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Raniero Cantalamessa<br />

O Verbo se faz carne<br />

Reflexão sobre a Palavra de Deus<br />

Anos A, B, C<br />

(Dos domingos e das festas do Ano Litúrgico)


A fé provém da pregação e a pregação<br />

se exerce em razão da palavra de Cristo.<br />

(Rm 10,17)


Prefácio<br />

Dom Alberto Taveira Corrêa<br />

Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará<br />

O Verbo se faz carne<br />

Deus me deu a alegria de me encontrar em alguns e preciosos momentos<br />

com o pregador da Casa Pontifícia, Pe. Raniero Cantalamessa. Muitas<br />

vezes, fui ajudado pelos seus textos por ele escritos ou por suas pregações no<br />

Vaticano e em tantas partes do mundo. E o Senhor me concede a graça de<br />

apresentar ao Brasil esta edição de O Verbo se faz carne, com reflexões sobre<br />

a Palavra de Deus para os Anos A, B, C.<br />

A Liturgia se constitui como a grande e principal fonte de santificação<br />

para o povo de Deus. Nela, haurimos, como de uma fonte inesgotável, a graça<br />

que nos introduz na comunhão com a Trindade. Toda a nossa vida se transforma<br />

no grande louvor ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo. Introduzir-nos<br />

com respeito e competência no mistério da Palavra proclamada é o serviço<br />

prestado por este volume. As reflexões brotam com grande liberdade, deixando-nos<br />

maravilhados com a riqueza dos tesouros disponíveis nas celebrações<br />

litúrgicas, especialmente no Dia do Senhor, o Domingo, quando o próprio<br />

Cristo “põe a mesa” da Palavra na Assembleia Eucarística.<br />

Os textos que temos nas mãos revelam o imenso cabedal de conhecimento<br />

da Sagrada Escritura, dos Padres da Igreja e da Liturgia. Muito fiéis


do ponto de vista exegético e teológico suas meditações oferecem também<br />

ao leitor a experiência de intimidade com conhecimentos profundos, destilados<br />

em linguagem simples e até coloquial. Quem quiser preparar a participação<br />

da Liturgia Dominical com O Verbo se faz carne será introduzido<br />

em átrios de conhecimento que antes só pareciam acessíveis a especialistas<br />

nas ciências bíblicas. Para muitas pessoas, tornar-se-á livro de cabeceira,<br />

apenas para rezar, contemplar, permanecer diante da face de Deus. Os que<br />

têm a maravilhosa e desafiadora tarefa da pregação encontrarão um roteiro<br />

capaz de renovar esse ministério. Trata-se aqui de verdadeiras lições que<br />

não perdem a profundidade, por chegarem, como óleo de unção, em sua<br />

integralidade, ao recôndito do coração e da vida cristã.<br />

E unção espiritual é o que não falta no presente escrito do Pe. Raniero<br />

Cantalamessa. Em tempos como os nossos, quando a Igreja nos introduz<br />

na leitura orante da Palavra de Deus (Lectio Divina), este livro conduz efetivamente<br />

à oração e à vivência dessa Palavra. O que escreve remete ao seu<br />

permanente, sério e desafiador sorriso, com o qual anuncia a Palavra nas<br />

pregações, de modo que ninguém fique indiferente. Se ele mesmo diz que<br />

se trata de uma experiência de anúncio numa comunidade concreta, deixa-<br />

-nos efetivamente entrar em sua experiência do próprio Senhor, como ao<br />

entrar num Santuário.<br />

Desejamos ainda que todas as pessoas que desfrutarem das reflexões<br />

oferecidas pelo autor, convencidos de que só Jesus Cristo tem “Palavras de<br />

Vida Eterna”, disponham seus corações para praticar a mesma Palavra,<br />

revestindo-se dela e encarnando-a na diversidade de situações em que se<br />

encontrarem. A atualidade perene da Palavra de Deus vem ainda ao encontro<br />

das grandes questões e desafios do nosso tempo pela perspicácia com<br />

que Pe. Raniero Cantalamessa provoca seus leitores: ele os incentiva a que<br />

façam continuamente o jogo entre o cotidiano e a liturgia, a Palavra e a<br />

Vida, para que ninguém fique indiferente diante da riqueza da Palavra de<br />

Deus anunciada na Igreja.<br />

O próprio Espírito Santo, que conduz a Igreja, inspire em todos os leitores<br />

os resultados esperados nesta excelente iniciativa da <strong>Editora</strong> <strong>Ave</strong>-<strong>Maria</strong>.<br />

Dom Alberto Taveira Corrêa,<br />

Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará


Premissa<br />

Estas páginas não eram destinadas a se tornar um livro, e é esta<br />

a razão principal que me leva a publicá-las. Não acho, com efeito, que<br />

se possam escrever num gabinete conversas como as que agora apresento<br />

transcritas. Elas nasceram, ao invés, e fielmente guardadas, a cada domingo,<br />

fruto do diálogo com a comunidade cristã que, há anos, se reúne para<br />

a assembleia eucarística na mesma hora, a redor do mesmo altar. É uma<br />

experiência concreta de anúncio realizada junto a uma comunidade cristã<br />

que se empenha em viver a renovação litúrgica e espiritual da Igreja, desejada<br />

pelo Concílio Vaticano II. Uma comunidade perfeitamente igual àquela<br />

que se reúne em cada igreja para a Santa Missa dominical.<br />

Um diálogo só aparente, em sentido único, isto é, monólogo. Tive<br />

muitas vezes a sensação, com efeito, de que aquela palavra, mesmo se preparada<br />

por mim durante toda manhã, de fato, como palavra viva (e não só,<br />

portanto, falada ou escrita), nascesse naquele momento, no encontro de fé<br />

entre a comunidade e o Senhor ressuscitado que, espiritualmente presente,<br />

“atualiza” sua Palavra.<br />

Trata-se, portanto, em certo sentido, de uma mensagem e de um testemunho<br />

que uma modesta porção da Igreja quer partilhar com outros cristãos,<br />

especialmente com aqueles que têm exigências e problemas parecidos<br />

com os desta comunidade, que são, enfim, aqueles de uma comunidade que<br />

vive numa metrópole moderna e é obrigada a confrontar-se mais intensamente<br />

com o mundo e numa leitura mais tempestiva dos sinais dos tempos.<br />

De resto, nossa ambição vai ainda mais longe. Fazemos votos de que<br />

estas reflexões cheguem às mãos também de alguns irmãos que não creem<br />

9


10<br />

O Verbo se faz carne<br />

ainda, ou deixaram de crer, e dos quais muitas vezes falamos entre nós, a<br />

ponto de nos sentirmos um pouco culpados em relação a eles. Seria uma<br />

graça muito grande se nos permitissem, ao menos deste modo, dar razão<br />

da nossa esperança (cf. 1Pd 3,15). Nós estamos convictos, com efeito, de<br />

que esta palavra não está longe deles; não está no céu nem além do mar, mas,<br />

como diz São Paulo, ao seu alcance, em sua boca e em seu coração (cf. Rm<br />

10,8) e só espera, talvez, ser despertada mediante a escuta.<br />

Tendo acabado quase todas as outras formas tradicionais de anúncio<br />

cristão, a liturgia dominical permaneceu, para a maior parte dos cristãos,<br />

como a única ocasião para tomar contato vivo com a Palavra de Deus.<br />

Por isso a necessidade de fazer passar por meio dela todos os conteúdos<br />

essenciais da fé, sem excluir aqueles teológica e espiritualmente mais elevados<br />

que, sem razão, normalmente são deixados fora da pregação dominical<br />

(como se não fosse possível, usando uma linguagem adequada, explicar a<br />

todo o povo cristão algum aspecto de fé, por mais sublime que seja!). Isto,<br />

de resto, é muito facilitado pela atual estrutura da Liturgia da Palavra que,<br />

ao longo de três ciclos, permite tocar com facilidade todos os temas da fé e<br />

os problemas do homem, dando-lhes uma resposta fundada sobre o melhor<br />

da revelação bíblica.<br />

Esforcei-me por libertar a Palavra de Deus de tantos condicionamentos<br />

que a mantêm “amarrada”, convencido de que, liberta, ela tem, por<br />

sua vez, um extraordinário e divino poder de libertar o homem: procurei,<br />

enfim, que a Palavra agisse na vida e a vida na Palavra.<br />

Celebrados nos tempos fortes do ano (Encarnação, Páscoa,<br />

Pentecostes, Trindade, Corpus Christi etc.), os mistérios obedecem a certa<br />

catequese progressiva no decurso dos três ciclos litúrgicos.<br />

Há remissões no final de algumas homilias, de modo a possibilitar a<br />

liberdade de escolha de temas e leituras que se repetem ao longo da obra.<br />

O índice dos principais temas abordados, que se encontra no final<br />

da obra, deverá permitir que seu conteúdo também seja utilizado fora do<br />

quadro litúrgico da missa dominical, para outras formas de anúncio e de<br />

catequese, ou, simplesmente, como leitura.<br />

O material pode ser utilizado também por sacerdotes e fiéis de rito ambrosiano,<br />

visto que, salvo poucas exceções (1º e 2º Domingos de Advento;


