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Revista Sinais Sociais N20 pdf - Sesc

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v.7 nº20 ISSN 1809-9815<br />

setembro > dezembro | 2012<br />

<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio<br />

Administração Nacional<br />

Questionário de avaliação<br />

da distribuição<br />

AC BARRASHOPPING<br />

22640-970 Rio de Janeiro - RJ<br />

CARTÃO-RESPOSTA<br />

NÃO É NECESSÁRIO SELAR<br />

O SELO SERÁ PAGO PELO SESC-DN<br />

xxxxxxxxxx/XXXX-XX/XX


Avaliação da distribuição<br />

Prezado leitor ou bibliotecário:<br />

Estamos avaliando a distribuição da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />

Solicitamos a gentileza em responder as questões abaixo, para remessa sem custos<br />

pelo correio, ou pelo endereço www.sesc.com.br/sinaissociais.<br />

Sua opinião é importante para nós.<br />

Você recebe a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> regularmente?<br />

( ) Sim<br />

( ) Não<br />

Seu acesso à revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> se dá por qual forma?<br />

( ) Biblioteca institucional<br />

( ) Assinatura pessoal<br />

( ) Outra forma. Qual: ____________________________________________<br />

Em sua opinião seria adequado alterar o endereço de remessa?<br />

( ) Não<br />

( ) Sim. Qual? _______________________________________________<br />

_____________________________________________<br />

O que é necessário modificar na distribuição da revista?<br />

____________________________________________________________<br />

Tem alguma sugestão de Biblioteca ou Instituição para receber regularmente a<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>?<br />

Nome ___________________________________________________<br />

Instituição ___________________________________________________<br />

Identificação (opcional)<br />

Nome _________________________________________________________________________________________<br />

Endereço ______________________________________________________________________________________<br />

Cidade ____________________________________________ Estado ___________CEP ______________________<br />

Instituição _____________________________________________________________________________________<br />

Telefone __________________________________ E-mail _____________________________________________


v.7 nº 20<br />

setembro > dezembro | 2012<br />

<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio<br />

Administração Nacional<br />

iSSN 1809-9815<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />

PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL<br />

Antonio oliveira Santos<br />

DiREtoR-GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL<br />

maron Emile Abi-Abib<br />

CooRDENAÇÃo EDitoRiAL<br />

Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />

mauro Lopez Rego<br />

CoNSELHo EDitoRiAL<br />

Álvaro de melo Salmito<br />

mauricio blanco<br />

Nivaldo da Costa Pereira<br />

SECREtÁRio ExECutivo<br />

mauro Lopez Rego<br />

ASSESSoRiA EDitoRiAL<br />

Andréa Reza<br />

EDiÇÃo<br />

Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral<br />

Christiane Caetano<br />

PRoJEto GRÁfiCo<br />

vinicius borges<br />

SuPERviSÃo EDitoRiAL<br />

Jane muniz<br />

PREPARAÇÃo E PRoDuÇÃo EDitoRiAL<br />

Duas Águas| ieda magri<br />

REviSÃo<br />

Elaine bayma<br />

REviSÃo Do iNGLêS<br />

idiomas & cia<br />

DiAGRAmAÇÃo<br />

Livros & Livros | Susan Johnson<br />

PRoDuÇÃo GRÁfiCA<br />

Celso Clapp<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / <strong>Sesc</strong>, Departamento Nacional - vol. 1, n. 1 (maio/<br />

ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : <strong>Sesc</strong>,<br />

Departamento Nacional, 2006 - .<br />

v.; 30 cm.<br />

Quadrimestral.<br />

iSSN 1809-9815<br />

1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil. i.<br />

Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .<br />

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />

As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.


SumÁRio<br />

APRESENtAÇÃo5<br />

EDitoRiAL7<br />

SobRE oS AutoRES8<br />

iNtERPREtAÇÕES Do bRASiL E CiêNCiAS<br />

SoCiAiS, um fio DE ARiADNE10<br />

André botelho<br />

CotAS AumENtAm A DivERSiDADE DoS<br />

EStuDANtES SEm ComPRomEtER o<br />

DESEmPENHo?36<br />

fábio D. Waltenberg<br />

márcia de Carvalho<br />

tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio CANDiDo, PAuLo<br />

EmÍLio E mÁRio PEDRoSA78<br />

francisco Alambert<br />

GoNÇALo m. tAvARES: o ENSAio, A DANÇA, o<br />

ESPÍRito LivRE114<br />

Júlia Studart<br />

CAio PRADo JR. E o iNtELECtuAL mARxiStA<br />

HoJE148<br />

marco Aurélio Nogueira<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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APRESENtAÇÃo<br />

A revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> tem como finalidade precípua tornar-se um<br />

espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.<br />

Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.<br />

Pluralidade no sentido de que a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é aberta para a<br />

publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no<br />

Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas<br />

páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício<br />

poder-se-ão manifestar.<br />

Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas<br />

Diretrizes Gerais de Ação do <strong>Sesc</strong>, como princípio essencial da entidade:<br />

“Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo<br />

ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como<br />

principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”<br />

Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de<br />

acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais<br />

heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.<br />

Importa para a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> artigos cujas fundamentação<br />

teórica, consistência, lógica da argumentação e organização das ideias<br />

tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises<br />

que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou<br />

lhes apresentem um novo olhar sobre os objetos em estudo.<br />

O que move o <strong>Sesc</strong> é a consciência da raridade de revistas semelhantes,<br />

de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com<br />

suas reflexões como para segmentos do grande público interessados<br />

em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.<br />

Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao<br />

mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse debate<br />

é a intenção do <strong>Sesc</strong> com a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />

Antonio Oliveira Santos<br />

Presidente do Conselho Nacional do <strong>Sesc</strong><br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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EDitoRiAL<br />

O entusiasmo não pode ser induzido de forma determinista; será<br />

transmitido por meio de suas manifestações? A hipótese afirmativa nutre<br />

as expectativas acerca do presente número da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, que<br />

traz fios vívidos de entusiasmo, na primeira, segunda e terceira pessoas.<br />

Os personagens presentes nos trabalhos desta publicação − essas<br />

“pessoas”− diferem em origens, temas e percursos, mas têm aqui ressaltadas<br />

suas conexões às realidades em que se inseriram, para com<br />

elas interagir, de forma a contribuir para sua compreensão e alteração,<br />

segundo suas particulares perspectivas.<br />

Nestes textos está presente também o elogio ao ensaio, como forma,<br />

como recurso, como reiterada possibilidade de acesso subjetivo e direto<br />

aos contextos físicos e práticos, abstratos e teóricos.<br />

São muitos os sujeitos referidos direta ou indiretamente pelos autores.<br />

Antonio Candido, Paulo Emilio e Mário Pedrosa são os críticos<br />

cujas visões da arte e cultura do Brasil são cotejadas por Francisco<br />

Alambert. Gonçalo M. Tavares é o autor do Livro da dança, obra da<br />

qual Júlia Studart faz detida análise. Caio Prado Jr. é tomado como<br />

exemplo por Marco Aurélio Nogueira para a discussão do papel do<br />

intelectual marxista no mundo contemporâneo. Oliveira Vianna é o<br />

historiador que tem obra evocada por André Botelho, que reafirma a<br />

validade das interpretações autorais para o entendimento do passado<br />

e a percepção do presente.<br />

Compõe ainda esta <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> o artigo de Fabio D. Waltenberg<br />

e Márcia de Carvalho. Da análise sobre os resultados das ações afirmativas<br />

no Brasil, um pormenor não deve escapar à atenção: foi o<br />

protagonismo das universidades que trouxe o tema para a esfera pública,<br />

lidando frontalmente com uma questão até então relegada ao<br />

escaninho das imutáveis perversidades nacionais.<br />

De diversos sujeitos, portanto, e de seus entusiasmos ao lidar com<br />

linhas iluminadoras de nossos labirintos sociais, tratam os artigos aqui<br />

apresentados.<br />

Maron Emile Abi-Abib<br />

Diretor-Geral do Departamento Nacional do <strong>Sesc</strong><br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

7


SobRE oS AutoRES<br />

André Botelho<br />

Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPq e da Faperj e<br />

coordenador do Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil, da Sociedade Brasileira<br />

de Sociologia (SBS). Autor de diversas publicações, livros e artigos na área de pensamento<br />

social brasileiro, destacando-se entre os mais recentes: Um enigma chamado<br />

Brasil, organizado com Lília M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2009), Revisão do<br />

pensamento conservador, organizado com Gabriela Nunes Ferreira (Hucitec, 2010) e<br />

Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, também organizado com Lília<br />

M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2011).<br />

Fábio D. Waltenberg<br />

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e<br />

membro do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade<br />

e Desenvolvimento (CEDE) da mesma universidade.<br />

Francisco Alambert<br />

Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde<br />

leciona História Social da Arte e História Contemporânea na graduação e na pós-graduação.<br />

Também é crítico de arte, colabora em diversos jornais e revistas, no Brasil e<br />

no exterior. Publicou, entre outros livros, Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos<br />

curadores (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Polyana Canhête, que recebeu<br />

o prêmio Jabuti na categoria Artes. Na USP, participa da coordenação do grupo de<br />

pesquisa Desformas – Formação e Desmanche de Sistemas Simbólicos.<br />

8<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Júlia Studart<br />

Poeta e doutora em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, pela Universidade<br />

Federal de Santa Catarina (UFSC) – bolsista integral CNPq, Brasil / Universidade Nova<br />

de Lisboa (UNL) – bolsista CAPES, 2011. Trabalha com literatura contemporânea<br />

brasileira e portuguesa; artes visuais e teoria da dança. Publicou Wittgenstein & Will<br />

Eisner – se numa cidade suas formas de vida (Lumme Editor, 2006), Marcoaurélio!, com a<br />

artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, 2006) e Livro segredo e infâmia (Editora<br />

da Casa, 2007). É autora de “O impacto da impressão”, caderno de apresentação do<br />

livro Breves notas, de Gonçalo M. Tavares (Editora da Casa/Edufsc, 2010). Organizou<br />

o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc. (Editora da Casa, 2009). É<br />

colaboradora do jornal O Globo com resenhas sobre literatura contemporânea.<br />

Márcia de Carvalho<br />

Professora do Departamento de Estatística e doutoranda do Programa de Pós-Graduação<br />

em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de<br />

Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimento<br />

(CEDE) da mesma universidade.<br />

Marco Aurélio Nogueira<br />

Professor titular de Teoria Política e coordenador do Instituto de Políticas Públicas e<br />

Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutor em Ciência<br />

Política pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Universidade de<br />

Roma (1984-1985), foi diretor da Editora Unesp (1987-1991) e da Escola de Governo<br />

e Administração Pública da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap)<br />

(1991-1995). É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e autor, entre outros, dos livros<br />

Em defesa da política (Senac, 2001), Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e<br />

políticos da gestão democrática (Cortez, 2004), Potência, limites e seduções do poder<br />

(Editora Unesp, 2008) e O encontro de Joaquim Nabuco com a política. As desventuras<br />

do liberalismo (Paz e Terra, 2010).<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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iNtERPREtAÇÕES Do<br />

bRASiL E CiêNCiAS<br />

SoCiAiS, um fio<br />

DE ARiADNE<br />

André Botelho<br />

10 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


O artigo procura problematizar a visão cristalizada pelas Ciências <strong>Sociais</strong> sobre<br />

o ensaísmo brasileiro dos anos de 1920-1940. Com base em um estudo de<br />

caso, a partir de resultados de pesquisa sobre Francisco José de Oliveira Vianna<br />

e sua sociologia política, discute a atualidade das chamadas interpretações do<br />

Brasil. Tal procedimento analítico é entendido como condição para repensar<br />

o estatuto dos ensaios e sua capacidade de interpelação contemporânea às<br />

Ciências <strong>Sociais</strong> e à sociedade brasileira.<br />

Palavras-chave: interpretações do Brasil; Ciências <strong>Sociais</strong>; sociologia do conhecimento;<br />

Oliveira Vianna<br />

This article aims to problematize the views of Brazilian essayism crystallized by<br />

the Social Sciences from the 1920s to the 1940s. Based on a case study from<br />

research findings on Francisco José de Oliveira Vianna and his political sociology,<br />

it discusses the relevance of the so-called interpretations of Brazil. This<br />

analytical procedure is understood as a prerequisite for rethinking the status<br />

of the essay and its contemporary interpellation capacity towards the Brazilian<br />

Social Sciences and society.<br />

Keywords: interpretations of Brazil; the Social Sciences; sociology of knowledge;<br />

Oliveira Vianna<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

11


iNtRoDuÇÃo<br />

Entre as décadas de 1920 e 1940 foram publicados alguns dos mais<br />

instigantes estudos sobre a formação da sociedade brasileira, comumente<br />

chamados ensaios de interpretação do Brasil. Publicado em<br />

1920, Populações meridionais do Brasil, de Francisco José Oliveira<br />

Vianna, abre a produção do período, seguido, na mesma década, por<br />

Retrato do Brasil, de Paulo Prado, em 1928. Em 1933 foram publicados<br />

Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução política do<br />

Brasil, de Caio Prado Júnior, três anos depois apareceram Sobrados e<br />

mucambos, também de Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque<br />

de Holanda. Na década seguinte, voltaram aos prelos Caio Prado e<br />

Oliveira Vianna, o primeiro com Formação do Brasil contemporâneo,<br />

em 1942, o segundo com Instituições políticas brasileiras, em 1949,<br />

para citar apenas alguns dos mais emblemáticos ensaios do período.<br />

Essas interpretações do Brasil continuam nos interpelando contemporaneamente,<br />

a despeito da relação ambígua que as Ciências <strong>Sociais</strong><br />

têm mantido com eles desde o início da sua institucionalização como<br />

carreira universitária e profissional na década de 1930. Como se tra-<br />

tava então de demarcar um “campo científico”, compreende-se que<br />

o desenvolvimento das Ciências <strong>Sociais</strong> tenha sido pensado a partir de<br />

uma polarização mais disjuntiva entre o seu caráter “científico” e o<br />

“pré-científico” dos ensaios de interpretação do Brasil. Em que “científico”,<br />

naturalmente, foi quase sempre tomado estritamente como<br />

sinônimo de conhecimento válido.<br />

Diferente da monografia científica que veio a se impor como forma<br />

narrativa própria à moderna ciência ocidental, também nas ciências<br />

sociais brasileiras, o ensaio não expõe na sua narrativa fragmentada<br />

um conteúdo pronto de antemão. Mas, em uma constante tensão entre<br />

a exposição e o exposto, repõe uma ideia fundamental, como um<br />

fragmento que busca vislumbrar o todo de que é parte. Nesse movimento,<br />

esboça-se o traço distintivo do ensaio como forma: a tentativa<br />

de recomposição da relação sujeito/objeto do conhecimento fraturada<br />

pela tradição cartesiana. Por isso sua inteligibilidade parece, em parte,<br />

condicionada à própria relação de contraposição que mantém perenemente<br />

com o padrão científico positivista.<br />

Daí Theodor Adorno ter discutido o ensaio como forma de “protesto<br />

contra as quatro regras que o Discours de la méthode de<br />

12 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Descartes erige no início da moderna ciência ocidental” (ADORNO,<br />

1986, p. 177); ainda que, se considerada da perspectiva do ensaio,<br />

por sua vez, a objetividade pretendida na monografia decorra necessariamente<br />

de um arranjo subjetivo:<br />

o que em Descartes era consciência intelectual quanto à necessidade de<br />

conhecimento, se transforma na arbitrariedade de um ‘frame of reference’,<br />

de uma axiomática que precisa ser colocada no início para satisfazer<br />

a necessidade metodológica e a plausibilidade do todo [...] [que] apenas<br />

escamoteia as suas condições subjetivas (ADORNO, 1986, p. 179).<br />

Enfim, estamos diante de regimes distintos de “subjetividade” e “objetividade”<br />

do conhecimento social que validam seus próprios instrumentos<br />

linguísticos, narrativos e outros e que por isso não podem ser<br />

subsumidos uns nos outros. Ao mesmo tempo, porém, são também<br />

autorreferidos, no sentido que mobilizam frequentemente categorias<br />

de contrastes, cujos significados são extraídos tanto do que se nega,<br />

quanto do que se afirma.<br />

No caso brasileiro, aquele tipo de recomposição entre sujeito/objeto<br />

divisado no ensaio em geral parece ter sido, em grande medida, interpretado<br />

mais como um “desvio” em relação ao rigor científico do<br />

que propriamente como um “contraponto” possível a ele. O que sugere,<br />

entre outras coisas, o sentido hegemônico e duradouro assumido<br />

pelo positivismo entre nós. É razoável, de todo modo, considerar que<br />

o ensaio parecia ameaçar alguns dos seus princípios. Afinal, a adoção<br />

do padrão cognitivo-narrativo científico positivista que regeu a institucionalização<br />

das ciências sociais, e seus correspondentes princípios de<br />

isenção e neutralidade, parecia assegurar uma representação da relação<br />

externa do cientista com os fenômenos que investigava. Também nos<br />

ensaios de interpretação do Brasil, “o decifrar da realidade não está na<br />

somatória de dados objetivos, mas muito mais na sua multiplicação com<br />

elementos da subjetividade“ dos seus autores (WEGNER, 2006, p. 339).<br />

Mais do que entre os pioneiros sociólogos profissionais, porém, foi<br />

em um momento posterior, já nas décadas de 1970 e 1980, que os<br />

ensaios e suas interpretações do Brasil acabaram por ser desqualificados<br />

como meras “ideologias”. Procedimento especialmente marcante<br />

na análise de determinadas tradições intelectuais, como o chamado<br />

“pensamento conservador” dos anos 1920-30 e o “nacional-desen-<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

13


volvimentismo” dos anos 1950-60, para lembrar dois casos emblemáticos.<br />

Em vários momentos da nossa história intelectual o pensamento<br />

conservador, por exemplo, foi menosprezado levando, contudo, a que<br />

se negligenciasse a vigência dessas formas de pensar no âmbito da<br />

cultura política. Essa dimensão deveria interessar àqueles que estão<br />

voltados para o estudo dos efeitos sociais das ideias, porque ela é<br />

decisiva para se compreender, entre outras coisas, como se constitui<br />

no Brasil uma cultura política que menospreza a monumental desigualdade<br />

que marca a nossa sociedade. E, também, porque avessa à<br />

democracia, não acredita na ação coletiva e favorece a que o homem<br />

comum não leve a sério os seus iguais (FERREIRA; BOTELHO, 2010).<br />

Malgrado seu expressivo crescimento nas últimas décadas ou, talvez<br />

por isso mesmo, persistem algumas visões simplificadoras, e mesmo ingênuas<br />

sobre o pensamento social (BASTOS; BOTELHO, 2010). Como<br />

aquelas que supõem ser suficiente identificar a sua pesquisa como um<br />

tipo de conhecimento antiquário sem maior significação para a sociedade<br />

e para as ciências sociais contemporâneas. E não são incomuns<br />

ainda hoje visões segundo as quais as ciências sociais, quando concebidas<br />

em acepção positivista e orientadas para o mundo empírico e<br />

para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele, já deveriam ter<br />

solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas.<br />

Por outro lado, e isso é fundamental para manter a controvérsia viva,<br />

não faltam pesquisas, realizadas inclusive entre os próprios cientistas<br />

sociais contemporâneos, indicando a persistência da importância das<br />

interpretações do Brasil no conjunto da produção das Ciências <strong>Sociais</strong><br />

brasileiras (BRANDÃO, 2007, p. 24) 1 .<br />

Mas longe de constituir um traço idiossincrático da sua prática no Brasil,<br />

a controvérsia sobre a importância do pensamento social, como aquela<br />

sobre a importância dos clássicos, expressa uma característica crucial das<br />

1 É significativo, assim, que já no próprio âmbito de sua institucionalização no<br />

Brasil tenham surgido tantos trabalhos sobre a história das Ciências <strong>Sociais</strong>, como<br />

indica o fato de que 46 de 121 obras de sociologia publicadas, no Brasil, entre<br />

1945 e 1966 tratem da própria disciplina (VILLAS BÔAS, 1992, p. 135). Isso<br />

para não falar dos balanços sobre a tradição intelectual brasileira anterior à institucionalização,<br />

realizados, por exemplo, por Florestan Fernandes em “Desenvolvimento<br />

histórico-social da sociologia no Brasil”, originalmente publicado na<br />

revista Anhembi em 1957 (FERNANDES, 1980) ou por Alberto Guerreiro Ramos<br />

em Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de 1954 (RAMOS, 1995).<br />

14 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Ciências <strong>Sociais</strong> em geral que, como toda disciplina de natureza intelectual,<br />

traz em si uma “história construída” (LEVINE, 1995; GIDDENS,<br />

1998; ALEXANDER, 1999). Assim, a reflexão contínua sobre as Ciências<br />

<strong>Sociais</strong> remete a um aspecto crucial da própria identidade cognitiva das<br />

disciplinas que a compõem. Afinal, em contraste com o que ocorre nas<br />

ciências naturais, a lógica das Ciências <strong>Sociais</strong> exige que, para que ela<br />

atinja seus fins, refaça o seu próprio caminho, se assemelhando, neste<br />

aspecto, ao trabalho de Penélope (BRANDÃO, 2007, p. 24).<br />

Todavia, como no caso mais amplo das Ciências <strong>Sociais</strong> em relação<br />

aos seus clássicos, o significado das interpretações do Brasil, objeto por<br />

excelência da área de pesquisa do pensamento social, para a busca<br />

contemporânea de conhecimento continua em aberto. Isso expressa,<br />

igualmente, a ausência de consensos cognitivos estáveis no interior das<br />

Ciências <strong>Sociais</strong> praticadas no Brasil e, no limite, um campo de possibilidades<br />

e conflitos a respeito da sua própria identidade. Minha hipótese<br />

quanto ao seu significado heurístico para as Ciências <strong>Sociais</strong>, é que o<br />

pensamento social pode representar uma espécie de repertório interpretativo<br />

a que os pesquisadores podemos recorrer para buscar motivação<br />

e perspectiva nas diferentes áreas que as compõem. Isso porque,<br />

em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, e<br />

do decorrente fracionamento do conhecimento, as interpretações do<br />

Brasil não representam apenas uma modalidade de imaginação sociológica<br />

encerrada no passado. Elas também constituem um espaço cognitivo<br />

de comunicação entre presente, passado e futuro que pode nos dar<br />

uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo que o<br />

nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne, por assim dizer.<br />

É esta hipótese que apresento para discussão, embora não me pareçam<br />

simples os desafios nela envolvidos. Para torná-la menos abstrata<br />

recorrerei a um dos exemplos mais emblemáticos do pensamento social<br />

brasileiro, Oliveira Vianna e os possíveis significados heurísticos da sua<br />

sociologia política, mobilizando, para isso, alguns resultados recentes<br />

de pesquisa (BOTELHO, 2007; 2008; 2010; BOTELHO; LAHUERTA,<br />

2010). Antes, contudo, alguns problemas mais gerais de ordem teórico-<br />

metodológica da sociologia do conhecimento devem ser enfrentados.<br />

Deter-me-ei em dois deles ligados especificamente à pesquisa do pensamento<br />

social. Em primeiro lugar, em um plano mais amplo, a questão<br />

da relação entre “textos” e “contextos” na pesquisa sociológica contemporânea;<br />

em segundo, as diferentes possibilidades de recuperação dos<br />

textos clássicos para as atividades cotidianas da disciplina atualmente.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

15


1 tExtoS ou CoNtExtoS: A CRiSE DA SoCioLoGiA Do CoNHECimENto<br />

Começo por observar que para que o significado heurístico das<br />

interpretações do Brasil para as Ciências <strong>Sociais</strong> em suas diferentes<br />

especialidades contemporâneas possa ser avaliado é preciso encontrar,<br />

antes de tudo, formas consistentes de aproximação entre questões do<br />

presente e interpretações do passado. O que, por sua vez, exige pesquisas<br />

que possam qualificar justamente o perfil propriamente cognitivo<br />

das interpretações de que a sociedade brasileira vem sendo objeto ao<br />

longo do tempo. Assim, não será toda perspectiva metodológica empregada<br />

na reconstituição da história das Ciências <strong>Sociais</strong> no Brasil que,<br />

por seus próprios objetivos, estará apta a levar a tarefa a cabo, embora<br />

suas contribuições para o esclarecimento daquela história sejam inegáveis<br />

e não possam ser minimizados. Sem pretender ser exaustivo,<br />

observo que um passo crucial na direção da pesquisa do perfil propriamente<br />

cognitivo da tradição intelectual brasileira foi dado pelo recente<br />

trabalho de Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político<br />

brasileiro (2007). Nele, Brandão persegue o fio que nos tem ligado, na<br />

prática das Ciências <strong>Sociais</strong> – e nas suas formas correspondentes de<br />

pensar o Brasil e nele atuar –, ao nosso passado intelectual, para além<br />

dos marcos institucionais. Trata-se de um programa de pesquisa consistente<br />

que, explorando a fundo as consequências do fato de que<br />

nenhuma inovação intelectual se realiza em um vazio cognitivo, propõe<br />

nova inteligibilidade para o pensamento político-social brasileiro. Mais<br />

do que mera testemunha do passado, este constituiria o índice da existência<br />

de um corpo de problemas e soluções intelectuais – “um estoque<br />

teórico e metodológico”. Autores de diferentes épocas são levados<br />

a se referir a esse “estoque”, ainda que indiretamente e, guardadas as<br />

especificidades cognitivas e políticas de cada um, no enfrentamento<br />

de velhas questões postas pelo desenvolvimento social. Não se trata de<br />

minimizar o influxo cognitivo externo a que também as Ciências <strong>Sociais</strong><br />

brasileiras estão sujeitas em sua prática cotidiana; e sim de reconhecer<br />

que, ainda assim, o pensamento político-social brasileiro tem representado<br />

“um afiado instrumento de regulação de nosso ‘mercado interno<br />

das ideias’ em suas trocas com o mercado mundial” (BRANDÃO, 2007,<br />

p. 23-24).<br />

Todavia, uma questão metodológica importante suscitada pelo livro<br />

de Brandão é saber se o pertencimento a uma “família” intelectual<br />

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constitui um ponto de partida estrutural da análise, ou antes, um problema<br />

mais contingente. Problema cujo sentido, sendo variável em<br />

relação à combinação com outros fatores internos e externos de composição<br />

das obras, somente a pesquisa comparativa poderia então<br />

apontar caso a caso. Afinal, apesar de algumas linhagens terem se tornado<br />

mais cristalizadas, como em qualquer família, também no caso<br />

da tradição intelectual brasileira, como bem lembra o autor, por vezes<br />

“os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que<br />

um Montecchio se apaixone por uma Capuleto” (p. 39). Nesse sentido,<br />

penso que um dos aspectos mais produtivos derivados da proposta<br />

seria justamente o de, cruzando diferentes linhagens, surpreender afinidades<br />

eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes,<br />

esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos 2 .<br />

Pensando em termos teóricos mais gerais, diria, com algum exagero,<br />

que a constituição do pensamento social como um repertório ou espaço<br />

de comunicação cognitivo implica, em certo sentido, completar o movimento<br />

analítico característico da sociologia do conhecimento. Esta,<br />

como se sabe, tem estado voltada, desde a síntese teórica formulada por<br />

2 Foi justamente nessa direção que procurei reconstituir analiticamente a formação<br />

de uma agenda de pesquisas, de Populações meridionais do Brasil até<br />

Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de Carvalho Franco,<br />

passando por Coronelismo, enxada e voto (1949), de Victor Nunes Leal, e<br />

diferentes pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz desenvolvidas desde a<br />

década de 1950, procurando destacar suas continuidades e descontinuidades<br />

(BOTELHO, 2007). No plano das continuidades, argumentei que estas pesquisas<br />

mantêm, em primeiro lugar, a tese central do ensaio de Vianna sobre a<br />

configuração histórica particular das relações de dominação política no Brasil<br />

fundada no conflito entre as ordens privada e pública e não diretamente assimilável<br />

ao conflito de classes enraizado no mundo da produção; bem como,<br />

em segundo lugar, sua tendência teórico-metodológica a relacionar a aquisição,<br />

distribuição, organização e exercício de poder político à estrutura social<br />

com o objetivo de identificar as bases e a dinâmica da política na própria vida<br />

social. Com relação, por sua vez, às descontinuidades cognitivas internas entre<br />

os diferentes trabalhos que compõem a vertente da sociologia política brasileira<br />

destacada, argumentei que são distintas, sobretudo, as concepções de sociedade<br />

e, nelas, o relacionamento entre ação e estrutura social, que assume e que<br />

procura conferir verossimilhança com os próprios resultados obtidos no estudo<br />

da constituição, organização e reprodução das relações de dominação política.<br />

