27.04.2013 Views

Maria Luísa Malato - Universidade do Porto

Maria Luísa Malato - Universidade do Porto

Maria Luísa Malato - Universidade do Porto

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

POR PRISÃO O INFINITO<br />

Um estu<strong>do</strong> morfológico da Utopia n’O Balão aos Habitantes da Lua<br />

<strong>Maria</strong> <strong>Luísa</strong> <strong>Malato</strong><br />

Faculdade de Letras da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa<br />

Em 1979, João Ameal publicou, na Revista de História da Sociedade e da<br />

Cultura da <strong>Universidade</strong> de Coimbra, um artigo cujo título levantou na altura alguma<br />

polémica: “Não há utopias portuguesas”. Nele defendia o autor que, apesar de a Utopia<br />

de Morus ter como narra<strong>do</strong>r um marinheiro português (Rafael Hitlodeu), sempre a<br />

cultura portuguesa pareceu mais fascinada pelo exotismo das descrições ultramarinas <strong>do</strong><br />

que pela “regeneração política e social <strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> este encontra um Novo<br />

Mun<strong>do</strong>” (Medina, 1979: 167). O artigo, não se alongan<strong>do</strong> muito nas razões desse<br />

silêncio da Utopia em Portugal, vai somente avançan<strong>do</strong> algumas pistas. De raspão,<br />

estabelece um paralelismo com a idêntica situação da cultura castelhana. Ameal parece<br />

inclinar-se para a hipótese de Luis Nuñez Ladevese, acreditan<strong>do</strong> que essa energia<br />

colectiva <strong>do</strong> projecto utópico se esvaiu em atitudes míticas (utopias individuais), ou em<br />

projectos concretos (utopias da praxis) <strong>do</strong>s missionários jesuítas na América <strong>do</strong> Sul<br />

(idem: 165). E, preven<strong>do</strong> os que lhe apontassem um estafa<strong>do</strong> exemplo, refuta os que<br />

viam uma utopia na descrição final da Ilha undívaga <strong>do</strong>s Amores, ainda que tal fosse de<br />

esperar <strong>do</strong> “platonizante poeta d’Os Lusíadas” (idem: 168): faltaria ao episódio “uma<br />

arquitectura conceptual política” (idem: 169), própria <strong>do</strong>s “inventores da Liberdade”, de<br />

Campanella a Rousseau, de Fourier a William Morris…<br />

Haveria pois, quan<strong>do</strong> muito, “utopemas”, mas não aquilo a que Ameal chama<br />

“utopismo”, talvez recuperan<strong>do</strong> a oposição de Karl Manheim (cf. Ideologia e Utopia, de<br />

1929), ou seja, um “–ismo” que consubstanciasse a clara oposição da Utopia à<br />

Ideologia, só o poden<strong>do</strong> fazer na medida em que essa “contra-ideologia” fosse capaz de<br />

se apresentar, ela também, como “ideologia”.<br />

Talvez toda a criação provenha de uma ausência. Uma ausência que tomamos<br />

a peito, como se o vazio fosse uma cela que nos impedisse de ver as coisas lá fora…<br />

Mas, só porque desse espaço tomamos consciência, passamos a ver as coisas com outra<br />

atenção, esforçada e diligentemente por entre as grades. O artigo de João Ameal, li<strong>do</strong><br />

quan<strong>do</strong> acabámos a licenciatura, em princípios <strong>do</strong>s anos 80, lançou em nós uma


incredulidade, que não vinha propriamente <strong>do</strong> conhecimento de argumentos que<br />

pudessem rebater a tese, mas de uma impulsiva desconfiança face às definições e aos<br />

julgamentos definitivos. O tempo consolidaria a desconfiança com muitos exemplos. Na<br />

historiografia literária, a inexistência de teatro português parecia-nos negada pelo que<br />

Teófilo Braga tinha consegui<strong>do</strong> resgatar das nossas bibliotecas e arquivos, ainda no<br />

século XIX. De João Ameal haveria também a declaração de que não existia romance<br />

policial português, e isso veríamos desmenti<strong>do</strong> pelo trabalho da nossa colega Lurdes<br />

Sampaio. O que queria dizer para a História Literária o silêncio, a ausência a que eram<br />

votadas as obras de Manuel de Figueire<strong>do</strong>, de José Anastácio da Cunha, de Catarina de<br />

Lencastre, obras esquecidas que proveitosamente íamos estudan<strong>do</strong>? A prisão que para<br />

nós constituía uma “ausência definitiva” talvez tenha si<strong>do</strong> pois determinante para<br />

passarmos a procurar utopias portuguesas. E por isso ainda mais atenção demos a um<br />

texto de José Daniel Rodrigues da Costa que jocosamente se intitulava O Balão aos<br />

Habitantes da Lua, Poema herói-cómico em um só verso. Sen<strong>do</strong> a primeira edição de<br />

1819 (e logo uma reimpressão no Rio de Janeiro em 1921, outra edição em 1822, em<br />

Lisboa), encontrámo-la numa igualmente rara edição de 1978 (um ano anterior ao artigo<br />

de João Ameal), prefaciada por Alberto Pimenta. Talvez o texto de Rodrigues da Costa<br />

seja a primeira Utopia portuguesa. Talvez.<br />

O nosso ponto de partida é pois este: construímos frequentemente as nossas<br />

próprias prisões. Definimo-nos ao traçar definições. Limitamo-nos ao limitar. E<br />

começamos a libertar-nos das linhas fronteiriças quan<strong>do</strong> as conhecemos, linha a linha,<br />

canto a canto, aceitan<strong>do</strong> o facto de serem uma linha imaginária num espaço mais vasto<br />