Premissa<br />

2º e 3º Domingos de Quaresma), as leituras evangélicas correspondem<br />

àquelas do rito romano.<br />

Os trechos da Escritura citados ao longo do texto sem referência ao<br />

livro, ao capítulo e aos versículos, foram extraídos das leituras do dia.<br />

Raniero Cantalamessa<br />

Nota à edição brasileira:<br />

Este livro, ao contrário do original, que foi publicado em três volumes,<br />

reúne em um só volume o ciclo trienal (Anos A, B e C) do Tempo Litúrgico.<br />

Os textos bíblicos são da Bíblia <strong>Ave</strong>-<strong>Maria</strong>.<br />

11


Ano A<br />

Mateus


Tempo do<br />

Advento e do<br />

Natal<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


1 o Domingo Do ADvento:<br />

Ao encontro De Deus<br />

Leituras: is 2,1-5; rm 13,11-14; mt 24,37-44<br />

Nas leituras deste primeiro domingo do ano litúrgico predominam<br />

dois temas: A vinda do Senhor e o tema da Vigilância. Mais do que dois<br />

temas, trata-se, antes, de dois “movimentos”: O Senhor vem – vamos a<br />

seu encontro; Deus vem ao homem, mas só o encontra quem se coloca<br />

ao encontro dele, quem “está pronto”. São os dois movimentos também<br />

descritos eficazmente na parábola das dez virgens, que é a parábola por excelência<br />

do tempo do Advento: Eis o esposo, ide-lhe ao encontro! (Mt 25,6).<br />

O primeiro movimento é sempre de Deus: ele é por definição “Aquele<br />

que vem”. Não só neste caso, mas sempre. A história da salvação, que a<br />

Liturgia começa hoje a percorrer, é essencialmente história de iniciativa de<br />

Deus, memória de tantas suas “vindas” ao homem que, reunidas, formam<br />

o grande Advento que se estende desde a criação à parusia.<br />

Hoje, porém, mais do que recordar as vindas passadas de Deus, predomina<br />

o pensamento de sua vinda futura. De um futuro extraordinário, intervenção<br />

de Deus, como fala Isaías na primeira leitura. Ele parece quase querer distrair<br />

a atenção de seus contemporâneos dos grandes fatos do passado (Abraão, o<br />

Êxodo, a Aliança), para volver o olhar para frente: No fim dos tempos acontecerá<br />

que o monte da casa do Senhor (isto é, o conhecimento e o culto do verdadeiro<br />

Deus) estará colocado à frente das montanhas (isto é, triunfará sobre todos os<br />

falsos ídolos). De suas espadas forjarão relhas de arados (isto é, haverá uma era<br />

de justiça e de paz). Era a maneira de representar o tempo messiânico.<br />

Nós não evocamos esta espera do Antigo Testamento somente por um<br />

motivo apologético (para mostrar que ela se realizou com a vinda de Cristo),<br />

mas também por um motivo espiritual. Ela, com efeito, é um “sinal para<br />

nós”: fala-nos da fidelidade de Deus às promessas e, sobretudo, nos ensina a<br />

esperar. Das palavras de Jesus ouvidas no Evangelho compreendemos, com<br />

efeito, que também nós somos homens que esperam alguma coisa.<br />

Jesus, realmente, não insiste tanto no fato de que haverá uma vinda<br />

do Filho do homem quanto sobre o “como” será tal vinda: Assim (isto é,<br />

17<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


18<br />

O Verbo se faz carne<br />

improvisa como aquela do ladrão, terrível como o dilúvio) será a vinda do<br />

Filho do homem. Quase todas as parábolas de Jesus visam pôr o ouvinte<br />

diante desta perspectiva escatológica, depois de ter-lhe fechado todas as saídas<br />

e todas as falsas seguranças às quais está acostumado recorrer quando<br />

quer fugir da urgência de uma decisão. Pouca importância têm para nós,<br />

neste momento, as disputas dos exegetas: se Jesus pensava numa sua volta<br />

dentro de um prazo curto – estando ainda viva sua geração – ou, ao invés,<br />

num retorno distante; se se enganou no tempo, ou se não se interessou<br />

absolutamente pelo tempo, como parece mais certo pensar. A decisão que<br />

ele pede ao homem – motivando-a com sua volta – é uma decisão pessoal;<br />

refere-se a ele, não ao mundo ou à história em abstrato; por isso é sempre<br />

atual e iminente para qualquer pessoa – como nós agora, que estamos escutando<br />

sua palavra. Em cada expressão da Escritura repercute a advertência<br />

dirigida a Davi pelo profeta: Tu és esse homem (2Sm 12,7): é de ti que se<br />

está falando. O que será de mim ao vir o Senhor decide-se agora, com a<br />

resposta que der à sua palavra que me diz de vigiar, de ficar pronto, de agir<br />

como se ele estivesse já à porta: porque, de fato, ele já está à porta!<br />

E eis-nos preparados, assim, para o segundo “movimento”: nossa ida<br />

ao encontro do Esposo que vem. De diversas formas, este pensamento ocupa<br />

toda a Liturgia da Palavra deste domingo. Isaías diz: Vinde, subamos à<br />

montanha do Senhor [...]. Ele nos ensinará seus caminhos, e nós trilharemos<br />

as suas veredas, e no salmo responsorial repetimos juntos: “Vamos alegremente<br />

ao encontro do Senhor”. A Paulo, na segunda leitura, é confiada a<br />

tarefa de traduzir este convite em fatos concretos de vida, e isto porque a<br />

ideia escatológica da Bíblia não se esgota (como tende inculcar uma certa<br />

corrente teológica radical) num puro e abstrato “convite à decisão”, mas diz<br />

também que orientação deve tomar tal decisão, que conteúdos assumir, que<br />

modalidades abraçar.<br />

Primeiramente Paulo recomenda: acordai do sono. Um modo diferente<br />

e muito sugestivo de dizer: “convertei-vos!”. Santo Agostinho compara<br />

seu estado na vigília da conversão a um sono semidesperto, em que metade<br />

de sua vontade, acordada e ao lado de Deus, mandava que a outra metade<br />

despertasse e se decidisse. Sono profundo ou sono semidesperto, não é<br />

somente o estado de quem está em pecado ou vive esquecido de Deus, mas<br />

também a tibieza, a incoerência, a indecisão: um cristianismo “implícito”


1 o Domingo do Advento: Ao encontro de Deus<br />

que seria melhor chamar cristianismo apagado. A quem se encontra neste<br />

estado, o Apóstolo dirige, em outro lugar, seu veemente apelo: Desperta,<br />

tu que dormes! Levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará! (Ef 5,14).<br />

Estar despertos, em plena posse de si mesmos, com olhos abertos para<br />

receber e irradiar a luz, como quando é dia: não há melhor comentário da<br />

Palavra de Jesus lida no evangelho de hoje: “Vigiai!”.<br />

A metáfora que se segue, no texto de Paulo, é, aparentemente, muito<br />

estranha: Vistamos-nos das armas da luz. Mas ela é explicada um pouco<br />

adiante, quando diz: Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso<br />

da carne nem lhe satisfaçais aos apetites. A arma, por excelência, da luz é<br />

o Espírito de Jesus ressuscitado, o único que pode ajudar a vencer as obras<br />

tenebrosas da carne aí elencadas: comilanças e bebedeiras, orgias e libertinagem,<br />