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Mannheim (1976), para o esclarecimento da constituição social das<br />

ideias e das relações mais ou menos condicionadas que mantêm com<br />

os grupos sociais e as sociedades que as engendram (apesar de Mannheim<br />

também levar em conta as gerações). Sua premissa paradigmática<br />

é a de que<br />

existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos<br />

adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais.<br />

[...] A abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do<br />

indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do filósofo, prosseguir<br />

então diretamente até às alturas abstratas do “pensamento em<br />

si”. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento busca compreender<br />

o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social,<br />

de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente<br />

diferenciado (MANNHEIM, 1976, p. 30-1).<br />

Certamente esse postulado da sociologia do conhecimento não permaneceu<br />

incólume desde o seu surgimento como empreendimento<br />

organizado no início do século XX; além de ter sofrido progressivamente<br />

a concorrência, de um lado, de perspectivas estruturalistas (Saussure)<br />

e pós-estruturalistas (Foucault) e, de outro, do chamado marxismo<br />

ocidental (Adorno, Benjamin, Gramsci e outros), que convergia com a<br />

ênfase de Mannheim na questão dos condicionantes sociais da cultura,<br />

ainda que operasse uma realocação desta para a esfera da dominação<br />

ideológica. Um dos principais estímulos para sua revitalização veio de<br />

Pierre Bourdieu que “trouxe o conhecimento de volta para o mapa da<br />

sociologia em uma série de estudos sobre ‘prática teórica’, ‘capital cultural’<br />

e o poder de instituições como as universidades para definir o que conta e<br />

o que não conta como conhecimento legítimo” (BURKE, 2003, p. 16).<br />

O caso da teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1974), que tem sido<br />

muito empregada, embora com sentidos distintos e resultados muito<br />

diferentes, parece, com efeito, exemplar para discutir os limites da sociologia<br />

do conhecimento para a pesquisa da dimensão cognitiva das<br />

interpretações do Brasil. Pois, por se concentrar no “contexto” em detrimento<br />

do “texto”, essa perspectiva pouco favorece, em função dos seus<br />

próprios objetivos, uma abordagem mais consistente da dimensão cognitiva<br />

das interpretações do Brasil, não obstante possa trazer subsídios<br />

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decisivos para a discussão sobre a mediação social do conhecimento.<br />

Para Bourdieu, “textos” representam no máximo pretextos para a análise<br />

sociológica da cultura, uma vez que a questão analítica valorizada<br />

passa a ser a das posições ocupadas e das estruturas de legitimação mobilizadas<br />

pelos produtores na configuração de um dado campo. Nesse<br />

sentido, questões como origens sociais e posições nas estruturas de poder,<br />

sociabilidade e dinâmica interna de classes ou grupos sociais, estratégias<br />

cotidianas de inserção e de viabilização das carreiras nos marcos<br />

institucionais dominantes ou, ao contrário, por meio dos circuitos mais<br />

ou menos informais e alternativos a eles, entre outras, ganham preponderância<br />

nas análises (BASTOS BOTELHO, 2010a).<br />

A importância dos “textos” para a sociologia também tem sido, por<br />

outro lado, afirmada. É o caso da recente defesa de Jeffrey Alexander<br />

de um “programa forte” para a sociologia, claramente influenciado<br />

pela sociologia da religião de Émile Durkheim. Em As formas elementares<br />

da vida religiosa (1912), Durkheim procurou relacionar crenças<br />

religiosas e cognitivas no interior de uma teoria geral das representações<br />

coletivas, valorizando o simbolismo coletivo como princípio<br />

constituinte da realidade social. Tirando consequências desse postulado<br />

em seu programa, Alexander argumenta que a sociologia não deveria<br />

se ater apenas ao estudo de “contextos”, devendo compreender<br />

também o estudo de “textos” – entendidos não apenas como textos<br />

formais ou escritos, mas também “manuscritos não escritos”, “códigos”<br />

e “narrativas” (ALEXANDER, 2000, p. 32, tradução minha). Essa<br />

reorientação constituiria a principal condição para que se pudesse<br />

identificar a dimensão semântica das instituições e das ações sociais,<br />

ou a “textualidade das instituições e a natureza discursiva da ação social”<br />

(p. 34). A premissa fundamental dessa “sociologia cultural” está<br />

na afirmação de que tanto a ação, independente do seu caráter instrumental,<br />

reflexivo ou coercitivo com relação ao seu contexto externo,<br />

“se materializa em um horizonte emotivo e significativo” quanto as<br />

instituições, independentemente do seu caráter impessoal e tecnocrático,<br />

possuem fundamentos ideais que “conformam sua organização,<br />

objetivos e legitimação” (p. 38-39).<br />

Da perspectiva de Alexander, o programa “forte” para a sociologia<br />

consiste precisamente em afirmar que a “cultura opera como uma<br />

‘variável independente’ na conformação de ações e instituições” (p. 39).<br />

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Assim, ao contrário do que deve ocorrer na “sociologia cultural”,<br />

na “sociologia da cultura” a cultura é uma variável apenas “branda”<br />

submetida a diferentes variáveis “fortes” e mais tangíveis da estrutura<br />

social. Nessa acepção, argumenta Alexander, o poder explicativo da<br />

cultura consiste apenas “no melhor dos casos, em participar na reprodução<br />

das relações sociais” (p. 39). Nessa sugestão radical de desacoplamento<br />

entre cultura e estrutura social, ou por outra, de afirmação<br />

da ideia de autonomia cultural, Alexander vê a única possibilidade de<br />

definir-se um “programa forte” para a sociologia da cultura capaz de<br />

identificar e qualificar sociologicamente o poder da cultura na conformação<br />

da vida social 3 . A esse respeito, penso que continua válida<br />

3 Exemplo crucial da sua proposição analítica encontra-se em “A preparação<br />

cultural para a guerra: código, narrativa e ação social” que fecha o volume<br />

Sociologia cultural. Formas de classificação nas sociedades complexas. Nele,<br />

Alexander aborda da perspectiva da sociologia cultural, isto é, considerando<br />

a cultura como variável independente, problemas de “simbolismo político” (e<br />

não de motivos racionais) em nações democráticas, uma vez que as guerras<br />

não se fariam sem a mobilização dos sentimentos e crenças dos cidadãos.<br />

Substantivamente, analisa as “dinâmicas culturais internas” presentes nos preparativos<br />

dos Estados Unidos para a Guerra do Golfo Pérsico em 1991, descartando<br />

as ideias de “manipulação exercidas pelos governos” e de “contestação<br />

dos movimentos contrários à guerra” como suficientes para compreender os<br />

processos de legitimação da guerra (p. 256). Daí que destaque literatura de<br />

ficção, filmes e informações objetivas sobre a guerra como elementos mobilizados<br />

por diferentes grupos sociais de interesse na definição da estrutura<br />

semântica do conflito. O “sentido” cultural da guerra pode ser apreendido a<br />

partir da articulação de três elementos fundamentais: código, que separa dicotomicamente<br />

– mas não de modo contingente, e sim estrutural – certas qualidades<br />

simplificadas como “bem e mal”, “puro e impuro”, “amigos e inimigos”<br />

e “sagrado e profano” (p. 256); narrativa, que permite que aqueles códigos<br />

dicotômicos adquiram sentido em relação a uma experiência histórico-universal,<br />

fazendo a guerra corresponder a um processo de “imaginação coletiva” (p.<br />

258); e gênero, que confere a capacidade dessa narrativa histórico-universal<br />

sublimar os processos sociais aumentando a importância simbólica da guerra<br />

entre os cidadãos. Em suma, a complexidade da guerra só ganharia inteligibilidade<br />

sociológica, recuando-se até a sua preparação cultural, a partir da<br />

qual tornar-se-ia possível discriminar o caráter semanticamente orientado das<br />

ações e instituições desde a estrutura interna das formações discursivas que<br />

lhe conferem sentido e legitimidade coletivas.<br />

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a advertência de Max Weber (2004, p. 167), feita ao final de A Ética<br />

protestante e o espírito do capitalismo, sobre a insensatez das tentativas<br />

de substituir uma concepção de primazia causal materialista por<br />

outra idealista – ou vice-versa – na explicação das condutas humanas<br />

mantendo intacto, contudo, o verdadeiro problema de método envolvido<br />

que é justamente o princípio de monocausalidade.<br />

A advertência de Max Weber, aliás, é fundamental para o problema<br />

específico que estamos tratando e se desdobra em duas considerações<br />

principais. Em primeiro lugar, considero que a reorientação analítica<br />

necessária à pesquisa da dimensão cognitiva do pensamento social brasileiro<br />

não possa se limitar ao estudo de contextos, devendo compreender<br />

também o estudo de textos. Não se trata, é preciso deixar claro,<br />

de supor a autonomia dos textos; porém, recusar essa tese não implica<br />

necessariamente aceitar a oposta, do condicionamento da sociedade<br />

sobre as ideias como algo já dado de antemão – não importando aqui<br />

se os condicionantes são entendidos em termos econômicos, políticos,<br />

institucionais ou biográficos. Por isso, também a visão disjuntiva entre as<br />

abordagens chamadas textualistas e contextualistas que se apresentam,<br />

em grande medida, como concorrentes no debate contemporâneo do<br />

pensamento social brasileiro (PONTES, 1997), pode ser, em parte, problematizada.<br />

Tomadas de modo disjuntivo, ambas as posturas podem<br />

acarretar ordenações que, ao lado de inegáveis méritos, não deixam<br />

também de apresentar certos limites simplistas. Assim, mesmo reconhecendo<br />

as diferenças entre aquelas perspectivas, é possível sugerir, no<br />

lugar da escolha exclusiva entre texto ou contexto, que se reconheça e<br />

se qualifique a tensão existente entre estes termos, na medida em que<br />

ela é constitutiva da própria matéria que cumpre à análise ordenar.<br />

Em segundo lugar, se não há consenso sobre a importância dos clássicos<br />

nas Ciências <strong>Sociais</strong> em geral, o mesmo se pode dizer quanto<br />

às vertentes sensíveis à orientação semântica da vida social, isto é,<br />

entre aquelas que reconhecem a importância dos textos clássicos nas<br />

atividades cotidianas da disciplina. No que se refere às vertentes contemporâneas<br />

da sociologia voltadas para a pesquisa dos significados<br />

dos textos clássicos da disciplina, pode-se demarcar o debate em duas<br />

posições contrastantes cujo ponto crucial de discordância diz respeito<br />

à questão da intencionalidade dos autores. Questão cuja polêmica<br />

perene nas Ciências <strong>Sociais</strong> foi recolocada contemporaneamente, de<br />

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um lado, pelas provocações críticas da chamada “teoria da recepção”<br />

(JAUSS, 1978) e, de outro, pelo chamado “contextualismo linguístico”<br />

de Quentin Skinner (TULLY, 1988; SKINNER, 1999). Assim, uma<br />

vertente que se poderia denominar “contextualista” afirma, via contextualismo<br />

linguístico, ser necessário recuperar a intencionalidade<br />

dos autores clássicos a partir da reconstituição minuciosa do contexto<br />

original em que eles e seus textos estavam inscritos (GIDDENS, 1998).<br />

Outra que se poderia denominar “analítica” afirma, por sua vez, a<br />

validade em retomar aqueles textos a partir das questões próprias do<br />

nosso presente (ALEXANDER, 1999).<br />

Uma visão disjuntiva entre essas perspectivas “analítica” e “contextualista”,<br />

no entanto, não é nem inevitável, nem desejável. Pois se supor<br />

que a intenção de um autor possa ser plenamente recuperável implica<br />

mesmo um tipo de “confiança empírica de transparência do mundo<br />

social” difícil de sustentar no contexto da sociologia pós-positivista<br />

(ALEXANDER, 1999, p. 77); de outro lado, não deixa de ser pertinente<br />

lembrar que a importância de procurar entender as intenções de<br />

um autor em um contexto específico está justamente no fato de isso<br />

fornecer uma “sólida proteção contra as excentricidades do relativismo”<br />

(GIDDENS, 1998, p. 18). Assim, penso ser justamente na tensão<br />

entre a intencionalidade do autor, isto é, levando em conta o que tencionava<br />

fazer ao escrever no contexto das questões da sua época, e os<br />

significados heurísticos daquilo que realizou para a sociologia contemporânea<br />

que se deve buscar um entendimento contemporâneo dos<br />

clássicos. É dessa perspectiva que retomo resultados de pesquisa mais<br />

ampla sobre a recepção e o significado teórico heurístico da sociologia<br />

política de Oliveira Vianna (BOTELHO, 2007).<br />

2 A AtuALiDADE DE umA iNtERPREtAÇÃo Do bRASiL<br />

Na década de 1920, em contraste com o que viria a predominar na<br />

seguinte, a preocupação com a questão da formação da sociedade<br />

brasileira partia da constatação da diversidade e das especificidades de<br />

cada uma das suas regiões e da impossibilidade de pensar a sociedade<br />

em termos homogêneos. Não é por outro motivo que o ensaio de<br />

estreia de Oliveira Vianna já traz em seu título, como um dado, a heterogeneidade<br />

brasileira. Populações meridionais do Brasil era parte de<br />

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um projeto maior, e apenas parcialmente realizado, voltado justa mente<br />

para o esclarecimento das diferenças entre as “instituições” e a “cultura<br />

política” das populações rurais do país. O primeiro volume, de 1920,<br />

é dedicado às populações rurais do centro-sul – paulistas, fluminenses e<br />

mineiros – que para o autor teriam sido as mais influentes na evolução<br />

política nacional. A ele se seguiu o volume publicado apenas em 1952,<br />

um ano após a morte do autor, dedicado ao extremo-sul do Brasil. O<br />

terceiro volume, que não chegou a ser escrito, teria como objeto as<br />

populações setentrionais do Brasil, o sertanejo e sua expansão pela hileia<br />

amazônica. Assim, Oliveira Vianna identifica ao menos três histórias<br />

distintas na formação brasileira, fazendo corresponder a cada uma delas<br />

diferentes tipos de organização social e política e de cultura política: a do<br />

norte, do centro-sul e do extremo-sul, que geram, respectivamente, três<br />

tipos sociais específicos, o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Três grupos que<br />

demonstram, segundo o autor, “diversidades consideráveis” na “estrutura<br />

íntima” dos brasileiros, por assim dizer (VIANNA, F. J. O., 1973, p. 15).<br />

Mais importante ainda, a diferenciação da sociedade em diversas<br />

regiões inscreve-se no próprio plano metodológico forjado nos seus<br />

ensaios. Inspirado ao que tudo indica (CARVALHO, 1993, p. 160) pela<br />

leitura de Les Français D’Aujourd’Hui (1898), de Edmond Demolins,<br />

Oliveira Vianna defende a ausência de uma unidade fundamental à<br />

sociedade brasileira, diretamente relacionada, em termos cognitivos,<br />

à sua recusa de uma explicação unilateral da vida social. Assim, são os<br />

diversos fatores de ordem racial, climática, geográfica e também social<br />

por ele mobilizados que concorreriam para a sua visão do Brasil como<br />

uma sociedade profundamente diferenciada entre regiões e tipos sociopolíticos.<br />

Em Evolução do povo brasileiro, publicado originalmente<br />

em 1923, por exemplo, explicita sua convicção e afirma:<br />

qualquer grupo humano é sempre consequência da colaboração de<br />

todos eles [aqueles diferentes fatores]; nenhum há que não seja a<br />

resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra,<br />

do Homem, da Sociedade e da História. Todas as teorias, que<br />

faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa<br />

única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente<br />

monocausalistas em Ciências <strong>Sociais</strong> (VIANNA, F. J. O., 1956, p. 30,<br />

grifos do autor).<br />

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Em Populações meridionais do Brasil, Oliveira Vianna evidenciou problemas<br />

cruciais da vida política brasileira, decorrentes, segundo sua tese,<br />

do papel da estrutura fundiária na configuração da vida social formada<br />

desde a colonização. Propriedades imensas, autossuficientes e ainda<br />

por cima centros de gravitação das decisões políticas locais, ligando uma<br />

massa de homens livres pobres aos latifundiários, teriam dificultado o<br />

desenvolvimento do comércio, da indústria, das cidades e de seus atores<br />

sociais característicos. Isso é válido, especialmente, para uma classe média<br />

independente, base social crucial para o vigor associativo das sociedades<br />

anglo-saxônicas tomadas como contraponto à formação brasileira.<br />

No entanto, essa volta ao passado, no momento em que a modernização/urbanização<br />

começava a se impor significava, sobretudo, buscar<br />

perspectiva para pensar os dilemas do presente e as possibilidades<br />

de futuro da sociedade. Que Brasil moderno seria possível construir?<br />

A sociedade forjada no molde rural desapareceria?<br />

Para Oliveira Vianna, apesar das mudanças em curso em sua época,<br />

algumas estruturas e atitudes sociais do nosso passado rural continuavam<br />

desempenhando papéis cruciais, em especial na vida política.<br />

Um exemplo seria a problemática relação entre as esferas pública e<br />

privada na sociedade brasileira. Não apenas a fragilidade do público<br />

contrastava com a pujança do privado, mas tais esferas também se<br />

baralhavam, criando toda sorte de dilemas. Esse baralhamento trazia<br />

enormes dificuldades para a identificação e a associação, visando<br />

interesses comuns, para além dos círculos domésticos originalmente<br />

ligados aos latifúndios. Também tornava as instituições públicas extremamente<br />

suscetíveis a programas voltados para a promoção de<br />

interesses particulares. Além disso, distorcia a vida política em uma<br />

trama de relações de fidelidades pessoais e contraprestação de favores<br />

envolvendo toda sorte de bens materiais, prestígio, controle de<br />

cargos públicos, votos etc. Em face dessa situação, para Vianna, seria<br />

urgente reorganizar, fortalecer e centralizar o Estado, único ator que,<br />

dotado dessas características, seria capaz de enfraquecer as oligarquias<br />

agrárias e sua ação corruptora das liberdades públicas e individuais e,<br />

desse modo, corrigir os defeitos da nossa formação nacional.<br />

Justamente essa dimensão normativa da interpretação de Oliveira<br />

Vianna despertou maior interesse em seus analistas. Permanecem<br />

abertas, no entanto, as controvérsias quanto ao “sentido” de sua defesa<br />

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do princípio autoritário de ordenamento político da vida coletiva –<br />

autoritário pelo privilégio que concede à unidade e à ordem em<br />

detrimento do conflito e da transformação da própria estrutura social –,<br />

como a reforma agrária, por exemplo. Assim, discute-se se aquela<br />

defesa é “substantiva” (LAMOUNIER, 1977) ou apenas “instrumental”,<br />

ou seja, se o formato político proposto seria transitório para a realização<br />

de uma sociedade liberal fundada na noção de direitos universais<br />

(SANTOS, 1978). O mesmo debate foi reposto mais recentemente em<br />

relação a sua visão “iberista” da modernidade como uma alternativa<br />

ao liberalismo “anglo-saxão”: novamente a questão é se esta seria<br />

“instrumental” (VIANNA, L. W., 1993) ou não (CARVALHO, 1993).<br />

Contribuiu para essa polêmica, sem dúvida, a identificação pessoal<br />

de Oliveira Vianna ao Estado Novo (a ditadura instaurada por Getúlio<br />

Vargas entre 1937 e 1945), no qual atuou decisivamente, sobretudo<br />

como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,<br />

tendo sido antes um dos responsáveis pela elaboração do anteprojeto<br />

para a Constituição de 1934 (considerada autoritária e centralista).<br />

Embora as relações entre obra e trajetória de um autor não possam<br />

ser menosprezadas, é preciso cuidado para não assimilar uma pela<br />

outra, como se existisse uma predeterminação ou continuidade linear<br />

entre elas. Tal cuidado aplica-se no caso de Oliveira Vianna, a começar<br />

pelo fato de que suas ideias não permaneceram as mesmas, nem<br />

foram sempre vencedoras nos embates intelectuais e institucionais<br />

que travou. Mesmo sua convicção “autoritária” da ação transformadora<br />

do Estado, presente no primeiro volume de Populações meridionais do<br />

Brasil (1920), seu ensaio de estreia, foi contingente, tensa e descontínua<br />

ao longo do desenvolvimento da sua obra e da sua trajetória.<br />

Por exemplo, a afirmação feita em Instituições políticas brasileiras<br />

(1949) de que os “complexos culturais” tenderiam à estabilidade revela<br />

não apenas uma maturação de ideias, mas uma nova percepção<br />

sobre os próprios limites da ação do Estado. Pois, ao mobilizar a cultura<br />

para enfatizar a inutilidade de reformas políticas e jurídicas feitas<br />

em desacordo com os valores assentados na sociedade pela tradição<br />

(o que chama de “direito costumeiro”), Oliveira Vianna problematiza<br />

sua própria posição inicial sobre a capacidade de o Estado recriar a<br />

velha sociedade corrompida por práticas privatistas. Essa questão é<br />

aprofundada no livro póstumo Introdução à história social da econo-<br />

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mia capitalista no Brasil (1958), no qual propõe justamente uma volta<br />

aos valores “patriarcais” e “pré-capitalistas” presentes nas origens<br />

da formação social brasileira como possibilidade de reordenação não<br />

conflituosa da vida social.<br />

Quando passamos, porém, dos aspectos mais salientes – e mais datados<br />

– da obra e da trajetória de Oliveira Vianna e da recepção de suas<br />

ideias, entrando nos aspectos teóricos mais gerais, é possível identificar<br />

um conjunto de proposições que confere a sua sociologia política<br />

um interesse mais amplo que o sentido normativo ao qual geralmente<br />

é associada. Tomo para tanto uma questão central da sociologia<br />

política de Oliveira Vianna, questão que expressa de modo emblemático<br />

como uma interpretação fortemente interessada da realidade<br />

social pode produzir conhecimento sociológico relevante. Como se<br />

sabe, era lugar-comum da crítica conservadora da Primeira República<br />

(1889-1930), e não só dela, conferir às instituições republicanas uma<br />

legalidade sem correspondência na sociedade – como se existissem,<br />

desencontrados, um país “legal” (o da Constituição liberal de 1891) e<br />

outro “real” (o do dia a dia da sociedade). Esse lugar comum é confirmado<br />

por evidências cotidianas de que os direitos, como princípios<br />

normativos universais associados à tradição liberal, não se efetivavam<br />

naquele contexto corrompido por toda sorte de práticas oligárquicas.<br />

Como a maioria dos seus contemporâneos, embora com diferenças<br />

entre eles, Oliveira Vianna descartou qualquer encaminhamento tipicamente<br />

liberal para a efetivação dos direitos e da cidadania. Formulou,<br />

antes, outra concepção de cidadania, que suprimia a noção de indivíduo<br />

como portador de direitos e subordinava-o, como membro de<br />

um grupo profissional, de modo vertical e tutelar ao Estado. E se a controvérsia<br />

quanto ao sentido do seu autoritarismo permanece aberta,<br />

como já assinalado, não se pode negligenciar que, naquele momento,<br />

o liberalismo conferia força às pressões pela democratização política<br />

e social. Em todo caso, a diferença de Oliveira Vianna em relação<br />

aos seus contemporâneos que importa assinalar aqui é que ele soube<br />

traduzir a crítica comum à Primeira República liberal-oligárquica em<br />

termos teórico-metodológicos relativamente consistentes; além de tê-<br />

la formalizado na tese segundo a qual os fundamentos e a dinâmica<br />

das instituições políticas se encontrariam nas relações sociais.<br />

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Exemplar é a discussão de Populações meridionais sobre a parcialidade<br />

da Justiça como um efeito contrário ao pretendido pela adoção<br />

de instituições liberais – no caso, as eleições para juízes – em uma<br />

sociedade oligárquica como a brasileira. Tal parcialidade ocorreria, de<br />

um lado, porque os “caudilhos rurais”, que dominavam as câmaras<br />

municipais e o aparelho eleitoral, só escolheriam para os juizados homens<br />

da sua confiança, de outro, porque a necessidade do sufrágio<br />

local forçaria o próprio juiz a se fazer “criatura da facção” que o elege.<br />

Assim, o juiz tornar-se-ia instrumento da “impunidade” ou da “vingança”<br />

conforme tivesse diante de si um “amigo” ou um “adversário” –<br />

estamos aqui diante da familiar máxima “aos amigos tudo, aos inimigos<br />

a lei”. Nesse, como em outros exemplos que poderiam ser tomados<br />

quase ao acaso em sua obra, Oliveira Vianna expressa sua preocupação<br />

quanto aos impasses sociais produzidos pela desarticulação entre<br />

as instituições liberais “transplantadas” e a realidade singular brasileira.<br />

Mas o que o exemplo sugere, em termos teóricos, é também que as<br />

instituições não são virtuosas em si mesmas, não são exatamente locais<br />

de ação autônoma em relação aos valores e às práticas vigentes na<br />

sociedade como um todo. E por isso mesmo, não podem ser tomadas<br />

como variáveis independentes de outras forças sociais. Ao contrário,<br />

as instituições políticas seriam inevitavelmente forçadas a interagir<br />

com estruturas, relações e recursos sócio-históricos – e de poder legal<br />

e extralegal – mais amplos. Dessa interação resultaria a dinâmica possível<br />

que as instituições políticas assumiriam na sociedade.<br />

Essa proposição teórico-metodológica foi crucial na definição de<br />

uma agenda de pesquisas da sociologia política brasileira posterior<br />

(BOTELHO, 2007). Abrangendo continuidades e descontinuidades,<br />

integram essa agenda Coronelismo, enxada e voto (1949), do jurista e<br />

cientista político Victor Nunes Leal (1914-1985), diferentes pesquisas<br />

sobre política, messianismo e cultura rural da socióloga Maria Isaura<br />

Pereira de Queiroz e ainda Homens livres na ordem escravocrata<br />

(1964), da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, por exemplo.<br />

