Revista Sinais Sociais N20 pdf - Sesc
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periência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional<br />
também se alimente dos impulsos dessa experiência, ele acaba<br />
eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O<br />
ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto,<br />
como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação<br />
através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por<br />
assim dizer, metodicamente sem método (ADORNO, 2003, p. 29-30).<br />
O livro-ensaio aberto, que Gonçalo M. Tavares apresenta em seu<br />
projeto desde o Livro da dança, também elege essa “experiência<br />
intelectual” como modelo, como laboratório de sensações, 2 uma situa -<br />
ção sempre experimental, como processo, em um trabalho que resulta<br />
“metodicamente sem método” em liberdade de espírito, em um<br />
procedimento anacrônico, livre e descontínuo, aberto e fechado ao<br />
mesmo tempo. E nenhum outro procedimento estaria tão próximo de<br />
um estado de dança como o ensaio, na “liberdade que dá ao objeto<br />
a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente<br />
na ordem das ideias” (ADORNO, 2003, p. 41).<br />
A segunda maneira de ler o ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares<br />
é, principalmente, perceber o ensaio como ato em si, como ação,<br />
movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como uma coreografia,<br />
uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que<br />
2 Essa expressão é um desdobramento do estudo de José Gil sobre Fernando<br />
Pessoa, o primeiro capítulo do livro intitulado Fernando Pessoa ou a metafísica<br />
das sensações, que se chama “Laboratório Poético”. José Gil (1987, p. 13)<br />
comenta que Bernardo Soares tem por característica essencial “o facto de não<br />
viver nem escrever senão em situação experimental. O laboratório poético<br />
de Pessoa está em plena actividade no Livro do Desassossego”. Não à toa<br />
José Gil assinala que Bernardo Soares escreve apontando para um movimento<br />
neutro e para um estado larvar de consciência, uma consciência vazada em<br />
uma prosa nítida e com penetração; diz ele: “Não há nada para lá ou para cá<br />
dos fragmentos, do que estes narram: estados larvares de consciência, e uma<br />
consciência dessa consciência vazada nos moldes de uma prosa extremamente<br />
nítida, impressionante de penetração e rigor” (1987, p. 15). Pode-se dizer, de<br />
alguma maneira, que esse procedimento é um estado de dança, mesmo que<br />
ainda embrionário, mas sempre tocado pela repetição do gesto: eis o ensaio<br />
do qual Gonçalo M. Tavares parece tomar posse como despossessão.<br />
118 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012