <strong>de</strong><br />

história e a história arruinando o <strong>corpo</strong>” (FOUCAULT, 1979, p.22).<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que essa perspectiva foucaultiana se coaduna com a leitura que nos<br />

propomos fazer do <strong>corpo</strong> em Freud, o qual não é origem ou fun<strong>da</strong>mento e sim autêntica e<br />

originalmente <strong>uma</strong> produção. O <strong>corpo</strong> erógeno, marcado e produzido <strong>por</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

pulsionais, superfície <strong>de</strong> inscrições múltiplas e polimorfas, <strong>de</strong>stinado a constantes<br />

reconfigurações e remanejamentos, é um <strong>corpo</strong> tecido pela história, lugar on<strong>de</strong> o embate<br />

pulsional se dá sem cessar, fazendo emergir <strong>da</strong>qui e <strong>da</strong>li configurações sempre provisórias.<br />

O <strong>corpo</strong> em Freud e igualmente o corpus freudiano estão nesse lugar <strong>da</strong> proveniência e <strong>da</strong><br />

emergência <strong>de</strong>scritos <strong>por</strong> Foucault. 22 O primeiro (o <strong>corpo</strong> em Freud) <strong>por</strong>que abriga as<br />

22 Uma pesquisa genealógica <strong>por</strong> excelência se <strong>de</strong>fine <strong>por</strong> <strong>uma</strong> pesquisa <strong>da</strong> proveniência e <strong>da</strong> emergência. A<br />

primeira mostra o jogo <strong>da</strong>s forças, a maneira como elas lutam <strong>uma</strong>s contra as outras, <strong>de</strong>svelando os aci<strong>de</strong>ntes,<br />

os <strong>de</strong>svios, as marcas sutis e singulares que se entrecruzam. A segun<strong>da</strong> mostra o ponto <strong>de</strong> surgimento <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado estado <strong>de</strong> coisas, é a colocação em cena <strong>da</strong>s forças. Desse modo, a aposta <strong>de</strong> Foucault é no <strong>de</strong>vir,<br />

na proveniência e na emergência mais do que na origem, introduzindo a inconstância nos movimentos <strong>da</strong><br />

história. (FOUCAULT, 1979/1988).<br />

94


múltiplas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do prazer, constituindo-se <strong>de</strong>las, o segundo (o corpus freudiano)<br />

<strong>por</strong>que nasce e se mantém na tensão <strong>de</strong> forças, introduzindo inúmeras vezes a<br />

<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> em <strong>uma</strong> tradição <strong>de</strong> saber fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> constância e<br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong>. Freud, apesar <strong>de</strong> imerso em <strong>uma</strong> tradição científica basea<strong>da</strong> nos padrões <strong>da</strong><br />

objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> busca obstina<strong>da</strong> pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não se <strong>de</strong>ixou levar pela<br />

negação do <strong>corpo</strong>, ao contrário, permeou sua aventura <strong>de</strong> paixão e intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A tarefa que nos propomos nos impeliu a <strong>de</strong>marcar os aci<strong>de</strong>ntes, os <strong>de</strong>svios e as<br />

alternâncias presentes nesse percurso freudiano. Por esse motivo consi<strong>de</strong>ramos<br />

afirmativamente, para retomarmos a afirmação inicial <strong>de</strong> nosso trabalho, que a psicanálise<br />

freudiana se encontra num lugar <strong>de</strong> paradoxo, um paradoxo que exclui o princípio <strong>da</strong><br />

contradição e que se mantém na tensão, no enfrentamento <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> forças diversas e é<br />

exatamente aí que pensamos residir a riqueza do pensamento <strong>de</strong> Freud. Mesmo partindo do<br />

mo<strong>de</strong>lo médico-científico Freud ousou um olhar para fora, lançou-se no <strong>de</strong>sconhecido e<br />

assim pô<strong>de</strong> promover um embate com os saberes constituídos, trazendo a dimensão do<br />

novo e <strong>da</strong> incerteza para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um campo fechado sobre si mesmo.<br />