<strong>do</strong> que aquele que limitam. O que não invalidava a afirmação de João Ameal: com<br />

efeito, a historiografia literária, a canónica pelo menos, parecia alheia à presença <strong>do</strong><br />

género utópico. Tratava-se, portanto, não tanto de refutar a afirmação de João Ameal (os<br />

exemplos dispersos viriam certamente com a pesquisa aturada, como quase sempre<br />

sucede), mas sobretu<strong>do</strong> de tentar perceber porque é que a sua afirmação parecia tão<br />

verosímil, tão “verdadeira”, quan<strong>do</strong> folhea<strong>do</strong>s os catálogos e as monografias. Os<br />

historia<strong>do</strong>res gostam de <strong>do</strong>cumentos óbvios, que julgam mais claros. Mas o que<br />

sucederia se o género (só defini<strong>do</strong> por características semânticas) se tivesse camufla<strong>do</strong><br />

sob diferentes formas? O caso parecia especialmente exemplifica<strong>do</strong> pelo género da<br />

“Utopia”, que se define indefinin<strong>do</strong>-se, potque a Utopia gosta da sombra, de se<br />

confundir para melhor confundir. Para um estudioso como Raymond Trousson, a<br />

utopia-género, à imagem da Utopia-obra de Morus, seria caracterizada por quatro


elementos pertinentes: a inexistência real (une nulle part), a ficcionalidade (un récit), a<br />

sociabilidade (une communauté) e a reflexão crítica (une complexité), mas os quatro<br />

critérios (Trousson, 1979:28) são outras tantas brechas por onde se fragmenta o<br />

conceito: a “inexistência real” é refutada pelos elementos realistas da hipotipose; a<br />

“ficcionalidade” é refutada pela imitação <strong>do</strong> testemunho ou <strong>do</strong>cumento histórico que lhe<br />

serve de modelo; a “sociabilidade” pode por vezes reduzir-se à imaginação de uma<br />

comunidade codificada, como sucede a muitos Robinsons Crusués, ainda antes de<br />

viverem com Sexta-Feira; a “reflexão” pode basear-se num pensamento indutivo, de<br />

sobreposição de imagens, e não necessariamente de um pensamento dedutivo, em que<br />

seja determinante a premissa geral. “Não há utopias portuguesas?” (Borralho, 2004: 58-<br />

73). Mas a que é que chamamos “utopia” e até que ponto o conceito, que definimos por<br />

comodidade meto<strong>do</strong>lógica, condiciona a conclusão a que queremos chegar? Um nome é<br />

uma <strong>do</strong>bra que, quan<strong>do</strong> explicamos, abrin<strong>do</strong> as <strong>do</strong>bras, pliées, se des<strong>do</strong>bra<br />

perifrasticamente em novos nomes e, por isso, em novas <strong>do</strong>bras…<br />

A Utopia, aliás, raramente usa o nome da Utopia: aparece frequentemente<br />

como um Relato de viagem, uma Crónica, uma Notícia, uma Descrição, um Sonho, uma<br />

Carta, um Diálogo, uma Constituição. Um texto estatutário. Ou um “Poema herói-<br />

cómico em um só canto”. Formas de disfarçar a utopia. Porque a Retórica da Utopia,<br />

como sucede frequentemente com a Retórica, só é eficaz se passar despercebida. Ou<br />

para segun<strong>do</strong> plano.<br />

Sobretu<strong>do</strong> se estamos em Portugal, um país longamente habitua<strong>do</strong> à censura<br />

como forma de conhecimento e à delação como forma de bondade. A primeira edição<br />

<strong>do</strong> texto de Morus, em latim, é de 1516, em Lovaina. A tradução em alemão é logo de<br />

1524. Em italiano, de 1548; em francês de 1550, em inglês de 1551. Mais tardia é a<br />

primeira tradução castelhana, de 1637. A primeira edição integral brasileira, é de 1937,<br />

da Editora Athena, no Rio de Janeiro. Em Portugal, a primeira edição integral e a partir<br />

<strong>do</strong> latim é de 2006, de Aires A. Nascimento, se não contarmos com as edições<br />

parcelares e/ou baseadas em traduções estrangeiras, como parece ser a de José Marinho:<br />

425 anos depois de ter si<strong>do</strong> proibida pelo Índex de 1581, e 490 anos depois da edição de<br />

Morus. Não quer dizer, é certo, que fosse ignorada. A obra é logo referida por João de<br />

Barros como Fábula pela qual quis Morus “<strong>do</strong>utrinar os Ingleses como se haviam de<br />

governar” ou nos diálogos da Imitação de Frei Heitor Pinto, em que se desenvolve a<br />

ideia de uma perfectibilidade social, movida pela perfeição da utopia (Morus, 2006: 79<br />

e 90). Circulou fragmentada, talvez para não ser reconhecida: o Livro II da Utopia


encontrava-se quase integralmente transcrito no livro Del governo et amministratione di<br />

diversi regni et republiche, atribuída a Francesco Sansovino (Morus, 2006: 82-83),<br />

relativamente acessível. E as sementes da Utopia deram muitos frutos, ainda que,<br />

quan<strong>do</strong> lançadas, sejam pequenas: isso demonstrou já o levantamento oportuno de José<br />

Eduar<strong>do</strong> Reis (Reis, 2007: passim).<br />

O que nos leva ao segun<strong>do</strong> passo: desconfiemos pois <strong>do</strong>s nomes. As prisões,<br />

nem sempre se chamam “prisões”: os que as supõem espaços únicos, os que nelas<br />

nascem ou <strong>do</strong>utra coisa não guardam memória, chamam-lhes “lares”. Só quem conhece,<br />

ou quer, outra coisa, sabe o que é uma prisão. Ainda que não tenha bem defini<strong>do</strong> o que<br />

quer. Quer outra coisa. Melhor. Diferente. E o Ar é <strong>do</strong>s elementos da natureza que<br />

melhor simboliza este desejo rarefeito e indefini<strong>do</strong>. A Utopia é um género onde se<br />

evoca frequentemente Ícaro, estouva<strong>do</strong> na sua ousadia, e o seu contraponto paterno, o<br />

prudente Dédalo, arquitecto preso no labirinto que ele próprio construiu. O mesmo<br />

contraponto existe entre outras duas figuras, muitas vezes aludidas nestes textos: entre<br />

Erato, a musa amável <strong>do</strong>s hinos de amor, e Eratóstenes, o primeiro teoriza<strong>do</strong>r da<br />

