UM DESFILE ATÉ AO TOPO - Diário Económico - Sapo

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58 Fora de Série Março 2011 Nua és tão simples como uma de tuas mãos. O primeiro verso do primeiro poema que lhe ofereceu. Lembrava como se fosse ontem, ainda há pouco, agora mesmo, como se o verso fosse seu. Não era. E não era que temesse arriscar a escrita. Mas também não enjeitava viver a crédito das palavras dos outros e foi naquele verso que domesticou o sobressalto de a ver pela primeira vez assim, nua, o corpo inteiro que tantas noites calculara, corolário das mãos que o prendiam desde o primeiro dia. Porque a equação começou nas mãos, constante entre todas as incógnitas que a vida a dois foi deduzindo. Sempre as mãos. Depois a voz, os olhos, as formas, o sorriso, as palavras, o toque e a pele, os dias e as noites. Mas sempre as mãos. Lisas, certas, delicadas, terrenas, simples, sempre nuas. Nua és tão simples como uma de tuas mãos. Do poema do Neruda não lhe sobrava outro verso na memória de tudo isto que lembrava como se fosse ontem, ainda há pouco, agora mesmo. - Parece-me bem. Só não percebo porque escreves na terceira pessoa. É para te esconderes? Respondi que não, que saíra assim, sem pensar muito no assunto, que era um exercício como outro qualquer, talvez para me pôr fora da história e contá-la melhor, levá-la aonde me desse na real gana, sabia lá eu. E tudo aquilo era apenas vagamente verdade. Palavras confi ccionais, expliquei--lhe. Qualquer coisa a meio caminho entre a confi ssão de uma memória e a fi cção de uma estória. Ela encolheu os ombros como quem fi zesse pouco das minhas fronteiras. - A fi cção é a verdade dentro da mentira. Esta frase também não é minha, mas não recordo de quem é. Pouco importa, sou como tu, não vejo problema de usarme das palavras dos outros. Mas vá, continua. Continuei. Do poema do Neruda não me sobrava outro verso na memória de tudo isto que lembrava como se fosse ontem, ainda há pouco, agora mesmo. Lembrava como ela corou na longa pausa em que a olhei inteira antes de inaugurar o toque. Não me olhes assim. A vergonha de se ver despir depois de já estar nua. E lembrava agora como o elogio da nudez nos tatuou em cores diferentes ao longo de toda essa vida a dois em que as incógnitas se foram deduzindo. O elogio que ela nunca percebeu ou eu nunca soube explicar. Não sei. Sei que mais tarde haveria de me cobrar o poema que não escrevi. Nua: foi sempre assim que me viste, cama e pouco mais. Talvez ela recordasse todos os outros versos do poema que eu esqueci. Nua és, nua és, nua és, todas as coisas que o poeta descobriu na nudez. E eu a querer dizer apenas que as mãos me agarraram os olhos muito antes dessa primeira vez em que se demoraram a desabotoar o corpo para mim. Lisas, certas, delicadas, terrenas, simples, sempre nuas. Agora lamentava não lhe ter oferecido apenas o verso que não esqueci. Nua és tão simples como uma de tuas mãos. - Pensando bem, tens razão. Quando falas na primeira pessoa deixas-me demasiado agarrada à tua imagem. Prefi ro que fales dele e não ti. A ele Opinião Isto é como tudo . João Pedro Oliveira AS MÃOS sempre o posso construir livremente na minha cabeça. Às tantas ainda me apaixono, quem sabe. A ti já não te posso nem ver à frente, nem quero imaginar nu. Depois riu e pediu que continuasse. Continuei. Nua és tão simples como uma de tuas mãos. Repetia a frase para se confortar. Talvez ela assim se devolvesse numa imagem por inteiro, talvez aquele és fosse presente de aconchego para o pretérito imperfeito da ausência, de quando eles eram o que deixaram de ser depois de todas as incógnitas que a vida a dois foi deduzindo. Ou talvez nada disso, só melancolia dorida. Não era importante. Por ele, nem precisava que deixasse de doer. Apenas que doesse no sítio certo. E o último lugar onde ele queria que doesse era a cama. - Quero só avisar que já vais a dois terços da página e ainda não percebi como é que vais fazer disto um texto sobre moda. Era essa a ideia, não era? Não era, na verdade. Apenas me tinha comprometido a aproximar-me de algum modo de uma ideia de moda. Era o tema daquela edição. Não era que fosse perorar sobre o assunto, logo eu. Mas tivesse ela sido um pouco paciente e percebia que estava precisamente a chegar lá. - Peço desculpa, continua. Continuei. O último lugar onde ele queria que doesse era a cama. Seria como negar a sinopse que ele fez daquela história e confi rmar a autópsia com que ela enterrou toda a memória. Nua: foi sempre assim que me viste, cama e pouco mais. Onde lhe doía mesmo era no quarto ao lado, o que ela chamava de vestir, uma sala ampla com dois guarda--fatos e um espelho com tamanho de gente. Era ali que a espreitava todas as manhãs, a vê-la ver-se de frente, às vezes clandestino, outras denunciando a presença para que se repetisse a delícia da vergonha. Não me olhes assim. Depois ela corava, consentia uns instantes e acabava a enxotá-lo aos beijos porta fora. Deixa-me despachar, não me olhes assim. Sublime intimidade. Vê-la vestir. A roupa poderia sempre cair por qualquer um a qualquer momento por qualquer impulso. Vê-la nua era apenas vê-la. Vê-la vestir era compreendêla, seguir as mãos simples naquele ritual sem tempo, peça por peça a construir-se para o mundo. Nada mais sincero que aquela vaidade. E a vaidade fazia-se feminino do orgulho. - E a moda? Resta-te meia dúzia de linhas… pronto, vá, não é preciso essa cara, eu calo-me. Continua. Continuei. A vaidade fazia-se feminino do orgulho. Porque para ele a moda do mundo ditava-se ali e os bastidores eram todos seus. Naquele quarto de alquimia onde tudo se construía a preceito, peça por peça, gesto por gesto, toque por toque, da roupa mais íntima à pintura mais descarada, entre adereços de uma exuberância castelhana e pormenores de uma descrição conventual, era ali que ela se construía para o mundo, tal como ele a viu nessa primeira vez em que as mãos despidas lhe agarraram os olhos. Moda era o que ela trazia, fora de moda era o que o resto do mundo trazia lá fora. Moda era ela, o centro estatístico da maioria das observações. A moda que começava e acabava nas suas mãos. Sempre as mãos. Depois a voz, os olhos, as formas, o sorriso, as palavras, o toque e a pele, os dias e as noites. Mas sempre as mãos. Carpo, metacarpo e dedos, duas vezes vinte e sete ossos com que tudo se fez e desfez. FOTOGRAFIA DE IMAGE SOURCE/GETTY IMAGES