A tensão freudiana entre um mo<strong>de</strong>lo médico-científico e um mo<strong>de</strong>lo genealógico 23 é<br />

um contraste que possivelmente encontraremos ao longo <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Freud nas mais<br />

diversas temáticas que elegermos como referência. Consi<strong>de</strong>ramos, contudo, que é nesse<br />

contínuo embate <strong>de</strong> forças que o discurso freudiano adquiriu sua originali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois seus<br />

enunciados <strong>por</strong> mais contrastantes que possam aparecer não se anulam, ao contrário, se<br />

potencializam, multiplicando nossas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> manejar o referencial psicanalítico.<br />

Desse modo, quanto ao <strong>corpo</strong>, vimos que Freud inicialmente apegou-se a suas raízes<br />

científicas consi<strong>de</strong>rando-o enquanto organismo. No entanto, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu<br />

pensamento, ao operar rupturas epistemológicas com o saber <strong>da</strong> ciência, trouxe à tona <strong>uma</strong><br />

<strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que se distanciava do organismo - objeto do olhar <strong>da</strong> medicina -,<br />

mesmo que ain<strong>da</strong> estabelecendo <strong>uma</strong> relação <strong>de</strong> apoio a <strong>uma</strong> or<strong>de</strong>m somática. Finalmente,<br />

23 Esse seria o paradoxo ao qual estamos nos referindo. Encontramos em Derri<strong>da</strong> <strong>uma</strong> interpretação nesse<br />

sentido quando ele enten<strong>de</strong> o lugar <strong>da</strong> psicanálise no projeto foucaultiano como o <strong>de</strong> um balancim ou o fort/<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> um pêndulo, ou seja, Freud ora ao lado <strong>de</strong> Nietzsche e associado a <strong>uma</strong> linhagem trágica ora oposto a essa<br />

vertente e filiado a <strong>uma</strong> tradição <strong>da</strong> razão. Derri<strong>da</strong> lança mão <strong>da</strong> interessante metáfora <strong>de</strong> Freud como a dupla<br />

figura <strong>de</strong> <strong>por</strong>ta e <strong>por</strong>teiro: ele ao mesmo tempo encerra <strong>uma</strong> época e abre outra, é o guardião <strong>da</strong>s chaves do<br />

ontem e o <strong>por</strong>teiro do hoje. A esse respeito, ver: DERRIDA, J. (2001) “Fazer justiça a Freud. A história <strong>da</strong><br />

loucura na era <strong>da</strong> psicanálise”, In: DERRIDA, J. Três tempos sobre a história <strong>da</strong> loucura. RJ: Relume-<br />

D<strong>uma</strong>rá.<br />

95


esse <strong>de</strong>svio se radicaliza quando Freud, ao visualizar a dimensão <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong><br />

originária, subverte a suposta or<strong>de</strong>m imperativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, colocando a dimensão do <strong>corpo</strong><br />

como condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a existência biológica.<br />

Eis um longo trajeto do pensamento freudiano, no qual a <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong> foi adquirindo sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> e seu estatuto. Foi através do embate com o mo<strong>de</strong>lo<br />

médico-científico que o <strong>corpo</strong> ganhou contornos diferenciados para a psicanálise. Em<br />

contraposição ao <strong>corpo</strong> <strong>da</strong> medicina, unificado e <strong>de</strong>finido <strong>por</strong> <strong>de</strong>marcações fecha<strong>da</strong>s e<br />

estanques, Freud aponta para a unificação apenas imaginária <strong>da</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong>, cujos registros <strong>da</strong> fragmentação e <strong>da</strong> parciali<strong>da</strong><strong>de</strong> estão contidos em <strong>uma</strong><br />

configuração sempre provisória <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Aí estão, então, as linhas <strong>de</strong> força implica<strong>da</strong>s na construção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong> para a psicanálise, como nos propomos eluci<strong>da</strong>r e mapear.<br />

96


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Ao longo <strong>de</strong>sse trabalho procuramos examinar as condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

<strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> observando os processos <strong>de</strong> produção e as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>pelas</strong> quais tal <strong>concepção</strong> se legitima.<br />