brigas e contendas. Se pelo Espírito mortificardes as obras da carne,<br />

vivereis (Rm 8,13).<br />

Foram precisamente as últimas palavras de Paulo que acabamos<br />

de ouvir que levaram Agostinho a dar o último passo para a conversão.<br />

Encontrava-se num jardim em Milão, no ápice daquela luta entre “as duas<br />

vontades”, quando ouviu uma voz misteriosa que cantava: “Pega e lê”.<br />

Pegou a Bíblia e abriu-a, leu as palavras de Paulo que diziam para que se<br />

despertasse do sono, e dessa forma encontrou luz e paz no coração. Havia,<br />

enfim, tomado sua decisão diante de Deus.<br />

Falamos de nossa espera. Não devemos, porém, nos enganar sobre<br />

seu significado: a nossa não é mais uma “espera” como aquela do Antigo<br />

Testamento; não é somente espera, mas também “memória e presença”.<br />

Memória, porque aquele que esperamos já veio (como estamos nos preparando<br />

para a festa do Natal); presença, porque ele está desde agora conosco;<br />

sua Eucaristia, que agora celebramos, é ele conosco. Advento cristão é uma<br />

ida com alegria ao encontro de alguém que caminha conosco, a nosso lado.<br />

19<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


20<br />

2 o Domingo Do ADvento:<br />

os precursores<br />

Leituras: is 11,1-10; rm 15,4-9; mt 3,1-12<br />

A Liturgia nos faz ouvir hoje as vozes dos dois maiores pregadores do<br />

Advento: Isaías e João Batista. Isaías pregou a vinda do Senhor muito tempo<br />

antes. Seu anúncio alimentou a expectativa de gerações: Eis que uma virgem<br />

conceberá e dará à luz um filho. João Batista foi aquele que anunciou a vinda<br />

iminente e já em ato do Senhor: Está para chegar alguém [...]. O vínculo entre<br />

os dois precursores está na profecia de Isaías que Mateus aplica a João: Uma<br />

voz clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas!”.<br />

Todo advento quer seu precursor, o arauto prepara os ânimos, desperta<br />

a atenção, para que aquele que venha seja esperado, desejado e acolhido,<br />

e que sua vinda não passe despercebida. Na Antiguidade, quando um personagem<br />

(geralmente um imperador), estava para chegar numa cidade em<br />

visita oficial, precisava que houvesse um enviado para precedê-lo e convidar<br />

a população para sair-lhe ao encontro, arrumar estradas e pontes para sua<br />

passagem. Haverá precursores (a Lua, os astros, os sinais no céu) da última<br />

vinda. Mas há uma vinda de Jesus que está acontecendo na história. É<br />

aquela vinda do esposo, no momento presente, na Igreja e nos crentes dos<br />

quais se falava domingo passado, que está no centro entre a vinda histórica<br />

do Redentor e aquela futura que esperamos. É a vinda de Jesus, real se for<br />

sacramental, que se realiza no culto eucarístico, a vinda pessoal de Jesus<br />

para cada pessoa através de seu amor, de sua palavra, de sua graça, através<br />

dos eventos do mundo. A vinda à qual é preciso ir ao encontro com nossa<br />

resposta e com nossa decisão de cada dia.<br />

Também por esta vinda silenciosa e contínua ao mundo e aos homens,<br />

Jesus tem necessidade de precursores. Para essa tarefa fomos todos<br />

consagrados no dia do batismo. Jesus foi à casa de João e o santificou desde<br />

a origem, diretamente no seio materno, para que ele fosse depois seu corajoso<br />

arauto e anunciador. Assim fez também conosco. Com o batismo,<br />

escolheu-nos, remiu-nos e santificou-nos no alvorecer da vida, para que<br />

fôssemos seus precursores no mundo. Devemos, portanto, ser dele precursores,<br />

gente que aplaina a estrada e suscita uma espera.


2 o Domingo do Advento: Os precursores<br />

João Batista, o precursor por excelência, nos ajudará a compreender<br />

de que modo também podemos ser precursores para Jesus. Nossa próxima<br />

leitura começa assim: Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no<br />

deserto da Judeia. Dizia ele: “Fazei penitência porque está próximo o Reino<br />

dos Céus”. Eis o que nós também devemos dizer ao mundo: o reino dos<br />

céus está próximo; aliás, nós devemos acentuar com força, como fez o<br />

próprio Jesus depois de João: O Reino dos céus já está no meio de vós; está<br />

acontecendo, está caminhando no mundo. A coisa mais importante não é<br />

mais esperá-lo e preparar-se, mas entrar nele, mesmo a custo de renúncias<br />

e sacrifícios: O Reino dos Céus é arrebatado à força e são os violentos que o<br />

conquistam (Mt 11,12).<br />

Anunciando a missão de João, no momento de seu nascimento, o<br />

Pai Zacarias cantou no Benedictus: E tu, menino, serás chamado profeta do<br />

Altíssimo, porque precederás o Senhor e lhe prepararás o caminho, para dar ao seu<br />

povo conhecer a salvação, pelo perdão dos pecados. Graças à ternura e misericórdia<br />

de nosso Deus (Lc 1,76-78). A quem lhe pedia: Tu quem és? – João respondia:<br />

Eu sou a voz daquele que grita no deserto. A vida de João foi toda voz para<br />

gritar a seus contemporâneos esta maravilhosa notícia da salvação mediante a<br />

remissão dos pecados: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Ele<br />

se inflamava ao apresentar Jesus, fazendo que o povo o desejasse, suscitando<br />

a espera e a necessidade dele: Depois vem alguém que é mais do que eu; eu vos<br />

batizei com água, mas ele vos batizará no Espírito Santo. O arauto e “amigo do<br />

esposo” vive todo para ele e quando o esposo entra em cena se retira, desaparece,<br />

para que todos ouçam a ele: Ele deve crescer, eu diminuir. A voz cala, depois<br />

de ter transmitido a Palavra; o amigo do esposo se retira após sua chegada: Eu<br />

não sou digno de desatar-lhe os cadarços das sandálias.<br />

Agostinho explicou bem o papel da voz: ela é um meio, serve para<br />

transmitir a palavra, a ideia que se formou dentro dele. Quando esta palavra<br />

entrou no coração do outro, comunicou-se ao outro, a voz cala, se<br />

apaga. Assim é do precursor: quando a Palavra, isto é, Cristo, faz seu comparecimento,<br />

retira-se. Sua presença tornar-se-ia um estorvo. O precursor<br />

deve saber retirar-se em tempo; não deve permitir que se apeguem a ele, que<br />

fiquem com ele, sabendo que ele não é o salvador de ninguém.<br />

Missão maravilhosa para os discípulos de Cristo é comunicar ao mundo<br />

o conhecimento, ou melhor, a certeza da salvação! Dizer aos homens:<br />

21<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


22<br />

O Verbo se faz carne<br />

No meio de vós encontra-se alguém que vós não conheceis: alguém que vos<br />

procura e vos pode tornar felizes, o único que tem palavras de vida eterna<br />

e nunca engana!<br />

Deveremos então todos colocar-nos a pregar, a gritar como João Batista:<br />

Convertei-vos? Sim, todos pregadores, mas não necessariamente com as palavras.<br />

Antes de começar a pregar aos outros a conversão e a penitência, João<br />

realizou e viveu este estado de conversão. Antes de começar a “clamar” no<br />

deserto, ele “viveu” em silêncio no deserto; preparou os caminhos do Senhor<br />

em si mesmo e lhe aplainou a estrada para o interior de seu coração, antes de<br />

exortar os outros a fazer a mesma coisa: O menino foi crescendo e fortificava-<br />

-se em espírito, e viveu nos desertos até o dia em que se apresentou diante de<br />

Israel (Lc 1,80). Exatamente como fez Jesus de Nazaré. Também nós, antes<br />

de nos colocar em “estado de confissão”, devemos colocar-nos em “estado<br />

de conversão”. Devemos, enfim, converter-nos, antes de falar aos outros da<br />

necessidade da conversão.<br />

O momento mais lindo da vida do precursor foi quando se encontrou<br />

com o Mestre, quando o viu aproximar-se dele e exclamou: Eis o Cordeiro<br />

de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo, eis aquele do qual eu vos falava.<br />

Também para nós está para se realizar este encontro. Na comunhão, o<br />

acolhemos com as mesmas palavras de João Batista: Eis o Cordeiro de Deus<br />

[...]. Que ele nos encha o coração de alegria e de coragem para podermos<br />

ser seus precursores no mundo.