Muito resumidamente pode-se dizer que tais trabalhos levaram às<br />

últimas consequências a tese dos fundamentos sociais das instituições<br />

políticas de Oliveira Vianna, tomando para si justamente a tarefa<br />

de investigar, com os recursos próprios da sociologia, os processos de<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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aquisição, distribuição, organização e exercício de poder político e<br />

suas complexas relações com a estrutura social brasileira.<br />

Por isso eles voltaram ao passado da sociedade brasileira para tratar de<br />

fenômenos já assinalados por Oliveira Vianna, como “mandonismo”,<br />

“coronelismo”, “relações de favor”, “parentela”, “voto de cabresto” e<br />

“exercício personalizado do poder”. As relações de dominação política<br />

não se sustentam sem uma base social de legitimação, e por essa<br />

razão esses fenômenos foram vistos – tal como por Oliveira Vianna –<br />

integrando um “sistema de reciprocidades” assimétricas que envolveria<br />

relações diretas, pessoalizadas e violentas engendradas entre os<br />

diferentes grupos sociais. Estas seriam as bases sociais da vida política<br />

brasileira. Como as inovações institucionais não se realizariam em um<br />

vazio de relações sociais, essas bases não poderiam ser menosprezadas,<br />

mesmo consumada a passagem da sociedade rural à urbana.<br />

Ao problematizar a interação entre instituições políticas e vida social,<br />

de um lado, e a capacidade de ação de indivíduos e grupos e o<br />

condicionamento dessas ações pelas estruturas sociais, de outro, também<br />

essa vertente da sociologia política apresenta ganhos cognitivos<br />

importantes para a compreensão de certos desafios ainda abertos à<br />

cidadania democrática no Brasil como, por exemplo, o do associativismo,<br />

condição da democracia quando a consideramos também do<br />

ponto de vista societário (e não exclusivamente institucional). Fenômeno<br />

social que, apesar do seu crescimento em nossa história recente, continua<br />

não apenas frágil como ainda muito marcado por princípios de<br />

identidade e de conduta pouco universalistas, o que acaba por fortalecer<br />

uma atitude cética em relação às próprias instituições políticas.<br />

Esse reconhecimento é mais importante quando observamos que a<br />

reflexão feita no Brasil nos últimos vinte anos levou, significativamente,<br />

a que se privilegiasse o funcionamento das instituições e seu papel<br />

na vida social de modo quase independente, como se os processos<br />

políticos existissem exclusivamente no âmbito sistêmico e não mantivessem<br />

nenhuma espécie de vínculo com o “mundo da vida”. Essa<br />

abordagem que, em larga medida, tem um débito com a economia<br />

neoclássica (Habermas chega a falar em “colonização” das ciências<br />

sociais pela economia para explicar essa operação intelectual), tem<br />

por fundamento as escolhas e preferências de eleitores e políticos,<br />

concebidos essencialmente como calculadores, maximizadores, utili-<br />

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taristas, em suma, rational choice. Esse ângulo de análise, ainda que<br />

tenha contribuído para a elaboração de pesquisas preocupadas com a<br />

demonstração empírica e com a descrição dos fenômenos analisados,<br />

teve também o inconveniente de abdicar excessivamente de outras<br />

dimensões do fenômeno político que vão além do homus economicus<br />

e da lógica estritamente institucional (BOTELHO; LAHUERTA, 2005).<br />

Afinal, será mesmo que, apesar das mudanças sociais e institucionais<br />

dos últimos tempos, aquilo que Oliveira Vianna identificou – o<br />

baralhamento entre público e privado e suas consequências no modo<br />

como lidamos cotidianamente com as instituições e a vida política –<br />

simplesmente desapareceu? Creio que não faltarão elementos no horizonte<br />

pessoal do próprio leitor para que possa responder à pergunta.<br />

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS: iNtÉRPREtES Do<br />

bRASiL, NoSSoS ANtEPASSADoS?<br />

No prefácio que escreveu para seu livro Os nossos antepassados,<br />

Ítalo Calvino confessa seu desejo pessoal de liberdade ao escrever ao<br />

longo da década de 1950 as três histórias “inverossímeis” reunidas no<br />

livro, com relação à classificação de “neorrealista” a que seus escritos<br />

anteriores o haviam levado. Mas com sua trilogia procurou, sobretudo,<br />

sugerir três níveis diferentes de aproximação da liberdade na experiên-<br />

cia humana que “pudessem ser vistas como uma árvore genealógica<br />

dos antepassados do homem contemporâneo, em que cada rosto oculta<br />

algum traço das pessoas que estão a nossa volta, de vocês, de mim<br />

mesmo” (CALVINO, 1999, p. 20) 4 . Mais do que o caráter imaginário<br />

da “genealogia” (certamente importante, mas não surpreendente, já<br />

que toda pretensão genealógica traz sempre boa dose de bovarismo),<br />

a confissão de Calvino esclarece, quando se leva em conta o contexto<br />

desses seus escritos – “Estávamos no auge da guerra fria, havia uma<br />

tensão no ar, um dilaceramento surdo, que não se manifestavam em<br />

imagens visíveis mas dominavam os nossos ânimos” (CALVINO, 1990,<br />

p. 9) – o quanto, sobretudo em momentos particularmente dramáticos<br />

em termos sociais, a busca de uma perspectiva que permita ligar a ex-<br />

4 A trilogia é composta por O visconde partido ao meio, O barão nas árvores<br />

e O cavaleiro inexistente.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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periência presente ao passado pode representar “um impulso para sair<br />

dele (do presente) e, então, divisar melhor as possibilidades de futuro.<br />

Essa estranha reflexão de Calvino sobre a utopia, na qual a reconstrução<br />

do passado tem papel crucial na construção do futuro, é boa<br />

para pensar o tipo de trabalho intelectual envolvido na área de pesquisa<br />

do pensamento social brasileiro. Isso não apenas porque os ensaios<br />

de interpretação do Brasil que formam a matéria-prima da área<br />

inovaram nessa mesma direção ao ensinarem a pensar a dimensão de<br />

processo social inscrita no presente vivido, como Antonio Candido<br />

(2006, p. 235) se refere ao legado da geração de ensaístas da década<br />

de 1930 para a sua própria geração. Mas, sobretudo, porque, as interpretações<br />

do Brasil são elementos importantes para a compreensão da<br />

articulação das forças sociais que operam no desenho da sociedade<br />

e que contribuem para movê-la em determinadas direções. Ou seja,<br />

não se pode negligenciar a vigência dessas formas de pensar o Brasil<br />

na esfera da “cultura política”, como foi comum ao nosso ambiente<br />

acadêmico entre as décadas de 1970 e 1990, porque muitas delas deram<br />

vida a projetos, foram assumidas por determinados grupos sociais<br />

e se institucionalizaram, informando ainda hoje valores, condutas e<br />

práticas sociais.<br />

Como espero ter sugerido com a discussão sobre Oliveira Vianna, a<br />

aproximação das interpretações do passado às questões e perguntas<br />

do presente é suscitada porque os desafios atuais de qualquer sociedade<br />

também estão associados à sequência do seu desenvolvimento<br />

histórico.<br />

Assim, como ocorre em relação aos antepassados inverossímeis de<br />

Calvino, são as relações sociais e políticas em curso na sociedade brasileira<br />

que nos interpelam constantemente a voltar às interpretações<br />

de que foi objeto no passado, e não o contrário. Porque, afinal, podemos<br />

identificar nas interpretações do Brasil proposições cognitivas<br />

e ideológicas que ainda nos dizem respeito, já que o processo social<br />

por elas narrado – de modo realista ou não, mas em face das questões<br />

e com os recursos intelectuais que o seu tempo tornou disponíveis –<br />

permanece, ele mesmo, em vários sentidos em aberto. Se do ponto de<br />

vista substantivo, esse processo encontra inteligibilidade sociológica na<br />

modernização conservadora em que, feitas as contas dos últimos anos,<br />

prosseguimos, e a partir da qual a mudança social tem se efetivado<br />

30 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


a despeito de deixar praticamente intactos ou redefinidos noutros<br />

patamares problemas seculares; também do ponto de vista teórico-<br />

metodológico, embora sejam inegáveis os ganhos epistemológicos das<br />

Ciências <strong>Sociais</strong> institucionalizadas como disciplina acadêmica, não<br />

existem razões suficientes para superestimá-los como se tivessem permitido<br />

resolver de modo permanente os problemas que os ensaístas<br />

ou os cientistas sociais das gerações anteriores levantaram.<br />

Considero, assim, que a conexão entre pensamento social e teoria<br />

sociológica, aproximando questões do presente a interpretações do passado,<br />

permite fazer uma crítica consistente à abstração da constituição<br />

diacrônica e dinâmica da sociedade e, desse modo, questionar a tendência<br />

de parte importante da sociologia contemporânea a se refugiar<br />

no presente. É essa, aliás, uma das conquistas heurísticas da sociologia<br />

historicamente orientada em geral, ao permitir, na investigação das<br />

interrelações de ações significativas e contextos estruturais, a compreensão<br />

das consequências inesperadas e também das pretendidas nas vidas<br />

individuais e nas transformações sociais (SKOCPOL, 1984).<br />

A abordagem analítica proposta justifica-se, então, fundamentalmente,<br />

tendo em vista o próprio perfil cognitivo das Ciências <strong>Sociais</strong>,<br />

em geral, e da sociologia, em particular. Em primeiro lugar, sendo o<br />

sentido da construção do conhecimento sociológico cumulativo, ainda<br />

que cronicamente não consensual (GIDDENS, 1998; ALEXANDER,<br />

1999), o reexame constante de suas realizações passadas inclusive<br />

pela exegese de textos assume papel muito mais do que tangencial na<br />

prática corrente da disciplina. Em segundo, porque, se “é verdade que<br />

há impasses reais no presente, também é verdade que as controvérsias<br />

sobre o seu objeto e método são mais ou menos permanentes” em<br />

função da própria singularidade da sociologia “que sempre se pensa,<br />

ao mesmo tempo em que se realiza, desenvolve, enfrenta impasses,<br />

reorienta” (IANNI, 1990, p. 92). Assim, confrontada às sínteses sociológicas<br />

do passado, a realização de pesquisas “concretas” sobre as<br />

diferentes dimensões da vida social no presente imediato talvez possa<br />

nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo<br />

social que o nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne,<br />

por assim dizer.<br />

Essa tarefa se torna mais necessária na medida em que percebemos<br />

que as interpretações do Brasil operam não apenas em termos<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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cognitivos, mas também normativos. Elas são forças sociais que direta<br />

ou indiretamente contribuem para delimitar posições, conferindo-lhes<br />

inteligibilidade, em diferentes disputas de poder travadas na sociedade.<br />

Os ensaios, como outras formas de conhecimento social, não são<br />

meras descrições externas da sociedade. Eles também operam reflexivamente,<br />

desde dentro, como um tipo de metalinguagem da própria<br />

sociedade brasileira, como uma semântica histórica que participa da<br />

configuração de processos sociais mais amplos, como o da construção<br />

do Estado-nação (BOTELHO, 2005). Com efeito, resultados recentes<br />

de surveys sobre cultura política, por exemplo, indicam que categorias<br />

centrais daquelas interpretações continuam informando a opinião dos<br />

brasileiros e parecem em parte dar coesão ao próprio senso comum<br />

(ALMEIDA, 2007, por exemplo).<br />

O legado intelectual e político que Oliveira Vianna, Gilberto Freyre,<br />

Sérgio Buarque, Caio Prado e outros intérpretes nos deixaram ainda<br />

nos diz respeito, quer seja para aceitá-lo ou rejeitá-lo, e tenhamos nós<br />

consciência disso ou não. E quando lembramos que um traço marcante<br />

da dinâmica social brasileira tem sido a impressão (quase sempre<br />

interessada) de que a nossa vida intelectual está sempre recomeçando<br />

do zero a cada nova geração (SCHWARZ, 1987, p. 30), maior a importância<br />

desse tipo de pesquisa. Enfim, porque as interpretações do<br />

Brasil não são apenas descrições externas, mas também operam como<br />

um tipo de metalinguagem reflexiva da sociedade, elas representam,<br />

em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea,<br />

um espaço social de comunicação entre presente, passado e futuro<br />

que, adaptando Calvino, poderá nos dar uma visão mais integrada e<br />

consistente do processo histórico que o nosso presente ainda oculta –<br />

e que está “a nossa volta, de vocês, de mim mesmo”.<br />

32 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


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35


CotAS AumENtAm A<br />

DivERSiDADE DoS<br />

EStuDANtES SEm<br />

ComPRomEtER o<br />

DESEmPENHo? 1<br />

Fábio D. Waltenberg<br />

Márcia de Carvalho<br />

1 Os autores agradecem a um parecerista anônimo e à editoria da revista<br />

pelas sugestões, comentários e críticas. Também foram importantes os comentários<br />

recebidos na apresentação deste estudo no XVII Encontro da Sociedade<br />

de Economia Política, bem como, previamente, em seminários internos do<br />

Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade<br />

e Desenvolvimento (Cede).<br />

36 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus; “raciais” ou “sociais”) têm sido<br />

implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo de reduzir a<br />

desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da probabilidade de<br />

acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior. Neste estudo, a partir dos<br />

dados mais recentes do Enade disponíveis, traça-se um perfil dos concluintes<br />

dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações<br />

afirmativas com os demais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho<br />

na prova de conhecimentos específicos. Nossos resultados sugerem que as diversas<br />

políticas de ações afirmativas foram bem-sucedidas no objetivo de proporcionar<br />

maior diversidade – entendida como maior representação de grupos<br />

desfavorecidos – nas universidades. Nas Instituições de Ensino Superior (IES)<br />

privadas, não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiários<br />

das ações afirmativas e não beneficiários, a não ser em cursos com alto<br />

prestígio social. Nas IES públicas o desempenho dos beneficiários é inferior ao<br />

dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpreta-se esse hiato como<br />

um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das<br />

oportunidades.<br />

Palavras-chave: ações afirmativas; ensino superior; desempenho; igualdade de<br />

oportunidades<br />

Different kinds of affirmative action policies have been implemented in Brazil<br />

along the last decade, aiming at reducing the inequality of opportunities, through<br />

an increase in the probability of access to higher education of disfavored<br />

groups. In this study, employing the most recent available Enade datasets, we<br />

portray the profile of the higher education graduates evaluated in 2008, comparing<br />

beneficiaries of affirmative action policies and non-beneficiaries in terms<br />

of their performance in a (course-specific) standardized test administered to<br />

all graduates. Our results suggest that the diversified affirmative action policies<br />

have achieved the goal of increasing socioeconomic diversity in Brazil’s campuses.<br />

In private institutions of higher education the performance of beneficiaries<br />

and non-beneficiaries is similar, except for high status courses, where beneficiaries<br />

achieve a lower performance. In the public institutions, however, whatever<br />

the social status of the course, the performance of beneficiaries is systematically<br />

lower than that of non-beneficiaries. We interpret this finding as the price society<br />

pays in order to increase diversity and equalize opportunities.<br />

Keywords: affirmative action policies; higher education; performance; equality<br />

of opportunities<br />

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iNtRoDuÇÃo<br />

A educação afeta diversas dimensões da vida social e econômica<br />

de um país. Quanto mais se investe em educação, além dos efeitos<br />

diretos positivos na economia do país, maior é o retorno à sociedade<br />

em termos de bem-estar, redução das taxas de fecundidade e mortalidade,<br />

e possivelmente redução dos índices de violência. A educação<br />

superior, em particular, tem impacto no mercado de trabalho e na<br />

capacidade de absorção de inovação tecnológica e produtividade.<br />

Em termos de benefícios privadamente apropriados pelos indivíduos,<br />

no Brasil, a conclusão de um curso de graduação é acompanhada por<br />

uma menor taxa de desemprego e por um retorno financeiro 2,6 vezes<br />

maior, em média, comparado com os que pararam os estudos no<br />

ensino médio (CARVALHO, 2011). Apesar deste prêmio à educação<br />

superior, que no Brasil ainda é alto comparado com o observado em<br />

países desenvolvidos, dados da Pnad de 2009 indicam que apenas<br />

11% da população adulta brasileira tinham curso de graduação e que<br />

havia um estoque de 29 milhões de pessoas de 16 a 40 anos com ensino<br />

médio completo que poderiam estar cursando o ensino superior.<br />

Ainda mais preocupante do que a (baixa) proporção de diplomados<br />

na população seria constatar pouca diversidade socioeconômica entre<br />

os estudantes. E de fato, embora entre 2006 e 2008 85% dos concluintes<br />

do ensino médio fossem oriundos do sistema público de ensino,<br />

dos indivíduos que ingressaram nos cursos de graduação no Brasil<br />

nesse período, apenas 57% provinham do ensino médio público. Na<br />

mesma linha, em 2009, enquanto 45% das pessoas com ensino médio<br />

completo provinham de famílias relativamente pobres (com renda<br />

familiar de até 3 salários mínimos), entre os ingressantes do ensino<br />

superior essa proporção caía para 39%. Considerando apenas as pessoas<br />

com ensino médio completo, 50,3% se declararam não brancas<br />

enquanto entre os ingressantes dos cursos de graduação a incidência<br />

desse grupo era de 36,4%.<br />

De acordo com a teoria de igualdade de oportunidades do economista<br />

John Roemer (1998), muito em voga atualmente (FLEURBAEY,<br />

2008; FERREIRA; GIGNOUX, 2011), quando existe sub-representação<br />

por parte de um grupo socioeconômico, definido pela sociedade<br />

como relevante e legítimo, no acesso a um serviço ou vantagem –<br />

38 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


como ocorre com o acesso de certos grupos ao ensino superior no<br />

Brasil – estamos diante de um problema de desigualdade de oportunidades,<br />

uma vez que, em tal caso, a dificuldade de obter acesso ao serviço<br />

ou vantagem deve ter sido causada sobretudo por circunstâncias<br />

desfavoráveis.<br />

No caso do ensino superior, uma tentativa de mitigar o problema<br />

de acesso limitado de certos grupos consiste na aplicação de políticas<br />

de ação afirmativa. As ações afirmativas podem ser compreendidas<br />

como programas que buscam prover oportunidades ou outros benefícios<br />

para pessoas pertencentes a grupos específicos, alvo de discriminação<br />

ou com pouco acesso a recursos (IPEA, 2008) e têm sido<br />

aplicadas em vários países e em diferentes etapas da educação, bem<br />

como no mercado de trabalho. No Brasil, as ações afirmativas têm se<br />

concentrado no acesso aos cursos de graduação, por meio de diferentes<br />

instrumentos: cotas e bônus, ditos “raciais” ou “sociais”. As cotas<br />

“raciais” utilizam como critério a cor da pele do aluno, de acordo com<br />

autodeclaração. Os critérios “sociais” baseiam-se numa baixa renda<br />

familiar ou no fato de o aluno ser oriundo do ensino médio público<br />

(escolas municipais, estaduais ou federais ou de cursos supletivos presenciais<br />

de educação de jovens e adultos). Há casos em que ambos os<br />

critérios são considerados simultaneamente, quando vagas são reservadas,<br />

por exemplo, a alunos negros pobres.<br />

Em sociedades democráticas, políticas de ação afirmativa são (e<br />

sempre serão) controvertidas, principalmente porque: a) envolvem redistribuição<br />

de um bem escasso – como são as vagas nas universidades<br />

de melhor qualidade no Brasil –, gerando “ganhadores e perdedores”;<br />

b) representam uma mudança das regras vigentes e, portanto, um desafio<br />

ao status quo prevalecente anteriormente, suscitando reação dos<br />

grupos que, sem tais políticas, tinham ou teriam acesso à vantagem em<br />

questão e veem-se agora ameaçados; c) proporcionam oportunidades<br />

a grupos desfavorecidos, usualmente com menos voz no debate público<br />

do que grupos favorecidos. Não é por acaso, portanto, que há (e<br />

sempre haverá) disputa política em torno dos critérios definidores dos<br />

potenciais beneficiários das ações afirmativas, bem como em torno de<br />

sua própria legitimidade.<br />

Em razão dessa disputa política, variadas críticas são levantadas contra<br />

as ações afirmativas. Duas das mais comuns são: a) políticas de<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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ação afirmativa beneficiariam somente os membros mais favorecidos<br />

dos grupos desfavorecidos, sendo, portanto, injustas 2 ; b) por garantirem<br />

vagas a alunos que, em sua ausência, não entrariam na universidade,<br />

tais políticas teriam como consequência uma queda na “qualidade” dos<br />

ingressantes e, provavelmente, dos concluintes.<br />

As políticas de ação afirmativa têm sido implementadas no Brasil<br />

desde 2001 – já há mais de uma década, portanto – iniciando-se com<br />

ações pioneiras nos estados do Rio de Janeiro e Bahia e no Distrito<br />

Federal. O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)<br />

avalia o rendimento dos alunos ingressantes e concluintes dos cursos<br />

de graduação, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em<br />

que estão matriculados, desde 2004. Contudo, perguntas sobre ações<br />

afirmativas apareceram no questionário socioeconômico do Enade somente<br />

a partir de 2008 – justamente os dados mais recentes disponibilizados<br />

pelo Inep.<br />

De posse desses dados, é possível traçar um perfil socioeconômico<br />

dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos<br />

beneficiados por ações afirmativas com demais alunos, inclusive no<br />

que se refere a seu desempenho na prova de conhecimentos específicos.<br />

Assim, buscamos contribuir com o debate sobre as ações afirmativas,<br />

trazendo elementos relacionados às duas críticas já mencionadas.<br />

Somos capazes de investigar, de um lado, o quão desfavorecidos são os<br />

beneficiários das ações afirmativas, e, de outro lado, se o seu desempenho<br />

no Enade é significativamente inferior ao dos demais concluintes.<br />

2 Com relação à questão normativa que permeia a primeira crítica, ressalte-se<br />

que, segundo a definição de igualdade de oportunidades de Roemer, não há<br />

nenhuma injustiça no fato de os beneficiados de uma política serem os mais<br />

favorecidos dentro do seu grupo (ou “tipo” no jargão roemeriano). Contanto<br />

que tenham sido corretamente definidos os tipos (isto é, devidamente consideradas<br />

as circunstâncias limitantes do acesso à vantagem em questão), os<br />

mais favorecidos dentro de cada tipo seriam justamente aqueles que, dadas as<br />

suas circunstâncias, teriam se dedicado mais, feito mais esforços. Uma crítica<br />

mais pertinente consistiria em se afirmar que critérios unidimensionais – com<br />

base exclusivamente na cor da pele, por exemplo – inescapavelmente constituem<br />

definições incompletas de tipos. Para mais detalhes, veja-se Roemer<br />

(1998), ou Waltenberg (2007) para uma interpretação da teoria daquele autor<br />

aplicada ao caso das universidades brasileiras.<br />

40 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Entendendo-se como “diversidade” uma maior representação de<br />

grupos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas<br />

políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo<br />

de proporcionar maior diversidade nas universidades. Nas Instituições<br />

de Ensino Superior (IES) privadas, não se registram fortes hiatos<br />

de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas e não<br />

beneficiários, a não ser em cursos com alto prestígio social. Nas IES<br />

públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos<br />

demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpretamos esse hiato<br />

como um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da<br />

equalização das oportunidades.<br />

Este trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução.<br />

A seção 1 contém um breve histórico das ações afirmativas. A seção<br />

2 é metodológica e descreve a base de dados do Enade de 2008 e<br />

as variáveis utilizadas no trabalho. A seção 3 traça o perfil dos alunos<br />

que ingressaram por ações afirmativas nas instituições públicas e que<br />

conseguiram concluir o curso de graduação, bem como o dos demais<br />

concluintes. Na seção 4, apresentam-se resultados de uma tentativa<br />

de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno (por ação afirmativa<br />

ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos específicos<br />

aplicado no ano da conclusão da graduação. A seção final traz as<br />

conclusões do trabalho.<br />

1 bREvE HiStÓRiCo DAS PoLÍtiCAS<br />

DE AÇÃo AfiRmAtivA No bRASiL<br />

Ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas<br />

cujo objetivo é implantar certa diversidade e maior representatividade<br />

de grupos minoritários nos diversos domínios de atividade pública e<br />

privada, além de combater a discriminação (GOMES, 2001). Ações<br />

afirmativas surgiram em caráter compulsório, facultativo ou voluntário<br />

para combater a discriminação racial, de gênero, de origem nacional e<br />

por deficiência física, visando a atingir o ideal de igualdade de acesso<br />

a bens fundamentais como a educação e o emprego.<br />

Os programas de ações afirmativas surgiram nos EUA após a Segunda<br />

Guerra Mundial na contratação de empregados negros pelas<br />

empreiteiras, mas ganharam força na década de 1960 com o movi-<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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mento dos direitos civis. Aos poucos as políticas foram estendidas às<br />

mulheres, aos indígenas e aos deficientes físicos e sua aplicação chegou<br />

também a instituições de ensino. A Universidade da Califórnia<br />

foi pioneira no estabelecimento de programas em prol de minorias.<br />

Segundo Oliven (2007), em julho de 1995 o programa de ação afirmativa<br />

com base na cor da pele foi suspenso, tendo como resultado<br />

uma redução do percentual de alunos negros rumo aos níveis dos anos<br />

1960. Esse percentual voltou a aumentar nos campi e cursos menos<br />

seletivos a partir de 2001 com a admissão automática dos melhores<br />

alunos das escolas públicas. Atualmente, várias universidades públicas<br />

em estados como Califórnia, Washington e Flórida, que proibiram a<br />

ação afirmativa com base na cor da pele, usam a situação econômica<br />

como fator de decisão nas admissões.<br />

A implementação de políticas de ação afirmativa no âmbito da educação<br />

superior no Brasil se iniciou em 2000 no estado do Rio de Janeiro,<br />

com a Lei Estadual n° 3.524 que reservava 50% das vagas da Universidade<br />

Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Univeridade Estadual<br />

do Norte Fluminense (UENF) para alunos oriundos da rede pública<br />

estadual de ensino. Em 2001 foi promulgada a Lei Estadual n° 3.708<br />

que reservava 40% das vagas da Uerj e UENF para negros e pardos.<br />

Com essas duas leis, 90% das vagas das universidades estaduais do Rio<br />

de Janeiro estariam reservadas, o que gerou muita polêmica e discussão,<br />

segundo Matta (2010). Em 2003 as duas leis foram revogadas e<br />

determinou-se que 45% das vagas deveriam ser reservadas: 20% para<br />

negros, 20% para concluintes do ensino médio público e 5% para deficientes<br />

físicos e minorias étnicas.<br />

Além das reservas de vagas (cotas), as ações afirmativas no ingresso<br />

ao ensino superior têm utilizado o instrumento de bonificação. Nesse<br />

sistema, os alunos recebem uma quantidade de pontos que são somados<br />

ao resultado de seu exame de seleção. A seguir, comentamos as<br />

experiências pioneiras tanto de cotas como de bonificações.<br />

1.1 A ExPERiêNCiA DAS CotAS NA uERJ,<br />

uENf, uNb, ufPR E ufbA<br />

As universidades pioneiras na adoção de políticas de ação afirmativa<br />

no ingresso de seus cursos foram, então, a Uerj e a UENF por<br />

42 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


meio de cotas em 2001. Estima-se que atualmente a Uerj tenha<br />

nove mil alunos cotistas e até agora não há estudo publicado sobre<br />

seu desempenho; entretanto, Matta (2010) fez um estudo do perfil<br />

socioeconômico dos cotistas da UENF, aplicando um questionário<br />

a uma amostra de 40% dos ingressantes de 2003 distribuídos entre<br />

cotistas negros ou pardos, cotistas de rede pública e não cotistas. Os<br />

resultados indicam perfis socioeconômicos semelhantes de cotistas<br />

e não cotistas.<br />

Em 2004 a Universidade de Brasília (UNB) implementou o sistema<br />

de cotas, reservando 20% das vagas de cada curso para alunos que se<br />

autodeclararam negros e pardos. Com esse sistema, o percentual de<br />

negros e pardos na universidade subiu de 2,0% em 2004 para 12,5%<br />

em 2006. Diferentemente do observado por Matta (2010), o perfil<br />

socioeconômico dos cotistas revelou-se muito diverso do de não cotistas:<br />

enquanto 15% dos cotistas negros tinham pais analfabetos ou com<br />

ensino fundamental incompleto, entre os não cotistas esse percentual<br />

era de apenas 6% (IPEA, 2008). Com relação ao desempenho, não<br />

foram observadas diferenças significativas entre cotistas e não cotistas:<br />

89% dos alunos cotistas negros foram aprovados nas disciplinas<br />

cursadas enquanto 93% dos não cotistas foram aprovados; na média<br />

geral do curso, que varia até 5, os cotistas ficaram com 3,75 e os não<br />

cotistas com 3,79 (IPEA, 2008).<br />

Também em 2004 a Universidade Federal do Paraná (UFPR) adotou<br />

o sistema de cotas com o Programa de Inclusão Social e Racial que<br />

reserva 20% das vagas dos cursos de graduação para alunos egressos<br />

do ensino médio público e 20% para alunos afrodescendentes. Com<br />

essa política, o percentual de afrodescendentes aprovados na universidade<br />

aumentou de 7% em 2003 para 21% em 2005. Segundo Souza<br />

(2007), o problema encontrado pela universidade é o preenchimento<br />

das vagas reservadas aos afrodescendentes: em 2005 foram disponibilizadas<br />

800 vagas nas cotas raciais mas apenas 489 fizeram matrícula<br />

por esse sistema (61%) e em 2006 apenas 278 alunos foram matriculados<br />

(35%).<br />

Em 2005 foi a vez da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que<br />

implementou o sistema de cotas raciais e sociais sobrepostas da seguinte<br />

forma: 45% das vagas do vestibular são reservadas sendo que<br />

38% são para negros egressos do sistema público de ensino, 5% para<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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egressos do sistema público e 2% para estudantes indígenas. Com essa<br />

política, a participação dos negros na universidade passou de 43% em<br />

1997 para 75% em 2005. Com relação ao perfil socioeconômico dos<br />

cotistas, Reis (2007) observou que eles são mais velhos (23-33 anos de<br />

idade) do que os não cotistas (17-19 anos). Os alunos cotistas apresentam<br />

desempenho igual ou superior aos não cotistas. O principal<br />

problema seria a permanência dos alunos cotistas na universidade,<br />

mesmo com as bolsas de manutenção oferecidas aos alunos (de<br />

R$ 200,00 a R$ 280,00).<br />

1.2 A ExPERiêNCiA DE boNifiCAÇÃo<br />

NA uNiCAmP E NA uff<br />

Em 2004 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) instituiu,<br />

no acesso a seus cursos de graduação, um sistema de bonificação que<br />

consiste na adição de 30 pontos à nota da segunda fase do vestibular<br />

para os candidatos que cursaram integralmente o ensino médio na<br />

rede pública de ensino ou que sejam egressos dos cursos supletivos<br />

presenciais de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além dos 30 pontos,<br />

os candidatos que se autodeclaram negros, pardos ou indígenas<br />

recebem mais 10 pontos. Com relação ao desempenho, em 31 cursos<br />

de graduação da Unicamp (do total de 55, ou seja, em 56% deles), os<br />

alunos que receberam bônus obtiveram média de desempenho superior<br />

aos demais estudantes do curso.<br />

Em 2009 a Universidade Federal Fluminense (UFF) começou a<br />

adotar ações afirmativas para os alunos egressos do ensino médio<br />

das redes municipal e estadual. Foi a primeira universidade federal<br />

do Estado do Rio de Janeiro a adotar o sistema de bonificação. Esse<br />

sistema é aplicado somente na segunda fase do concurso – o aluno<br />

precisa fazer a primeira fase, acertar ao menos 50% das questões e<br />

não zerar nenhuma prova – e consiste na adição de 10% à nota total<br />

(que soma o desempenho da primeira e da segunda fases). Segundo<br />

Ventura (2011), dez alunos provenientes de escolas públicas foram<br />

aprovados para Medicina em 2011, algo raro nos anos anteriores. O<br />

mesmo aconteceu com os cursos de Odontologia e Direito. Em 2012<br />

o percentual da bonificação aumentou de 10% para 20%.<br />

44 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


1.3 o ComPoNENtE DE AÇÃo AfiRmAtivA<br />

PRESENtE No PRouNi<br />

Apesar dos exemplos da seção anterior, apenas 9% dos ingressantes<br />

de instituições públicas em 2009, totalizando 36.294 alunos, são<br />

oriundos de reserva de vagas (cotas) segundo o Inep (2010). É bom<br />

lembrar também que 80% das matrículas dos cursos de graduação no<br />

Brasil são oferecidos por Instituições de Ensino Superior (IES) privadas.<br />

Em 2004, o governo federal criou o Programa Universidade para<br />

Todos – ProUni que foi instituído pela Lei n° 11.096 em 13 de janeiro<br />

de 2005. O ProUni é dirigido aos estudantes com melhores desempenhos<br />

no Enem que concluíram o ensino médio na rede pública ou<br />

bolsistas integrais da rede particular que possuem renda familiar per<br />

capita de até 3 salários mínimos. São três tipos de bolsa: integral, parcial<br />

com 50% de desconto e parcial com 25% de desconto. A bolsa<br />

integral é oferecida a ingressantes com renda familiar per capita de<br />

até 1,5 salário mínimo. A bolsa parcial de 50% beneficia estudantes<br />

com uma renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. A bolsa<br />

parcial de 25% é aplicada somente em cursos cuja mensalidade seja<br />

de até R$ 200,00. O ProuUni determina também que as IES privadas<br />

reservem parte das bolsas aos alunos com deficiência e aos autodeclarados<br />

indígenas, negros ou pardos segundo o percentual da população<br />

de negros ou pardos na unidade da federação da IES conforme o<br />

censo do IBGE.<br />

Segundo o Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de<br />

2009, três em cada dez matriculados nas instituições privadas possuem<br />

bolsa de estudo, sendo que 82,5% (1.019.532 alunos) são do<br />

Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), da própria IES ou do governo<br />

estadual/municipal e apenas 17,5% delas (215.777 alunos) são do<br />

ProUni.<br />

O relatório disponível na página do ProUni com dados gerados<br />

pelo Sisprouni em 17/6/2011 afirma que nesse ano foram oferecidas<br />

254.598 bolsas, sendo que 51% integrais e 49% parciais. Esse relatório<br />

também oferece a informação que 47,6% dos bolsistas se declararam<br />

brancos, 47,9% pardos ou negros e 12,5% se declararam amarelos. O<br />

restante não informou a raça/cor ou se declarou indígena.<br />

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2 A bASE DE DADoS E A mEtoDoLoGiA<br />