No primeiro capítulo assinalamos os primórdios <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>psicanalítica</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>corpo</strong> presente naquela que foi a questão inaugural <strong>da</strong> psicanálise, a histeria. Des<strong>de</strong> já Freud<br />

aponta para <strong>uma</strong> visa<strong>da</strong> original em relação ao <strong>corpo</strong>, <strong>de</strong>slocando-o <strong>da</strong>s complexas<br />

estruturas fisiológicas e anatômicas para o interior <strong>da</strong> história do sujeito. O <strong>corpo</strong> é a<br />

representação <strong>da</strong>quilo que nossos órgãos do sentido nos informam, permeados claro pelo<br />

erotismo e pela fantasia, bússolas norteadoras <strong>de</strong> um <strong>corpo</strong> <strong>de</strong>sejante. Eis o campo no qual<br />

se fun<strong>da</strong> <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise.<br />

No segundo capítulo evi<strong>de</strong>nciamos os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>da</strong>s questões que o estudo<br />

sobre a histeria <strong>de</strong>svelou a Freud. Ao escutar o <strong>corpo</strong> histérico os <strong>de</strong>sejos e fantasias<br />

inconscientes se entreabrem diante do pensamento freudiano e, assim, Freud <strong>de</strong>sbrava os<br />

domínios <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil pervero-polimorfa. O <strong>corpo</strong> ganha os contornos <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> pelos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> sexual, atributo que circunscreve ain<strong>da</strong> mais<br />

precisamente o estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise.<br />

Evi<strong>de</strong>nciamos a partir <strong>da</strong>í o percurso <strong>de</strong> Freud pela teoria pulsional. Procuramos<br />

abarcar as nuances e <strong>de</strong>limitações que foram sendo realiza<strong>da</strong>s <strong>por</strong> Freud e, junto a isso, as<br />

possíveis implicações <strong>da</strong>í <strong>de</strong>correntes para pensar o <strong>corpo</strong> no interior do pensamento<br />

freudiano. Destacamos que até a produção dos artigos metapsicológicos o <strong>corpo</strong> pulsional<br />

era circunscrito <strong>de</strong>ntro dos limites <strong>da</strong> representação, campo até então hegemônico, mas que<br />

a partir <strong>de</strong> então novos elementos emergiram no discurso freudiano <strong>da</strong>ndo margens para o<br />

97


aspecto mais intensivo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, preparando o terreno para a gran<strong>de</strong> vira<strong>da</strong> na teoria <strong>da</strong>s<br />

pulsões em 1920.<br />

Desse modo, o terceiro capítulo <strong>de</strong>dicou-se aquilo que extrapolava os limites <strong>da</strong><br />

representação e que beirava o que <strong>de</strong>nominamos como irrepresentável. Nesse momento<br />

impôs-se a nós pensar o <strong>corpo</strong> a partir <strong>da</strong> nova abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> teoria pulsional, que se<br />

configurava pela emergência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>pulsão</strong> sem representação, a <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Da<strong>da</strong> a<br />

<strong>de</strong>rroca<strong>da</strong> <strong>da</strong> hegemonia representacional no campo <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, o <strong>corpo</strong> pulsional<br />

inevitavelmente passou a abarcar o domínio propriamente intensivo <strong>da</strong> mesma.<br />

Sendo assim, o campo <strong>de</strong> investigação do <strong>corpo</strong> em Freud se expan<strong>de</strong>. A cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

não está mais apenas circunscrita pelos registros do auto-erotismo e do narcisismo,<br />

contempla também a força pulsional disruptiva, o indomável, que lhe confere a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> múltiplos remanejamentos. Se no primeiro dualismo a tensão se<br />

estabelecia <strong>de</strong>ntro do próprio campo <strong>da</strong> representação, agora o que está em jogo é <strong>uma</strong><br />

tensão entre o campo <strong>da</strong> representação e <strong>da</strong> não-representação, no interior <strong>da</strong> qual o estatuto<br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> se consoli<strong>da</strong> para a psicanálise.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que tal idéia <strong>de</strong> tensão inerente à <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> Freud acerca<br />

do campo pulsional também se esten<strong>de</strong> à condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

pensamento, que num contínuo movimento <strong>de</strong> filiação e embate em relação ao<br />

mo<strong>de</strong>lo científico nos legou a riqueza <strong>de</strong> um novo mo<strong>de</strong>lo conceitual e <strong>de</strong> um<br />

novo estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong>.<br />

O estatuto <strong>de</strong> <strong>pulsão</strong>, conforme preferimos pensar, como <strong>uma</strong> fronteira<br />

móvel e permeável, suscetível <strong>de</strong> expansão e retração dos espaços psíquicos,<br />

confere ao estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> não <strong>uma</strong> conformação única, mas <strong>uma</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> configurações <strong>de</strong>marca<strong>da</strong>s pela dinâmica pulsional.<br />