Geografia; entre Faetonte, que tomou desgovernadamente o carro <strong>do</strong> Sol, e Zeus, que<br />

para salvar as órbitas fulminaria Faetonte com um raio. Toda a aventura para o<br />

desconheci<strong>do</strong> bebe a energia <strong>do</strong> Mito (sen<strong>do</strong> o mito aqui o que se pode fazer, valen<strong>do</strong><br />

por isso tanto ou mais <strong>do</strong> que da História, o que foi feito). Em Inglaterra, por volta de<br />

1180, o monge Olivier de Malmesbury partiu as pernas quan<strong>do</strong> se lançou de uma torre,<br />

muni<strong>do</strong> de umas asas que fabricou com minúcia, segun<strong>do</strong> as indicações de Ovídio sobre<br />

as asas de Ícaro (Mariotte, apud Pinto, 2010: 73). Pelo sonho é que vamos, pois: sempre<br />

a Utopia se deu bem com as viagens aéreas, que têm, como as marítimas, as mesmas<br />

características da indeterminação <strong>do</strong>s caminhos sem veredas e a existência de um campo<br />

potencialmente infinito. Não há estradas na água ou no ar: só rotas vagas que logo<br />

desaparecem com o vento. E por isso as viagens à Lua – e também a Lua e a abóbada<br />

celeste, mas isso é outro assunto paralelo (Borralho, 2010: 7-20) – são tão<br />

potencialmente utópicas como as ilhas e o mar. No limiar <strong>do</strong> século III, a História<br />

Verdadeira, de Luciano de Samosata descreve a Lua como “uma Ilha re<strong>do</strong>nda e<br />

brilhante, suspensa no ar”. E frequentemente os barcos, as naus, as jangadas, os balões,<br />

os foguetões são (literal e metaforicamente) “naves” que se deslocam entre as ondas <strong>do</strong><br />

mar ou <strong>do</strong> ar. No século XVIII, aumentam na literatura utópica as viagens<br />

interplanetárias. Mas o que sucede no século XVIII e nas primeiras décadas <strong>do</strong> XIX é<br />

somente a maior publicidade <strong>do</strong>s feitos “impossíveis”. Tal como no século XVI, o


século da Utopia, as viagens marítimas tornaram possível ao comum cidadão chegar à<br />

Índia, também no limiar <strong>do</strong> século XIX as viagens <strong>do</strong>s balões aerostáticos passaram a<br />

alimentar a imaginação de cidadãos comuns. Em Agosto de 1783, um balão de tafetá é<br />

lança<strong>do</strong>, pelos irmãos Montgolfier, e os camponeses que o vêem tombar no campo<br />

reportam que viram a Lua cair. Em 1784, em Paris, faziam-se já viagens com curiosos.<br />

Voar não é próprio <strong>do</strong> homem, se Deus quisesse que o homem voasse ter-lhe-ia da<strong>do</strong><br />

asas. Mas o homem pode agora voar… Afinal o que é próprio <strong>do</strong> homem?<br />

Não é pois por acaso que, entre o século XVIII e o XIX, as viagens ao espaço<br />

(e à Lua como espaço que passa a ser possível, verosímil) se cruzem com grande parte<br />

da literatura sobre o impossível Amor e o inefável Sublime, sobre toda aquela forma de<br />

excesso ou ousadia que visa redefinir o possível e o dizível: Erato, Ícaro, Faetonte...<br />

“The sublime Invention”, assim designa Michael R. Lynn o balão aerostático, ao estudar<br />

a sua presença na cultura e na literatura europeias, entre 1783 e 1820. O balão é um “je<br />

ne sais quoi”, uma promessa de infinito, face ao institucional, o delimita<strong>do</strong>, o defini<strong>do</strong>, a<br />

prisão. Mas não é impossibilidade, bem pelo contrário. Em Portugal, estes exercícios<br />

aéreos desenvolveram-se, precoce mas demoradamente, no secretismo da corte e da<br />

academia, e parecem ter-se repercuti<strong>do</strong> muito tarde na mentalidade colectiva. Depois<br />

das experiências semi-goradas de Bartolomeu de Gusmão na corte de D. João V, em<br />

1709, seguiram-se, em 1783, as <strong>do</strong> Padre João Faustino, da Academia de Ciências de<br />

Lisboa, que, num pequeno balão de ar quente, fez transportar um macaco vesti<strong>do</strong> de<br />

marinheiro, <strong>do</strong> Palácio <strong>do</strong> Conde de Óbi<strong>do</strong>s à foz <strong>do</strong> rio Seixal (Pinto, 2010: 80). Cinco<br />

meses depois de Joseph Montgolfier ter transporta<strong>do</strong> seis pessoas numa viagem de<br />

balão, em Coimbra, Vicente Coelho e alguns estudantes de Física da <strong>Universidade</strong>, a 25<br />

de Junho de 1784, fizeram subir um balão de hidrogénio (cf. Pinto, 2010: 81). Mas é<br />

importante que estas experiências venham para a praça pública. A 24 de Agosto de<br />

1794, Lunardi, afrontan<strong>do</strong> a desconfiança e sabotagem das autoridades, instala-se a sua<br />

parafernália e consegue atravessar Lisboa num balão aerostático, num <strong>do</strong>mingo.<br />

Bocage, maravilha<strong>do</strong>, canta a chegada de Lunardi ao Templo da Memória, local<br />

paradisíaco, onde o vício não tem entrada, “ainda que te atroe o negro ban<strong>do</strong>/ de torpes<br />

gralhas, e a feroz coorte/ de inexoráveis zoilos, escuman<strong>do</strong>” (Bocage, 2004: 213). A 14<br />

de Março de 1819, também em Lisboa, o navega<strong>do</strong>r Robertson, já num ambiente<br />

politica e cientificamente muito mais propício, lança-se num balão aerostático. Um<br />

poeta anónimo imagina então que por essa via pode o rei D. João VI, ainda no Brasil,<br />

saber que as invasões já terminaram e regressar a Portugal, agora colónia <strong>do</strong> Brasil.