2.1 A bASE DE DADoS Do ENADE<br />

O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) avalia<br />

o rendimento dos alunos dos cursos de graduação, ingressantes<br />

e concluintes, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos<br />

em que estão matriculados. O exame é obrigatório para os alunos<br />

selecionados e é condição indispensável para a emissão do histórico<br />

escolar. Apesar de obrigatório, ter um resultado ruim no exame<br />

não traz nenhuma consequência ao aluno – por exemplo, ele não é<br />

prejudicado no mercado de trabalho – o que levanta dúvidas quanto<br />

à confiabilidade dos resultados como indicativo da “qualidade”<br />

dos concluintes e nos conduz a ter muito cuidado ao tirar nossas<br />

conclusões. Não há razões para crer que o comportamento de beneficiados<br />

por ações afirmativas difira do de não beneficiados neste<br />

aspecto.<br />

A primeira aplicação do Enade ocorreu em 2004 e a periodicidade<br />

máxima com que cada área do conhecimento é avaliada é trienal. A<br />

aplicação é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e<br />

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao<br />

Ministério da Educação (MEC), que o faz periodicamente, sendo-lhe<br />

permitida a utilização de amostragem, levando em conta para esse fim<br />

estudantes em final do primeiro ano (ingressantes) e do último ano<br />

(concluintes) dos cursos de graduação, selecionados por área, a cada<br />

ano, para participarem do exame.<br />

A participação no Enade é obrigatória, cabendo à instituição de educação<br />

superior a inscrição de todos os estudantes habilitados. Contudo<br />

são admitidos estudantes não selecionados na amostra, desde que por<br />

opção pessoal feita junto à instituição de ensino à qual está vinculado<br />

o aluno. O registro de participação é condição indispensável para a<br />

emissão do histórico escolar, independentemente de o estudante ter<br />

sido selecionado ou não na amostragem. Neste caso, constará do seu<br />

histórico escolar a dispensa do Enade pelo MEC.<br />

O exame abrange a aprendizagem durante o curso (exame de conhecimentos<br />

específicos, CE) além de competências profissionais e<br />

formação geral (exame de formação geral, FG). Os alunos também<br />

respondem questionário socioeconômico-educacional e outro de<br />

46 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


percepção sobre o teste. Coordenadores de curso também respondem<br />

questionário que busca coletar informações sobre o projeto pedagógico<br />

e as condições gerais de ensino oferecidas. Este artigo utiliza como<br />

desempenho do aluno a nota do concluinte no exame de conhecimentos<br />

específicos do curso de graduação. Seria interessante utilizar<br />

como contribuição do curso o conhecimento acumulado e não a nota<br />

do concluinte, porém o Enade não disponibiliza a nota do exame do<br />

concluinte quando este era ingressante.<br />

Como dito na introdução, apesar de o Enade ser realizado desde<br />

2004 e o Brasil incluir ações afirmativas no acesso ao ensino de graduação<br />

desde 2001, perguntas sobre ações afirmativas apareceram no<br />

questionário socioeconômico do Enade somente a partir de 2008 3 .<br />

Como os dados mais recentes disponíveis no site do Inep são os de<br />

2008, são estes os que utilizamos em nosso estudo. Em 2008, a pergunta<br />

feita no questionário era: “Seu ingresso no curso de graduação<br />

se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES?” As respostas<br />

possíveis do questionário eram:<br />

a) “Sim, por meio de reserva de vagas étnico-raciais”, isto é, por<br />

meio das chamadas “cotas raciais”;<br />

b) “Sim, por meio de reserva de vagas com recorte social”, isto é,<br />

por meio de cotas que utilizam a renda familiar ou egressos de<br />

escolas públicas;<br />

c) “Sim, por meio de sistema distinto dos anteriores”, isto é, bonificação<br />

na nota ou, no caso das instituições privadas, pelo ProUni.<br />

d) “Não”.<br />

O Enade de 2008 avaliou uma amostra de 167.704 concluintes<br />

dos seguintes cursos: arquitetura, ciências da computação, biologia,<br />

ciências sociais, engenharia, filosofia, física, geografia, história, letras,<br />

matemática, pedagogia e química. Considerando o peso amostral, os<br />

dados são representativos de 269.046 concluintes, ou seja, 33,6% dos<br />

concluintes do ano.<br />

Por fim, cabe ressaltar que em alguns momentos apresentaremos<br />

resultados separados segundo o prestígio social dos cursos – baixo,<br />

médio ou alto –, categorias definidas de acordo com o cruzamento<br />

3 As respostas foram alteradas em 2009 e 2010, o que dificultará a composição<br />

de uma série histórica sobre esse assunto.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

47


de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de<br />

ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes<br />

cursos.<br />

2.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo Do CoNCLuiNtE<br />

E vARiÁvEiS SoCioECoNômiCAS<br />

Para comparar o desempenho dos concluintes que ingressaram por<br />

ação afirmativa com os outros concluintes, cotejamos algumas estatísticas<br />

descritivas (média, mediana e desvio padrão) da nota da prova<br />

de conhecimentos específicos dos dois tipos de concluintes das instituições<br />

federais, estaduais e privadas.<br />

Como as estatísticas descritivas são números que descrevem e resumem<br />

toda uma distribuição, também nos pareceu relevante comparar<br />

visualmente distribuições de notas dos concluintes por meio de gráficos,<br />

alguns dos quais contendo controles para o nível educacional dos<br />

pais dos concluintes.<br />

Para aprofundar essa relação com a inclusão de novas variáveis de<br />

controle, estima-se um modelo econométrico log-linear (ou semilogarítmico),<br />

no qual a variável dependente é o logaritmo da nota bruta do<br />

concluinte na prova de conhecimentos específicos (Yi).<br />

As variáveis independentes utilizadas no modelo final são:<br />

a) Gênero (x1): variável binária assumindo 1 se o concluinte for do<br />

gênero feminino e 0 se masculino;<br />

b) Cor (x2): variável binária assumindo 1 se o concluinte se autodeclarar<br />

não branco (preto, pardo ou mulato) e 0 se branco;<br />

c) Ensino médio (x3): variável binária assumindo 1 se todo (ou a<br />

maior parte) do ensino médio do concluinte tiver sido cursado<br />

em escola pública e 0 se todo (ou a maior parte) tiver sido cursado<br />

em escola privada;<br />

d) Educação dos pais como proxy de perfil socioeconômico do aluno<br />

(x4): variável contínua, que varia de 0 a 30, calculada pela<br />

soma dos anos de estudos de pai e mãe do concluinte;<br />

e) Ação afirmativa (x5): variável binária assumindo 1 se o concluinte<br />

ingressou por intermédio de alguma política de ação afirmativa e<br />

0 se o ingresso foi pelo método tradicional.<br />

48 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


O modelo especificado será então dado pela seguinte equação na<br />

qual ε representa o termo aleatório que, por hipótese, segue a distribuição<br />

normal, com média zero e variância constante:<br />

XX<br />

Y bbb+++++<br />

eb<br />

ln<br />

i<br />

10 22<br />

i ...<br />

55 ii<br />

O modelo acima é estimado pelo método dos Mínimos Quadrados<br />

Ordinários (MQO) pelo software SPSS.<br />

Como as Instituições de Ensino Superior (IES) possuem características<br />

diferentes quanto a infraestrutura, qualificação e regime de trabalho<br />

do docente, que afetam o desempenho do aluno ao longo do curso,<br />

são estimadas regressões para cada categoria administrativa separadamente:<br />

federais, estaduais e privadas. As municipais são excluídas, em<br />

função do pequeno número de concluintes.<br />

3 ComPARAÇÃo ENtRE o PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES<br />

Do ENSiNo SuPERioR PÚbLiCo bENEfiCiADoS PELAS<br />

AÇÕES AfiRmAtivAS E o DoS DEmAiS CoNCLuiNtES<br />

3.1 PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES bENEfiCiÁRioS<br />

E NÃo bENEfiCiÁRioS DE AÇÕES AfiRmAtivAS<br />

Dentre os cursos avaliados no Enade 2008, os mais populares<br />

eram Pedagogia (corresponde a 26,7% da amostra), letras (14%) e<br />

Engenharia (13%), conforme indicado na Tabela 1. Com relação à<br />

categoria administrativa da Instituição de Ensino Superior (IES), mais<br />

de 80% dos concluintes de Ciências <strong>Sociais</strong> e Física são de IES públicas.<br />

O curso com menor incidência de concluintes em IES pública é<br />

Ciência da Computação – somente cerca de 20% de seus concluintes<br />

cursaram instituições federais, estaduais ou municipais. Entre os<br />

cursos avaliados pelo Enade em 2008, aqueles com maior frequência<br />

relativa de concluintes cujo ingresso se deu por meio de ações afirmativas<br />

são Pedagogia (25,4%) e Letras (21,3%), cursos pouco concorridos,<br />

como indica a baixa relação candidato/vaga na Tabela 1.<br />

No outro extremo, encontram-se Arquitetura (8,0%), Engenharias<br />

(8,2%) e Ciên cias <strong>Sociais</strong> (8,4%).<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

49


Curso de graduação<br />

Tabela 1<br />

Dados gerais dos cursos avaliados pelo Enade 2008, brasil<br />

Concluintes<br />

avaliados<br />

Relação<br />

candidato/<br />

Categoria<br />

administrativa<br />

vaga<br />

N° % Pública Privada<br />

50 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

% de<br />

concluintes que<br />

ingressaram por<br />

ação afirmativa<br />

Pedagogia 69.983 26,7% 1,17 32% 68% 25,4%<br />

Letras 36.973 14,1% 1,58 36% 64% 21,3%<br />

Geografia 13.684 5,2% 3,52 62% 38% 20,5%<br />

História 17.311 6,6% 4,09 45% 55% 20,3%<br />

matemática 16.272 6,2% 2,48 44% 56% 19,6%<br />

biologia 25.428 9,7% 2,05 33% 67% 18,0%<br />

filosofia 4.217 1,6% 2,16 43% 57% 16,3%<br />

Química 6.908 2,6% 2,96 57% 43% 13,3%<br />

Ciência da<br />

Computação<br />

23.235 8,9% 1,78 20% 80% 12,1%<br />

física 2.842 1,1% 3,24 83% 17% 9,2%<br />

Ciências <strong>Sociais</strong> 3.394 1,3% 4,17 83% 17% 8,4%<br />

Engenharias 34.029 13% 2,54 47% 53% 8,2%<br />

Arquitetura 8.110 3,1% 2,18 29% 71% 8,0%<br />

total 262.386 100% - 39% 61% 18,5%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008 e Sinopse Estatística dos Cursos de Graduação 2008.<br />

Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna da direita (proporção dos concluintes que ingressaram por<br />

meio de políticas de ação afirmativa).<br />

Com o auxílio da Tabela 2, observa-se que o ingresso de alunos por<br />

meio de políticas de ação afirmativa declinou-se em: reserva de vagas<br />

étnico-raciais, reserva de vagas com recorte social, ou outros sistemas<br />

como ProUni ou bonificação, com variações curso a curso. Pedagogia,<br />

que representa 26,7% dos concluintes avaliados em 2008 pelo Enade,<br />

é também o curso com maior número absoluto (17.776 concluintes)<br />

e relativo (25,4%) de concluintes que ingressaram por meio de ações<br />

afirmativas.


Área avaliada<br />

Tabela 2<br />

Distribuição dos concluintes segundo o ingresso por meio<br />

de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008<br />

Total<br />

Seu ingresso se deu por meio de<br />

políticas de ação afirmativa da IES?<br />

Reserva<br />

de vagas<br />

étnico-<br />

raciais<br />

Sim<br />

Reserva de<br />

vagas com<br />

recorte<br />

social<br />

Sistema<br />

distinto dos<br />

anteriores<br />

Total<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

Não<br />

N° de<br />

concluintes que<br />

ingressaram por<br />

ação afirmativa<br />

Pedagogia 25,4% 2,3% 7,4% 15,8% 74,6% 100,0% 17.776<br />

Letras 21,3% 3,0% 5,5% 12,8% 78,7% 100,0% 7.875<br />

Geografia 20,5% 2,1% 6,6% 11,8% 79,5% 100,0% 2.805<br />

História 20,3% 1,9% 6,0% 12,3% 79,7% 100,0% 3.514<br />

matemática 19,6% 1,3% 5,6% 12,7% 80,4% 100,0% 3.189<br />

biologia 18,0% 1,5% 4,7% 11,8% 82,0% 100,0% 4.577<br />

filosofia 16,3% 1,1% 4,0% 11,2% 83,7% 100,0% 687<br />

Química 13,3% 0,9% 3,5% 8,9% 86,7% 100,0% 919<br />

Ciência da<br />

Computação<br />

12,1% 1,6% 3,2% 7,3% 87,9% 100,0% 2.811<br />

física 9,2% 1,1% 2,2% 5,9% 90,8% 100,0% 261<br />

Ciências<br />

<strong>Sociais</strong><br />

8,4% 1,2% 2,9% 4,3% 91,6% 100,0% 285<br />

Engenharias 8,2% 0,7% 1,3% 6,2% 91,8% 100,0% 2.790<br />

Arquitetura 8,0% 0,5% 1,0% 6,5% 92,0% 100,0% 649<br />

total 18,5% 1,8% 5,0% 11,7% 81,5% 100,0% 48.138<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna esquerda (proporção dos concluintes que ingressaram por<br />

meio de políticas de ação afirmativa).<br />

Para melhor avaliar o perfil do concluinte, agrupamos os cursos de<br />

graduação avaliados em 2008 segundo seu prestígio social, conforme<br />

explicado anteriormente, resultando na seguinte divisão: Pedagogia<br />

como baixo prestígio social (26,7% concluintes); Arquitetura, Enge-<br />

51


nharias e Ciência da Computação como alto prestígio social (24,6%<br />

dos concluintes) e os cursos restantes como médio prestígio social<br />

(49,1% dos concluintes). Na Tabela 3, podemos observar o perfil dos<br />

concluintes agrupados segundo o prestígio social do curso e sua categoria<br />

administrativa. Note-se que a proporção de alunos cujo ingresso<br />

se deu por ações afirmativas diminui sensivelmente conforme aumenta<br />

o prestígio social dos cursos, até mesmo nas instituições privadas.<br />

Será um problema de oferta, isto é, poucas vagas são reservadas para<br />

os alunos não brancos ou egressos de ensino médio público nestes<br />

cursos de alto prestígio (Arquitetura, Engenharia, Ciências da Computação)<br />

nas instituições públicas? Ou será que a oferta é a mesma e<br />

o nível de evasão ou repetência desses cursos é maior, conduzindo<br />

a uma menor incidência de concluintes que ingressaram neles por<br />

ação afirmativa? Com os dados disponíveis não temos como explicar<br />

o porquê dessa situação.<br />

Tabela 3<br />

Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008<br />

segundo o prestígio social do curso<br />

Perfil dos concluintes<br />

Categoria<br />

administrativa<br />

IES<br />

Prestígio<br />

social do<br />

curso<br />

Sexo Cor<br />

Egressos<br />

do ensino<br />

médio<br />

Escolaridade<br />

do pai<br />

Tipo de ingresso<br />

Homem Mulher Branco<br />

Não<br />

branco<br />

Privado Público<br />

Ensino<br />

básico<br />

Ensino<br />

superior<br />

Não ação Ação<br />

afirmativa afirmativa<br />

federal<br />

Estadual<br />

Privado<br />

baixo 12% 88% 46% 54% 25% 75% 91% 9% 80% 20%<br />

médio 45% 55% 54% 46% 38% 62% 81% 19% 91% 9%<br />

Alto 71% 29% 72% 28% 66% 34% 55% 45% 95% 5%<br />

baixo 10% 90% 42% 58% 13% 87% 96% 4% 66% 34%<br />

médio 35% 65% 48% 52% 25% 75% 92% 8% 75% 25%<br />

Alto 73% 27% 75% 25% 57% 43% 62% 38% 92% 8%<br />

baixo 5% 95% 66% 34% 15% 85% 93% 7% 76% 24%<br />

médio 30% 70% 64% 36% 20% 80% 91% 9% 79% 21%<br />

Alto 76% 24% 78% 22% 48% 52% 68% 32% 89% 11%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

52 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Se entendemos “mais diversidade” por maior representação de grupos<br />

desfavorecidos, as ações afirmativas aumentaram-na. Observe-se<br />

na Tabela 4 o perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa<br />

segundo o prestígio social do curso e a categoria administrativa da<br />

IES. O percentual de concluintes negros/pardos/mulatos nas federais<br />

que ingressaram por ação afirmativa era de 41% nos cursos avaliados<br />

em 2008 pelo Enade, comparado aos 28% do total de concluintes<br />

(Tabela 3).<br />

Tabela 4<br />

Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008 que ingressaram<br />

por ação afirmativa, segundo o prestígio social do curso<br />

Categoria<br />

administrativa<br />

IES<br />

federal<br />

Estadual<br />

Privada<br />

Prestígio<br />

social do<br />

curso<br />

Perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa<br />

Sexo Cor Ensino médio Escolaridade do pai<br />

Homem Mulher Branco<br />

Não<br />

branco<br />

Privado Público<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

Ensino<br />

básico<br />

Ensino<br />

superior<br />

baixo 11% 89% 33% 67% 16% 84% 96% 4%<br />

médio 39% 61% 45% 55% 27% 73% 90% 10%<br />

Alto 69% 31% 59% 41% 61% 39% 66% 34%<br />

baixo 10% 90% 32% 68% 9% 91% 99% 1%<br />

médio 28% 72% 32% 68% 15% 85% 97% 3%<br />

Alto 61% 39% 58% 42% 37% 63% 80% 20%<br />

baixo 5% 95% 62% 38% 10% 90% 95% 5%<br />

médio 28% 72% 56% 44% 11% 89% 95% 5%<br />

Alto 74% 26% 73% 27% 34% 66% 77% 23%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Entre os concluintes de 2008, a categoria administrativa que mais<br />

concedeu diplomas às pessoas que se autodeclararam negros, pardos<br />

ou mulatos (não brancos) foram as IES estaduais (51%), possivelmente<br />

como reflexo de políticas de ação afirmativa, conforme se vê no Gráfico<br />

1. É grande também a presença de não brancos nas IES federais<br />

(42%), mais do que nas IES privadas (32%). No total, puxado pelas<br />

privadas (predominantes), 1/3 dos concluintes avaliados em 2008 pelo<br />

Enade são negros, pardos ou mulatos.<br />

53


70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

Gráfi co 1<br />

Dist ribuição dos concluintes por cor da pele autodeclarada segundo<br />

dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

58%<br />

42%<br />

49%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Branco Não branco<br />

51%<br />

Dentre os concluintes negros/pardos/mulatos das IES federais, apenas<br />

13% ingressaram por meio de ações afi rmativas (Gráfi co 2), de<br />

modo que 87% ingressaram sem o auxílio dessas políticas. Supondo<br />

que, na ausência de políticas de ação afi rmativa, os alunos que ingressaram<br />

benefi ciados por elas não tivessem sido admitidos na universidade,<br />

a proporção de negros/pardos/mulatos nas federais seria cerca<br />

de 5 pontos percentuais mais baixa. Nas IES estaduais, nas quais mais<br />

de metade dos concluintes eram negros/pardos/mulatos, cerca de 1/3<br />

ingressou com o auxílio das ações afi rmativas, núme ro expressivo em<br />

comparação com as federais e privadas. Com as mesmas hipóteses,<br />

a ausência de ações afi rmativas teria signifi cado redução de 17 pontos<br />

percentuais na proporção de não brancos nas IES estaduais. Nas<br />

privadas, a redução seria de 8 pontos percentuais. No total, teríamos<br />

em 2008 uma proporção de negros/pardos/mulatos nas universidades<br />

54 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

68%<br />

32%<br />

64%<br />

36%


asileiras 9 pontos percentuais inferior à efetivamente observada<br />

(27% contra 36%). 4<br />

100%<br />

80%<br />

60%<br />

40%<br />

20%<br />

0%<br />

Gráfi co 2 4<br />

Distribuição dos concluintes negros/pardos/ mulatos por<br />

ingresso por meio de ações afi rmativas segundo a dependência<br />

administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

87%<br />

13%<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

66%<br />

34%<br />

76%<br />

24%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

4 A proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais seria de 37%, número<br />

obtido ao se multiplicar 42% (proporção de negros, pardos e mulatos nas<br />

IES federais) por 87% (proporção de negros, pardos e mulatos não benefi ciários<br />

de políticas de ação afi rmativa). A proporção de negros, pardos e mulatos nas<br />

IES estaduais seria de 34%, número obtido ao se multiplicar 51% (proporção de<br />

negros, pardos e mulatos nas IES federais) por 66% (proporção de negros, pardos<br />

e mulatos não benefi ciários de políticas de ação afi rmativa). Nas privadas, a<br />

proporção seria de 24% (32% x 76%), contra os 32% efetivamente observados.<br />

No total, teríamos 27% (36% x 76%), contra os 36% observados. A ressalva feita<br />

a esses cálculos é que se desconsidera a possibilidade de que negros, pardos<br />

e mulatos admitidos por políticas de ação afi rmativa pudessem ter ingressado<br />

em IES da mesma categoria em que ingressaram, mesmo na ausência de tais<br />

políticas. Também são desconsiderados movimentos entre categorias de IES. Em<br />

suma, e usando o jargão microeconômico, poderíamos dizer que nossa análise<br />

é de “equilíbrio parcial” e não de “equilíbrio geral”.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

76%<br />

24%<br />

55


As IES estaduais também se destacam pela maior incidência de concluintes<br />

do ensino superior com ensino médio público (76%), o mesmo<br />

patamar de incidência relativa das IES privadas (75%) – possivelmente,<br />

naquelas em razão de cotas e bônus, enquanto nestas, em razão do<br />

perfi l socioeconômico mais desfavorecido dos que nelas costumam se<br />

matricular (Gráfi co 3). Entre as IES federais, 55% dos concluintes são<br />

oriundos do ensino médio público, incidência que não refl ete o perfi l<br />

dos concluintes do ensino médio, uma vez que 85% dos concluintes<br />

do ensino médio são de instituições públicas.<br />

100%<br />

80%<br />

60%<br />

40%<br />

20%<br />

Gráfi co 3<br />

Distribuição dos concluintes por tipo de ensino médio cur sado segundo a<br />

dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

0%<br />

45%<br />

55%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Ensino médio privado Ensino médio público<br />

76%<br />

75% 71%<br />

24% 25% 29%<br />

Dos concluintes das federais egressos de escolas públicas, apenas<br />

12% ingressaram por meio de políticas de ação afi rmativa nos cursos<br />

avaliados em 2008 (Gráfi co 4). Com relação às estaduais, dos concluintes<br />

egressos do ensino médio público, pouco menos de 1/3 (29%)<br />

ingressou por meio de ações afi rmativas. Nas privadas, o número gira<br />

em torno de 1/5.<br />

56 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


100%<br />

80%<br />

60%<br />

40%<br />

20%<br />

0%<br />

Gráfi co 4<br />

Distribuição dos concluintes com ensino médio público por<br />

ingresso por meio de ações afi rma tivas segundo a dependência<br />

administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

88%<br />

12%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

71%<br />

29%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

A mobilidade social 5 via escolaridade é maior entre os concluintes<br />

das instituições estaduais, uma vez que apenas 10% dos pais e 14%<br />

das mães dos concluintes têm ensino superior. Entre os concluintes<br />

das federais, esses percentuais são, respectivamente, 26% e 28%<br />

(Gráfi co 5).<br />

5 Utilizamos o termo mobilidade social para indicar melhora ou piora da situação<br />

educacional dos alunos com relação à situação educacional de seus pais.<br />

78%<br />

22%<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

78%<br />

22%<br />

57


80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

Gráfi co 5<br />

Distribuição dos concluintes por escolaridade dos pais segundo a<br />

dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

44%<br />

30%<br />

26%<br />

Fundamental Médio Superior<br />

71%<br />

63% 61%<br />

20% 22% 23%<br />

14%<br />

15%<br />

10%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

40%<br />

32%<br />

28%<br />

Escolaridade do pai do concluinte<br />

Escolaridade da mãe do concluinte<br />

Fundamental Médio Superior<br />

63%<br />

60% 57%<br />

24% 25% 26%<br />

14%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. Nota: Nível fundamental ou menos.<br />

58 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

15%<br />

18%


O fato de as instituições estaduais se destacarem com relação à incidência<br />

relativa de concluintes não brancos e de ensino médio, bem<br />

como no que tange à mobilidade social, parece efetivamente se dever<br />

à reserva de vagas das ações afi rmativas. Entre os concluintes dos<br />

cursos de graduação estaduais avaliados em 2008, 26% ingressaram<br />

por meio de ações afi rmativas, contra apenas 10% dos concluintes<br />

das IES federais (Gráfi co 6). As IES privadas, com 19%, encontram-se<br />

em patamar intermediário. Dentre os concluintes das IES privadas dos<br />

cursos avaliados pelo Inep em 2008 que ingressaram por intermédio<br />

de ações afi rmativas, 34,2% ingressaram por intermédio do ProUni,<br />

31% por bolsa própria da IES, 27,33% por bolsa de entidades externas<br />

e 7,5% ingressaram com o auxílio do Fies.<br />

100%<br />

90%<br />

80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

Gráfi co 6<br />

Distribuição dos concluintes por tipo de ingresso segundo a dependência<br />

administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />

90%<br />

10%<br />

Federal Estadual Privada Total<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