Certamente essa leitura privilegia o aspecto intensivo do pulsional em<br />

Freud. Des<strong>de</strong> o início do percurso freudiano a questão <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> já está<br />

coloca<strong>da</strong>, já faz parte <strong>da</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu pensamento. A questão histérica<br />

não nos <strong>de</strong>ixa ignorar o campo dos afetos para o qual Freud sinalizou, bem como<br />

a <strong>concepção</strong> <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil não permite a negligência <strong>da</strong>quilo que nos<br />

constitui: <strong>uma</strong> energia <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> libido. E nesse sentido, mais além ou mais<br />

aquém <strong>da</strong>s referências que aqui pontuamos, encontraremos as marcas <strong>da</strong><br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> no discurso freudiano.<br />

98


Ressaltamos, contudo, o relevo mais radical que essa questão adquire com a<br />

segun<strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s pulsões, ou seja, com a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong> morte. Nesse<br />

contexto Freud aponta algo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisiva im<strong>por</strong>tância para a psicanálise: o<br />

extravasamento <strong>da</strong> representação, inserindo no âmbito <strong>da</strong> experiência<br />

<strong>psicanalítica</strong> o menos íntimo, o heterogêneo, o que não se <strong>de</strong>ixa interiorizar ou<br />

subjetivar, em outras palavras, o limite do irrepresentável.<br />

Finalmente, com o percurso que trilhamos aqui pu<strong>de</strong>mos chegar a um<br />

estatuto <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise, que acabamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear, e à conclusão <strong>de</strong><br />

que a leitura que Freud faz <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> não passa absolutamente pela<br />

separação entre <strong>corpo</strong> e psiquismo, ao contrário, se sustenta na imbricação entre<br />

esses registros. Esse foi um dos legados que Freud nos <strong>de</strong>ixou e que lhe custou<br />

<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> rompimentos na trajetória <strong>de</strong> seu pensamento. Qual foi o <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> tal ensinamento na psicanálise pós-freudiana? O que fizeram e o que fazemos<br />

hoje com as <strong>de</strong>scobertas e inovações acerca do <strong>corpo</strong> e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

her<strong>da</strong>mos <strong>de</strong> Freud?<br />

Não po<strong>de</strong>ríamos fechar o nosso trajeto sem antes pelo menos apontarmos<br />

para o tratamento que as questões que aqui trabalhamos receberam e recebem do<br />

pensamento psicanalítico atual. Exatamente <strong>por</strong>que <strong>de</strong>stas constatações<br />

certamente extrairemos um terreno profícuo no qual po<strong>de</strong>remos lançar novas<br />

questões a serem futuramente examina<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>ndo continui<strong>da</strong><strong>de</strong> a essa pesquisa.<br />

Ao abrir o horizonte <strong>da</strong> aventura <strong>psicanalítica</strong> aos domínios <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> <strong>de</strong><br />

morte, ou seja, ao impon<strong>de</strong>rável e ao irrepresentável, certamente Freud não nos<br />