3 o Domingo Do ADvento:<br />

sois vós Aquele que Deve vir,<br />

ou Devemos esperAr por outro?<br />

Leituras: is 35,1-6a.8a.10; tg 5,7-10; mt 11,2-11<br />

A primeira leitura de hoje faz reviver a espera que precedeu a primeira vinda<br />

de Cristo e as esperanças que a animaram. Eram esperanças de luz, de salvação,<br />

de alegria. A alegria messiânica é a nota dominante, e é por causa disto, certamente,<br />

que foi escolhido este tópico para o terceiro domingo do Advento, dedicado<br />

tradicionalmente ao tema da alegria cristã. Do início ao fim, há um convite à<br />

alegria: Alegre-se, exulte, floresça, cante-se com alegria e com júbilo.<br />

As outras duas leituras do NT nos fazem sair do clima de expectativa, presente<br />

no Antigo Testamento, para nos introduzir no tempo do cumprimento: Sois<br />

vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro? – pedem a Jesus os emissários<br />

de João Batista. A resposta de Jesus é clara; ele mostra que nele estão se cumprindo<br />

as profecias: Naquele tempo – diz Isaías – abrir-se-ão os olhos dos cegos; os coxos<br />

saltarão [...]. E Jesus afirma que todos estes “tempos futuros”estão acontecendo<br />

agora no presente: Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos<br />

ouvem os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres. É chegada, portanto,<br />

a hora do cumprimento. Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião<br />

de queda! – acrescenta Jesus – isto é, quem não encontra demais modesta e pouco<br />

vistosa a minha origem e a minha pessoa para uma hora tão grande e tão esperada.<br />

Com Tiago, na segunda leitura, nós deixamos também este tempo<br />

de Jesus e nos encontramos imersos em nosso tempo. É o tempo que está<br />

no meio, entre a vinda de Cristo e sua volta. Aquele que devia vir já veio; o<br />

objeto da espera se tornou recordação: recordação, precisamente, a que nos<br />

estamos preparando para celebrar no Natal já próximo. Mas a recordação<br />

gera e alimenta uma nova espera. Diz Tiago –, tende, pois, paciência, meus<br />

irmãos, até a vinda do Senhor [...] fortalecei os vossos corações, porque a vinda<br />

do Senhor está próxima. É a espera da volta de Cristo que proclamamos em<br />

cada uma de nossas missas. Esta espera é o verdadeiro tema dominante da<br />

Liturgia da Palavra de hoje. Mas não é mais uma espera como aquela do<br />

Antigo Testamento. Como os profetas outrora esperaram a Cristo, Tiago,<br />

no fim da leitura nos exorta a imitar-lhes a paciência e a constância na<br />

23<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


O Verbo se faz carne<br />

espera, e não seu conteúdo. Nossa espera não é mais a do novo, mas é a<br />

espera do escatológico, isto é, do definitivo. O novo já chegou com Jesus<br />

Cristo. Ele trouxe toda a novidade ao mundo, trazendo a si mesmo (Santo<br />

Ireneu). Tiago comparou essa nossa expectativa àquela do agricultor que<br />

plantou sua semente e agora espera somente o tempo da colheita.<br />

Devemos insistir nestas coisas aparentemente tão claras, porque delas<br />

depende o bem-estar da consciência cristã e o lugar certo do crente na história.<br />

Há cristãos cultos que são dominados por ideias de uma filosofia muito<br />

em voga em nossos dias, a qual identifica o Deus bíblico com o futuro, isto é,<br />

com um Deus cuja natureza é ter sempre de vir, mas não vir nunca: o deus-utopia.<br />

Neste caminho, sem que percebamos, eles acabam por situar os homens<br />

antes de Cristo, nos tempos de Isaías, restabelecendo neles uma mentalidade de<br />

homens do Antigo Testamento. Homens que aguardam ainda que se produza<br />

na história o evento realmente importante, a virada decisiva, a transformação<br />

que desde sempre se espera. Como se esta virada decisiva não tivesse já sido<br />

realizada em Cristo; como se nele todas as promessas de Deus ao homem não<br />

tivessem já encontrado seu “sim” para sempre (cf. 2Cor 1,20). Certo mesmo é<br />

Deus, que no Antigo Testamento disse: Não vos lembreis mais dos acontecimentos<br />

de outrora, não recordeis mais as coisas antigas, porque eis que vou fazer obra<br />

nova, a qual já surge: não a vedes? (Is 43,18-19). Mas a coisa nova e definitiva<br />

que Deus preparava o que era senão exatamente Jesus Cristo?<br />

Não me deteria para falar-lhes destas coisas um pouco altas e filosóficas<br />

se elas não tivessem reflexos muito concretos nas escolhas práticas dos<br />

cristãos. Há hoje cristãos comprometidos com a cultura e com a práxis social<br />

que, motivados por essas ideias, são levados a crer que seu papel de discípulos<br />

de Jesus se esgota colocando-se à procura e à preparação do futuro, no mesmo<br />

plano e quase com o mesmo espírito de outros que professam uma concepção<br />

de homem muito diferente da deles. Nasceram novas definições: o cristão é<br />

o homem aberto ao futuro; a fé consiste na possibilidade de poder continuar<br />

a crer também no futuro. Este tipo de cristão se apresenta aos irmãos como<br />

alguém que quer procurar com eles, mas não como alguém que já encontrou<br />

em Cristo ao menos uma resposta definitiva: aquela que se refere ao seu destino.<br />

Atualmente, ter certezas seria, para alguns, algo indigno e passível de<br />

suspeita num cristão. Tal atitude é bem aceita hoje; está de acordo com um<br />

cristianismo voltado a ser humilde depois da renúncia ao triunfalismo e que<br />

24


3 o Domingo do Advento: Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?<br />

pede apenas o direito de existir, como na era pré-cristã. Essa postura contém<br />

sem dúvida um valor precioso. Mas talvez já tenha chegado a hora de ser<br />

crítico também em relação a esta forma de ser cristão, exatamente para que<br />

se evite cair num autolesionismo e num conformismo às avessas: em outras<br />

palavras, que se evite a culpa por aquilo que Jesus acenava quando falava de<br />

discípulos que se envergonham dele nessa geração.<br />

Devemos por isso fazer uma ressalva à mensagem, embora muito<br />

linda e cristã de abertura ao futuro, contida em algumas correntes da teologia<br />

mais recente. Se esse futuro não é radicado no evento Jesus Cristo,<br />

se não apresenta em seu horizonte último a Jerusalém celeste, mas, ainda<br />

e sempre, a Jerusalém daqui de baixo – isto é, uma cidade bem-ordenada,<br />

cheia de fervor operativo, sem injustiça, habitada por homens libertos das<br />

alienações – então nosso advento não é cristão. É um daqueles infinitos adventos<br />

políticos que marcaram a história humana, primeiro, durante e, por<br />

alguns séculos, depois da vinda de Cristo. Adventos que tornaram crônica<br />

a desilusão dos povos, constrangendo-os, pela insistência de propaganda, à<br />

volta pela espera depois de cada desilusão.<br />

Eu creio que o tempo litúrgico do Advento que estamos vivendo seja o<br />

clima ideal para a comunidade cristã reencontrar o esquema fundamental de<br />

sua visão de mundo, para descobrir, sob as estratificações arenosas das modas<br />

passageiras e dos falsos sincretismos, a planta do edifício da própria fé.<br />

A confusão atual já é bastante grave, e não é possível permanecer nela<br />

por mais tempo. É um dever do cristão para consigo e para com a sua fé,<br />

mas talvez ainda mais uma responsabilidade que tem para com o mundo.<br />

Este não pode, com efeito, ser privado da autêntica alternativa cristã, sem<br />

perder a possibilidade do confronto e da própria superação crítica. Ao longo<br />

do ano litúrgico teremos ocasião de aprofundar em que consiste esta alternativa<br />

cristã. Veremos que não é legítimo o apego ao passado e o fechamento<br />

ao futuro (a última definição de Deus que se lê no Novo Testamento é:<br />

Eis que eu renovo todas as coisas (Ap 21,5). Nem, tampouco, é indiferença<br />

para com os pobres, que são, geralmente, aqueles que têm mais motivos<br />

para ficar descontentes com o presente e que olham com confiança o futuro.<br />

O futuro esperado pelo cristão se distingue daquele do não-crente não por<br />

algo a menos, mas por algo a mais que possui. Bem-aventurado – repete também<br />

a nós, homens de hoje, Jesus – aquele que não se escandaliza por causa de mim.<br />

25<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


26<br />

O Verbo se faz carne<br />

4 o Domingo Do ADvento:<br />

será chAmADo “Deus conosco”<br />

Leituras: is 7,10-14; rm 1,1-7; mt 1,18-24<br />

A Liturgia da Palavra desta missa abre-se com a célebre profecia de<br />

Isaías: O próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à<br />

luz um filho, e o chamará “Deus Conosco”. O trecho lido do Evangelho nos<br />

descreveu que a profecia se cumpriu em <strong>Maria</strong>, que em sua virgindade deu<br />