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58 Fora de Série Março 2011<br />

Nua és tão simples como uma de tuas mãos. O<br />

primeiro verso do primeiro poema que<br />

lhe ofereceu. Lembrava como se fosse<br />

ontem, ainda há pouco, agora mesmo,<br />

como se o verso fosse seu. Não era. E não<br />

era que temesse arriscar a escrita. Mas<br />

também não enjeitava viver a crédito das<br />

palavras dos outros e foi naquele verso<br />

que domesticou o sobressalto de a ver pela primeira vez assim,<br />

nua, o corpo inteiro que tantas noites calculara, corolário das mãos<br />

que o prendiam desde o primeiro dia. Porque a equação começou<br />

nas mãos, constante entre todas as incógnitas que a vida a dois foi<br />

deduzindo. Sempre as mãos. Depois a voz, os olhos, as formas, o<br />

sorriso, as palavras, o toque e a pele, os dias e as noites. Mas sempre<br />

as mãos. Lisas, certas, delicadas, terrenas, simples, sempre nuas. Nua<br />

és tão simples como uma de tuas mãos. Do poema do Neruda não lhe<br />

sobrava outro verso na memória de tudo isto que lembrava como<br />

se fosse ontem, ainda há pouco, agora mesmo.<br />

- Parece-me bem. Só não percebo porque escreves na terceira pessoa. É<br />

para te esconderes?<br />

Respondi que não, que saíra assim, sem pensar muito no assunto,<br />

que era um exercício como outro qualquer, talvez para me pôr fora<br />

da história e contá-la melhor, levá-la aonde me desse na real gana,<br />

sabia lá eu. E tudo aquilo era apenas vagamente verdade. Palavras<br />

confi ccionais, expliquei--lhe. Qualquer coisa a meio caminho<br />

entre a confi ssão de uma memória e a fi cção de uma estória.<br />

Ela encolheu os ombros como quem fi zesse pouco das<br />

minhas fronteiras.<br />

- A fi cção é a verdade dentro da mentira. Esta frase<br />

também não é minha, mas não recordo de quem é.<br />

Pouco importa, sou como tu, não vejo problema de usarme<br />

das palavras dos outros. Mas vá, continua.<br />

Continuei.<br />

Do poema do Neruda não me sobrava outro verso na<br />

memória de tudo isto que lembrava como se fosse ontem,<br />

ainda há pouco, agora mesmo. Lembrava como<br />

ela corou na longa pausa em que a olhei inteira antes<br />

de inaugurar o toque. Não me olhes assim. A vergonha<br />

de se ver despir depois de já estar nua. E lembrava<br />

agora como o elogio da nudez nos tatuou em cores<br />

diferentes ao longo de toda essa vida a dois em que<br />

as incógnitas se foram deduzindo. O elogio que<br />

ela nunca percebeu ou eu nunca soube explicar.<br />

Não sei. Sei que mais tarde haveria de me cobrar o<br />

poema que não escrevi. Nua: foi sempre assim que me<br />

viste, cama e pouco mais. Talvez ela recordasse todos<br />

os outros versos do poema que eu esqueci. Nua és,<br />

nua és, nua és, todas as coisas que o poeta descobriu<br />

na nudez. E eu a querer dizer apenas que as mãos<br />

me agarraram os olhos muito antes dessa primeira<br />

vez em que se demoraram a desabotoar o corpo para<br />

mim. Lisas, certas, delicadas, terrenas, simples, sempre<br />

nuas. Agora lamentava não lhe ter oferecido apenas<br />

o verso que não esqueci. Nua és tão simples como uma<br />

de tuas mãos.<br />

- Pensando bem, tens razão. Quando falas na primeira<br />

pessoa deixas-me demasiado agarrada à<br />

tua imagem. Prefi ro que fales dele e não ti. A ele<br />

Opinião<br />

Isto é como tudo . João Pedro Oliveira<br />

AS MÃOS<br />

sempre o posso construir livremente na minha cabeça. Às tantas ainda<br />