<strong>de</strong>ixou num terreno seguro ou em terra firme. Lançou a si e àqueles que<br />

compartilham do saber psicanalítico ao risco <strong>de</strong> se aproximar dos limites do<br />

in<strong>de</strong>terminado.<br />

Se então a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> do pensamento <strong>de</strong> Freud resi<strong>de</strong> em fun<strong>da</strong>mentar a<br />

psicanálise nos domínios <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong>, ou seja, em colocá-la na fronteira e na tensão<br />

com a ciência, o movimento psicanalítico pós-Freud vem tentando circunscrever<br />

a psicanálise <strong>de</strong>ntro do campo científico, resgatando <strong>uma</strong> tradição que Freud<br />

tanto lutou <strong>por</strong> superar.<br />

Po<strong>de</strong>mos situar essa questão na releitura médica e psiquiátrica que vem<br />

sendo feita do discurso freudiano atualmente, restabelecendo as bases do<br />

dualismo cartesiano e, <strong>por</strong>tanto, empobrecendo a perspectiva freudiana, visto<br />

que vai <strong>de</strong> encontro ao movimento freudiano <strong>de</strong> distanciamento do mo<strong>de</strong>lo<br />

médico-científico.<br />

99


Assistimos, <strong>de</strong> um certo modo, a <strong>uma</strong> crescente biologização e<br />

psiquiatrização <strong>da</strong> psicanálise que respon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> do mercado<br />

psicofarmacológico. Esse contexto leva, inevitavelmente, à redução <strong>da</strong> <strong>concepção</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>corpo</strong> para a psicanálise ao organismo e a processos químicos cerebrais; o<br />

<strong>corpo</strong> é reduzido a um registro biológico. Há um esvaziamento <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

resultante <strong>de</strong> práticas que operam a separação <strong>corpo</strong>/psiquismo, on<strong>de</strong> o <strong>corpo</strong> é<br />

concebido como natureza e, <strong>por</strong>tanto, <strong>de</strong>stinado aos cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> medicina,<br />

enquanto o psíquico é <strong>de</strong>stinado aos cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong>queles que tratam <strong>da</strong> alma.<br />

Freud esforçou-se para construir um novo campo <strong>de</strong> saber in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos<br />

parâmetros <strong>da</strong> clínica médica. Ele promoveu <strong>uma</strong> abor<strong>da</strong>gem sobre <strong>corpo</strong> e<br />

psiquismo distanciando-se <strong>da</strong> oposição entre <strong>corpo</strong> e alma; produziu <strong>uma</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> encorpa<strong>da</strong> e <strong>uma</strong> <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>corpo</strong> que não é <strong>uma</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

anatômica, mas sim um <strong>corpo</strong> produzido no encontro com o outro, com a<br />

intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>corpo</strong> marcado pela história do sujeito.<br />

Para fazermos jus a tal legado apostamos num movimento <strong>de</strong> resgate <strong>da</strong><br />

visão freudiana, <strong>da</strong> sua potência, do <strong>corpo</strong> em Freud e do corpus freudiano<br />

esmaecidos <strong>por</strong> <strong>uma</strong> psicanálise atualmente medicaliza<strong>da</strong>. Resgate, em última<br />

instância, do lugar inaugural estabelecido <strong>por</strong> Freud à psicanálise através <strong>da</strong><br />

dimensão intensiva <strong>da</strong> <strong>pulsão</strong> e do jogo <strong>de</strong> forças nela implicado.<br />

Certamente tais <strong>de</strong>sdobramentos atuais <strong>da</strong> psicanálise trazem conseqüências<br />

no que tange à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> clínica. Tornou-se lugar comum atualmente falar <strong>de</strong><br />

novas formas <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou mesmo, novas formas <strong>de</strong> sofrimento. Sem<br />

dúvi<strong>da</strong>s esse parece ser um signo, entre outras coisas, <strong>da</strong> exclusão do <strong>corpo</strong> na<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta dos analistas. O <strong>corpo</strong> que se apresenta na clínica hoje,<br />

circunscrito <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s ditas novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sofrimento, assim o são<br />

<strong>de</strong>nominados <strong>por</strong> apontarem para <strong>uma</strong> outra or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que não aquelas nos indica<strong>da</strong>s <strong>por</strong> Freud. Mais do que um <strong>corpo</strong><br />

erógeno fantasmático parece tratar-se do organismo em <strong>de</strong>trimento do<br />

recobrimento libidinal do <strong>corpo</strong>.<br />

O complexo arsenal corpóreo, as múltiplas formas <strong>de</strong> cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

costura<strong>da</strong>s pela bor<strong>da</strong> pulsional parecem não estar em questão nas novas<br />

conformações subjetivas. Ao contrário, há <strong>uma</strong> presença abusiva <strong>da</strong> dimensão<br />

somática em muitas queixas atuais <strong>de</strong> analisandos, o que nos faz questionar qual<br />

a organização psíquica subjacente a tal <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, como a psicanálise po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

conta <strong>de</strong>sse novo quadro e, ain<strong>da</strong>, qual o papel que a medicina atual e a<br />