Terceiro passo, necessário: o me<strong>do</strong> é a outra face <strong>do</strong> conhecimento. Daremos<br />

nós esse passo? Viajar (para a Lua ou para toda a terra fora de nós, que somos Terra<br />

Finita) tem muitas vezes este mesmo efeito: a visão abrangente <strong>do</strong> outro, de um outro<br />

que vê mais <strong>do</strong> que o que nós podemos ver. Em geral, essa visão gera o terror de ver ou<br />

de ser visto, de uma forma que não controlamos ou manipulamos. Com sorte, a viagem<br />

serve para o viajante se questionar, ainda que não o preveja, o seu “geocentrismo”, a sua<br />

visão umbilical das coisas. E isto quer dizer, no século XVII, literalmente, o<br />

geocentrismo astronómico (cf. relatos utópicos de Kepler, em Somnium, ou de Cyrano<br />

de Bergerac, em Histoire Comique des Empires); ou, ao longo <strong>do</strong> século XVIII, já<br />

metaforicamente, o geocentrismo político ou filosófico de quem governa ou pensa (no<br />

Micromégas de Voltaire ou nos Entretiens sur la Pluralité des Mondes, de Fontenelle).<br />

É certo que a mesma afirmação poderia ser feita intemporalmente: para a História<br />

Verdadeira de Luciano de Samosata ou para um Homem na Lua, de Edgar Alan Poe;<br />

para alguns relatos planetários de Marie-Anne de Roumier-Robert, como para a História<br />

Autêntica <strong>do</strong> Planeta Marte, atribuí<strong>do</strong> ficcionalmente a um <strong>do</strong>s irmãos Montgolfier.<br />

Mas, na segunda metade <strong>do</strong> século XVIII e no limiar <strong>do</strong> século XIX, as utopias das<br />

Luzes tomam como normal o espaço aéreo, levan<strong>do</strong> o verosímil aos limites <strong>do</strong><br />

inverosímil, como o prova de resto a recolha de estu<strong>do</strong>s elaborada por Antoine<br />

Hatzenberger (Hatzenberger, 2010: passim). O que se vê da Lua é uma Terra que deixou<br />

de ser o centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, uma Cultura que passa a desconfiar da sua importância, um<br />

Eu que já não tem certezas e relativiza tu<strong>do</strong> o que faz, diz ou pensa. Manuel Serafim<br />

Pinto fala-nos sustentadamente de uma temporalidade transversal, que catapulta o<br />

peregrino (etimologicamente, o que atravessa campos distintos, “per-agru”) para uma<br />

visão simultaneamente abrangente e eficaz, inesperada e preparada:<br />

“O ‘caminho’ pelo ar é a via para uma deslocação que permite uma ‘viagem em<br />

linha’, encurtan<strong>do</strong> o ‘espaço’, tal como as aves, passan<strong>do</strong> por cima de serras,<br />

mares e rios no ‘tempo’ que a velocidade determina e que, de acor<strong>do</strong> com a<br />

capacidade de voar, aumenta ou diminui. O ‘voo’ entende-se, então, como a<br />

locomoção feita num aparelho fora <strong>do</strong> contacto com a superfície terrestre, depois<br />

de se ter realiza<strong>do</strong> uma série de operações preparatórias.” (Pinto, 2010: 71)<br />

A viagem interplanetária corrobora, na consciência hodierna da Utopia, a<br />

importância <strong>do</strong> registo ambíguo, o que se estabelece na confusão entre géneros literários<br />

e não-literários, dan<strong>do</strong> origem a formas poéticas híbridas e monstruosas, que n’O Balão


aos Habitantes da Lua logo são satirizadas como coerentes com a modernidade: vêem-<br />

se “engenhos” e “artes” cada vez mais inacreditáveis, a que a natureza é alheia. Data <strong>do</strong><br />

século XVIII a sistemática associação <strong>do</strong> engenho ao instrumento técnico (daí o<br />

neologismo da “engenharia”), contrarian<strong>do</strong> o anterior significa<strong>do</strong>, o de propensão<br />

natural ou génio. Se o leitor de uma utopia estranha, não deve estranhar, que o século<br />

está cheio de estranhezas naturais:<br />

“Que este Poema tenha boa-hora!<br />

Não se estranhe a prenhez ver-se hoje em macho,<br />

Que igual sucesso nas Gazetas acho,<br />

Pois já houve um rapaz que, sem defeito,<br />

Lhe tiraram de dentro outro sujeito.<br />

[…] Que se mais dez ou vinte anos aturo,<br />

Ainda espero de ver, eu lho seguro,<br />

Que algum que venha aqui de engenho e arte<br />

Tente a terra furar de parte a parte”.<br />

(Costa, 2004, [19])<br />

Quarto passo: ouvir o outro, dar-lhe a voz. O texto da utopia inscreve-se pois<br />

num registo retórico entre a improvável legibilidade da mentira e a recusa liminar da<br />

veracidade. Não na impossibilidade, não na mentira. Com efeito, o problema da mentira<br />

e da sinceridade parece ser especialmente importante na retórica das sociedades<br />

obcecadas com a separação entre o registo científico e o registo literário. Ora a Utopia<br />

joga (precisamente nessas sociedades e em épocas que sistematizaram esses cortes<br />

epistemológicos, como os séculos XVI e XVIII-XIX), com uma retórica perturba<strong>do</strong>ra<br />

da ordem, desde logo quan<strong>do</strong>, basean<strong>do</strong>-se na separação radical <strong>do</strong>s registos<br />

científicos/verídicos e literários/”mentirosos”, relativiza a “verdade” e torna realista a<br />

“mentira”. Será por acaso que as duas grandes épocas da Utopia tenham si<strong>do</strong> o século<br />