à luz Jesus Cristo. Tudo isto – comenta o Evangelista – aconteceu para que<br />

se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta.<br />

Com esses dois tópicos da Escritura somos introduzidos no coração<br />

do Natal. No Natal celebramos o acontecimento histórico do nascimento<br />

de Jesus. Mas antes devemos celebrar um natal teológico, isto é, o significado<br />

profundo do Natal. O mistério do Natal é este: Deus, em Jesus Cristo,<br />

se fez Emanuel, o Deus conosco. De “Deus altíssimo” se tornou um Deus<br />

próximo, um Deus para os homens. E esse é o novo nome com que será conhecido:<br />

Emanuel. O que significa tudo isso? Deus estava com o homem<br />

desde a criação. Mas era um diálogo a distância, feito por meio dos profetas.<br />

Havia entre Deus e o homem uma aliança, mas difícil e precária. Em<br />

Cristo, Deus entrou pessoalmente na humanidade, em carne e osso; fez-se<br />

um de nós, para nos falar e nos salvar por meio de nossa situação de pecado.<br />

A aliança se tornou nova e eterna: eterna, porque as duas partes – Deus e<br />

o homem – já são uma só pessoa, um ser não mais divisível: Jesus Cristo.<br />

Jesus Cristo é o Emanuel, o Deus conosco. Aprendamos a conhecer<br />

bem este nome de nosso Salvador; ele encerra em síntese toda a nossa fé<br />

nele. Jesus é Emmanu, isto é, conosco; é um de nós, nosso irmão, descendente<br />

de Davi quanto à carne, como diz São Paulo na segunda carta de hoje.<br />

Mas Jesus é também El, isto é, “Deus”. Ele é filho do homem, mas também<br />

filho de Deus. Se fosse só “conosco”, mas não fosse com “Deus”, não nos<br />

poderia salvar, não seria o Senhor do mundo e da história. Se fosse somente<br />

“Deus”, mas não “conosco”, a sua salvação não nos interessaria; teria<br />

ficado também ele um Deus desconhecido, difícil de ser reconhecido e de<br />

satisfazer as expectativas humanas. Eis o verdadeiro mistério cristão que no<br />

Natal devemos reafirmar com clareza.


4 o Domingo do Advento: Será chamado “Deus conosco”<br />

Houve um tempo na Igreja em que a cultura dificultava aceitar que<br />

Jesus fosse realmente “conosco”, isto é, homem com os homens, submetido<br />

ao nascimento, à dor e à morte (heresia docetista). Agora a situação inverteu-se.<br />

Os homens de hoje se apaixonam pelo homem Jesus. “Contudo é<br />

um homem; é somente um homem”, canta Madalena no filme Jesus Christ<br />

Superstar, expressando os sentimentos de tantos leitores modernos do<br />

Evangelho. Estes acham difícil aceitar que ele, além de homem, seja Deus.<br />

Nós cristãos não devemos nem nos escandalizar nem nos ofender por<br />

estas incompreensões. Quem ama e admira Jesus como homem não tardará<br />

a descobrir que ele é mais do que um homem ou um profeta. Não devemos<br />

recuar diante do reconhecimento da plena humanidade em nosso Salvador<br />

somente porque alguns limitam-se a ela. Mais do que os outros, cremos que<br />

ele foi homem como nós, também se sem pecado: homem que conheceu a<br />

privação, o tédio, o medo, talvez a dúvida, certamente a angústia e a dor.<br />

Mas não podemos parar aqui. Também durante a vida de Jesus havia quem<br />

o tomava como um simples “profeta”. Mas de seus discípulos ele exigiu algo<br />

mais: Vós, quem dizeis que eu sou?<br />

A esta eterna pergunta a Igreja responde com as palavras de Pedro: Tu<br />

és o Cristo, o Filho de Deus, isto é, tu és o Deus conosco.<br />

Mas Jesus é hoje ainda o Deus conosco ou o foi apenas por um breve período<br />

de trinta anos, desde seu nascimento de <strong>Maria</strong>, em Belém, até sua morte<br />

na cruz? Sim; o é também hoje. Eu fico convosco até o fim do mundo – disse ele.<br />

Ele colocou sua tenda entre nós – escreveu João (cf. Jo 1,14). Jesus é ainda Deus<br />

conosco. Com a ressurreição, ele inaugurou um modo novo de estar no mundo:<br />

um modo espiritual, invisível, mas real. Jesus é um companheiro nosso.<br />

Diante desta certeza de fé, a única resposta do homem é o grito feliz<br />

de Paulo: Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem nos separará<br />

de seu amor? (cf. Rm 8,35). É verdade: há alguém que nos pode separar<br />

dele e este alguém somos nós mesmos. Nós podemos, infelizmente, virar as<br />

costas a Jesus, viver como se ele nunca tivesse vindo, como se não tivesse<br />

falado. Viver para nós mesmos, como diz Paulo, e não para ele que morreu<br />

e ressuscitou por nós (cf. 2Cor 5,15). Não adianta que Deus esteja conosco<br />

se nos recusamos a estar com ele, do lado dele. Por isso, o tempo de Natal é<br />

também uma ocasião para lembrar ao cristão seu compromisso moral: Eis<br />

agora o tempo propício, nos diz ainda o apóstolo.<br />

27<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


28<br />

O Verbo se faz carne<br />

Jesus Cristo é sempre Emanuel, o Deus conosco. Mas há um momento<br />

em que ele está conosco de uma maneira diferente: sacramental e<br />

real. É isto que acontece agora na celebração eucarística. Torna-se presente<br />

para ser nosso alimento. No salmo responsorial rezamos: “Quem subirá<br />

até o monte do Senhor, quem ficará em sua santa habitação?”. E respondemos<br />

com o salmista: “Quem tem mãos puras e inocente coração”. Nós<br />

não temos talvez um coração puro e inocente para nos aproximar do altar<br />

do Senhor, mas oferecemos-lhe em contrapartida um coração humilde e<br />

contrito, e ele não nos rejeitará.


25 De Dezembro:<br />

nAtAl Do senhor (missA DA noite)<br />

este será pArA vós um sinAl – um menino numA mAnjeDourA<br />

Leituras: is 9,2-4.6-7; tt 2,11-14; Lc 2,1-14<br />

Nesta liturgia noturna de Natal, uma coisa é, sobretudo, necessária:<br />

uma grande simplicidade. Somente quem tem, ou sabe dar-se, olhos de<br />

criança é capaz de encantar-se sempre de novo com aquilo que ouve nesta<br />

noite. O estupor é a porta para entrar na adoração e na alegria do Natal.<br />

Quem quiser portar-se como o grande, o adulto, o racionalista, também<br />

diante de seu Deus que se torna criança, não compreenderá nada. Esta<br />

pessoa pode estar aqui conosco no banquete eucarístico, mas como aquele<br />

convidado que não tinha a veste nupcial.<br />

Rejubilam-se diante de vós como na alegria da colheita, nos sugeriu Isaías<br />

na primeira leitura. Por que rejubilar? “Porque um menino nasceu para<br />

nós, foi-nos dado um filho”. Mas crianças não nascem todos os dias e todas<br />

as horas? Sim: e efetivamente cada nascimento é um motivo de alegria e<br />

de esperança: primeiro para a mãe que o esperou, como dirá Jesus um dia;<br />

depois para o mundo e para Deus. Cada bebê que nasce nesta terra é um<br />

sinal de que Deus não desespera ainda dos homens. Mas a criança da qual<br />

comemoramos o nascimento nesta noite traz outros motivos de esperança<br />

e de alegria. Sobre seus ombros está o sinal da soberania [...]. Grande será o<br />

seu domínio e a paz não terá fim [...]. Ele vem consolidar a justiça. Com ele,<br />

continuou São Paulo na segunda leitura, apareceu a benignidade de Deus,<br />

mensageira de salvação para todos os homens. Vimos todos esses motivos<br />

depois resumidos no primeiro anúncio do Natal, aquele feito aos pastores:<br />

Não temais, eis que vos anuncio uma Boa-Nova que será alegria para todo o<br />

povo: hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador, que é Cristo Senhor.<br />

Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto<br />

numa manjedoura.<br />

Podemos parar aqui. O paradoxo do Natal (e do Evangelho) está todo<br />

contido nestas palavras. Grandes coisas eram esperadas com este nascimento,<br />

como escutamos: alegria, paz, justiça, salvação. E depois eis-nos<br />

levados diante de um menino numa estrebaria, diante do espetáculo mais<br />

29<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


30<br />

O Verbo se faz carne<br />

impregnado de fraqueza, de impotência e de pobreza como nunca a humanidade<br />

teria imaginado. Completam este quadro <strong>Maria</strong> e José, duas daquelas<br />

criaturas para as quais nunca há lugar na hospedaria. A paz e a justiça<br />

para todo o mundo vêm de alguém que não teve sequer casa para nascer.<br />

Naquele tempo, outros falavam de paz e de justiça para o mundo.<br />

Assim procedia César Augusto, que ouvimos mencionar no começo do tópico<br />

evangélico. O evangelista o nomeou aqui, evocando o poderio e o<br />

esplendor da Roma imperial, a fim de criar o mais forte contraste com a<br />

criança que nasce num obscuro vilarejo da Judeia. Também César Augusto<br />

se fazia chamar salvador e príncipe da paz. Depois dele, cada imperador<br />

que subia ao trono era saudado com inscrições entalhadas nas moedas que<br />

o chamavam “restaurador do mundo”, “esperado do povo”, “restituidor da<br />

luz”. E, na verdade, os homens até aquele dia tinham sempre pensado<br />

assim: “somente quem é forte, quem tem exércitos, quem tem o comando<br />

pode impor aos outros a paz e levar a salvação”. Deus derrubou com o Natal<br />

de Cristo todas essas falsas certezas dos homens. O que é estulto no mundo<br />

– escreveu São Paulo –, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é<br />

fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes (1Cor 1,27). E o<br />

que há no mundo mais estulto do que a pobreza; o que há de mais frágil<br />

do que uma criança? Por isso ele escolheu dar-nos este sinal: uma criança<br />

numa manjedoura.<br />

Somente Deus podia pensar numa mudança tão radical da lógica<br />

humana; somente ele podia pronunciar um “não” tão radical àquilo que os<br />

homens colocaram sempre acima em sua escala de valores: um não à riqueza,<br />

ao poder, às honras, à autoridade. Nós, sozinhos, não teríamos nunca<br />

cogitado nisso: mas agora que o sabemos nos alegramos e jubilosos dizemos<br />

a Deus o nosso “sim”. Tu escondeste estas coisas aos grandes e as revelaste<br />

aos pequenos: sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado (cf. Mt 11,26).<br />

Os grandes, os poderosos, os fortes doravante não nos amedrontam como<br />

outrora. Tu confundiste os sábios, os fortes e, doravante, este é o sinal:<br />

um menino numa manjedoura. Terias podido nascer em Roma, no berço<br />

imperial, como o filho do mais poderoso da terra. Ali tinha imaginado<br />

teu nascimento o poeta pagão na célebre Quarta Écloga. Teria sido também<br />

aquela uma encarnação teologicamente perfeita; teria sido “verdadeiro<br />

Deus e verdadeiro homem” mesmo assim. Mas agora sabemos como teria


25 de dezembro: Natal do Senhor<br />

sido diferente. Terias dito “sim” àquilo que os homens tinham sempre pensado.<br />

Nada de realmente novo teria começado, nenhum rumo novo para<br />

o mundo. Para ti, porém, mais do que te tornares homem, era importante<br />

tornar-te pobre e humilde. Assim tu deste de verdade uma esperança aos<br />

pobres da terra, aos abandonados, àqueles que não têm vez. Deste uma esperança<br />

“a todo o povo”, porque nem todos podem ser ricos, sábios e fortes<br />

neste mundo, mas todos podem se tornar humildes.<br />

Uma coisa ainda resta a compreender como conclusão de tudo: que a<br />

esperança de paz e de justiça que tu procuras para os pobres não é sedativo<br />

para ninguém; não é “um ópio do povo”; ou seja, não é um substituto daquela<br />

outra paz e daquela outra justiça que tanto atormentam os homens<br />

de hoje, mas é a premissa e seu fundamento.<br />

Agora nosso pensamento se dirige à Eucaristia que estamos para celebrar.<br />

O sinal do menino na manjedoura se faz presente no sinal, não menos<br />

humilde, do pão sobre o altar. O que diremos a Jesus nesta noite, nós, comunidade<br />

unida em seu nome? Uma palavra somente: Obrigado, Senhor.<br />

Para as homilias sobre a<br />

missa da aurora e do dia,<br />

veja respectivamente Ano<br />

B e Ano C.<br />

31<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


32<br />

O Verbo se faz carne<br />

Domingo nA oitAvA Do nAtAl (ou 30 De Dezembro):<br />

sAgrADA FAmíliA – heroDes está procurAnDo<br />

o menino pArA o mAtAr<br />

Leituras: ecLo 3,3-7.14-17a; cL 3,12-21; mt 2,13-15.19-23<br />

O primeiro domingo após o Natal é dedicado à Sagrada Família. Em<br />

primeiro plano está hoje a lembrança e a veneração à Família de Nazaré.<br />

Esta nos é apresentada na antífona de entrada da missa: foram com grande<br />

pressa e acharam <strong>Maria</strong> e José, e o menino deitado na manjedoura (Lc 2,16).<br />

O trecho evangélico nos faz seguir esta família em suas vicissitudes: a fuga<br />

para o Egito, depois a volta e sua permanência em Nazaré.<br />

Mas já a primeira e a segunda leitura nos mostram claramente que a<br />

intenção da Liturgia não se esgota aqui. A história da Sagrada Família é ocasião<br />

para uma reflexão sobre a família em geral, feita à luz da Palavra de Deus.<br />

A primeira leitura fixa a atenção sobre o respeito e a honra que devem<br />

caracterizar as relações entre os membros de uma mesma família, sobretudo<br />

entre pais e filhos. Trata-se, praticamente, de um comentário ao quarto<br />

mandamento: Honrar pai e mãe. E, mais, há aquela veemente exortação a<br />

respeitar o ancião, que é, sem dúvida, uma das atitudes que precisam ser<br />

repetidas com mais insistência na sociedade atual: Meu filho, ajuda a velhice<br />

de teu pai, não o desgostes durante a sua vida. Se seu espírito desfalecer, sê<br />

indulgente, não o desprezes porque te sentes forte. Quantas reflexões deveríamos<br />

fazer sobre essas advertências se o Evangelho não apresentasse um<br />

problema ainda mais urgente e preocupante.<br />

No trecho do evangelho de hoje lemos frases como estas: Herodes<br />

vai procurar o menino para o matar, e ainda (na parte omitida pela liturgia),<br />

Herodes fez matar todos os meninos de Belém dos dois anos para<br />

baixo. Depois aquela espécie de elegia fúnebre sobre os meninos mortos:<br />

Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus<br />

filhos; não quer consolação, porque já não existem (Mt 2,18). Enfim, o anúncio<br />

libertador: Morreram os que atentavam contra a vida do menino.<br />

Não tenho nenhuma intenção de adulterar o sentido destas frases<br />

evangélicas. Elas descrevem um fato histórico bem conhecido. Mas ouvidas


Domingo na Oitava do Natal (ou 30 de dezembro): Sagrada Família<br />

hoje, no âmbito de uma reflexão sobre a família, nos levam quase que irresistivelmente<br />

a pensar em outros Herodes, em outros meninos mortos...<br />

O Evangelho nos apresenta hoje Jesus como o protótipo da vida perseguida<br />

pela política e pela razão de Estado e nós, ao comentarmos sobre<br />

isso, não podemos deixar de falar daquela forma particular e crescente de<br />

sacrificar a vida humana pela razão de Estado (ou de partido) que se chama<br />

aborto. Não costumo lançar-me em discursos unilaterais e em simplificações<br />

injustas e não o farei nem desta vez. Comecemos, por isso, reconhecendo<br />

nossas responsabilidades, antes de denunciar as dos outros, como nos<br />

ensina a fazer nosso Mestre. Se nós, que lutamos contra o flagelo do aborto<br />