74%<br />

26%<br />

81% 81%<br />

19% 19%<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

59


Diferentemente do observado para a UENF por Matta (2010), o<br />

perfil socioeconômico dos concluintes que ingressaram por meio de<br />

ações afirmativas é diferente do perfil daqueles que não ingressaram<br />

por meio dessa política. A faixa de renda familiar entre os que ingressaram<br />

por meio de políticas de ação afirmativa se concentra em<br />

até 3 salários mínimos enquanto os ingressantes sem as políticas se<br />

concentram na faixa de mais de 3 até 5 salários mínimos (Tabela 5).<br />

Uma crítica à política de ação afirmativa racial é que muitos beneficiários<br />

dessa política seriam estudantes das minorias de classe<br />

média, que não passaram pelas dificuldades que afligem os jovens<br />

das áreas mais pobres das cidades. Os dados do Inep nos levam<br />

a matizar essa afirmativa, uma vez que, entre os concluintes que<br />

ingressaram por meio de reserva étnico-racial de vagas, a grande<br />

maioria cursou escola pública (88,3%), tem renda familiar de até 3<br />

salários mínimos (65,3%) e pai com ensino fundamental ou menos<br />

(55%). Uma minoria cursou o ensino médio todo ou a maior parte<br />

em escola privada (11,7%) e tinha renda familiar de mais de 10 salários<br />

mínimos (6,2%). Nos cursos avaliados pelo Inep em 2008, 71%<br />

dos concluintes cursaram o ensino médio todo ou a maior parte em<br />

escola pública. Esse percentual aumenta para 85% entre os ingressantes<br />

por meio de ação afirmativa.<br />

Outra questão a destacar é a mobilidade social promovida pelas<br />

políticas de ação afirmativa uma vez que, entre os concluintes que<br />

ingressaram por essa política, apenas 7% tinham pai com ensino superior.<br />

Entre os concluintes que ingressaram pelo método tradicional,<br />

esse percentual é de 18% (Tabela 5).<br />

60 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Tabela 5<br />

Perfil socioeconômico dos concluintes segundo o ingresso<br />

por meio de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008<br />

Variáveis Respostas<br />

Total<br />

Seu ingresso se deu por meio de<br />

políticas de ação afirmativa da IES?<br />

Reserva<br />

de<br />

vagas<br />

étnico-<br />

raciais<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

Sim<br />

Reserva<br />

de vagas<br />

com<br />

recorte<br />

social<br />

Sistema<br />

distinto<br />

dos<br />

anteriores<br />

Não<br />

Total<br />

Raça/cor branco 53,2% 30,2% 51,6% 57,4% 65,9% 63,6%<br />

Ensino<br />

médio<br />

Renda<br />

familiar<br />

Escolaridade<br />

do pai<br />

Negro/pardo/<br />

mulato<br />

46,8% 69,8% 48,4% 42,6% 34,1% 36,4%<br />

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />

Escola privada 15,3% 11,7% 6,8% 19,6% 32,0% 29,0%<br />

Escola pública 84,7% 88,3% 93,2% 80,4% 68,0% 71,0%<br />

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />

Até 3 salários<br />

mínimos (S.m.)<br />

mais de 3 até<br />

10 S.m.<br />

60,3% 65,3% 70,1% 55,4% 39,2% 43,1%<br />

33,5% 29,1% 27,1% 36,9% 44,1% 42,2%<br />

mais de 10<br />

até 20 S.m.<br />

4,6% 4,5% 2,2% 5,6% 11,7% 10,4%<br />

mais de 20 S.m. 1,6% 1,2% 0,5% 2,1% 5,0% 4,4%<br />

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />

Nenhuma 15,3% 21,4% 16,8% 13,7% 7,6% 9,0%<br />

Ensino fundamental 61,5% 55,0% 64,4% 61,3% 49,5% 51,8%<br />

Ensino médio 16,1% 16,6% 14,7% 16,7% 25,3% 23,6%<br />

Ensino superior 7,0% 7,0% 4,0% 8,3% 17,6% 15,6%<br />

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

61


Precisamos reconhecer que não é possível tirar conclusões definitivas<br />

a respeito do impacto das políticas de ações afirmativas sobre o grau de<br />

diversidade socioeconômica dos concluintes das universidades brasileiras,<br />

sobretudo por duas razões. Primeiro, porque temos informações<br />

apenas a respeito de características dos concluintes, mas não sobre as<br />

de ingressantes que eventualmente tenham abandonado o curso ou<br />

ainda o estejam cursando. Não temos como saber se o atraso ou a evasão<br />

atingem uniformemente beneficiários e não beneficiários das políticas<br />

de ações afirmativas, e, portanto, quais seriam as proporções de<br />

concluintes negros ou oriundos de escola pública na ausência de cotas.<br />

Em segundo lugar, não temos como afirmar qual teria sido o comportamento<br />

de beneficiários se não houvesse tais políticas. Teríamos, por<br />

exemplo, menos negros nas IES públicas, porém, mais negros nas IES<br />

privadas? De que forma isto afetaria a proporção total de negros?<br />

Feitas essas ressalvas, como as proporções de concluintes que efetivamente<br />

se beneficiaram de políticas de ações afirmativas são expressivas,<br />

sobretudo nas IES estaduais, acreditamos haver indícios de que as<br />

ações afirmativas contribuíram para aumentar a diversidade socioeconômica<br />

nos campi brasileiros. Em sendo verdade, um objetivo fundamental<br />

das ações afirmativas teria sido alcançado. A questão seguinte é:<br />

o preço pago para isso foi alto em termos de redução de desempenho?<br />

4 umA ANÁLiSE Do DESEmPENHo DoS CoNCLuiNtES<br />

4.1 EStAtÍStiCAS DESCRitivAS<br />

Conforme indicado na Tabela 6, a nota média dos concluintes das estaduais<br />

e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas no teste<br />

de conhecimentos gerais é aproximadamente 4 pontos menor que a de<br />

concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da prova<br />

varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude, essa diferença<br />

é significativa segundo o teste de diferença de médias. Esse resultado é<br />

importante, pois difere daqueles apontados por pesquisadores citados na<br />

seção 2 deste artigo. Entre as instituições privadas a diferença, de 0,28 a<br />

favor dos beneficiários das ações afirmativas, não é significativa. 6<br />

6 As estatísticas Z dos testes citados nesse parágrafo são, respectivamente:<br />

11,13; 14,71 e 1,73.<br />

62 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Tabela 6<br />

Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, brasil, 2008<br />

Dependência<br />

administrativa<br />

Tipo de ingresso<br />

Estatísticas da nota Concluintes<br />

Média Mediana<br />

Desvio<br />

padrão<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

N° %<br />

federal método tradicional 47,2 47,2 17,4 30.991 90,5%<br />

Ações afirmativas 42,8 41,7 16,8 3.261 9,5%<br />

total 46,8 46,6 17,4 34.252 100,0%<br />

Estadual método tradicional 42,9 42,0 17,0 23.656 74,1%<br />

Ações afirmativas 38,6 36,7 16,3 8.266 25,9%<br />

total 41,8 40,5 16,9 31.922 100,0%<br />

Privada método tradicional 40,0 38,3 15,9 92.055 80,7%<br />

Ações afirmativas 40,3 38,5 16,2 21.993 19,3%<br />

total 40,0 38,3 15,9 114.048 100,0%<br />

total método tradicional 41,8 40,3 16,6 151.490 81,5%<br />

Ações afirmativas 40,0 38,2 16,3 34.416 18,5%<br />

total 41,4 39,9 16,6 185.906 100,0%<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

Com relação ao tipo de escola cursada no ensino médio, não há muita<br />

diferença entre a distribuição das notas dos concluintes das federais<br />

e estaduais que cursaram o ensino médio em escolas privadas daqueles<br />

que cursaram o ensino médio em escolas públicas e que não ingressaram<br />

por meio de ação afirmativa. Observe-se que, embora pequena, a<br />

diferença de 1,1 é significativa entre as notas médias desses dois grupos<br />

nas federais (estatística do teste z=5,61). Nas instituições estaduais não<br />

há diferença significativa entre as notas médias (Tabela 7).<br />

63


Categoria<br />

administrativa<br />

federal<br />

Estadual<br />

Tabela 7<br />

Estatísticas desc ritivas da nota segundo tipo de ingresso, cor da<br />

pele autodeclarada e tipo de ensino médio, brasil, 2008<br />

Cor e ação<br />

afi rmativa<br />

Estatísticas descritivas<br />

Média Mediana<br />

Desvio<br />

padrão<br />

Ensino<br />

médio<br />

e ação<br />

afi rmativa<br />

Estatísticas descritivas<br />

Média Mediana<br />

Desvio<br />

padrão<br />

branco 47,8 47,6 17,1 Privado 47,7 47,5 17,2<br />

Não branco_<br />

não ação<br />

Não branco_<br />

ação<br />

45,9 45,7 17,7 Público_não<br />

ação<br />

42,4 41,0 16,9 Público_<br />

ação<br />

46,6 46,2 17,5<br />

43,4 42,3 16,8<br />

total 46,8 46,5 17,3 total 46,8 46,6 17,3<br />

branco 43,3 42,5 17,0 Privado 42,7 41,8 17,4<br />

Não branco_<br />

não ação<br />

41,3 40,2 16,7 Público_não<br />

ação<br />

42,7 41,8 16,8<br />

Não branco_<br />

ação<br />

38,9 37,0 16,4 Público_<br />

ação<br />

39,4 37,5 16,3<br />

total 41,8 40,5 16,9 total 41,9 40,6 16,9<br />

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />

As estatísticas descritivas apresentadas na tabela anterior são números<br />

que sintetizam toda a distribuição das notas dos concluintes.<br />

O Gráfi co 7 mostra que a distribuição das notas dos concluintes das<br />

instituições federais e estaduais que ingressaram por ação afi rmativa<br />

se deslocam para a esquerda comparados com os alunos não benefi -<br />

ciados por essa política. Já para os concluintes das instituições privadas,<br />

não há diferença signifi cativa na distribuição das notas entre os<br />

ingressantes por ação afi rmativa e não ingressantes.<br />

64 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Gráfi co 7<br />

Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo de ingresso, brasil, 2008<br />

% de concluintes<br />

% de concluintes<br />

% de concluintes<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

IES Federal<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

IES Estadual<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

IES Privada<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

Combinando a distribuição das notas dos concluintes com o tipo de<br />

ingresso e a cor da pele (Gráfi co 8), observa-se que a curva que representa<br />

as notas dos concluintes não brancos e que ingressaram por ação<br />

afi rmativa é a mais deslocada para a esquerda, refl etindo desempenho<br />

pior do que os concluintes não brancos que não ingressaram por ação<br />

afi rmativa nas instituições federais e estaduais. Nas instituições privadas<br />

esse deslocamento também ocorre, porém com intensidade menor.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

65


Gráfi co 8<br />

Distribuição 12% das notas dos concluintes segundo a cor da pele<br />

10% autodeclarada e o tipo de ingresso, brasil, 2008<br />

% de concluintes % de concluintes<br />

% de concluintes % de concluintes<br />

% de concluintes<br />

8%<br />

6%<br />

12% 4%<br />

10% 2%<br />

0% 8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

12% 4%<br />

10% 2%<br />

0% 8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

IES Federal<br />

IES Federal<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />

IES Estadual<br />

IES Estadual<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />

IES Privada<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />

Combinando o tipo de ingresso no ensino superior com o tipo de<br />

escola cursada no ensino médio (Gráfi co 9), observamos que as curvas<br />

que representam a distribuição das notas dos concluintes dos egressos<br />

do ensino médio público que não ingressaram no ensino superior por<br />

66 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


meio de ações afi rmativas são muito semelhantes àquelas de egressos<br />

do ensino médio privado.<br />

% de concluintes<br />

% de concluintes<br />

% de concluintes<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

12%<br />

10%<br />

8%<br />

6%<br />

4%<br />

2%<br />

0%<br />

Gráfi co 9<br />

Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo<br />

de ensino médio e o de ingresso, brasil, 2008<br />

IES Federal<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Ensino médio privado<br />

Ensino médio público - demais alunos<br />

Ensino médio público - ação afirmativa<br />

IES Estadual<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Ensino médio privado<br />

Ensino médio público - demais alunos<br />

Ensino médio público - ação afirmativa<br />

IES Privada<br />

0<br />

2<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

30<br />

34<br />

38<br />

42<br />

46<br />

50<br />

54<br />

58<br />

62<br />

66<br />

70<br />

74<br />

78<br />

82<br />

86<br />

90<br />

94<br />

98<br />

Nota na prova de conhecimentos específicos<br />

Ensino médio privado<br />

Ensino médio público - demais alunos<br />

Ensino médio público - ação afirmativa<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

67


4.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL<br />

SoCioECoNômiCo: umA ANÁLiSE GRÁfiCA PRELimiNAR<br />

Nesta seção compara-se o desempenho dos concluintes que ingressaram<br />

por meio de ações afi rmativas com os demais, controlando-se<br />

pelo perfi l socioeconômico.<br />

Poderíamos utilizar a renda familiar como proxy do perfi l socioeconômico.<br />

Mas a variável renda tem vários problemas de mensuração.<br />

Por exemplo, os fi lhos podem não conhecer ao certo a renda dos pais,<br />

a renda informada pode estar sub ou sobre-estimada, a renda familiar<br />

pode incluir a do concluinte, que muitas vezes já está fazendo estágio<br />

ou trabalhando no fi nal do curso etc. Por esse motivo, a variável escolhida<br />

é a escolaridade dos pais 7 , escolha de resto rotineira na literatura<br />

de economia da educação (FERREIRA; GIGNOUX, 2011).<br />

Para captar a escolaridade dos pais, criamos uma variável que consiste<br />

na soma dos anos de estudos do pai e da mãe. Esse indicador<br />

varia de zero (ambos os pais sem instrução) até 30 (ambos com ensino<br />

superior). Quando pelo menos um dos pais tem o ensino superior,<br />

esse indicador é maior ou igual a 15.<br />

Uma primeira ideia da relação entre o desempenho do concluinte<br />

e o perfi l socioeconômico do aluno é apresentada nos gráfi cos a seguir.<br />

Observe-se que, mesmo controlando pelo background familiar,<br />

o desempenho dos concluintes que ingressaram por meio de ações<br />

afi rmativas é inferior ao desempenho dos concluintes que ingressaram<br />

sem elas nas instituições federais e estaduais (Gráfi co 10). Nas<br />

instituições privadas, não há diferença signifi cativa entre a nota média<br />

dos concluintes que ingressaram ou não por ação afi rmativa, mesmo<br />

controlando pelo background familiar do aluno.<br />

7 Ressalte-se que, por serem fortemente correlacionadas, não podemos incluir<br />

educação dos pais e renda familiar juntas em uma mesma regressão. O<br />

coefi ciente de correlação de Spearman para variáveis ordinais de renda familiar<br />

com instrução dos pais é 0,411, com p-valor de 0,000. O coefi ciente de<br />

renda familiar com instrução da mãe é 0,364 com p-valor de 0,000. O p-valor<br />

próximo de zero indica que o coefi ciente de correlação é signifi cativo até ao<br />

nível de signifi cância 1%, isto é, rejeitamos a hipótese nula de que não existe<br />

relação entre essas variáveis.<br />

68 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


IES Privada<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

Nota média<br />

Gráfi co 10<br />

Nota média do concluinte segundo o indicador<br />

socioeconômico por tipo de ingresso brasil, 2008<br />

IES Federal<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

Nota média<br />

IES Estadual<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Nota média<br />

Demais alunos Ação afirmativa<br />

O desempenho médio dos concluintes brancos na prova de conhecimentos<br />

específi cos é superior ao dos negros/pardos/mulatos que<br />

ingressaram pelo método tradicional, que por sua vez é superior ao<br />

desempenho dos negros/pardos/mulatos que ingressaram por ação<br />

afi rmativa nas instituições federais e estaduais (Gráfi co 11).<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

69


Gráfi co 11<br />

Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por<br />

cor da pele autodeclarada e tipo de ingresso, brasil, 2008<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Nota média<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Nota média<br />

Branco<br />

IES Federal<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Branco Não branco - demais alunos Não branco - ação afirmativa<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Nota média<br />

Branco<br />

IES Estadual<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Não branco - demais alunos<br />

IES Privada<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Negro/pardo/mulato<br />

Não branco - ação afirmativa<br />

Quando combinados ingresso por ação afi rmativa e tipo de ensino<br />

médio, controlando-se por nível socioeconômico, observa-se que a<br />

partir do indicador socioeconômico 15, que indica que pelo menos<br />

um dos pais possui ensino superior completo, o desempenho médio<br />

70 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


dos concluintes egressos do ensino médio privado é superior ao dos<br />

egressos do ensino médio público sem ação afi rmativa (Gráfi co 12).<br />

Gráfi co 12<br />

Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico<br />

por tipo de ensino médio e tipo de ingresso, brasil, 2008<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado<br />

Ensino médio público - ação afirmativa<br />

Nota média<br />

Nota média<br />

IES Federal<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Ensino médio público Ensino médio privado<br />

Nota média<br />

50<br />

48<br />

46<br />

44<br />

42<br />

40<br />

38<br />

36<br />

34<br />

32<br />

30<br />

0 5 10 15 20 25 30<br />

Indicador do perfil socioeconômico<br />

Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado<br />

Ensino médio público - ação afirmativa<br />

IES Estadual<br />

IES Privada<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

71


4.3 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL<br />

SoCioECoNômiCo PELo mÉtoDo DA REGRESSÃo<br />

Até aqui analisamos o desempenho do concluinte controlado apenas<br />

pelo background familiar do aluno, agora, incluem-se novas variáveis explicativas<br />

8 e também análises segundo o prestígio social do curso.<br />

Com relação à significância do modelo estimado para os concluintes<br />

das federais (Tabela 8), o fato de o aluno ter cursado todo ou parte<br />

do ensino médio em escolas públicas não é importante para o desempenho<br />

do aluno ao final do curso. Mulheres têm notas em média<br />

10% superiores às dos homens. Negros têm desempenho 5% inferior<br />

aos concluintes brancos. Ingressantes por ação afirmativa têm nota em<br />

média 8,2% inferior, mantendo todas as outras variáveis constantes.<br />

Com relação aos concluintes das estaduais, ter cursado parte ou<br />

todo o ensino médio em escolas públicas afeta o desempenho, porém<br />

não da forma esperada, uma vez que seu desempenho é em média<br />

2,7% superior ao dos concluintes que cursaram a maior parte ou todo<br />

o ensino médio privado. Assim como nas federais, mulheres têm desempenho<br />

cerca de 10% superior ao dos homens e os negros têm<br />

desempenho, em média, 5% inferior ao dos brancos. Nas instituições<br />

estaduais, os concluintes que ingressaram por meio de políticas afirmativas<br />

têm desempenho, em média, 8,8% inferior aos que ingressaram<br />

pelo método tradicional.<br />

Mais uma vez, as regressões das subamostras de prestígio social do curso<br />

não revelam diferenças qualitativas importantes na principal variável<br />

(ação afirmativa), que é sistematicamente negativa e significativa, com<br />

variação somente de magnitude. Nos cursos de médio prestígio social<br />

nas instituições federais (Letras, Física, Química, Biologia, História, Geografia,<br />

Filosofia e Ciências <strong>Sociais</strong>), o desempenho dos que ingressaram<br />

por ação afirmativa é em média 13,7% inferior ao dos demais concluintes.<br />

Com relação aos concluintes das instituições privadas de ensino superior,<br />

o coeficiente da variável ação afirmativa é muito próximo de<br />

8 Seguindo a sugestão do parecerista, procuramos incorporar dummies regionais<br />

ou estaduais, porém não há informação sobre a região ou a unidade da<br />

federação onde está localizada a IES no banco de dados disponibilizado pelo<br />

Inep, possivelmente para dificultar a identificação da IES.<br />

72 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


zero, e não significativo, indicando não haver diferença de desempenho<br />

entre beneficiários e não beneficiários. Nas subamostras de cursos<br />

de prestígio social médio e alto, porém, há diferenças significativas.<br />

Tipo de<br />

curso<br />

todos<br />

Variáveis<br />

Tabela 8<br />

Coeficientes estimados (b) e significância (p-valor)<br />

Federais Estaduais Privadas<br />

B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹<br />

(Constant) 3,696 0,000 -<br />

3,569 0,000 - 3,444 0,000 -<br />

Não branco -0,051 0,000 -5,0% -0,051 0,000 -5,0% -0,03 0,000 -3,0%<br />

mulher 0,098 0,000 10,3% 0,094 0,000 9,9% 0,219 0,000 24,5%<br />

Ensino médio<br />

público<br />

-0,007 0,202 - 0,027 0,000 2,7% -0,007 0,034 -0,7%<br />

Perfil<br />

socioeconômico<br />

0,003 0,000 - 0,004 0,000 - 0,003 0,000 -<br />

Ação afirmativa -0,086 0,000 -8,2% -0,092 0,000 -8,8% -0,006 0,065 -<br />

(Constant) 3,908 ,000 -<br />

Não branco ,009 ,363 -<br />

3,825 ,000 -<br />

baixo mulher ,093 ,000 9,8% ,008 ,507 ,013 ,149 -<br />

prestígio<br />

Ensino médio<br />

social<br />

público<br />

-,025 ,030 -2,5% -,006 ,623 -,028 ,000 -2,7%<br />

Perfil<br />

socioeconômico<br />

,004 ,000 - ,011 ,000 ,004 ,000 -<br />

Ação afirmativa -,116 ,000 -10,9% -,099 ,000 -9,4% -,009 ,047 -0,8%<br />

(Constant) 3,671 ,000 -<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

3,824 ,000<br />

-,025 ,002 -2,4% -,018 ,000 -1,7%<br />

3,545 ,000 -<br />

3,429 ,000 -<br />

Não branco -,070 ,000 -6,8% -,074 ,000 -7,1% -,019 ,000 -1,9%<br />

médio mulher ,030 ,000 3,1% -,015 ,057 ,031 ,000 3,1%<br />

prestígio<br />

Ensino médio<br />

social<br />

público<br />

-,038 ,000 -3,7% ,001 ,896 -,038 ,000 -3,7%<br />

Perfil<br />

socioeconômico<br />

,005 ,000 - ,006 ,000 ,008 ,000 0,8%<br />

Ação afirmativa -,148 ,000 -13,7% -,120 ,000 -11,3% -,020 ,000 -2,0%<br />

(Constant) 3,631 ,000 - 3,568 ,000<br />

-<br />

3,406 ,000<br />

-<br />

Não branco -,089 ,000 -8,5% -,090 ,000 -8,6% -,077 ,000 -7,4%<br />

Alto mulher -,005 ,548 - -,027 ,116 ,058 ,000 6,0%<br />

prestígio<br />

Ensino médio<br />

social<br />

público<br />

,008 ,350 - -,035 ,034 -3,5% -,048 ,000 -4,7%<br />

Perfil<br />

socioeconômico<br />

,006 ,000 - ,005 ,000 ,005 ,000 0,5%<br />

Ação afirmativa -,106 ,000 -10,1% -,099 ,001 -9,4% -,057 ,000 -5,6%<br />

73


Continuação da tabela 8<br />

Tipo de<br />

curso<br />

Variáveis<br />

Federais Estaduais Privadas<br />

B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹<br />

informações básicas sobre as regressões completas (“todos”) 2<br />

N° de observações 32.119 29.662 105.862<br />

R² ajustado 0,421 0,423 0,452<br />

Estatística f 142,113 142,664 1.155,786<br />

Nota: ¹A correção é exp (B)-1 para as variáveis binárias significativas, isto é, com p-valor menor que 0,05.<br />

A correção é utilizada na interpretação dos parâmetros estimados B. Os valores em negrito são maiores<br />

que 0,05, logo essas variáveis não são significativas ao nível 5%. Isto quer dizer que essas variáveis não<br />

são importantes para explicar a nota do concluinte.<br />

2 A estatística F dos modelos ajustados é alta, com p-valor próximo de zero em todas as regressões, indicando<br />

que até ao nível 1% rejeitamos a hipótese nula de que não há relação linear entre as variáveis X e Y. Logo o<br />

modelo foi bem especificado. O R² ajustado é médio em todos os modelos. Resultado esperado: a) dado que<br />

se usam dados em corte transversal e b) o modelo estimado é parcimonioso. Informações de qualidade de<br />

ajuste das regressões segundo prestígio social não são relatadas aqui, mas podem ser obtidas dos autores.<br />

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS<br />

Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus “raciais” ou “sociais”)<br />

têm sido implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo<br />

de reduzir a desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da<br />

probabilidade de acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior.<br />

Neste estudo, a partir dos dados mais recentes do Enade disponíveis,<br />

traça-se um perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008,<br />

comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com os demais<br />

alunos, inclusive no que se refere ao desempenho na prova de<br />

conhecimentos específicos. Participam do exame os alunos ingressantes<br />

e concluintes em 2008, portanto uma ressalva aos dados utilizados<br />

no trabalho é a falta de informação sobre os que ingressaram em 2004<br />

e evadiram ao longo do curso ou ainda não se formaram.<br />

Entendendo-se como diversidade uma maior representação de grupos<br />

desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas<br />

políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo<br />

de proporcionar maior diversidade nas universidades, embora tal<br />

tendência seja menos clara em cursos mais prestigiosos.<br />

74 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Com relação ao desempenho dos alunos, a nota média dos concluintes<br />

das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações<br />

afirmativas é aproximadamente 4 pontos menor com relação aos<br />

concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da<br />

prova varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude,<br />

essa diferença é significativa segundo o teste de diferença de médias.<br />

Entre as instituições privadas, a diferença a favor dos beneficiá-<br />

rios das ações afirmativas, não é significativa.<br />

Na tentativa de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno<br />

(por ação afirmativa ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos<br />

específicos aplicado no ano da conclusão do curso de graduação,<br />

controlando por características do aluno e do ambiente familiar,<br />

foram estimados modelos do tipo log-linear. Os resultados mostraram<br />

que nas IES privadas não se registram fortes hiatos de desempenho<br />

entre alunos beneficiários das ações afirmativas, a não ser em cursos<br />

com alto prestígio social, como engenharia e arquitetura.<br />

Nas IES públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior<br />

ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Nas IES<br />

federais, ter ingressado por ação afirmativa reduz, em média em<br />

8,2% a nota na prova de conhecimentos específicos, comparada<br />

à dos concluintes que ingressaram sem intermédio das políticas de<br />

ação afirmativa, mantendo todas as outras variáveis constantes. Nos<br />

cursos de baixo prestígio social, o desempenho é 10,9% menor e<br />

entre os cursos de médio prestígio social, a queda no desempenho<br />

é de 13,7%. Esse resultado pode estar subestimado, uma vez que<br />

estamos considerando somente aqueles que ingressaram por ação<br />

afirmativa e conseguiram concluir o curso, ou seja, não estamos avaliando<br />

o desempenho dos que evadiram ou ainda não se formaram.<br />

Em suma, nossa análise sugere que as diversas políticas de ações<br />

afirmativas têm sido bem-sucedidas no objetivo de proporcionar<br />

maior diversidade nas universidades, isto é, uma maior presença de<br />

grupos desfavorecidos no ensino superior brasileiro. Com base na teo-<br />

ria de igualdade de oportunidade de John Roemer (1988), conforme<br />

delineado em Waltenberg (2007), interpretamos o hiato de desempenho<br />

entre concluintes beneficiados por ação afirmativa e não beneficiados<br />

como um preço relativamente modesto pago pela sociedade<br />

em prol da diversidade e da equalização das oportunidades.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

75


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76 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


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WALTENBERG, F. D. Cotas nas universidades brasileiras: a contribuição das<br />

teorias de justiça distributiva ao debate. <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, Rio de Janeiro, v. 2, n.<br />

4, p. 8-51, 2007.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

77


tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio<br />

CANDiDo, PAuLo EmÍLio<br />

E mÁRio PEDRoSA<br />

Francisco Alambert<br />

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O ensaio a seguir busca estabelecer aproximações para uma história da crítica<br />

de arte e da cultura no Brasil diante dos temas “formação”, “crise”, “cultura nacional<br />

e internacional”, “ruptura” e “vanguarda”. Nessa perspectiva, serão analisadas<br />

as obras do crítico literário Antonio Candido, do crítico de cinema Paulo<br />

Emílio Salles Gomes e do crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. Em comum,<br />

a busca de uma especificidade da produção cultural no Brasil do século XX por<br />

meio de conceitos que instrumentalizassem uma visão histórica do legado colonial<br />

e de sua transformação como meio criativo e de conhecimento do país.<br />

Em confronto e, acredito, em tensa complementaridade, veremos a elaboração<br />

de três conceitos de análise crítica construídos diante da condição brasileira<br />

pelo três críticos (cada qual por sua vez também diante de uma tradição crítica<br />

que a bem da verdade eles reinventam): o princípio da formação (em Antonio<br />

Candido), do deslocamento e cópia (em Paulo Emílio) e do exercício experimental<br />

da liberdade (em Mário Pedrosa). O quanto esses conceitos nos ajudam<br />

ainda a entender o mundo contemporâneo e sua cultura, no que ele carrega de<br />

histórico e de contingente, é a questão que este ensaio pretende pôr em jogo.<br />

Palavras-chave: formação; deslocamento e cópia; experimentalismo; crítica<br />

The following essay seeks to establish a history of approaches to art criticism<br />

and culture in Brazil on the themes of “training”, “crisis”, “national and international<br />

culture”, “rupture” and “avant garde”. In this perspective, we will be<br />

analyzing works of literary critic Antonio Candido, the film critic Paulo Emilio<br />