XVI, no início da Idade Moderna, e o século XVIII, no início da Modernidade, <strong>do</strong>is<br />

momentos em que se acentuam as clivagens entre o discurso científico e o discurso<br />

literário? Devíamos confrontar este gosto pelo discurso ambíguo, com as questões <strong>do</strong><br />

género utópico, quase sempre cola<strong>do</strong> a géneros “paraliterários”: o relato, a crónica, a<br />

carta, o <strong>do</strong>cumento histórico, o testemunho, ou a declaração espontânea, quase sempre<br />

desvaloriza<strong>do</strong>s pelo narra<strong>do</strong>r. Ou ainda com as questões retóricas da “humilitas”, em<br />

que o próprio narra<strong>do</strong>r desvaloriza o que diz, por serem bagatelas de “Hitlodeu”,


etimologicamente narra<strong>do</strong>r de bagatelas. Ainda que os narra<strong>do</strong>res tenham os seus<br />

escritos como literários, os crêem invariavelmente coisa sem valor, feitos até, quiçá, por<br />

pressão de terceiros ou por necessidade de dinheiro <strong>do</strong> editor/autor, tal como é por vezes<br />

testemunha<strong>do</strong> nos prólogos ou outros paratextos, num primeiro nível de enunciação. Tal<br />

é o caso <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> nível extradiegético d’O Balão aos Habitantes da Lua, que<br />

assume descaradamente o seu papel de poeta mercantil, já não sujeito aos caprichos <strong>do</strong>s<br />

Mecenas, mas ten<strong>do</strong> de servir a novos Senhores:<br />

“Que fazer no ar muito apressa<strong>do</strong><br />

Que feito ser não pode com assento<br />

Tu<strong>do</strong> o que tem no ar o fundamento.<br />

[…] Na lembrança entrarei <strong>do</strong>s meus Amigos,<br />

Dos meus Apaixona<strong>do</strong>s, meus Leitores,<br />

Dos Assinantes meus e mais Senhores<br />

Que em belas-Letras são <strong>do</strong> meu parti<strong>do</strong><br />

[…] (ou me encontrem ou não merecimento)”<br />

(Costa, 2004: Prólogo)<br />

Ora tal não é a perspectiva <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> nível intradiegético, o veleja<strong>do</strong>r Robertson,<br />

dito totalmente alheio ao interesse económico <strong>do</strong> balão aerostático. É curioso, aliás,<br />

verificar que muitas destas viagens interplanetárias, têm <strong>do</strong>is narra<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>is níveis de<br />

discurso, duas vozes (para descrever) e <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s (de ver). De alguma forma, as<br />

funções <strong>do</strong> conto utópico, e da viagem planetária, talvez mais <strong>do</strong> que nos restantes<br />

narrativas de viagem, vivem de funções colocadas em pertinência, por paralelismo de<br />

oposição, complementaridade e suplementaridade. E assim se verifica uma construção<br />

que se identifica com as metáforas da prisão e <strong>do</strong> infinito. Na abertura <strong>do</strong> conto, um<br />

narra<strong>do</strong>r distancia-se de outro, o protagonista. É o protagonista <strong>do</strong> nível intradiegético<br />

que vive numa prisão, melhor dizen<strong>do</strong>, que se sente prisioneiro. E por isso busca uma<br />

fuga, para um espaço distinto daquele em que, aparentemente, o primeiro narra<strong>do</strong>r vive<br />

acomoda<strong>do</strong>. Temos por isso um contraponto entre <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s: o aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e<br />

comum, e o revela<strong>do</strong> e insólito. Talvez fosse útil considerar por isso esse contraponto<br />

quan<strong>do</strong> falamos da morfologia <strong>do</strong> relato utópico (no senti<strong>do</strong> em que Propp entende<br />

essas morfologia, ou seja, o estu<strong>do</strong> estrutural das formas constitutivas <strong>do</strong> “conto”,<br />

dan<strong>do</strong>-lhe mais relevo <strong>do</strong> que ao “estu<strong>do</strong> das legalidades históricas” (Propp, 1983: 54-<br />

55). Até porque as 31 funções encontradas por Propp no conto fantástico, não parecem


adequar-se perfeitamente às funções que se encontram no conto utópico, já que as<br />

descrições pormenorizadas <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, mais <strong>do</strong> que as variadas acções <strong>do</strong> protagonista,<br />

são retoricamente uma estratégia retórica que visa, não a iniciação <strong>do</strong> protagonista (o<br />

narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> nível intradiegético) mas a iniciação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r (a personagem <strong>do</strong> nível<br />

extradiegético). Poder-se-ia assim falar de um paradigma filosófico da Utopia, que<br />

remeteríamos para a estrutura <strong>do</strong> mito da caverna, enuncia<strong>do</strong> pelo narra<strong>do</strong>r Sócrates<br />

(n’A República de Platão) para uma República ideal, numa perspectiva que ainda assim<br />

é iniciática e didáctica (Puli<strong>do</strong>, 2011: 25 ss.).<br />

I.A caverna é um finito. Na abertura da segunda instância, o protagonista atinge uma<br />

situação extrema de despojamento, de desinteresse pelos valores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> circundante.<br />

Voluntariamente, como no texto de Morus, ou involuntariamente, como os marinheiros<br />

que são apanha<strong>do</strong>s por uma tempestade em Luciano de Samosata, os protagonistas <strong>do</strong><br />

relato utópico perdem o que os outros têm como desejável. N’O Balão aos habitantes<br />

da Lua, os protagonistas são temerários, ainda que se não lhes reconheça a virtude da<br />

utilidade:<br />

“Pois não é cousa pouca em quem se anima<br />

A andar de guarda-costa lá por cima:<br />

Porém talvez mais útil se fizesse<br />

Se caça nos Piratas dar pudesse.<br />

[…] Confessar lhe devemos a destreza,<br />

O grande arrojo, a impávida afouteza”<br />

(Costa, 2004: [20])<br />

II.Tu<strong>do</strong> o que não é prisão é infinito. Os elementos ou a curiosidade desmedida <strong>do</strong> seu<br />

génio arrastam-no para fora <strong>do</strong> espaço conheci<strong>do</strong>. Chega-se à Lua violentamente, por<br />

impulso de explosões, foguetes, relâmpagos e chamas, corren<strong>do</strong> o risco de morrer incendia<strong>do</strong><br />

pela força que nos move. Chegar à Lua implica vontade, cálculo, esforço:<br />

“Matemáticos pontos combinan<strong>do</strong>,<br />

Ten<strong>do</strong> por base a grande Astronomia,<br />

Um Génio que não tem nada de bran<strong>do</strong>,<br />

Projecta ir ver o Sol, fonte <strong>do</strong> dia,<br />

Em peja<strong>do</strong> Balão vai forcejan<strong>do</strong>”