me apaixono, quem sabe. A ti já não te posso nem ver à frente, nem quero<br />

imaginar nu.<br />

Depois riu e pediu que continuasse. Continuei.<br />

Nua és tão simples como uma de tuas mãos. Repetia a frase para se confortar.<br />

Talvez ela assim se devolvesse numa imagem por inteiro, talvez<br />

aquele és fosse presente de aconchego para o pretérito imperfeito da<br />

ausência, de quando eles eram o que deixaram de ser depois de todas<br />

as incógnitas que a vida a dois foi deduzindo. Ou talvez nada disso,<br />

só melancolia dorida. Não era importante. Por ele, nem precisava que<br />

deixasse de doer. Apenas que doesse no sítio certo. E o último lugar<br />

onde ele queria que doesse era a cama.<br />

- Quero só avisar que já vais a dois terços da página e ainda não percebi como<br />

é que vais fazer disto um texto sobre moda. Era essa a ideia, não era?<br />

Não era, na verdade. Apenas me tinha comprometido a aproximar-me de<br />

algum modo de uma ideia de moda. Era o tema daquela edição. Não era<br />

que fosse perorar sobre o assunto, logo eu. Mas tivesse ela sido um<br />

pouco paciente e percebia que estava precisamente a chegar lá.<br />

- Peço desculpa, continua.<br />

Continuei.<br />

O último lugar onde ele queria que doesse era a cama. Seria<br />

como negar a sinopse que ele fez daquela história e confi rmar<br />

a autópsia com que ela enterrou toda a memória. Nua:<br />

foi sempre assim que me viste, cama e pouco mais. Onde lhe doía<br />

mesmo era no quarto ao lado, o que ela chamava de vestir,<br />

uma sala ampla com dois guarda--fatos e um espelho com<br />

tamanho de gente. Era ali que a espreitava todas as manhãs, a<br />

vê-la ver-se de frente, às vezes clandestino, outras denunciando<br />

a presença para que se repetisse a delícia da vergonha. Não me<br />

olhes assim. Depois ela corava, consentia uns instantes e acabava<br />

a enxotá-lo aos beijos porta fora. Deixa-me despachar, não me<br />

olhes assim. Sublime intimidade. Vê-la vestir. A roupa poderia<br />

sempre cair por qualquer um a qualquer momento por qualquer<br />

impulso. Vê-la nua era apenas vê-la. Vê-la vestir era compreendêla,<br />

seguir as mãos simples naquele ritual sem tempo, peça por<br />

peça a construir-se para o mundo. Nada mais sincero que aquela<br />

vaidade. E a vaidade fazia-se feminino do orgulho.<br />

- E a moda? Resta-te meia dúzia de linhas… pronto, vá, não é preciso<br />

essa cara, eu calo-me. Continua.<br />

Continuei.<br />

A vaidade fazia-se feminino do orgulho. Porque para ele a moda<br />

do mundo ditava-se ali e os bastidores eram todos seus. Naquele<br />

quarto de alquimia onde tudo se construía a preceito, peça por<br />

peça, gesto por gesto, toque por toque, da roupa mais íntima à<br />

pintura mais descarada, entre adereços de uma exuberância<br />

castelhana e pormenores de uma descrição conventual, era<br />

ali que ela se construía para o mundo, tal como ele a viu<br />

nessa primeira vez em que as mãos despidas lhe agarraram<br />

os olhos. Moda era o que ela trazia, fora de moda era o que<br />

o resto do mundo trazia lá fora. Moda era ela, o centro estatístico<br />

da maioria das observações. A moda que começava<br />

e acabava nas suas mãos. Sempre as mãos. Depois a voz, os<br />

olhos, as formas, o sorriso, as palavras, o toque e a pele, os<br />

dias e as noites. Mas sempre as mãos. Carpo, metacarpo<br />

e dedos, duas vezes vinte e sete ossos com que tudo se<br />

fez e desfez.<br />

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