Salles Gomes and art critic Mario Pedrosa. In common, the search for a specific<br />

cultural production in Brazil of the twentieth century through concepts<br />

that enable a historical view of the colonial legacy and its transformation as a<br />

creative tool and knowledge of the country. In confrontation and, I believe, in<br />

tense complementarity, we will see the development of three concepts built<br />

on critical analysis of the condition by three Brazilian critics: the principle of<br />

formation (Antonio Candido), displacement and copy (Paul Emilio) and the experimental<br />

exercise of freedom (in Mario Pedrosa). How much these concepts<br />

help us further understand the contemporary world and its culture, as far as the<br />

historical and contingent components that it carries, is the question this essay<br />

attempts to suggest.<br />

Keywords: formation; displacement and copy; experimentalism; criticism<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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O ensaio tem que conseguir que a totalidade brilhe por um momento<br />

em um traço escolhido ou encontrado, sem que se afirme que ela esteja<br />

presente. Ele corrige o que há de casual e isolado de suas intuições à<br />

medida que, no seu próprio percurso ou em seu relacionamento de mosaico<br />

com outros ensaios, elas se multiplicam, conformam, limitam; não<br />

por uma abstração que delas retira os marcos diferenciais (ADORNO,<br />

in COHN, 1986, p. 180).<br />

1 ANtoNio CANDiDo: foRmAÇÃo E HiStÓRiA<br />

Para se compreender o contexto das ideias de nossos três críticos é<br />

necessário visitar vários aspectos ligados à produção intelectual paulistana<br />

por volta da metade do século XX. Entre os anos 1940 e meados<br />

de 1950 formava-se em São Paulo um momento importante da história<br />

das consequências do movimento modernista. Se o ímpeto iconoclástico<br />

de 22 já há muito havia arrefecido, seus desdobramentos<br />

foram tremendamente criativos.<br />

Antes disso, porém, esses desdobramentos foram precedidos por<br />

um sentimento doloroso de derrota e crise: “Fiz muito pouco, porque<br />

todos os meus feitos derivam de uma ilusão vasta [...] faltou humanidade<br />

em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me<br />

enganaram.” Ou ainda mais trágico (e não menos lúcido): “Meu passado<br />

não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”<br />

(ANDRADE, 1974, p. 252). Era assim que se sentia Mário de Andrade<br />

perto do final de sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, às<br />

incertezas da Segunda Guerra Mundial, do futuro do nazifascismo e<br />

diante da desconfortável posição de “líder” do vitorioso movimento<br />

de modernização cultural e política que parecia chafurdar, impotente<br />

diante desse quadro de regressão. Dedo em riste, falando de outros<br />

tanto quanto de si mesmo, Mário de Andrade lamentava que com<br />

poucas exceções (nas quais ele mesmo não se enquadrava) ele e os<br />

modernistas vitoriosos tivessem sido “vítimas do nosso prazer da vida e<br />

da festança em que nos desvirilizamos”. Já pouco viris, os modernistas<br />

teriam virado as costas à revolta “contra a vida como está” em nome<br />

de estéreis discussões sobre “valores eternos”. Incapazes de ler de fato<br />

a história e a política, deixaram de lutar pelo “amilhoramento político-<br />

social do homem”.<br />

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Talvez nunca um intelectual brasileiro tenha lutado tão violentamente<br />

contra si mesmo. Mas a lamentação era uma autocrítica e também<br />

uma ação programática. Pois uma “traição”, já cometida antes, era<br />

agora sorrateiramente indicada como uma estratégia de superação<br />

da derrota: “Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um<br />

homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira<br />

impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor<br />

prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer<br />

estético, a beleza divina” (p. 254).<br />

Mas nem tudo estava morto, e os vivos ainda poderiam caminhar<br />

adiante. Como se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário de Andrade<br />

sintetizou os três princípios vivos saídos da aventura modernista dos<br />

anos 1920: a) o direito permanente à pesquisa estética; b) a atualização<br />

da inteligência artística brasileira; c) a estabilização de uma consciência<br />

criadora nacional (p. 242). Esse foi o resultado positivo de um<br />

“individualismo que arriscou”, mas cuja continuidade agora, nas novas<br />

condições em que se clama por uma nova politização da inteligência<br />

(“Marchem com as multidões”), deve ser preferencialmente pensado<br />

em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verdadeiro programa para os<br />

ventos democráticos que talvez viessem: para se manter o “direito à<br />

pesquisa estética” (que eu entendo como “o direito à cultura moderna”),<br />

para se prosseguir à “atualização da inteligência artística” local<br />

e para se estabilizar uma “consciência criadora nacional”, era preciso<br />

pensar a cultura e a arte para além do ímpeto estético (e “aristocrático”)<br />

do primeiro modernismo. E tudo isso com a política – e com a<br />

política para as “multidões”. Um peculiar chamado à passagem da<br />

ficção à prática, uma prática que seria entendida, por alguns, como<br />

uma nova prática intelectual.<br />

Quando Mário de Andrade proferiu seu célebre discurso de ruptura<br />

com seu passado, indicando um novo período de necessários ajustes<br />

para que o movimento de superação modernista tomasse novo fôlego,<br />

já se encontravam em evolução os estudos da geração de escritores<br />

especuladores do caráter nacional brasileiro (Sérgio Buarque de<br />

Holanda, Gilberto Freyre e o jovem Caio Prado Jr.), que marcaram os<br />

anos 1930 como as primeiras consequências ensaísticas do Movimento<br />

de 22. Uma nova geração de estudiosos e acadêmicos que o gênio desabusado<br />

de Oswald de Andrade não hesitou em apelidar de “chato boys”.<br />

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Para o surgimento desse novo momento nos estudos sobre a cultura<br />

brasileira foi de crucial importância a fundação da Faculdade de<br />

Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), projeto acalentado por<br />

modernistas, modernizadores e descendentes progressistas de oligarcas.<br />

Sua principal consequência foi a formação de um certo radicalismo<br />

intelectual, ou mais especificamente, como disse Antonio<br />

Candido (1980, p. 103), um “modesto radicalismo que ficou sendo<br />

uma tradição e tem produzido efeitos positivos”. Sem entrar nos<br />

detalhes desse processo, lembremos apenas que é desse debate de<br />

superação de determinados pressupostos (ou (pré) conceitos) herdados<br />

dos anos heroicos do modernismo, das inquietações trazidas por<br />

algumas brilhantes generalizações historiográficas (que não deixam de<br />

ser devedoras daquele ímpeto revolucionário do primeiro modernismo)<br />

e das transformações trazidas pela implantação de um modelo<br />

europeu de universidade (com professores devidamente importados<br />

da matriz) que a geração de Antonio Candido e Paulo Emílio Salles<br />

Gomes se formou.<br />

Na história do pensamento brasileiro, esses intelectuais formaram<br />

(podendo-se acrescentar a eles os críticos Lourival Gomes Machado e<br />

Décio de Almeida Prado, o sociólogo Ruy Coelho e um mestre francês<br />

de todos eles, o filósofo Jean Maugüé 1 ) o conjunto que ficou conhecido<br />

como “Grupo Clima”, em referência ao periódico de mesmo<br />

nome por eles editado. Os intelectuais ligados ao Clima, não apenas<br />

faziam parte da primeira geração uspiana (tendo basicamente estudado<br />

com professores europeus), mas, situados à esquerda e (cada<br />

um a seu modo) inspirados pelo marxismo (que entre nós até então<br />

só havia dado frutos promissores na obra isolada de Caio Prado Jr.)<br />

1 Sobre Maugüé e sua influência entre os novos, diz Candido: “Provém dele<br />

muito de nossa atitude intelectual e, portanto, uma parte da tonalidade de<br />

Clima. Para ele a filosofia interessava sobretudo como reflexão sobre o quotidiano,<br />

os sentimentos, a política, a arte, a literatura. O nosso grupo incorporou<br />

profundamente este ponto de vista...” (CANDIDO, 1980, p. 162). Reflexões<br />

importantes sobre o Grupo Clima e a presença formadora e pedagógica de<br />

Maugüé para o pensamento uspiano (especialmente filosófico) e para o modelo<br />

crítico a que nos referimos, podem ser vistas em Arantes (1994), especialmente<br />

no Capítulo 2, e também no ótimo estudo de Heloísa Pontes Destinos<br />

mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1999).<br />

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e pelas ciências sociais mais progressistas, iam introduzindo a crítica<br />

cultural dialética – aquela crítica que busca explicar o funcionamento<br />

mesmo da sociedade em que as artes são produzidas e não apenas<br />

a esfera específica em que cada forma artística se encontra – entre<br />

nós. Tomado por influxos criativos vindos indistintamente do abalo de<br />

1930, da modernização europeizante da metrópole paulistana, dos<br />

ventos socialistas, do debate crítico com os veteranos do Modernismo<br />

e com o aprendizado criterioso dos professores europeus na nova Universidade,<br />

esse “grupo-geração” acabou por fazer da crítica de cultura<br />

um espaço fundamental para o engajamento intelectual a partir da<br />

Universidade.<br />

Antonio Candido, em um dos seus mais interessantes escritos crítico-biográficos,<br />

definiu o poeta e crítico modernista Sérgio Milliet<br />

como “homem-ponte” entre a geração de 22 e aquela que ele mesmo<br />

representava. Mais do que isso, Milliet seria sua maior afinidade e o<br />

ponto inicial em que se baseou para definir seu próprio ideário crítico.<br />

Candido salientava as qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet introduzira<br />

entre nós: sua capacidade de circundar problemas, evitando<br />

dogmatismos, aguçando a reflexão, engajando sua personalidade<br />

em uma forma crítica que tateia “com liberdade os fatos e as ideias<br />

por meio do pensamento ‘que se ensaia’” (CANDIDO, 1987, p. 131).<br />

Uma atitude que ensaiava ela mesma a possibilidade da crítica dialética<br />

que os anos posteriores viabilizariam entre nós 2 . Uma lição que<br />

os participantes de Clima seguirão, especialmente o próprio Antonio<br />

Candido.<br />

Na “Maria Antônia”, dentro do contexto intelectual uspiano, com as<br />

aulas e leituras de Candido, começa a se definir a possibilidade de se<br />

refletir sobre as mediações extraliterárias e sua continuidade artística.<br />

O autor da Formação da literatura brasileira se tornava o interlocutor<br />

nacional privilegiado para debater o problema teórico da relação dialética<br />

entre obra/história no contexto dependente ou “pós-colonial”.<br />

O momento era favorável e em tudo parecia contraposto ao contexto<br />

2 Paulo Arantes, em seu fundamental estudo sobre Antonio Candido e Roberto<br />

Schwarz (no qual me baseio amplamente), reconhece essas afinidades<br />

mas discorda da “honra” que o crítico oferta a seu antecessor, estranhamente<br />

desautorizando a homenagem (ARANTES, 1992, p. 11).<br />

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em que Mário de Andrade clamou pelas mudanças dos que haviam<br />

mudado (quase) tudo. Eram anos de formação e não de desmanche,<br />

tempos de otimismo. O Brasil parecia, mesmo aos olhos dos desconfiados,<br />

ter se tornado mais inteligente por volta desses anos de redemocratização.<br />

A esquerda estava acertando passos e marcava posição<br />

em setores diversos da cultura e da ação política, do Cinema Novo à<br />

Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. O golpe militar ainda teria de<br />

esperar uns anos para dar o ar de sua terrível graça 3 .<br />

Roberto Schwarz costuma exaltar em Candido sua capacidade de<br />

visão “estereoscópica”, criando uma analogia com o procedimento<br />

semelhante utilizado por Walter Benjamin em seus estudos sobre<br />

Baudelaire. Nestes são privilegiadas as correspondências sociais entre a<br />

lírica e as figuras do submundo urbano ou os dramas do funcionamento<br />

do mercado (em personagens como o colecionador ou o putschista),<br />

percebendo aí não apenas similitude de origem mas sobretudo o<br />

fato de que tais figuras e formas literárias estão marcadas por formas<br />

sociais que se correspondem (não que se “espelhem”). Não se trata,<br />

entretanto, de reduzir uma dimensão a outra mas de entendê-las, em<br />

linguagem benjaminiana, dentro de uma constelação, que exige do<br />

ensaísta a capacidade de “sair” do texto para perceber e recolher as<br />

correspondências soltas e fragmentadas no tecido social (SCHWARZ,<br />

1992, p. 33-34). A comparação não é gratuita nem aleatória, como<br />

veremos, e tem razão de ser. Antes de tudo porque, naqueles autores,<br />

forma social e forma literária se ligam na medida em que a realidade é<br />

ela mesma “forma”. Entender essa “formação” já é então o maior dos<br />

problemas enfrentados por nossa nova tradição crítica.<br />

Na virada da década de 1950 para 1960 o desenvolvimento do conceito<br />

de formação era central para o novo pensamento crítico. Em<br />

setores diversos, nos estudos de intelectuais como Caio Prado Jr. (Formação<br />

do Brasil contemporâneo), Celso Furtado (Formação econômica<br />

do Brasil) e o próprio Candido (Formação da literatura brasileira), o<br />

conceito anunciava uma radical mudança na maneira de conceber o<br />

país e a história. Para nossos fins, anotemos que, na esfera da cultura,<br />

3 O período, com seu otimismo e suas ilusões, foi analisado por Roberto<br />

Schwarz em um de seus mais notáveis ensaios, escrito e publicado originalmente<br />

em Paris durante seu exílio: “Cultura e Política, 1964-69” (1978).<br />

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a ideia de formação baseava-se no princípio de que as formas culturais<br />

nacionais são, por um lado, fundadas sob uma herança colonial que se<br />

repõe a par com o progresso e com a modernização capitalista e, por<br />

outro, sob o desejo histórico dos brasileiros de ter uma cultura – com<br />

todas as contradições que esse princípio desejante possa provocar.<br />

A síntese precisa de Paulo Emílio, cujos trabalhos sobre cinema localizam-se<br />

no núcleo dessa tradição teórica, daria o tom da discussão:<br />

“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de<br />

cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção<br />

de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não<br />

ser e o ser outro” (GOMES, 1980, p. 77). Um dilema “hamletiano”<br />

define a origem e os princípios do intelectual (o teórico ou o artista)<br />

do mundo da economia dependente: “Um certo sentimento íntimo<br />

de inadequação, esse o drama do intelectual brasileiro, situado entre<br />

duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura”<br />

(ARANTES, 1992, p. 16).<br />

A superação do “desconforto intelectual” procede (ou não) no correr<br />

de um trabalho de mão dupla, em que a trama civilizatória concorre<br />

no sentido da incorporação do meio acanhado para a norma culta<br />

metropolitana, do mesmo modo que assegura o arranjo e a adaptação<br />

dessa norma à realidade local. “Dialética do local e do cosmopolita”,<br />

“dupla fidelidade”, “incapacidade criativa em copiar” (como veremos<br />

adiante) são algumas das definições que Candido e Paulo Emílio usariam,<br />

em diferentes momentos, para figurar essa oscilação definidora<br />

da trama das ideias e do drama dos intelectuais no contexto periférico.<br />

Uma proposição dialética é a base do conceito de formação, descrevendo<br />

o processo em que as ideologias se moldam entre nós, como<br />

uma escultura se molda, adaptando-se, chocando-se e (por vezes)<br />

superando-se diante do novo contexto.<br />

As linhas evolutivas dessa formação, tão penosa quanto a melancólica<br />

definição de Paulo Emílio sugere, constituem os diversos processos<br />

formativos de nosso sistema de entendimento cultural, em que a dialética<br />

joga as cartas decisivas, “porque se pode falar em dialética onde<br />

há uma integração progressiva por meio de uma tensão renovada a<br />

cada etapa cumprida” (ARANTES, 1992, p. 17). A noção de formação<br />

dá a medida dessas integrações e ilumina o caminho das etapas cumpridas<br />

(ou não).<br />

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Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que, notadamente a partir do<br />

processo da Independência, os intelectuais se dividiram, esquematicamente,<br />

entre os defensores da originalidade e do “gênio” nacional e os<br />

campeões da universalidade cosmopolita, que no caso significava uma<br />

defesa dos valores da civilização liberal. A definição “dialética do local<br />

e do cosmopolita”, que Candido formulou em mais de uma ocasião,<br />

era a chave para compreender esse processo de formação cultural: “A<br />

dialética do local e do universal dá o balanço desta oposição, situando<br />

os termos inimigos no interior de um mesmo movimento de afirmação<br />

da identidade nacional, em que eles se complementam harmoniosamente”<br />

(SCHWARZ, 1987, p. 169). É esse o caráter da descrição de<br />

Antonio Candido em Formação da literatura brasileira.<br />

A compreensão dialética da formação dá um passo à frente no ensaio<br />

talvez decisivo da maturidade de Antonio Candido, “Dialética da<br />

malandragem”, publicado originalmente na <strong>Revista</strong> do Instituto de<br />

Estudos Brasileiros, nº 8, um estudo sobre Memórias de um sargento<br />

de milícias (1852), de Manuel Antonio de Almeida. Por aqui podemos<br />

acompanhar como, em Antonio Candido, romance e sociedade se<br />

encontram por meio da análise criteriosa da forma entendida como<br />

condição prática mediadora.<br />

A forma, entretanto, não se define exclusivamente na esfera literária.<br />

A própria realidade histórica é também formada, na medida em que<br />

é compreendida como formação social objetiva definida no jogo das<br />

forças produtivas e não na esfera ideal das consciências individuais. O<br />

fundamental nas Memórias, segundo a análise de Candido, é que em<br />

seu entrecho formal vibra uma intuição, uma verdadeira figuração, do<br />

movimento da sociedade brasileira (a tensão constante entre ordem<br />

e desordem em uma sociedade de base escravista, mas ao mesmo<br />

tempo desejando se urbanizar e modernizar). Para o crítico, tal intuição<br />

define-se como uma espécie de redução estrutural do movimento<br />

histórico que o romance apanha in locu. Não propriamente na qualidade<br />

de “documento”, mas sim como uma formalização estética do<br />

movimento formativo da sociedade brasileira (ou de suas condições<br />

de existência: no caso, a dialética entre ordem e desordem, que o<br />

crítico percebe na organização formal do romance, tanto quanto na<br />

própria forma social do Brasil do século XIX).<br />

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O princípio é dialético e nele podemos encontrar uma verdadeira<br />

afinidade com os pressupostos da assim chamada escola frankfurtiana<br />

(daí a comparação com os procedimentos de Benjamin não ser fortuita).<br />

A separação das esferas é legada pela história, mas não constitui<br />

meramente “ideologia” (no sentido de má consciência): é também real,<br />

na medida em que representa a própria estrutura do “processo real”.<br />

Também se formalizava uma proposição para a tarefa do novo tipo<br />

de crítico moderno: transcender a análise especializada (sem dela<br />

prescindir) visando a respeitar a relativa independência do objeto, colhendo<br />

os saberes dispersos e fraturados nas esferas das humanidades,<br />

na “cena contemporânea”. Uma análise que, dirá um crítico norte-<br />

-americano, “pressupõe um movimento do intrínseco para o extrínseco<br />

na sua própria estrutura, do fato ou obra individual para alguma<br />

realidade socioeconômica mais ampla por detrás dele” (JAMESON,<br />

1985, p. 12). Nada a ver, portanto, com as regras do universalismo<br />

estruturalista (e suas estruturas sem referência) ou com a ideia de que<br />

forma estética e situação social corram em vias diferentes ou paralelas.<br />

Como veremos adiante, esses princípios não seriam estranhos aos<br />

outros dois críticos que, entretanto, iriam desdobrar e indicar outros<br />

caminhos e possibilidades dentro dessa mesma trilha.<br />

2 PAuLo EmÍLio: DESLoCAmENto E CÓPiA<br />

As ideias de Paulo Emílio foram decisivas na formação intelectual<br />

de sua geração. Marxista militante, exilado político, frequentador dos<br />

círculos intelectuais radicais franceses, fundador dos cursos de cinema<br />

da USP e da Universidade de Brasília (UNB), teórico dialético das vicissitudes<br />

da cinematografia nacional e seus impasses, o antigo redator<br />

de Clima tinha tudo para conquistar a atenção dos jovens intelectuais.<br />

Mais do que isso, ele lhes deu quase um plano de trabalho, bem como<br />

uma orientação política precisa, como se fora ele o responsável por<br />

repensar o modernismo depois da despedida de Mário de Andrade.<br />

Em 1943, o jornalista Mário Neme, provavelmente influenciado<br />

pela conferência de Mário de Andrade sobre a crise do Modernismo e<br />

as tarefas da nova geração, realizou um inquérito publicado nas páginas<br />

do jornal O Estado de S. Paulo, que depois seria reunido em livro<br />

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intitulado Plataforma da nova geração. Nele, jovens críticos e escritores<br />

surgidos nos anos 1940 eram questionados sobre a herança recebida<br />

das gerações anteriores e sobre seus novos valores, modelos, insatisfações,<br />

bem como sobre seus princípios em estética, ciência e ideologia<br />

(além das relações disso tudo com a guerra mundial em pleno<br />

andamento) 4 . Sinal de tempos de mudança, percebida aliás por Sérgio<br />

Milliet, o “homem-ponte” entre a geração do primeiro Modernismo<br />

e aquela que então (ele anota em seu Diário crítico, em 4 de julho de<br />

1943) estaria “às vésperas da eclosão de uma nova estética” e, acrescento,<br />

de um novo pensamento sobre a estética nas novas condições<br />

brasileiras 5 . Uma nova geração pronta para o engajamento e para unir<br />

pesquisa cultural e atuação social: “A geração de 22 falou francês e leu<br />

os poetas. A de 44 lê inglês e faz sociologia” (MILLIET, 1981, p. 109).<br />

Dentre os depoimentos da plataforma dos jovens intelectuais, o de<br />

Paulo Emílio se destacava pela admirável lucidez e pela capacidade<br />

de organizar as questões decisivas do período e do que viria adiante.<br />

Desde o início, ele deixa claro que fala do ponto de vista de um jovem<br />

intelectual paulistano de esquerda (da “elite intelectual” da cidade),<br />

mas que pertence a uma “nova geração” para a qual “não há unidade<br />

ideológica”. Entretanto, lhe parece certo que naquele momento a direita<br />

está derrotada e sobrevivendo em um clima de delírio, refugiando-se<br />

em elogios tresloucados a “militares argentinos” e se vendo “nos romances<br />

de Clarice Lispector”. Tudo sinal de um desvio da geração antecedente<br />

que, como Mário de Andrade disse em sua conferência, e Paulo<br />

Emílio repete em outros termos, perdeu o rumo da história: “A estrada<br />

do oportunismo é uma estrada real, e já foi trilhada por representantes<br />

ilustres da facção” (GOMES in CALIL MACHADO, 1986, p. 82).<br />

Paulo Emílio é cauteloso em relação ao futuro. O fascismo poderia<br />

retornar por conta da “confusão” da época, inclusive entre a esquerda.<br />

Ele vê que os católicos, perdendo suas referências, vão cada vez mais<br />

para a direita, ao passo que o catolicismo da geração de 45 lhe parece<br />

4 A esse inquérito seguiu-se outro, com os representantes da geração mais<br />

velha (fundamentalmente os modernistas e antimodernistas), que foi também<br />

publicado com o título tumular de Testamento de uma geração.<br />

5 Sobre o mesmo assunto, mas sob outro ponto de vista, ver o ensaio de<br />

Silviano Santiago: “Sobre Plataformas e Testamentos” (2006).<br />

88 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


um sucedâneo da desilusão política e atinge desde a direita até os<br />

comunistas. O certo é que o liberalismo é o grande derrotado da época.<br />

Sobre isso, faz um prognóstico surpreendente que os anos recentes<br />

realizaram de maneira efetiva: “Não há na nova geração nenhum setor<br />

intelectual propriamente liberal, no velho sentido da palavra. Ligados<br />

às atividades intelectuais da Fiesp, alguns jovens economistas são<br />

talvez o núcleo para uma futura corrente neoliberalista” (idem, p. 85).<br />

Mas o que de fato lhe interessa é a confusão na esquerda, ou, mais<br />

precisamente, entre “jovens intelectuais de classes médias e da burguesia,<br />

que se exprimem ideologicamente pela esquerda”. Trata-se<br />

daqueles jovens intelectuais que têm “pouco menos ou pouco mais<br />

de 30 anos” e se politizaram por volta de 1935 (época da Intentona<br />

Comunista e antes do Estado Novo), influenciados pelo marxismo, pela<br />

psicanálise, pelo “pós-modernismo artístico” no contexto da extensão<br />

da “superficial” revolução de 1930. Para muitos deles, a “Rússia” se<br />

tornara uma “religião”. Isso era apenas o resultado do nível teórico<br />

“muito baixo” dos comunistas. Apenas “meia dúzia” teria um nível teó -<br />

rico avançado, porém alguns estavam “afastados”, enquanto que os<br />

outros se refugiavam na oposição de esquerda (creio que ele se refere<br />

a Caio Prado e Mário Pedrosa). Porém, essa nova esquerda capengava<br />

em dois aspectos básicos: “Ninguém nunca leu O capital. Do Brasil não<br />

se sabia nada.” Stalinistas e trotskistas, por motivos diversos, “amavam<br />

a Rússia”, mas ninguém “sabia pensar dialeticamente” (p. 85-87).<br />

Esse era o contexto em que a sua geração, a geração de Clima,<br />

surgiu e no qual atuaria. Depois da crise do Estado Novo e dos comunistas,<br />

inclusive de sua “religião”, a nova esquerda poderia surgir, gozando<br />

“a gratuidade e a disponibilidade” que lhe permitia “sua condição de<br />

classe”. Isso tudo propiciou um novo processo de crescimento e formação:<br />

“Adquiriam uma seriedade e eficácia de pensamento que os<br />

diferenciava logo em relação ao tom boêmio de Vinte-e-Dois” (p. 85).<br />

Na medida em que viam a Rússia dos “processos de Moscou” como<br />

um pesadelo, tomaram a França como paradigma. A geração se une na<br />

ideia de acalentar a originalidade e a alternativa do modelo soviético,<br />

mas também se interessa pela crítica desse modelo feita pelo trotskismo.<br />

Nesse processo, o marxismo pode ser revisitado sob um prisma especulativo,<br />

não dogmático (ou seja, sem a “religião” russa), e repensado<br />

diante de uma nova situação (o Brasil e sua história). Além de começar<br />

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a ler Marx e os marxistas clássicos, a geração se aproxima da reinterpretação<br />

do marxismo feita via pensadores (sobretudo soció logos)<br />

norte-americanos (por isso, como brincou Milliet, era preciso agora<br />

“ler inglês”). Abre-se uma nova “época de estudos”, para a qual a<br />

América (seja a sociedade norte-americana marcada pelas consequências<br />

da Depressão dos anos 1930, seja a sociedade periférica latino-<br />

americana) e seus problemas específicos serão o foco central 6 .<br />

Nesse verdadeiro programa de revisão do pensamento modernista,<br />

e do próprio pensamento marxista diante de uma história que ele desconheceu<br />

(a história dos países periféricos e dependentes), o conceito<br />

chave para ser posto sob o crivo da dialética seria a velha questão, modernista<br />

aliás, do nacionalismo. E para explicar isso, Paulo Emílio saca<br />

um exemplo inusitado: o da “velha” Rússia. Antes da Revolução, ele diz,<br />

a Rússia semifeudal não conhecia o nacionalismo. O internacionalismo<br />

era importado do Ocidente. Mas no centro da Europa o clima era de revolução,<br />

sobretudo nos países derrotados na I Guerra Mundial. Paradoxalmente,<br />

com o fracasso da revolução na Europa, surge o nacionalismo<br />

russo. E aqui ele apresenta sua peculiar dialética da questão nacional:<br />

Sem saber nada dos países capitalistas mais adiantados, o termo de<br />

comparação para o presente era o passado da própria Rússia. Daí o<br />

moral altíssimo que se notava em certos setores russos, sobretudo na<br />

mocidade. O exemplo russo mostra como as ideias sobre nação e nacionalismo<br />

não foram abordadas com inteira correção pelo marxismo.<br />

Nação e nacionalismo não estão necessariamente ligados à direção<br />

burguesa da sociedade. Foi uma revolução operária de espírito internacionalista<br />

que permitiu o nascimento do nacionalismo russo. Agora<br />

que o nacionalismo existe é que é possível contradizê-lo e superá-lo<br />

pelo internacionalismo (p. 92).<br />

Nesse ponto, ele está pronto para expressar a ideologia de sua geração:<br />

o nacionalismo precisa ser construído para ser superado não pelo<br />

6 Paulo Emílio diz que nasceu aí uma abertura para se pensar a América Latina.<br />

Ele cita as ideias de Raul Victor Haya de la Torre, pensador peruano que<br />

fundou o aprismo, seu interesse pelo México na época de Cárdenas e seu<br />

desejo de recuperar o caráter inicial da revolução zapatista.<br />

90 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


simples internacionalismo, mas por um “pan-nacionalismo” (p. 93).<br />

Depois de especular sobre a possibilidade de surgimento dessa peculiar<br />

dialética entre nacionalismo e internacionalismo em vários países,<br />

sobretudo naqueles que foram derrotados na I Guerra e também na<br />

França, termina seu depoimento-plataforma pedindo abertura para<br />

esse debate. Clama para que os novos intelectuais deixem a “torre de<br />

marfim” e assumam as “questões de cultura” como sua responsabilidade.<br />

Sua tarefa maior deveria ser “participar do desaparecimento de<br />

um Brasil formal e do nascimento de uma nação” (p. 95).<br />

Saltemos algumas décadas e vejamos como Paulo Emílio, já então o<br />

mais importante pensador do cinema no Brasil, aplicou e desenvolveu<br />

muitas dessas ideias em sua prática crítica. Em seu ensaio já clássico<br />

“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, Paulo Emílio consagrou,<br />

para certa tradição crítica, os princípios de análise que não apenas<br />

estruturavam uma história do cinema brasileiro (e suas “mortes” e “ressurreições”),<br />

a partir de seu contexto periférico, dependente e “subdesenvolvido”,<br />

culminando no auge (e na crise) do Cinema Novo mas,<br />

ao mesmo tempo, compilou as questões decisivas sobre a discussão<br />

promovida desde a teoria da dependência sobre os princípios da crítica<br />

histórica e materialista nas condições brasileiras. O tal princípio era<br />

resumido assim: “Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa,<br />

um estágio, mas um estado” (GOMES, 1980, p. 85).<br />

Porém, e nisso reside o mais importante, nesse “estado” as coisas<br />

não funcionavam sempre da mesma maneira. Com impressionante<br />

fôlego sintético, o crítico passeia por diversos cinemas, e nações, “subdesenvolvidos”<br />