(Costa, 2004: [21])<br />

III.Aban<strong>do</strong>nar a caverna. Existe um perío<strong>do</strong> crítico, que é a fronteira entre a prisão e o infinito.<br />

O protagonista da História Cómica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e Impérios (1657), de Cyrano de Bergerac, pese<br />

embora o fervor científico, é toma<strong>do</strong> por uma febre alta (C. de Bergerac, 1989: 23). Hans Pfaall,<br />

o narra<strong>do</strong>r da viagem em Um Homem na Lua (1839), de Edgar Allan Poe, está à beira <strong>do</strong><br />

suicídio, ou <strong>do</strong> homicídio, quan<strong>do</strong> depara com um inspira<strong>do</strong>r livro de astronomia. Hitlodeu,<br />

herói da Utopia de Tomás Morus, antes de correr as sete partidas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, desfaz-se da<br />

fortuna e <strong>do</strong>s títulos, pois “um cadáver insepulto terá sempre o céu por mortalha”. Para merecer<br />

a nova visão, parece ser necessária uma ruptura com os hábitos, a nossa segunda natureza.<br />

[…] Eu canto o Herói que voa sem ter asas<br />

[…] Que viu montes de gelo, outros de brasas”<br />

(Costa, 2004: [22])<br />

IV.O Infinito é uma prisão, tal como a prisão é um infinito. Andan<strong>do</strong> a Lua constante à volta da<br />

Terra, só lhe conseguimos ver um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s. Tal como a Lua, a Realidade tem um la<strong>do</strong><br />

desconheci<strong>do</strong> a que só se pode chegar pelo Desejo. Este facto, protege simultaneamente a<br />

Utopia e a Realidade, acreditan<strong>do</strong> cada um no que quer e no que pode. Entre o Viajante e os<br />

Outros há sempre <strong>do</strong>is discursos incompatíveis: o que é verdade para o viajante é mentira para o<br />

vulgo. Em Somnium, de Kepler, um jovem estudante de Tycho Brahe defende o sistema<br />

copérnico afirman<strong>do</strong> que, vistos da Lua, os movimentos da Terra são tão claros quanto os da<br />

Lua para os habitantes da Terra. No texto de Cyrano de Bergerac, a Lua é “um outro mun<strong>do</strong><br />

para o qual o nosso é uma Lua”. Apesar de mais abertos e cultos filosoficamente, também os<br />

luanos julgam a partir de um centro, a sua própria civilização, tratan<strong>do</strong> o outro como satélite. E<br />

é esta a maior lição da fábula: na própria Terra, fazemos Terras e Luas. Valorizamos<br />

excessivamente o nosso centro. Menosprezamos, por me<strong>do</strong> ou ignorância, os nossos satélites.<br />

[…] Eu canto o Herói que voa sem ter asas<br />

[…] Que no corpo da Lua encontrou casas<br />

Que não eram de pasto nem de jogo.<br />

[…] Que in<strong>do</strong> buscar nas nuvens desafogo,<br />

As dúvidas tirou a gente perra<br />

Que teima em que na Lua não há terra<br />

[…] Apenas aportou à nova terra,<br />

Susto e receio se apoderou dele,<br />

Ven<strong>do</strong> a gente em cardume como em guerra”<br />

(Costa, 2004: [22 e 24])


V.Voltar à caverna. Como resolver o dilema <strong>do</strong> regresso voluntário à prisão? Detentor de uma<br />

verdade que os seus semelhantes não conhecem, o protagonista, quase sempre narra<strong>do</strong>r<br />

autodiegético, sente-se movi<strong>do</strong> por uma simpatia pelos seus semelhantes, por laços de gratidão<br />

ou pela nostalgia que podem até ironicamente aproximar-se <strong>do</strong> cansaço de tanta perfeição.<br />

“Então o nosso Herói, que já cansa<strong>do</strong><br />

Estava de ver tanta variedade,<br />

Diz que por se ter muito demora<strong>do</strong><br />

Dera por visto o resto da Cidade;<br />

Que de Lisboa ten<strong>do</strong>-se lembra<strong>do</strong><br />

Do povo Português teve saudade;”<br />

(Costa, 2004: 53)<br />

Mas raramente há regressos aclama<strong>do</strong>s: os visitantes <strong>do</strong> espaço sejam quase sempre ti<strong>do</strong>s, ao<br />

regressar, por mentirosos, sonha<strong>do</strong>res, toma<strong>do</strong>s pelo sono, ou ébrios, ou loucos, ou possessos. O<br />

narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> texto de Luciano de Samosata diz que a sua História é uma mescla de mentiras: não<br />

falan<strong>do</strong> de coisas vistas ou ouvidas, devem os leitores precaver-se de as acreditar como tal. Na<br />

História Cómica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e Impérios, de Cyrano de Bergerac, o protagonista tem de ficar<br />

várias horas ao Sol para perder o cheiro a Lua, que levava os conterrâneos a afastarem-se e os<br />

cães a uivar. Em Um Homem na Lua, de E. A. Poe, um relatório considera o mensageiro da Lua<br />

um “estranho anãozinho, cujo ofício é o prestidigita<strong>do</strong>r”; Pfaall e os seus três cre<strong>do</strong>res, já<br />

bêba<strong>do</strong>s e vagabun<strong>do</strong>s, si<strong>do</strong> vistos com as algibeiras cheias de dinheiro que fora sem dúvida<br />

ganho numa “expedição ao outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar” (Poe, 2000: 59-60). Alguns narra<strong>do</strong>res afirmam<br />

redigir as suas memórias à hora da morte, como forma de não sentir em vida as consequências<br />

de tão incompreensíveis relatos. Tal é o caso <strong>do</strong> protagonista da História Cómica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e<br />