“livre e gratuito”, tivéssemos em primeiro lugar sempre mostrado com<br />

atitudes a defesa da vida – de toda forma de vida e contra toda espécie de<br />

violência à vida humana –, hoje teríamos maior credibilidade e poderíamos<br />

talvez nos fazer ouvir melhor, enquanto pressionamos nossos irmãos a não<br />

se macularem com esta culpa. Mea culpa, portanto, pelos abortos clandestinos<br />

não denunciados e não impedidos; mea culpa pela vida de crianças que<br />

deixamos decepar ou entristecer com as guerras, pela fome e pela especulação,<br />

sem procurar impedi-lo com todas as forças.<br />

Que nunca aconteça, todavia, que as omissões do passado e do presente<br />

nos levem a uma omissão ainda mais grave pela sua deliberação:<br />

aquela de calar diante da legalização e da liberação do aborto.<br />

Porque hoje ninguém pode mais, em boa-fé, sustentar que o aborto<br />

não seja realmente e plenamente um homicídio. “É um homem também<br />

quem está se tornando” (Tertuliano). Ninguém, em toda a longa polêmica<br />

destes anos, pôde contestar os dados da ciência: o embrião, desde a concepção,<br />

tem todo o necessário, se não for impedido por agentes externos,<br />

a levar a termo o seu desenvolvimento; o menino de amanhã tem tudo<br />

programado nos mínimos detalhes, inclusive a cor de seus cabelos. Não se<br />

suprime, portanto, um amontoado informe de células, como se ouve dizer<br />

cinicamente por vezes, mas uma vida humana em devir, um destino e, portanto,<br />

uma pessoa. Não tem ainda a consciência, mas, se é por isso, não a<br />

tem nem um menino de um ano!<br />

É curiosa e impressionante, ao mesmo tempo, a má-fé que constatamos<br />

em nossa sociedade atual: estamos prontos a nos comover e a levantar-<br />

-nos indignados por um menino recém-nascido abandonado numa lixeira,<br />

33<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


O Verbo se faz carne<br />

por meninos doentes, por crianças vendidas; prontos para pagar resgates<br />

vultosos por uma menina raptada. Mas antes da fatalidade a vida humana<br />

parece não valer um centavo. E isso acontece dessa forma somente porque<br />

não vemos com nossos olhos! Contudo, não é um agressor contra o qual se<br />

possa apelar para a legítima defesa; nenhuma criança vem ao mundo sem<br />

que ninguém o saiba, por sua própria iniciativa; é pelo ato e pela vontade<br />

clara de duas criaturas a chamá-la à vida, e por um ato que se define como<br />

“amor”. Shakespeare narrou num drama imortal a história de Macbeth e<br />

sua mulher, que acolhem com festa, no castelo deles, seu rei como hóspede,<br />

e na noite sucessiva o matam durante o sono, acabando ambos depois por<br />

enlouquecer de remorso.<br />

Há algo que não cessa de me surpreender na legislação sobre o aborto<br />

(feita, em geral, por homens): é a recusa em reconhecer qualquer direito ao<br />

próprio pai de exercer a paternidade, ainda que se trate de casais devidamente<br />

casados e que de comum acordo quiseram e geraram a vida e dela são os<br />

responsáveis. Estabelece-se, assim um princípio do qual pode originar-se, e<br />

muito concretamente, que um homem se veja privado de um dos seus direitos<br />

fundamentais: aquele de se tornar pai. No caso do aborto, diz-se ser<br />

a mulher a única a decidir. Assim como Pilatos, o homem lava suas mãos,<br />

pensando talvez em reparar uma injustiça, não percebendo que está, ao<br />

invés, cometendo outra pior: a de deixar para sua companheira todo o peso<br />

de uma decisão (e de um remorso) terrível. Como Pilatos, ele diz: Toma-a e<br />

mata-a você; eu não quero ter implicações com o sangue deste justo.<br />

Para quem crê, há outra coisa; há os direitos do outro “Pai” que são<br />

espezinhados. A alma, não são os pais a infundi-la em seu filho, mas é Deus<br />

que para cada criatura humana renova o prodígio da criação. Pode-se prescindir<br />

deste pensamento falando-se de aborto e da avaliação de sua gravidade?<br />

Por sorte a teologia superou a ideia do Limbo no qual iam acabar<br />

as crianças mortas sem batismo! Elas, podemos ficar certos, vão junto a<br />

Deus. Ele, em sua onipotência, saberá assegurar-lhes aquela maturação de<br />

criaturas humanas completas que lhes foi negada pelos homens. João, no<br />

Apocalipse, nos ajuda a imaginá-las ao redor do trono de Deus (Ap 14),<br />

enquanto – como diz o poeta cristão Prudêncio dos Santos Inocentes –<br />

brincam com suas pequenas coroas de mártires. São mártires, efetivamente,<br />

eles também, e por uma causa santíssima: a da vida.<br />

34


Domingo na Oitava do Natal (ou 30 de dezembro): Sagrada Família<br />

Antes de tudo, o que nos deve preocupar é a sorte de quem as matou e<br />

de quem sancionou com tanta facilidade a lei que permite matá-las. Não é,<br />

portanto, sobre elas que devemos chorar, mas sobre nossos pecados. Se há<br />

Deus, como nós cremos, há um mundo além, e se há um mundo além desta<br />

vida um dia alguém deverá suportar o olhar destes cordeirinhos conduzidos<br />

antes do tempo para o matadouro. Deus tenha então misericórdia de quem<br />

deverá suportar aquele olhar. Estes inocentes bem saberão, naquele dia,<br />

quem é culpado por sua morte e quem não o é; quem agiu por desespero<br />

e quem com uma fria lucidez, seguindo o instinto do mal, ou colocando a<br />

causa do partido diante da de Deus e da consciência.<br />

Como se explica que se tenha chegado a esta moral louca povos que<br />

têm fundamentado seus códigos sob o princípio: “Quinto: não matar”?<br />

Talvez haja em seus ombros uma longa corrente de capitulações em relação<br />

à vida: guerras infindas, exploração do homem pelo homem, violência,<br />

não a última delas aquelas do homem sobre a mulher. Depois, há aquele<br />

equívoco singular que se verificou também entre nós. No interior de forças<br />

declaradamente ateias e materialistas se elaboram argumentações e justificações<br />

em favor do aborto que supõem a negação clara de Deus, autor e<br />

juiz da vida humana. Quando, porém, tais razões chegam aos ouvidos dos<br />

cristãos, estes, como que alucinados pela propaganda, não fazem caso se<br />

tais argumentos vêm de pessoas que compartilham a própria visão de vida,<br />

mas somente se vêm de pessoas que partilham a própria ideologia política.<br />

Assim a política é anteposta tranquilamente à fé e à consciência e, sem se<br />

perceber, se desposa a causa do ateísmo e do materialismo. Uma causa que<br />

tem a petulância de se definir como “causa do homem”, ou “libertação humana”,<br />

enquanto não passa da enésima demonstração do fato de que onde<br />

se nega a Deus, acaba-se por negar e pisar em seguida também o homem.<br />

O evangelho de hoje não nos falou somente daqueles “que perseguem<br />

a vida do menino”, mas também daqueles que a defendem. <strong>Maria</strong> e José,<br />

que enfrentam os incômodos do exílio para salvar seu menino, em seu sofrido<br />

silêncio, são o modelo de todos aqueles que sentem o dever de proteger e<br />

defender a vida dos indefesos: toda vida, a da mãe e a do bebê: Levanta-te,<br />

toma o menino e sua mãe.<br />

Abre-se aqui o tema sobre o que deve fazer positivamente o cristão neste<br />

campo; porque está claro que não basta limitar-se ao “não”, ou às denúncias,<br />

35<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


O Verbo se faz carne<br />

diante da complexidade do problema. Propostas positivas, os cristãos as têm.<br />

A começar pela primeira e mais urgente de todas, que é educar de forma a levar<br />

ao conhecimento e à valorização da sexualidade. Quem recorre ao aborto<br />

é, em geral, alguém que não soube lidar adequadamente com sua sexualidade;<br />

alguém que pensou poder tratar com ela sem responsabilidade, separando-a<br />

implicitamente de um verdadeiro amor; ou alguém que não tomou nunca a<br />

sério o dever da paternidade e da maternidade responsáveis.<br />

O cristão sabe que esta última carência nem sempre depende dos indivíduos,<br />

e por isso sente-se comprometido, com a Igreja e com a ciência, em resolver<br />

o problema moral da limitação dos nascimentos de modo honesto e eficaz.<br />

Haverá menos abortos se houver menos vidas não esperadas e não queridas.<br />

Muitos, especialmente nas classes mais abastadas da sociedade, recorrem<br />

ao aborto por puro egoísmo, porque presos por uma concepção<br />

hedonista e absolutamente ateia da vida. Mas muitos são impelidos a recorrer<br />

ao aborto por causa de graves situações sociais. A estes últimos devemos<br />

procurar compreender, tomando a sério o problema habitacional,<br />

do desemprego, da mãe solteira. Compreender para ajudá-los a não ter de<br />

recorrer à solução extrema do aborto, que significa autocondenação, antes<br />

mesmo de condenar a vida da criança. Considerar-se-á inocente do aborto<br />

aquele construtor ou aquele locatário que alugando um apartamento põe<br />

como condição que não haja crianças, ou que não haja mais do que uma.<br />

Se a política de habitação diz respeito, sobretudo, aos governantes, qualquer<br />