(em uma palavra: dependentes não apenas economicamente<br />

do centro capitalista hegemônico, mas sobretudo dependentes<br />

de uma dialética constante entre “ocupado”, o local, e “ocupante”,<br />

a força externa ou cosmopolita e também a classe dominante local<br />

que a representa) mostrando sobretudo suas diferenças. No caso do<br />

cinema indiano, ele nota que mesmo tendo sido formada uma indústria<br />

francamente popular, seu resultado foi fazer com que o filme<br />

indiano permanecesse fiel às “ideias, imagens e estilo já fabricados<br />

pelos ocupantes para consumo dos ocupados” (idem). No caso do<br />

Japão ocorreria o contrário: mesmo com a entrada massiva do cinema<br />

estrangeiro, sobretudo norte-americano, desde o início do século XX e<br />

principalmente a partir do pós-guerra, as imagens do ocupante teriam<br />

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sido “devoradas” pela cultura local, permitindo inclusive que o cinema<br />

japonês se fizesse com seus próprios capitais.<br />

A questão brasileira era distinta. Aqui, nem a cópia (ou imitação)<br />

prevaleceu sempre, nem a “devoração” (antropofágica?) vingou efetivamente.<br />

Como já citado, estávamos em uma espécie de entre-lugar,<br />

presos àquela “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Nossa<br />

síntese era precária, mas existia, mesmo que sob o signo do paradoxo.<br />

Por exemplo, as imagens criadas pelo ocupante moderno, os Estados<br />

Unidos e sua indústria das imagens para ocupação, curiosamente viravam<br />

“coisa nossa”:<br />

não é que tenhamos nacionalizado o espetáculo importado como os<br />

japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnação do filme americano<br />

foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de<br />

ocupantes e ocupados, excluídos apenas os últimos estratos da pirâmide<br />

social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que<br />

nada nos é estrangeiro pois tudo o é (p. 79).<br />

A partir da década de 1940 – justamente a época em que surge a geração<br />

crítica que estamos comentando, representada aqui por Antonio<br />

Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa – o sucesso das chanchadas (os<br />

filmes de “baixa cultura”, voltados à “plebe”) cativa o “ocupado” antepondo-se<br />

ao gosto do “ocupante” (tanto externo, o “imperialismo”,<br />

quanto interno, a “classe dominante” europeizada ou americanizada).<br />

Uma identificação cultural de outra ordem passa a ser uma realidade<br />

e uma potencialidade criativa:<br />

a identificação provocada pelo cinema americano modelava formas<br />

superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos<br />

ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do<br />

pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado<br />

contra ocupante (p. 80).<br />

Como na canção de Noel Rosa de 1933, Não tem tradução<br />

(“O cinema falado/ é o grande culpado/ da transformação”), os modos<br />

da plebe se antepõem aos modos “americanos” impostos mas, sem<br />

negá-los propriamente, os coloca em situação de rearranjo.<br />

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O sucesso comercial da chanchada, ou seja, da “avacalhação” programática<br />

da cultura do ocupante e sua tradução nos termos da cultura<br />

(ou da falta dela) do ocupado foi, e aqui vai mais um paradoxo, o<br />

estímulo para o surgimento de um projeto cinematográfico industrial<br />

de um ponto de vista exclusivo do ocupante: o projeto da Companhia<br />

Vera Cruz que, como Paulo Emílio explica detidamente, faliu rapidamente.<br />

Seu fracasso derivou de dois aspectos. O primeiro seria a incapacidade<br />

da cópia do sistema industrial. A Vera Cruz queria recriar<br />

uma imagem calcada na cultura do ocupante, mas foi tragada pela<br />

estrutura por ele criada (no caso, o domínio do sistema de distribuição<br />

dos filmes). Por outro lado, o fracasso tinha um motivo “estético” e derivaria<br />

também da inutilidade da cópia. Nem os ocupantes locais (os<br />

ricos, devidamente europeizados e americanizados) nem os ocupados<br />

(a plebe) se identificavam com aquelas tentativas, pautadas no bom-<br />

-gosto e na imitação dos filmes internacionais. Preferindo o original à<br />

cópia, nesse sentido percebida como um rebaixamento do original,<br />

eles lhe viravam as costas.<br />

Como se sabe, a resolução criativa desse estado, em um nível experimental<br />

e engajado, veio pela formação de uma autêntica “vanguarda”<br />

cinematográfica brasileira: o Cinema Novo. Sua ética e sua<br />

estética rompiam o tradicional jogo entre ocupado e ocupante pela<br />

elaboração de uma forma nova, capaz de refletir e criar “uma imagem<br />

visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo<br />

brasileiro” justamente ao se autonomizar e se “dessolidarizar de sua<br />

origem ocupante” para enfim criar, em forma e conteúdo, uma representação<br />

criativa “dos interesses do ocupado” (p. 83-84).<br />

Como se sabe também, o golpe de 64 colocaria essa imagem em crise,<br />

inviabilizando sua expansão e efetivação. Talvez por isso, e é ainda<br />

Paulo Emílio quem diz, a vanguarda cinemanovista tenha se fechado<br />

em si, experimentando uma forma única que, entretanto, não foi capaz<br />

de se radicar como a imagem do ocupado para si mesmo. Ainda<br />

assim, não deixa de ser significativo o sucesso internacional, com consequências<br />

admiráveis e influentes, do Cinema Novo na história das<br />

vanguardas cinematográficas do resto do mundo. Também é bastante<br />

sintomático que tenha sido Mário Pedrosa, segundo o depoimento de<br />

Glauber Rocha, um dos primeiros a reconhecer a inovação da vanguarda<br />

cinemanovista, e o responsável por lançá-la definitivamente<br />

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como um marco da arte contemporânea justamente na única bienal<br />

que o crítico organizou, a VI Bienal de 1961 (ROCHA, 2003, p. 130) 7 .<br />

O fracasso da forma copiada e seu destino medíocre, ideia desenvolvida<br />

no ensaio dos anos 1970, já havia sido enunciada em um ensaio<br />

escrito uma década antes, “Uma situação colonial?”, publicado<br />

originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário,<br />

em 19 de novembro de 1960 e depois em Gomes (1981). Nesse<br />

primeiro texto, a dialética entre “colonizador e colonizado” (substituída<br />

pelo conceito mais complexo e sutil no ensaio dos anos 1970<br />

por “ocupado e ocupante”) teria como resultado a “mediocridade”:<br />

“O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o<br />

cinema é em nosso país a mediocridade” (p. 286). Mas então, o tom<br />

negativo do termo provocaria uma viravolta surpreendente, quase que<br />

um programa estético no qual a adversidade (penso aqui também em<br />

Hélio Oiticica: “Da adversidade vivemos”) abre caminho para a inovação,<br />

tendo por causa “nossa incompetência criativa em copiar”.<br />

Um certo primarismo, calcado na ilusão de que em “situação colonial”<br />

ou periférica se pode copiar, mimetizar completamente a fonte<br />

ideal, é a base da “incompetência”. Esta, entretanto, na medida em<br />

que se realiza (e não poderia ser de outro modo), pode ter seu resultado<br />

invertido. A chave da ideia está na noção de criatividade. Uma<br />

vez que somos incapazes de copiar (ainda que o desejemos), se soubermos<br />

ser criativos diante da impossibilidade de efetivar plenamente<br />

a fantasia, de fato somos capazes de criar algo novo, e, nesse sentido,<br />

“original”. Nossa originalidade, nosso caráter de inovação e vanguardismo,<br />

só pode residir em uma falha sistemática, em uma traição bem<br />

pensada das fontes das quais nos alimentamos. Creio que aqui, a metáfora<br />

oswaldiana da antropofagia, do “primitivo” que faz a revolução<br />

não por expulsar o poderoso colonizador, mas por degluti-lo e regurgitá-lo,<br />

ganha um sentido conceitual efetivo e dialético.<br />

Resumindo: em nossos autores, Antonio Candido e Paulo Emílio,<br />

romance, cinema e sociedade se informam por meio da análise criteriosa<br />

da forma entendida como condição prática mediadora diante<br />

de processos históricos concretos (a dialética entre ordem e desordem<br />

dentro do mundo criado pela escravidão e o favor, no caso da litera-<br />

7 Para uma análise geral da VI Bienal, ver Alambert in Abdala Jr. e Cara (2006).<br />

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tura do século XIX, ou da condição subdesenvolvida do cinema dentro<br />

da dialética entre ocupado e ocupante, entre uma modernização<br />

sempre dependente e abortada, e em suas consequências medíocres<br />

e simultaneamente criativas, segundo Paulo Emílio). A forma artística,<br />

portanto, define-se a partir da realidade histórica (a brasileira, entendida<br />

não como “origem” e sim como condição histórica particular,<br />

mas ainda assim parte de uma condição universal ou internacional),<br />

que é também “forma”, na medida em que é compreendida como<br />

formação social objetiva, definida no jogo das forças produtivas, do<br />

movimento da sociedade global, e não na esfera ideal das consciências<br />

individuais.<br />

Estamos pois, e uma vez mais, diante de uma noção de forma oposta<br />

às regras do formalismo estruturalista, uma noção de forma e de<br />

formação na qual o caráter social, o sinal social, é o elemento estruturante.<br />

Eis a lição que nos resta dessa tradição de críticos-pensadores<br />

mesmo depois que as condições históricas específicas em que foram<br />

elaboradas, o otimismo desenvolvimentista e a consequente formação<br />

de uma cultura nacional em processo de superação de suas contradições<br />

originais, desapareceu do horizonte contemporâneo.<br />

3 mÁRio PEDRoSA: o ExERCÍCio ExPERimENtAL DA LibERDADE<br />

(Do iNÍCio Ao fim)<br />

Até aqui, vimos uma história “paulista” da formação. Mas de onde<br />

vinha Mário Pedrosa? No seu Rio de Janeiro adotivo, essa tradição sequer<br />

estava “formada”. A partir daqui, temos que passar a pensar uma<br />

relação possível entre pressupostos da tradição paulista e uma outra,<br />

que à época nem tradição era: a crítica de arte moderna entre nós,<br />

que se formaria a partir também de Sérgio Milliet e chegaria a um ponto<br />

avançado e surpreendente justamente com Mário Pedrosa. Creio<br />

que tanto a identidade quanto a “passagem” de um crítico ao outro<br />

foram sentidas pelo próprio Milliet. Em 1949, ele anotou em seu Diário<br />

Crítico um encontro com Mário Pedrosa em Paris. Dizia o seguinte:<br />

Mário Pedrosa, que encontro chegando do Brasil e já instalado em St.<br />

Germain, afirma que aquele velhinho à frente de um copo de vinho<br />

no café da esquina, ali se acha há dez anos. Viu-o em 1937, em 1946<br />

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igualmente e o torna a ver agora. Pela praça passaram os tanques alemães,<br />

diante da igreja um obus caiu. Houve frio e fome e metralhadoras<br />

varreram as cercanias, mas o homem ali continua naturalmente,<br />

sem nenhuma intenção de heroísmo. Só porque acredita na vida. E<br />

há vida nesse lugar, nessa praça, nessa cidade. Não compreende sequer<br />

que possa existir outra coisa, não pensa em emigrar, em bater à<br />

porta da aventura, em correr atrás da estrela matutina. Por entre suas<br />

pálpebras enrugadas brilha uma nesga azul de admirável serenidade”<br />

(MILLIET, 1881, p. 369).<br />

Como se vê, Milliet tomou o olhar de Pedrosa e, junto, parte de sua<br />

sensibilidade também. Na verdade, faz sua a observação do outro. Em<br />

comum, vemos uma atenção para a história vista nas ruas. Histórias<br />

de pessoas “comuns” diante da História incomum e bárbara do século<br />

que ainda nem entrara em sua metade. Mas seria Mário Pedrosa quem<br />

desdobraria esse olhar arguto e generoso para o futuro. Anos depois, no<br />

“Depoimento sobre o MAM”, originalmente publicado em O Estado de<br />

S. Paulo de 24/3/1963, homenageando Milliet, já falando no passado,<br />

Pedrosa diria sobre seu contemporâneo:<br />

Sérgio Milliet, o verdadeiro fundador da crítica de artes plásticas no Brasil,<br />

o primeiro, entre seus pares, a introduzir uma crítica efetivamente<br />

revolucionária nos processos de análise, na renovação terminológica, no<br />

esforço da apreensão objetiva dos valores [...] (PEDROSA, 1995, p. 300).<br />

Tudo isso é rigorosamente verdadeiro. Mas Mário Pedrosa daria um<br />

sentido ainda mais radical à essa fortuna crítica do projeto moderno,<br />

em arte e em política.<br />

A trajetória das ideias estéticas de Mário Pedrosa – do realismo social<br />

no início dos anos 1930, passando pela defesa do abstracionismo e da<br />

arte contemporânea, até a pioneira detecção do pós-moderno (diante<br />

do qual expressará dúvidas e reparos hoje atualíssimos) – é indissociá vel<br />

de sua trajetória política 8 . Pedrosa inaugura no Brasil, sucessivamente, a<br />

militância política trotskista e a crítica de arte moderna. Entre as idas e<br />

8 Sobre a militância política de Pedrosa ver Marques Neto (1993); Loureiro,<br />

(1984).<br />

96 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


vindas do militante, surgiu o crítico. Entre os exílios surgiu o agitador das<br />

artes. No caso dele, como no de Paulo Emílio, o militante se fez crítico<br />

e o crítico se fez agitador cultural. A radicalidade de uma postura é emprestada<br />

à outra, resultando uma personalidade e uma atuação original<br />

na história da crítica de arte latino-americana (e não apenas nela).<br />

Mário Pedrosa e Paulo Emílio, aliás, têm trajetórias significativamente<br />

parecidas. Ambos nasceram em famílias ricas (Pedrosa no decadente<br />

mundo dos engenhos nordestinos; Paulo Emílio no ascendente<br />

mundo urbano e industrial paulistano), foram comunistas desde jovens<br />

(presos, exilados etc.), mas se politizaram mais modernamente<br />

no exterior, onde começaram a carreira de críticos (Pedrosa nos EUA,<br />

depois de namoros literários na São Paulo do final dos anos 1920;<br />

Paulo Emílio na França) com análises de ícones cosmopolitas: Käthe<br />

Kolwittz e Alexander Calder para Mário Pedrosa, Jean Vigo para Paulo<br />

Emílio. A rigor, o problema brasileiro lhes chega depois dessa experiência<br />

cosmopolita, o que nunca ocorreu com Antonio Candido.<br />

Mário Pedrosa militou diretamente no trotskismo internacional até<br />

os anos 1940 e depois continuou ligado à esquerda independente<br />

por toda a vida. Paulo Emílio namorou o trotskismo, como vimos, mas<br />

foi mais independente. Ambos se encontraram quando da fundação<br />

do Partido Socialista, também nos anos 1940, e em seu projeto de<br />

construir uma versão brasileira do socialismo (igualmente afastada do<br />

stalinismo e da social-democracia europeia). E aqui, se aproximam de<br />

Antonio Candido, um dos mentores intelectuais dessa proposta (que<br />

depois seria reativada quando da fundação do PT, partido que ambos,<br />

Pedrosa e Candido, cofundariam).<br />

Mas as diferenças são tão interessantes quanto as proximidades.<br />

Mário Pedrosa foi um militante da esquerda revolucionária que se fez<br />

crítico de arte por pensar o lugar da revolução nas condições que o<br />

século XX foi criando em suas crises sucessivas. Foi internacionalista,<br />

partindo do trotskismo, pensando o Brasil de dentro para fora (e de<br />

fora para dentro), continuando o movimento do ponto em que estagnava<br />

o nacionalismo do primeiro modernismo brasileiro. O paradoxal<br />

em sua trajetória é que ele também foi “desfazendo” a crítica (de seus<br />

antecessores, de seus contemporâneos e, no final, a dele mesmo) e a<br />

crença no papel revolucionário da arte para retomar, no final da vida, a<br />

militância política revolucionária do princípio (inclusive pelo princípio<br />

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da crença no papel transformador da arte “desalienante”, aquela<br />

que se opunha à “consciência dilacerada” de nossa época, ideia central<br />

em sua crítica). Como explicou Otília Arantes, “sem nunca deixar<br />

a militância política, jamais dissociará revolução mundial e arte de<br />

vanguarda” (ARANTES, 1991; 1995).<br />

O exercício crítico de Mário Pedrosa desenhou de maneira transparente<br />

a utopia da arte moderna, seus impasses e suas perspectivas em<br />

seu momento mais sólido. Do mesmo modo, sua atividade crítica é<br />

um exercício constante de redefinições e proposições. De fato, ao longo<br />

de sua vida, Pedrosa propôs várias formas de disciplina crítica, de<br />

compreensão e pedagogia da arte revolucionária (desde a proposição<br />

da arte proletária quando do seu primeiro ensaio dos anos 1930 sobre<br />

Käthe Kolwittz, originalmente uma conferência apresentada no Clube<br />

dos Artistas Modernos, o CAM de Flávio de Carvalho, passando pela<br />

abstração construtiva e pelo racionalismo arquitetônico), até repensá-<br />

-la no sentido de definir uma particular noção de “pós-moderno” –<br />

que o encaminhou para pensar tanto uma arte “ambiental” quanto<br />

uma arte de “retaguarda”, para manter vivo e possível um ideal de arte<br />

de “vanguarda” revolucionária. Ao lado da tarefa crítica e pedagógica,<br />

foi também um articulador de estruturas partidárias revolucionárias<br />

e de estruturas institucionais no campo das artes, no “auge” de sua<br />

militância artística.<br />

Para Mário Pedrosa (e com Mário Pedrosa) não se pensa arte sem<br />

política revolucionária – e vice-versa – ainda que a arte para ele deva<br />

ser, por princípio, um terreno autônomo (e aqui surge uma grande<br />

novidade em relação à elaboração estética do grupo uspiano). Sua<br />

definição de arte mais recorrente ficou célebre (e hoje infinitamente<br />

repetida, ao ponto de descaracterizar-se quase completamente): arte<br />

emancipadora (e não qualquer forma ou exercício artístico) significa<br />

o experimental da liberdade. Justamente por ser assim, a arte moderna<br />

(ou suas vertentes construtivas e críticas) foi até certo momento o<br />

melhor laboratório da experiência possível de uma utópica situação<br />

social emancipada. “Exercício” porque a arte é antes de tudo um fazer<br />

atento sobre as coisas; “experimental” porque o exercício artístico, ao<br />

organizar o mundo que a sociedade de classes faz confundir e alienar<br />

diante do trabalho mecânico e repetitivo, permite aos indivíduos (artistas<br />

ou “fruidores”) uma relação mais aberta e livre com a matéria,<br />

98 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


einventando o mundo para não perdê-lo; “liberdade” pois é justamente<br />

essa a utopia que esse fazer promete e configura.<br />

Desse modo, fica claro que para Pedrosa o potencial emancipatório<br />

da obra de arte não deriva de qualquer “atitude” ou “intenção” declarada,<br />

mas sim por exercitar a possibilidade de um fazer diferente<br />

que se consubstancia na imagem libertária de um fazer livremente.<br />

Um fazer que pode deslocar a reificação dos sujeitos e a subjetividade<br />

alienada, fazendo com que esses sujeitos renovados tomem para si seu<br />

“destino”. Mas fazer “livremente”, para a liberdade, não significa fazer<br />

qualquer coisa, porque fazer qualquer coisa é fazer exatamente aquilo<br />

que o mundo reificado ensina a fazer. Por isso nem toda forma de arte<br />

“vale” como exercício de liberdade. Daí vem a certeza do autor de<br />

que o crítico é aquele que expõe e discute critérios que não possam<br />

ser apropriados pela linearidade alienada da cultura.<br />

Aqui, creio que Pedrosa se aproxima de um princípio de Walter<br />

Benjamin, desenvolvido em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade<br />

técnica”, segundo o qual a tarefa do teórico da arte é criar<br />

conceitos que não possam ser “de modo algum apropriáveis pelo fascismo”<br />

(1986, p. 166) 9 . O crítico não é, portanto, nem o organizador<br />

do gosto burguês ou agente do “mercado” (o que essa figura de<br />

fato foi em sua origem 10 ) nem uma espécie de pedagogo ou juiz que<br />

decide caminhos. Ele é politicamente criterioso (tendo o “exercício<br />

experimental da liberdade” como horizonte): ao mesmo tempo que<br />

antecipa ações e significados, discute o rumo dos movimentos.<br />

A concepção geral da arte em Mário Pedrosa partia de uma “sábia<br />

dosagem de improvisação e erudição” (ARANTES in PEDROSA, 2000,<br />

p. 12), duas coisas que o diferenciam da geração uspiana (que, dentro<br />

de uma tradição universitária, jamais ligaria uma coisa à outra). De<br />

fato, à formação marxista básica e clássica ele foi adicionando um<br />

contato cotidiano com a produção plástica de sua época, ao mesmo<br />

tempo em que se apropriava e confrontava com desenvoltura autores<br />

vindos da teoria da arte (Riegl, Hildebrand, Worringer, Venturi), da<br />

filosofia (Hegel, Nietzsche, Husserl), da psicanálise (Freud, Charcot) ou<br />

os teóricos da Gestalt, além de alguns críticos profissionais seus con-<br />

9 Pedrosa foi certamente um dos primeiros leitores de Benjamin no Brasil.<br />

10 Sobre o tema, ver Adorno (1986).<br />

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temporâneos (Herbert Read, Romero Brest, Greenberg, entre muitos<br />

outros). Ao lado deles aparecem escritores como Baudelaire (talvez<br />

sua principal “inspiração”), Proust, Apollinaire ou os poetas e ensaístas<br />

do modernismo brasileiro, especialmente Mário de Andrade (e neste<br />

ponto ele se aproxima de seus colegas do Grupo Clima).<br />

Como para Antonio Candido e Paulo Emílio, Mário de Andrade é<br />

o vértice de um processo. Mas Mário Pedrosa acerta as pontas com o<br />

mestre de maneira particular. Em 1952, dez anos depois de Mário de<br />

Andrade fazer o seu necrológio do primeiro Modernismo e de si mesmo,<br />

Mário Pedrosa foi convidado a fazer também uma conferência<br />

para lembrar a Semana de Arte Moderna. O contexto era sumamente<br />

distinto, como se o Brasil fosse outro país (e de certa maneira era). No<br />

início do surto desenvolvimentista, em pleno gozo da redemocratização,<br />

após a fundação dos grandes museus de arte moderna (o MASP,<br />

o MAM de São Paulo e do Rio) e da I Bienal de Arte de São Paulo, o<br />

futuro parecia aberto. O Mário vivo propõe um diálogo com o Mário<br />

morto e docemente reinventa o futuro e o passado modernos. Pessimismo<br />

lá, otimismo aqui.<br />

Concordando com Mário de Andrade quanto ao “espírito” em transe<br />

nos anos 1920, Pedrosa localiza esse “espírito”: fala da experiência psíquica<br />

e “mágica” do contato com a pintura moderna propiciado pelas<br />

experiências de Anita ou Brecheret: para ele, foi a pintura que antecipou<br />

a revolução na literatura (e não o contrário, como nos acostumamos a<br />

pensar). Eis a tese: “A iniciação modernista deles começou a se fazer não<br />

através da literatura e da poesia mas através das artes especificamente<br />

não verbais da pintura e da escultura” (PEDROSA, 1998, p. 127).<br />

A representação plástica tradicional estaria mais arraigada na cultura<br />

conservadora do que a verbal (por isso ele destaca a história de Mário<br />

de Andrade sobre o escândalo causado em sua própria família quando<br />

ele apareceu com a escultura representando a cabeça de Cristo, feita<br />

por Brecheret). Porém, a linguagem plástica seria mais universal, daí ser<br />

mais aberta e própria aos problemas da criação e da expressão. Por isso o<br />

modernismo de 1922 não se restringiu a “uma escola literária confinada<br />

em um pequeno grupo isolado, como os simbolistas e pós-simbolistas<br />

do Rio”. A universalidade da arte propiciou inclusive que o melhor do<br />

nacionalismo modernista não ficasse preso às armadilhas do nacionalismo<br />

de “formas mais superficiais e estreitas”, sobretudo aquele em sua<br />

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forma “mais imbecil – a forma política” (p. 139). Pedrosa cita como o<br />

melhor exemplo do “bom” nacionalismo (quer dizer, de uma preocupação<br />

crítica com o local, com sua capacidade heurística genuína) o<br />

ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, influência decisiva<br />

no pensamento nacional crítico de Antonio Candido e Paulo Emílio.<br />

Para Mário Pedrosa, os pensadores tocados pelas artes visuais foram os<br />

mais abertos. Os “imbecis” nacionalistas eram justamente aqueles que<br />

não tinham, e refutavam, a sensibilidade plástica.<br />

Os modernistas brasileiros cumpriram rigorosamente o caminho<br />

emancipador da arte moderna, que para Pedrosa foi “uma reação ao<br />

ideal naturalista tradicional na cultura do ocidente e a proclamação da<br />

autonomia do fenômeno artístico”, o caminho do “espírito” contra a<br />

servidão “da religião, do Estado, das Igrejas, do rei, dos príncipes, dos<br />

nobres e finalmente dos ricos”. Ao caminhar para a abstração, a arte se<br />

dirige ao Mediterrâneo e, depois, graças ao imperialismo, às culturas<br />

“primitivas” (p. 139-141). Essa foi a verdadeira função do bom nacionalismo,<br />

cujo grande representante foi Mário de Andrade, que teria<br />

nos apresentado um “Brasil direto – natural, anti-ideológico”. Dessa<br />

lição saem Tarsila, Guignard, Pancetti ou Heitor dos Prazeres. Com<br />

Mário, mas também com o Pau-Brasil de Oswald de Andrade, abriu-se<br />

a porta para o primitivismo, a conquista anticultural do modernismo<br />

europeu, agora devidamente adaptada às condições locais: “O primitivismo<br />

foi a porta pela qual os modernistas penetraram no Brasil e a<br />

sua carta de naturalização brasileira” (p. 144) 11 .<br />

Assim, “pela primeira vez, jovens pintores brasileiros saem do Brasil<br />

por conta própria e vão a Paris tomar contato direto com a pintura<br />

viva, e não com o academismo morto”. Só depois, diz ele pensando<br />

no contexto varguista, é que o modernismo se divide entre esse<br />

primitivismo vitalista e universalista e o nacionalismo “de mera expressividade<br />

anedótica e pitoresca que degenera em modismos pre-<br />

11 Notemos de passagem que na Europa o primitivismo funcionou de maneira<br />

oposta. Em 1911, Franz Marc, profundamente tocado pelos seus estudos de<br />

escultura africana e peruana, escreveu: “Devemos ser corajosos e virar as costas<br />

a quase tudo o que até agora consideramos precioso e indispensável do<br />

nosso pensamento, se quisermos escapar do esgotamento e do nosso mau<br />

gosto europeu” (COLDWATER, 1967, p. 127).<br />

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conceituosos para terminar em estilo de tropos oratórios” (1998, p.<br />

145-148). Então, assumindo de vez o tom engajado da nova época,<br />

sob os ventos favoráveis do desenvolvimentismo e do novo tipo de<br />

engajamento institucional que o próprio Pedrosa advogará para esse<br />

momento, conclui:<br />

Pela primeira vez nesse Brasil pachorrento, inerte que no entanto começava<br />

a esboroar-se sob a desintegração da velha economia feudal e<br />

cafeeira, um punhado de jovens se levanta contra a modorra e clama<br />

que não somente nos domínios interessados da política os homens<br />

têm motivos de lutar, de brigar. A arte é cada vez mais, em nossos dias,<br />

uma atividade digna de por ela os homens, os melhores dentre eles,<br />

lutarem e se sacrificarem (p. 152) 12 .<br />

Em resumo, “por paradoxal que possa parecer, foi pela consciência<br />

do seu ‘internacionalismo modernista’, na expressão de Mário (de Andrade),<br />

que o movimento chegou – outra expressão de Mário – ao seu<br />

‘nacionalismo embrabecido’” (1998, p. 139). Aqui Pedrosa organizava<br />

as coisas ao seu modo (um modo parecido com aquele usado por<br />

Paulo Emílio para interpretar o nacionalismo russo). Nenhum nacionalismo<br />

é combativo (“embrabecido”) se não souber partir antes de um<br />

“internacionalismo” moderno. Ora, foi esse o caminho do nosso crítico,<br />

tanto quanto foi de sua geração, como vimos antes com Antonio<br />

Candido e Paulo Emílio. Seria também a partir de uma interpretação<br />

peculiar, e muito radical, desse “internacionalismo modernista” e de<br />

sua consequência como forma de agir dentro da tradição artística e<br />

política do país que Mário Pedrosa encontraria seu caminho particular.<br />

Sua atividade crítica partiria daí para compreender a História da Arte<br />

em um grande processo no qual, pelo menos desde o século XIX, a<br />

12 Cerca de vinte anos depois, em um de seus mais excepcionais textos, “A<br />

Bienal de cá para lá”, Pedrosa mudará sensivelmente essa abordagem cinquentista<br />

dos feitos da Semana. Ali, em meio aos horrores do Golpe militar e<br />

prestes a enfrentar mais um exílio (e mais uma derrota), ele explicará a semana<br />

a partir da imagem de um grupo aristocratizante, que ignorou a arte e a cultura<br />

populares (ele pensa nos artistas proletários que criaram, nos anos 1930, o<br />