Impérios, de Cyrano de Bergerac. Curioso é também o facto de algumas utopias serem<br />

efectivamente edições póstumas: Somnium, de Kepler, só foi edita<strong>do</strong> em 1634, depois da morte<br />

<strong>do</strong> autor. A primeira edição <strong>do</strong> texto de Cyrano é uma versão expurgada de Le Bret, em 1657,<br />

depois da morte de Cyrano de Bergerac. A Cidade <strong>do</strong> Sol, de Campanella, foi escrita nas prisões<br />

da Inquisição.<br />

VI.A Posteridade, outro nome <strong>do</strong> Infinito. No final <strong>do</strong> relato das viagens utópicas, o<br />

protagonista, ou o narra<strong>do</strong>r, ou ambos (como sucede na Utopia de Morus, lança a<br />

questão para a Posteridade ou remete para ela o julgamento final, só nela depositan<strong>do</strong> a<br />

crença de que será compreendi<strong>do</strong>:


“[…] pegan<strong>do</strong>-lhe na mão, levei-o para dentro para tomarmos a<br />

refeição, não porém, sem antes lhe ter dito que precisávamos de<br />

encontrar mais tempo para repensarmos mais a fun<strong>do</strong> naqueles temas<br />

e para conversarmos mais longamente com ele” (Morus, 2006: p.<br />

673).<br />

N’O Balão aos Habitantes da Lua, a conclusão expectável é adiada. A razão evocada por<br />

Robertson para deixar a Lua é afinal o facto de os habitantes de Lisboa serem ainda mais<br />

perfeitos <strong>do</strong> que aqueles que ele encontrara na Lua, uniformemente virtuosos.<br />

“Direi nisto que vi, que muito louvo,<br />

Que por Leis e costumes <strong>do</strong>s Luanos<br />

Esqueçam Persas, Gregos e Romanos.”<br />

(Costa, 2004: 55)<br />

E depois desse desígnio parece mudar de ideias, contrarian<strong>do</strong>-se abertamente o da<strong>do</strong> histórico,<br />

de to<strong>do</strong>s obviamente conheci<strong>do</strong>: o regresso de Robertson a Lisboa e a aclamação que os<br />

lisboetas lhe fizeram:<br />

“Fazen<strong>do</strong> o nosso Herói tal despedida,<br />

Concorreu to<strong>do</strong> o povo a cortejá-lo;<br />

Ele então, pon<strong>do</strong> a Máquina em partida,<br />

Disse adeus e voou sem intervalo;<br />

Tenta levar avante esta subida,<br />

Mas sente dentro em si um breve abalo<br />

E, descen<strong>do</strong>, desiste <strong>do</strong> que empreende.<br />

Que a tanto o engenho humano não se estende.”<br />

(Costa, 2004: 55)<br />

Neste caso, a verdade ficcional contraria abertamente o da<strong>do</strong> histórico. Assume-se a<br />

Literatura assim como descarada mentira. Mas em geral resta, da leitura <strong>do</strong> relato<br />

utópico, não uma sensação de perfeição assegurada mas, invariavelmente, de melancolia<br />

feliz, ou de disforia eufórica. Até porque por vezes se recorda o registo onírico,<br />

inverosímil ou irreal sobre o qual se construiu a arquitectura social da utopia. Hitlodeu e<br />

Morus comprometem-se em continuar a falar destes assuntos, em que têm das coisas<br />

opiniões aqui e ali distintas. Ou sai da lira <strong>do</strong> escritor um “não mais, Musa, não mais”,


pois que o escritor teme falar <strong>do</strong> que está para além <strong>do</strong> possível e ir atrás de uma Musa<br />

ou de uma Música sedutora....<br />

“Que a tanto o engenho humano não se estende”<br />

A prisão é não conhecer. Mais recentemente, a dita “inexistente” história da<br />

aviação portuguesa” deve sobretu<strong>do</strong> à ignorância a sua inexistência. Poucos estu<strong>do</strong>s há<br />

que mesclem a história científica com uma visão sociológica e retórica. E é com prazer<br />

que, em Portugal, lemos os estu<strong>do</strong>s de Henriques Mateus e Manuel Serafim Pinto, em<br />

que se demonstra, ao longo da História da Aviação, o quanto a sua história se mescla<br />

com as prioridades <strong>do</strong> poder político, muito dependen<strong>do</strong> a sua história <strong>do</strong> interesse<br />

político em evidenciar ou ocultar a criação e a inovação (Pinto, 2010, cap. I et passim).<br />

Cruzam-se com frequência estas referências com as da História Literária das<br />

utópicas e distópicas viagens à Lua. Como também a reedição de O Balão aos<br />

Habitantes da Lua procurou exemplificar, dan<strong>do</strong>-lhe um novo contexto. O trabalho<br />

desenvolvi<strong>do</strong> durante mais de seis anos pelo projecto Utopias Literárias, sedea<strong>do</strong> no<br />

Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, veio afinal mostrar que existem<br />

Utopias Portuguesas. Prova-o a Biblioteca e a Nova Biblioteca de Textos Utópicos<br />

portugueses entretanto editada. Refira-se a novidade de Utopias de Cordel e textos<br />

afins, da antologia de textos utópicos de Vasco José de Aguiar, utopista português <strong>do</strong><br />

século XIX, ambas editadas por Jorge Bastos da Silva, de Irmânia, de Ângelo Jorge, de<br />

Felizes os que então viverem, de Joaquim <strong>Maria</strong> da Silva, da adaptação portuguesa d’O<br />

que há-de ser o mun<strong>do</strong> no ano três mil, pacientemente comparada por Fátima Vieira,<br />

ou <strong>do</strong>s recentes Novelos de Sintra, de Jorge Telles de Menezes, para não citarmos os<br />

muitos estu<strong>do</strong>s críticos sobre os muito ignora<strong>do</strong>s utopistas portugueses…<br />