um, também entre vocês, pode encontrar-se tendo de enfrentar na<br />

própria família o problema de uma mãe solteira; é aí que se deve notar se<br />

os pais são verdadeiros cristãos, se prezam mais a vida ou a assim chamada<br />

“boa reputação”. Muito se faz já por parte dos cristãos e seria injusto negar<br />

este reconhecimento a tantas pessoas e instituições. Devemos fazer mais e,<br />

talvez, fazê-lo de modo novo, quer como cristãos, quer como cidadãos.<br />

A Palavra de Deus nos levou hoje a refletir sobre um problema dos<br />

mais preocupantes. A oração deve ser o sinal de que nós não procuramos<br />

pôr-nos acima dos outros, mas somente acima do mal. Não pediremos por<br />

isso que morram “aqueles que tramam contra a vida do menino”, mas que<br />

se convertam e vivam. Vivam eles e vivam todas as vidas escondidas ainda<br />

no seio materno. Que se ouça sempre menos o pranto de Raquel que chora<br />

seus filhos que não existem mais.<br />

36


1 o De jAneiro:<br />

soleniDADe DA sAntA mãe De Deus<br />

pArAbéns A mAriA<br />

Leituras: Nm 6,22-27; gL 4,4-7; Lc 2,16-21<br />

Hoje a liturgia celebra a festa de <strong>Maria</strong> Santíssima Mãe de Deus.<br />

Nossos irmãos orientais de rito siríaco denominam a festa de hoje Parabéns<br />

a <strong>Maria</strong>. Nós nos achegamos a ela hoje com os sentimentos de quem se<br />

aproxima de uma mulher que há poucos dias gerou o seu primogênito.<br />

Duas coisas, porém, distinguem nossa homenagem a <strong>Maria</strong> acima de<br />

qualquer homenagem humana. Aquele a quem ela deu à luz é o Filho de Deus.<br />

Ela é, portanto, verdadeira Mãe de Deus: Theotokos, como dizem os cristãos<br />

ortodoxos. A Igreja definiu esta verdade num de seus primeiros concílios ecumênicos:<br />

aquele que teve lugar em Éfeso no ano de 431. Santo Inácio de<br />

Antioquia, um dos mais ilustres mártires da antiguidade cristã, chama a Jesus<br />

“o filho de Deus e de <strong>Maria</strong>”. Isto coloca <strong>Maria</strong> em um patamar altíssimo: nada<br />

mais e nada menos do que junto ao Pai celeste. Mas a coloca, ao mesmo tempo,<br />

tão próxima de nós de modo a torná-la nossa mãe: a mãe da Igreja. O Jesus<br />

que ela gerou nos assumiu como irmãos; uniu-nos a si tão profundamente de<br />

modo a formar um só corpo; fez-se nossa cabeça, mas também nosso irmão:<br />

primogênito entre uma multidão de irmãos, como o chama São Paulo (Rm 8,29).<br />

É aquilo que o apóstolo nos recordou com as palavras sublimes de sua<br />

carta aos gálatas que acabamos de ouvir há pouco: Deus enviou seu Filho, que<br />

nasceu de uma mulher [...] para que recebêssemos a sua adoção. No momento<br />

em que Jesus, em <strong>Maria</strong>, se torna filho do homem, nós, filhos dos homens,<br />

nos tornamos filhos de Deus. Uma vez que ele de filho se faz servo, nós que<br />

éramos servos nos tornamos filhos: Já não és mais escravo, mas filho, nos recordou<br />

São Paulo na mesma carta. É a admirável permuta, diante da qual se<br />

encanta hoje toda a Liturgia da Igreja. Dessa permuta ,<strong>Maria</strong> foi “o lugar” e<br />

a mediadora. Tornados filhos de Deus por meio do Espírito, nós adquirimos o<br />

direito de usar também a linguagem e a confiança dos filhos em relação a Deus,<br />

chamando-o como Jesus: Abba! Pai nosso! É uma espécie de relíquia viva do<br />

Cristo esta palavra: é sua “ipsissima voz”, isto é, sua mesma voz, chegada a nós<br />

sem passar por nenhuma tradução. Abba! Assim rezou Jesus Cristo.<br />

37<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A


38<br />

O Verbo se faz carne<br />

Talvez devêssemos recordar-nos mais frequentemente deste nosso incrível<br />

e dulcíssimo direito; deveríamos imitar nosso irmão Jesus, o qual na<br />

angústia do horto das oliveiras, como no ímpeto da alegria, sempre se dirigia<br />

ao Pai: Pai, se é possível... Agradeço-te, ó Pai... Pai, em tuas mãos entrego<br />

meu espírito. Nossa vida cristã tem necessidade deste amplo respiro para não<br />

viver na tristeza e não definhar na aridez do formalismo. Se nós aprendermos<br />

a estruturar toda nossa vida cristã nesse relacionamento filial com o<br />

Pai, nele encontraremos a unidade de toda a fé; descobriremos a relação que<br />

nos une com cada uma das três pessoas divinas: nós vamos ao Pai por meio<br />

de Jesus Cristo, no Espírito Santo. E vamos a ele não individualmente, ou<br />

até por grupos, mas como comunidade de pessoas salvas, como Igreja da<br />

qual <strong>Maria</strong> é a mãe, o modelo.<br />

Até aqui as reflexões sugeridas pela linda carta de São Paulo: “guardava<br />

todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração”. “Todos esses<br />

fatos”. De que fatos se trata exatamente? As palavras e os acontecimentos<br />

daqueles dias. Tudo o que acontecera por ocasião do nascimento de Jesus.<br />

O Natal foi para ela algo que conservou no coração, que meditou: foi uma<br />

escola da fé. Por quantas vezes <strong>Maria</strong> talvez tenha voltado o pensamento<br />

àqueles fatos, “às coisas ditas pelos pastores”, para haurir deles luz e coragem<br />

durante aqueles trinta longos anos de Nazaré, anos de fadiga e silêncio.<br />

Porque – é importante sabê-lo – também <strong>Maria</strong> viveu de fé, cresceu na<br />

fé, foi provada na fé. E nesse crescimento na fé seu alimento foi, como é<br />

para nós, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus nela se fez carne duas vezes:<br />

primeiro fisicamente, quando por nove meses ela o carregou no seio e o alimentou;<br />

depois se fez carne no resto de sua vida, no sentido de que cada um<br />

de seus gestos e cada momento tenha sido inspirado pela Palavra de Deus,<br />

que atuou com fidelidade. <strong>Maria</strong> é a Palavra de Deus feita silêncio. Ela fica<br />

silenciosa debaixo da Cruz e silenciosa no cenáculo.<br />

Nós não podemos imitá-la na primeira encarnação, mas podemos<br />

fazer isto na segunda. Podemos como ela “conceber o Verbo com a mente”<br />

(Santo Agostinho). Podemos, sim, acolher a Palavra, guardá-la no coração,<br />

torná-la “luz para os nossos passos”, alimento de nossa vida. Até merecer<br />

aquela bem-aventurança que o Senhor pronunciou um dia, por ocasião<br />

de uma visita de sua mãe: Bem-aventurados aqueles que ouvem a Palavra de<br />

Deus e a observam (Lc 11,28).


1 o de janeiro: <strong>Maria</strong> Santíssima Mãe de Deus<br />

Terminemos voltando à ideia de permuta da qual falamos no início<br />

de nossa reflexão. À luz da festa de hoje, <strong>Maria</strong> apresenta-se como o dom<br />

maravilhoso que se trocaram, no Natal, Deus e o gênero humano. Nossos<br />

irmãos de rito bizantino assim falam a Jesus na festa de Natal: “O que<br />

podemos vos oferecer, ó Cristo, por vos terdes feito homem sobre a terra?<br />

Cada criatura vos apresenta o sinal do seu reconhecimento: os anjos, os seus<br />

cantos; os céus, a sua estrela; a terra, uma gruta; o deserto, um presépio.<br />

Mas nós vos oferecemos uma mãe virgem!” (Idiomelon nas grandes vésperas<br />

de Natal). O gênero humano deu a Jesus, <strong>Maria</strong>, sua mais bela criatura, por<br />

mãe. E Jesus, no ocaso da vida, nos devolveu o presente, dando-nos <strong>Maria</strong><br />

por nossa mãe: Filho, eis tua mãe.<br />

Para os temas da paz e do ano<br />

novo, veja respectivamente o<br />

Ano B e o Ano C.<br />

39<br />

A<br />

N<br />

O<br />

A

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