100


tendência a psiquiatrização <strong>da</strong> psicanálise exercem sobre essas novas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s subjetivas.<br />

O <strong>corpo</strong> na sua concretu<strong>de</strong> material e vital é solicitado nas novas formas <strong>de</strong><br />

adoecimento. O organismo vem à tona nessas sintomatologias atuais <strong>de</strong>notando a <strong>de</strong>rroca<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> dimensão erógena do <strong>corpo</strong>. O <strong>corpo</strong> sexual, produzido <strong>por</strong> sedução, erotização, enfim,<br />

<strong>por</strong> um investimento do outro per<strong>de</strong> espaço num contexto <strong>de</strong> fronteiras estilhaça<strong>da</strong>s, on<strong>de</strong><br />

tal investimento alteritário, constitutivo do <strong>corpo</strong> e do psiquismo, n<strong>uma</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> marca<strong>da</strong><br />

pela exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> e pela performance, torna-se <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> erotização. Não é<br />

à toa que os fenômenos psicossomáticos crescem a ca<strong>da</strong> dia, <strong>de</strong>nunciando a situação <strong>de</strong> um<br />

<strong>corpo</strong> que volta à condição <strong>de</strong> organismo, apontando para os sintomas atuais como<br />

marca<strong>da</strong>mente <strong>de</strong>sencorpados, tendo em vista a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> erógena e pulsional com que<br />

Freud <strong>de</strong>limitou o <strong>corpo</strong> para a psicanálise.<br />

Se a histérica exemplificava o protótipo do <strong>corpo</strong> sexual, do sintoma configurado <strong>por</strong><br />

fantasias e <strong>de</strong>sejos inconscientes e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> marca<strong>da</strong> pela interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e pelo<br />

conflito psíquico, gran<strong>de</strong> parte dos sofredores atuais <strong>de</strong>sconhecem tal organização<br />

neurótica. Parece-nos que as subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não se configuram mais em torno dos impasses<br />

do sujeito em relação ao erotismo e à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a evidência <strong>da</strong> dimensão orgânica que<br />

surge na clínica hoje revela bem essa diferença no modo como o <strong>corpo</strong> e a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

vêm se apresentando na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nesse sentido torna-se necessário questionar: que <strong>de</strong>man<strong>da</strong> é essa que se nos<br />

apresenta hoje em dia? Por que o <strong>corpo</strong> é tão solicitado? Uma discussão sobre as novas<br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s passa necessariamente pelo <strong>corpo</strong>. Se nos últimos séculos a relação do<br />

indivíduo com seu <strong>corpo</strong> se passou a partir do sexo como eixo discursivo, hoje talvez seja<br />

preciso repensar essa relação buscando visualizar que eixo discursivo se configura na<br />

atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e quais suas implicações sobre a cor<strong>por</strong>ei<strong>da</strong><strong>de</strong>. A análise dos dispositivos <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r parece ser <strong>uma</strong> chave im<strong>por</strong>tante para a compreensão do modo como constituímos<br />

nossa subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, nos relacionamos com nosso <strong>corpo</strong> e conquistamos nossa<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Essas são apenas alg<strong>uma</strong>s questões que ficam aqui lança<strong>da</strong>s e cujos apontamentos são<br />

apenas esboços <strong>de</strong> um caminho possível para se pensar o sintoma contem<strong>por</strong>âneo. Resta a<br />

nós nos incumbirmos <strong>da</strong> tarefa <strong>de</strong> melhor escutar o <strong>corpo</strong>, colocando-o em cena, atentos<br />

101


para sua expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que é palco principal <strong>de</strong> muitas configurações subjetivas. Com<br />

isso <strong>de</strong>marcamos o encerramento <strong>de</strong>ssa caminha<strong>da</strong> e o início <strong>de</strong> um novo percurso.<br />

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