Mas a maior prisão é pensar que conhecemos. Se lermos bem os eixos<br />

semânticos <strong>do</strong> discurso utópico, mais depressa concluímos que a Utopia é um esta<strong>do</strong> de<br />

espírito permanentemente insatisfeito. A Utopia é sobretu<strong>do</strong> uma ausência, somente um<br />

sem lugar das coisas diferentes, que nos alerta para outras possibilidades de ser e viver.<br />

Afinal, não é a inexistência <strong>do</strong>s instrumentos tecnológicos (a poedeira da Utopia de<br />

Morus, ou o balão aerostático <strong>do</strong> texto de José Daniel Rodrigues da Costa) que<br />

impedem as sociedades de ser melhores. O que nos impede é a inércia, o amor das<br />

coisas fáceis, a ausência de diálogo. Falarmos pouco sobre como podemos


colectivamente ser mais felizes. Falamos muito num “Eu” feliz/infeliz, de uma forma<br />

catártica. Num “Tu”, que de uma forma impositiva queremos fazer feliz ou impede a<br />

nossa felicidade. Falamos pouco de Nós. Por isso to<strong>do</strong> este meio-termo com que<br />

terminam muitas utopias é simultaneamente uma forma de conserva<strong>do</strong>rismo e uma<br />

ousadia. Ainda quan<strong>do</strong>, como no texto de José Daniel Rodrigues da Costa, a utopia<br />

acabe por pugnar por um mun<strong>do</strong> fecha<strong>do</strong> aos outros, aos que não partilham <strong>do</strong> espírito<br />

da comunidade utópica, remeti<strong>do</strong>s para uma ilha da ilha, para um satélite <strong>do</strong> satélite. De<br />

uma forma ou de outra, sempre há, até na utopia, alguns condena<strong>do</strong>s. E um outro estu<strong>do</strong><br />

interessante, que muito alongaria este, seria o das prisões e sistemas correccionais<br />

descritos nas utopias, sem-lugares, fugas a uma prisão localizada, o lugar.<br />

Talvez se possa então concluir o que os leitores frequentes de utopias<br />

intuem. Que toda a prisão gera desejos incontroláveis de infinito. E que toda a promessa<br />

de infinito é uma passagem para possíveis formas de prisão.<br />

Para vivermos numa prisão, bastará talvez, no limite, habituarmo-nos à ideia<br />

de que dela descobrimos uma evasão perfeita.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

AMEAL, João (1979), Não há Utopias Portuguesas, Separata de “Revista de História da Sociedade e da<br />

Cultura da <strong>Universidade</strong> de Coimbra”, Coimbra, FLUC/ CHSC, pp. 163-170<br />

BOCAGE (2004), Obra Completa, Volume I. Sonetos, ed. Daniel Pires, <strong>Porto</strong>, Caixotim<br />

BORRALHO, <strong>Maria</strong> <strong>Luísa</strong> <strong>Malato</strong> (2004), Não há Utopias Portuguesas? in “Estilhaços de Sonhos:<br />

Espaços de Utopia”, s.l., Quasi, pp. 58-73<br />

BORRALHO, <strong>Maria</strong> <strong>Luísa</strong> <strong>Malato</strong> (2010), Sobre nós uma abóbada estrelada. Breves citações de<br />

astronomia na Literatura, in “E-Fabulations”, n.º 7, <strong>Porto</strong>, pp. 7-20. Disponível em:<br />

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8663.pdf<br />

BORRALHO, <strong>Maria</strong> <strong>Luísa</strong> <strong>Malato</strong> (2011), Há livros felizes. A Utopia, de Tomás Morus, in “Selene.<br />

Culturas de Sintra”, Revista electrónica, Sintra, n.º 3, Verão 2011, secção “Sintra Utópica”. On line:<br />

http://www.selene-culturasdesintra.com/sintra-utopicav11#!__sintra-utopica-copy1v11<br />

MALATO, M. <strong>Luísa</strong> (2006), Manual Anti-Tiranos. <strong>Porto</strong> Alegre, Liv. <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong><br />

BREMOND, Claude (1973), Logique du récit, Coll. Poétique, Paris, Du Seuil<br />

BUESCU, M. Helena Carvalhão (1995), A Lua, a Literatura e o Mun<strong>do</strong>, Lisboa: Cosmos<br />

COSTA, José Daniel Rodrigues da (2006), O Balão aos Habitantes da Lua. Uma Utopia Portuguesa,<br />

Introd. M. <strong>Luísa</strong> <strong>Malato</strong> Borralho, Ilustrações de Délia Silva, <strong>Porto</strong>, <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

GREIMAS, Algirdas Julien (1970), Du Sens. Essais Sémiotiques, Paris, Du Seuil<br />

HATZENBERGER, Antoine (ed.) (2010), Utopies des Lumières, Lyon, ENS


HJELMSLEV, Louis (1966), Prolégomènes a une théorie du language : la structure fondamentale du<br />

langage, Paris, Les Editions de Minuit<br />

MANNHEIM, Karl (1960), Ideology and Utopia, an introduction to the sociology of knowledge, Lon<strong>do</strong>n,<br />

Routledge & Kegan Paul<br />

MORUS, Thomas (2006), Utopia, introd. J. V. Pina Martins, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa: F.C.G.<br />

LYNN, Michael R. (2010), The Sublime Invention. Balooning in Europe, 1783-1820, Lon<strong>do</strong>n, Pickering<br />

& Chatto Publishers<br />

PINTO, Manuel Serafim (2010), Transporte Aéreo e Poder Político sob o signo <strong>do</strong> Império, Lisboa,<br />

Coisas de Ler<br />

PROPP, Vladimir (1983), Morfologia <strong>do</strong> Conto, pref. Adriano Duarte Rodrigues, Lisboa, Veja<br />

PULIDO, Manuel Lázaro (2011), Filosofia Antígua: la Filosofia como Decir, in “Entre Filosofia e<br />

Literatura”, ed. M. Celeste Natário e R. Epifânio, Sintra, Zéfiro<br />

REIS, José Eduar<strong>do</strong> (2007), Do espírito da Utopia: Lugares utópicos e eutópicos, tempos proféticos nas<br />

culturas literárias portuguesa e inglesa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!