Grupo Santa Helena) (PEDROSA, 1995).<br />

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arte se encaminharia para a abstração (seu caminho para a liberdade),<br />

privilegiando os momentos em que se apresenta o desmantelamento<br />

progressivo do naturalismo, do “acabado dos detalhes”, da “ilusão da<br />

matéria e do absoluto da cor dos objetos”. Uma crítica, enfim, que se<br />

pautava por “uma vocação nitidamente antinaturalista, portanto tectônica<br />

e abstrata” (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 13).<br />

Em um de seus mais ambiciosos ensaios, “Panorama da pintura<br />

moderna”, Pedrosa concluía, em uma criteriosa análise imanente da<br />

história da arte desde o Renascimento, que o projeto moderno se realizaria<br />

com a arte abstrata: “Um programa de preparação indireta e<br />

gigantesca para remodelar, através da visão em movimento, os modos<br />

de percepção e de sentir, e para conduzir a novas maneiras de viver.”<br />

Com sua liberação das estruturas da representação, no modernismo o<br />

tempo deixa de ser a questão decisiva: “O ‘x’ da questão agora é o espaço”<br />

(PEDROSA, 2000, p. 161-164). Para o crítico, Mondrian era “o<br />

jacobino da revolução modernista”, sua “depuração final”. Ou quase.<br />

Isso porque um artista como Max Bill, que apresentou na I Bienal uma<br />

escultura que causou entre os defensores do abstracionismo no Brasil<br />

o mesmo furor que Guernica trouxe aos expressionistas neofigurativos<br />

quando de sua aparição na II Bienal, em sua Unidade tripartida, mostrava<br />

uma nova dimensão da abstração capaz de conciliar “a dinâmica<br />

e a estática, numa noção de espaço já inseparável do tempo” (p. 173).<br />

Nesse ponto, poderíamos aproximar Pedrosa de um outro grande<br />

crítico, seu contemporâneo (e o mais importante da época), Clement<br />

Greenberg, ao qual foi bastante ligado por vínculos diversos, como<br />

a militância trotskista e a formação crítica criada dentro da esquerda<br />

norte-americana. Como se sabe, Greenberg também pautou sua crítica<br />

por um prisma “abstracionista”, centrado no conceito de planaridade<br />

que justamente se realizaria na arte abstrata norte-americana. Em um<br />

de seus ensaios mais discutidos (e discutíveis), “Vanguarda e Kitsch”,<br />

publicado originalmente em 1939, Greenberg defendeu a arte de vanguarda<br />

como uma resistência ao rebaixamento da “cultura” promovida<br />

pela lógica decadente da cultura burguesa. Nesse ensaio, ele segue<br />

uma explicação histórica aparentemente parecida com a de Pedrosa:<br />

“todas as verdades envolvidas pela religião, autoridade, tradição, estilo,<br />

são postas em questão, e o escritor ou artista não pode mais prever<br />

as respostas do seu público aos símbolos e referências com os quais<br />

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ele trabalha”, diz, provavelmente parodiando o Manifesto Comunista.<br />

Logo depois, se torna um pouco mais explícito, referindo-se a um<br />

novo tipo de crítica, a “crítica histórica”, que apresentou a “nossa ordem<br />

social burguesa não como uma condição ‘natural’, nem eterna,<br />

ad vida, mas simplesmente como o último termo em uma sucessão<br />

de ordens sociais”. A vanguarda nasceria daí e coincidiria com o mais<br />

“arrojado” tipo de “pensamento científico revolucionário na Europa”<br />

(GREENBERG, 1996, p. 23-24).<br />

A vanguarda política revolucionária deu a “coragem” para que o<br />

modernismo agredisse a cultura burguesa. Greenberg agradece. Agradece,<br />

mas deixa de lado. Uma vez constituída, a vanguarda abandona<br />

o barco da revolução política tanto quanto o da cultura burguesa. Sua<br />

função passaria a ser “manter a cultura em movimento”. Surge daí a<br />

“arte pela arte”, a “poesia pura”, e o “conteúdo torna-se algo a ser<br />

evitado como uma praga”. Essa é a busca do absoluto que leva à formação<br />

da arte abstrata. Um “cordão umbilical de ouro” liga vanguarda<br />

à classe dominante. Na medida em que esta estaria em via de desaparecer,<br />

ou “encolhendo”, a vanguarda também estaria em perigo. E ela<br />

precisa ser defendida, na medida em que é o último bastião da elite<br />

esclarecida que defende a “Cultura”.<br />

Como se pode notar sem muito esforço, as diferenças com Pedrosa<br />

são enormes e significativas. Em termos histórico-formais, para o crítico<br />

brasileiro a questão da bidimensionalidade modernista nunca chegou<br />

a ser a mais decisiva, ao mesmo tempo em que a presença de uma<br />

concepção de totalidade social na produção (marca marxista da qual<br />

o crítico brasileiro jamais se distanciou) não lhe permitia analisar a história<br />

da arte de um ângulo predominantemente “interno” ou “endógeno”,<br />

como o crítico norte-americano. Essas posições são suficientes<br />

para distanciar significativamente Pedrosa das posições “formalistas”<br />

(de que foi tanto e tão injustamente acusado) ou da euforia diante<br />

dos arroubos subjetivistas das correntes expressionistas abstratas (que,<br />

como se sabe, Greenberg tanto defendeu).<br />

Mas não é só isso. No caso de Greenberg, como no de Pedrosa, a<br />

origem trotskista de ambos (sobretudo no que tange à discussão da<br />

independência da arte diante do contexto específico do engajamento<br />

revolucionário) encaminhou duas leituras próximas, porém com resultados<br />

completamente diferentes.<br />

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Lembrando seus tempos de engajamento na Nova York dos anos<br />

1930, Greenberg escreveu: “Algum dia será preciso contar como o<br />

‘antistalinismo’, que começou mais ou menos como ‘trotskismo’, tornou-se<br />

arte pela arte, e desta forma abriu caminho, heroicamente,<br />

para o que viria depois” (1996, p. 235). Ora, para Mário Pedrosa, a<br />

questão dessa peculiar regressão à “arte pela arte” jamais foi colocada.<br />

Antes o contrário. Para ele o moderno era o resultado da anticultura<br />

(quer dizer, da negação da cultura burguesa acomodada, institucionalizada<br />

e rigorosamente antirrevolucionária), daí seu “primitivismo”,<br />

fundamentalmente antielitista, e da aventura da liberação experimental<br />

das formas (a aventura da abstração), promovendo um reinventar<br />

da experiência e das consciências. Isso ele chamou de autonomia,<br />

nesse sentido desdobrando os princípios fundamentais do famoso<br />

manifesto “Por uma arte revolucionária independente”, assinado por<br />

Trotski e André Breton 13 .<br />

Na crítica de Mário Pedrosa, a história (compreendida dialeticamente)<br />

assumia a dimensão decisiva, na medida em que ele sempre levava<br />

em “conta a mediação das relações de produção, de classe, as injunções<br />

do mercado, tanto quanto a maior ou menor consciência social<br />

de um povo ou de um artista na obra analisada”. Para ele, a arte antes<br />

de ser mero produto ideológico, sobredeterminado por condicionantes<br />

externos, acenava<br />

para um mundo outro, reconciliado, a lembrar uma ‘ordem cósmica’,<br />

porém recriada pelo homem. Por isso mesmo, a grande utopia<br />

de Mário Pedrosa (como ele mesmo repetiu à exaustão) era o advento de<br />

uma grande ‘arte sintética’, cujos delineamentos preliminares buscava<br />

permanente e obsessivamente desentranhar das manifestações mais<br />

autênticas da arte moderna (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 14).<br />

13 Diz o Manifesto: “A arte verdadeira, a que não se contenta com variações<br />

sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades<br />

interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária,<br />

tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade.<br />

(in FACIOLI, 1985, p. 37-38). Não deixa de ser sintomático desses caminhos<br />

diversos que, nos anos 1970, enquanto Pedrosa amargava seu terceiro exílio<br />

político, Greenberg usasse de sua autoridade de ex-marxista para defender a<br />

invasão norte-americana no Vietnã.<br />

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Essa busca da síntese, da utopia da arte “sintética” (que ora lhe apareceu<br />

nos desdobramentos do concretismo, em sua vertente neoconcreta,<br />

ora na síntese da arquitetura funcionalista, escultural e racional brasileira<br />

no auge de nosso sonho desenvolvimentista) fundamenta ainda melhor<br />

a máxima da arte como “exercício experimental da liberdade”. Sua missão<br />

seria “extravasar no mundo vivido aquele conteúdo que precisou<br />

de liberdade para decantar-se segundo leis próprias” (ARANTES, 1991,<br />

p. XII-XVI ). Nada a ver, uma vez mais, com qualquer exercício formalista,<br />

nem greenberguiano, nem pós-moderno. Em 1955, explicando o<br />

significado do Grupo Frente e de seu “horror ao ecletismo”, ele definiu<br />

perfeitamente a diferença entre a “arte pela arte” e a busca da arte autônoma<br />

em seu exercício experimental de liberdade:<br />

A arte para eles não é atividade de parasitas nem está a serviço de ociosos<br />

ricos, ou de causas políticas ou do Estado paternalista. Atividade autônoma<br />

e vital, ela visa a uma altíssima missão social, qual seja a de dar estilo à<br />

época e transformar os homens, educando-os a exercer os sentidos com<br />

plenitude e a modelar as próprias emoções”( PEDROSA, 1998, p. 248).<br />

No plano brasileiro, essa concepção era bastante original, e tinha<br />

consequências. Pois no Brasil, a noção de “vanguarda” foi vulgarmente<br />

assimilada como sinônimo de “experimentação” destinada a ofuscar<br />

“passadistas” e “atualizar” com as vogas e modas internacionais. E aqui<br />

os pontos que ligam o militante marxista que se fez crítico de arte com os<br />

jovens universitários paulistas se tornam mais visíveis. Com Mário<br />

Pedrosa, o sentido da ideia de vanguarda na condição moderna se torna<br />

peculiarmente mais radical: liberar uma sociabilidade reprimida e alienada;<br />

ser negativa e antiburguesa, buscando passar do mundo vivido à<br />

arte e dessa para o mundo, de volta. É nesse ponto que podemos entender<br />

seu interesse pela arte produzida pelos loucos e pelas crianças,<br />

bem como sua valorização constante da arte “primitiva”, sobretudo a<br />

dos povos pré-colombianos. Isso não apenas porque aí poderíamos encontrar<br />

uma arte produzida por consciências ainda não alienadas pela<br />

linearidade da concepção burguesa de mundo (e de arte), mas porque<br />

militar por essas causas permitia resguardar a arte como necessidade e<br />

direito de expressão “que está em todo ser vivo, em todo ser humano,<br />

psicótico ou inocente” (PEDROSA, 1995, p. 256).<br />

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Esse direito de expressão “que está em todo ser vivo”, ou seja, é<br />

rigorosamente universal, ganha, no contexto de luta do terceiro mundo,<br />

da periferia dependente, um sentido nada “abstrato”, mas sim<br />

politicamente concreto, localizado e operacional. Comentando a IV<br />

Bienal, Pedrosa atacava duramente o elitismo “cosmopolita” incorporado<br />

pelo poderoso diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York,<br />

Alfred Barr Jr., que ridicularizava o esforço dos latino-americanos para<br />

incorporar (e transformar) a arte abstrata construtiva: “O intrigara até<br />

a irritação o fato de jovens daqui e da Argentina se terem entregado<br />

a experiências chamadas concretistas. Irrita-o ainda a influência que<br />

Max Bill, por exemplo, chegou a exercer por nossas paragens”. E pergunta:<br />

“Que preferia o ilustre ex-diretor do MOMA de Nova York?<br />

Que os jovens artistas brasileiros ou argentinos se deixassem influenciar<br />

mais uma vez por Picasso, Rouault, Soutine ou mesmo por algumas<br />

das glórias descobertas pelo mesmo museu, gênero Peter Blume?”<br />

(PEDROSA, 1998, p. 280).<br />

Pois nossa pintura estaria na contramão do “gosto eclético hoje<br />

dominante em Paris ou em Nova York. E não encontrando nada que afagasse<br />

seus hábitos, (Barr Jr.) desviou-se, como todo estrangeiro importante<br />

faz ao chegar às nossas plagas, na procura de tabas de índios e de<br />

revoada de papagaios”. Os estrangeiros só querem “exotismo”, “não<br />

gostam de permitir aos nossos artistas uma pesquisa, uma linguagem<br />

moderna e não ao gosto do momento nos grandes centros europeus”.<br />

Os ricos, os europeus e norte-americanos, desejam o irracional: “Têm<br />

horror, como homens cansados de cultura e de experiências estéticas,<br />

a tudo que lembre estrutura, ordem, disciplina, tensões, otimismo,<br />

beleza plástica, em suma.” Nossos artistas resistem a isso, apropriam-<br />

se da cultura “universal” e a reinventam para tomar para si seu destino.<br />

Isso era a autonomia, na visão de Mário Pedrosa, “sentimento de<br />

independência que vai se generalizando entre os melhores de nossos<br />

artistas”. Um “embrião de escola, cujas características fundamentais é<br />

cedo para tentar definir e cuja designação ainda, portanto, é difícil de<br />

dar” (1998, p. 280). Creio que isso que ele antevê será o neoconcretismo,<br />

mas é também, e ao mesmo tempo, um projeto de emancipação<br />

nacional, terceiro-mundista e, aí sim, efetivamente internacional.<br />

Em um ensaio chamado exatamente “Paradoxo da arte moderna<br />

brasileira”, já quase eufórico com as novas possibilidades de união e<br />

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síntese entre o local e o cosmopolita (o projeto de sua geração, como<br />

vimos em Antonio Candido e Paulo Emílio também), Pedrosa diz:<br />

Não estará saindo desse paradoxo, dessa ‘vontade profunda’ o embrião<br />

ainda precário, mas já existente, de uma arte brasileira moderna<br />

e autóctone, isto é, autenticamente regional, de saborosos e fortes<br />

acentos dialetais, na grande linguagem abstrata universal? Como já é o<br />

caso com a nossa arquitetura” (PEDROSA, 1998, p. 319).<br />

Assim, para Mário Pedrosa (esse “socialista singular” como o definiu<br />

Antonio Candido” (in MARQUES NETO, 2001, p. 14)) a crítica tinha<br />

que ser sempre, como dizia Baudelaire, “parcial, apaixonada e política”<br />

para contribuir para a utopia emancipatória da arte e da vida, ideia<br />

que não era estranha ao princípio crítico de Paulo Emílio, como vimos.<br />

Por isso Mário Pedrosa não pode ser visto apenas como um teórico<br />

das vanguardas estéticas no Brasil, mas também (e ao mesmo tempo)<br />

como seu crítico. Pois<br />

a consciência dilacerada não é hoje apenas a consciência do povo, das<br />

massas, das classes: é também das elites e das vanguardas. A arte é um<br />

esforço perene de superação da consciência dilacerada. Ela é por isso<br />

mesmo vencida sempre, substituída por outro esforço, e assim indefinidamente<br />

até o ser da sociedade deixar de ser dilacerado (PEDROSA,<br />

1995, p. 275).<br />

Do mesmo modo, a atuação política socialista tem de ser ela mesma<br />

experimental, uma vez que<br />

o socialismo não consiste apenas na conquista do poder pelo proletariado<br />

e na execução das reformas de estrutura com a socialização dos<br />

meios de produção. O socialismo é a ação consciente, quotidiana e<br />

constante das massas, mas por elas mesmas e não por meio de uma<br />

“procuração” a um partido de vanguarda mais consciente (PEDROSA<br />

apud MARQUES NETO, 1993, p. 252).<br />

Trata-se, portanto, de uma concepção da revolução e do partido<br />

como uma experiência radical em processo constante de transforma-<br />

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ção e elaboração. Como se vê, o decisivo é defesa da utopia de uma<br />

arte autônoma e de uma política de massas, progredindo por rupturas<br />

em direção ao exercício da transformação da sociabilidade mais ampla.<br />

Essa concepção utópica, aprendida no Manifesto “Por uma arte<br />

revolucionária independente”, foi perseguida por Pedrosa, que entretanto<br />

soube ver, no percurso da história, a configuração de suas crises<br />

e de seus impasses.<br />

De fato, no final de sua vida, já diante do naufrágio das utopias construtivas<br />

na arte moderna, na vida social brasileira (após o Golpe Militar<br />

de 1964 e o fim da etapa desenvolvimentista) e da virada liberal do<br />

capitalismo internacional, ele percebeu a relativa falência da forma de<br />

intervenção que a arte moderna representou: “A sociedade de consumo<br />

de massas não é propícia às artes”, e especialmente “à arte moderna,<br />

com suas exigências de qualidade e não ambiguidade”. Por isso era<br />

inevitável perceber que uma “arte pós-moderna” tinha início:<br />

É que entre aquela e o povo, a sociedade de consumo de massa se interpôs<br />

pela comunicação de massa que deu à imagem uma força atributiva<br />

maior do que a palavra, e forneceu à indústria, ao poder da publicidade,<br />

suas invencíveis armas ofensivas. A chamada cultura de massa e arte<br />

de massa já não tem, entretanto, forças para deter a debandada geral<br />

(PEDROSA, 1998, p. 282-283).<br />

Esse “esvaziamento” utópico levou Mário de volta ao desejo da intervenção<br />

política, ao retorno ao partido socialista de modo a salvar<br />

a utopia que a arte não podia mais reter em si e exercitar livre e experimentalmente.<br />

No final dos anos 1970 (perto de sua morte), de<br />

novo mais crítico socialista da cultura política do que crítico da política<br />

das artes, ele avaliava a conjuntura político-cultural atacando tanto o<br />

flanco dos velhos vanguardistas da arte quanto das velhas políticas dos<br />

comunistas da América Latina.<br />

Desde as ditaduras militares na América Latina e a Guerra do Vietnã<br />

até o final de sua vida, Pedrosa iria reunir em seu esforço de interven-<br />

ção política uma série de textos e ações destinados a repensar a atuação<br />

política em tempos de transformações da ordem capitalista mundial.<br />

Nesse sentido é que elaborou dois alentados volumes e diversas reflexões<br />

sobre a nova face do imperialismo norte-americano, sobre o<br />

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significado do fim de qualquer sonho utópico possível em relação ao<br />

comunismo soviético e sobre a nova “cultura” da fase pós-industrial<br />

do capitalismo (que acompanhava sua leitura da arte “pós-moderna”).<br />

É o caso dos livros pioneiros A opção imperialista e A opção brasileira.<br />

Como ele mesmo explicou no prefácio de A opção imperialista,<br />

sua intenção nesse momento era “indicar a linha de forças que impõe<br />

ao Brasil uma distorção que o desnatura, se não o faz definhar ou mesmo<br />

perecer”, bem como “definir aos brasileiros a retificação que se impõe<br />

para fazê-lo reencontrar seu próprio destino” (PEDROSA, 1966, p. 2).<br />

No momento histórico daquilo que ele chamou de “internacionalismo<br />

burguês multinacional”, ou de arte pós-moderna, era preciso<br />

pensar além da arte e da política. E ele pensou o seguinte:<br />

Estou pensando em escrever um livro sobre as multinacionais ou a<br />

teoria da contrarrevolução mundial. Eles têm um projeto, fundado em<br />

uma tecnologia cada vez mais desumana. Um domínio da civilização<br />

do hotel Hilton. O que eles querem fazer é a civilização do hotel Hilton!<br />

Baseada no plástico, nessa matéria-prima que nada tem a ver com<br />

a organicidade da natureza e da terra, implantando uma civilização<br />

falsa. Isso é a teoria da contrarrevolução mundial, internacionalmente.<br />

É preciso um rearmamento ideológico fantástico para continuar a luta<br />

ideológica, que não se encontra mais em lugar nenhum (PEDROSA in<br />

MODERNO, 1984, p. 34).<br />

Nesse ponto, ele parou e abandonou a crítica de arte. Nesse ponto, a<br />

ideia da formação de uma crítica materialista da produção cultural nas<br />

condições brasileiras, que também se fundasse na crítica da configuração<br />

social do capitalismo contemporâneo, também parou, na medida<br />

em que o desmanche trazido pelo fim da etapa desenvolvimentista<br />

e do nosso ambíguo projeto de “civilização” estancou a veia crítica e<br />

abriu caminho para o ecletismo e a despolitização contemporânea.<br />

É desse ponto que nós devemos recomeçar, se de fato quisermos<br />

continuar a luta contra “a civilização do Hotel Hilton”, sobretudo aqui<br />

dentro do nosso Planeta Favela. Se não me enganei terrivelmente nas<br />

páginas anteriores, creio que os três críticos que vimos são uma fonte<br />

ainda fresca de possibilidades para se pensar para além do que nos<br />

tornamos.<br />

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REfERêNCiAS<br />

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Paulo: EDUSP, 2000.<br />

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111


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São Paulo: Paz e Terra: Cemap, 1985.<br />

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Paz e Terra: Embrafilme, 1980.<br />

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MARQUES NETO, J. C. A solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens<br />

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contra política no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 1984.<br />

PEDROSA, M. Acadêmicos e modernos. São Paulo: EDUSP, 1998.<br />

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PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: EDUSP, 1995.<br />

PONTES, H. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940<br />

– 1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />

ROCHA, G. Origens de um cinema novo. In: ROCHA, G. Revisão crítica do<br />

cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.<br />

SANTIAGO, S. Sobre plataformas e testamentos. In: SANTIAGO, S. Oras<br />

(direis) puxar conversa!: ensaios literários. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,<br />

2006.<br />

112 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


SCHWARZ, R. Originalidade da crítica de Antonio Candido. Novos Estudos<br />

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SCHWARZ, R. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />

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SCHWARZ, R. Que horas são. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />

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GoNÇALo m. tAvARES:<br />

o ENSAio, A DANÇA,<br />

o ESPÍRito LivRE<br />

Júlia Studart<br />

114 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Este artigo propõe uma leitura crítica do trabalho do escritor contemporâneo<br />

Gonçalo M. Tavares – concentrando-se no seu primeiro livro, Livro da Dança,<br />

publicado em 2001 – a partir de três questões principais: o ensaio, como experiência<br />

intelectual livre, método ou modelo literário e também como ato em si,<br />

repetição, treino; a dança, uma saída da condição habitual e um desequilíbrio,<br />

a invenção de um corpo-bailarino que toca a experiência do ensaio como palco<br />

de uma experiência intelectual aberta e contaminada com questões que são retiradas<br />

da filosofia e da dança; e, por fim, o espírito livre, conceito de Nietzsche,<br />

que remete a um espírito leve e que ri, aquele que detém o alegre saber. A<br />

literatura de Gonçalo M. Tavares como um livro-ensaio aberto que escolhe o<br />

texto como um laboratório de sensações; uma situação sempre experimental<br />

que se assemelha a um estado de dança, em um procedimento anacrônico,<br />

livre e descontínuo.<br />

Palavras-chave: ensaio; dança; espírito livre<br />

This article proposes a critical reading of the work of Gonçalo M. Tavares – focusing<br />

on his first book, Book of Dance, published in 2001 – based on three<br />

main issues: the rehearsal, as a free, intellectual experience, method or literary<br />

model and as the act itself, repetition, practice; the dance, a leaving of the<br />

usual condition and an imbalance, the invention of a body-dancer that uses the<br />

rehearsal’s experience as a stage for an open intellectual experience, contaminated<br />

with questions drawn from the philosophy and dance; and, finally, the<br />

free spirit, Nietzsche’s concept, which refers to a light spirit that laughs, one<br />

who holds the joyful knowledge. The literature of Gonçalo M. Tavares as an<br />

open book-of-rehearsal, that chooses the text as a laboratory of sensations; an<br />

ever experimental situation that resembles a state of dance, a free, anachronistic<br />

and discontinuous procedure.<br />

Keywords: rehearsal; dance; free spirit<br />

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1 o ENSAio, mÉtoDo É DESvio<br />

Gonçalo M. Tavares publica seu primeiro livro em Portugal em 2001<br />

(Assírio & Alvim), intitulado Livro da dança, 1 um poema longo dividido<br />

e numerado em 114 fragmentos, que também se aproxima muito do<br />

ensaio, como uma primeira hipótese. O livro mantém uma relação<br />

direta com questões da filosofia e com questões que parecem ter sido<br />

retiradas de um pensamento da dança e para a dança, como será demonstrado<br />

mais adiante. Ele saiu no Brasil em 2008 (Editora da Casa),<br />

com uma versão diferente da edição portuguesa, pois o texto parece<br />

indicar para outro desdobramento da linha, do verso, como alguns<br />

versos que descem e outros que ficam menores, com trechos inteiros<br />

removidos, o que marca ainda mais a imprecisão do gesto da dança,<br />

do movimento solto do corpo: a coreografia do corpo leve e do poema<br />

como um corpo que pode sempre ser outra coisa. No trabalho de<br />

Gonçalo M. Tavares a dança e o corpo vêm como um acidente mútuo,<br />

um gesto que pode e deve ser rearticulado de outra maneira e assim<br />

sucessivamente, em um sem-número de combinações infinitas, como<br />

um ensaio infinito. Na edição brasileira, os poemas, os fragmentos,<br />

que parecem vir em menor número, perdem a numeração, ganham<br />

títulos e são organizados em um sumário que aparece pela primeira<br />

vez. Dessa forma, o ensaio, no trabalho de Gonçalo M. Tavares, pode<br />

ser entendido de duas maneiras distintas e complementares.<br />

1 Esse primeiro livro foi definido pelo próprio escritor como “investigação”, termo<br />

ou “etiqueta” que constitui uma espécie de “modo de uso” ou de “como<br />

ler”, etiqueta que é também um nome de uso para identificar uma série de<br />

livros que mantêm entre si uma linha ou uma fronteira de texto comum. Essas<br />

etiquetas aparecem, principalmente, nas listagens dos livros que podem ser encontradas,<br />

por exemplo, no começo ou ao final de alguns de seus livros, quase<br />

sempre acompanhadas da biografia do autor. O termo “etiqueta” aparece no<br />

site oficial de Gonçalo M. Tavares (http://goncalomtavares.blogspot.com/). Elas<br />

se dividem em “Livros pretos – O Reino”, “Livros pretos – Canções”, “O Bairro”,<br />

“Estórias”, “Enciclopédia”, “Bloom Books”, “Poesia”, “Teatro”, “Arquivos”,<br />

“Investigações”, “Epopeia” e “Short Movies”. Dessa forma, e até agora, já que<br />

todos os projetos estão abertos e em processo, o Livro da dança faz parte de<br />

um grupo de três livros que formam as suas investigações, juntamente com o<br />

Investigações. Novalis (2002) e o Investigações geométricas (2004).<br />

116 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


A primeira, como método ou modelo literário, procedimento de reflexão<br />

crítica ou estudo sobre algo, que é o caso, por exemplo, desse<br />

livro em que as reflexões acerca do movimento, do corpo e da dança<br />

já aparecem para depois se expandir por todo o seu projeto. Theodor<br />

Adorno, em seu conhecido texto “O ensaio como forma”, publicado<br />

em 1958, no volume intitulado Notas de literatura, diz que o ensaio é<br />

uma espécie de entusiasmo infantil, que faz com que alguém, como<br />

uma criança, tenha imensa disposição para algo e não tenha “vergonha<br />

de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (ADORNO, 2003,<br />

p. 16), uma sorte de felicidade e de jogo que exige certa liberdade de<br />

espírito, um corpo livre e disponível para tal tarefa. Assim, o ensaio<br />

seria mais ou menos como um espírito livre, inacabado e aberto que,<br />

ainda na proposição de Adorno, “diz o que a respeito lhe ocorre e<br />

termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a<br />

dizer” (ADORNO, 2003, p. 17). Dessa forma, ele ocuparia um lugar entre<br />

os despropósitos, entre desatino e disparate, um excesso de desejo<br />

e atenção sobre algo, um pensamento fragmentado e relativizado que<br />

na maior parte das vezes é um pensamento sobre algo absolutamente<br />

efêmero e mutável, que recua diante de dogmas e de interpretações<br />

rígidas e universais. Gonçalo M. Tavares, por sua vez, procura transitar<br />

nessa “experiência intelectual” livre, o “ensaio”, articulado como um<br />

pensamento descontínuo, sempre um conflito em suspenso. Nas palavras<br />

de Adorno: “A descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto<br />

é sempre um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35); assim, o<br />

Livro da dança de Gonçalo M. Tavares toma o exercício do ensaio como<br />

um pensamento para todos os lados, sem sentido único, ou seja, toma<br />

o próprio corpo [corpo orgânico e corpo do texto: “De qualquer modo<br />

a dança” e “De qualquer modo o corpo contém o dia” (TAVARES, 2001,<br />

p. 22)] como “palco da experiência intelectual”. Adorno propõe que<br />

o ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação<br />

recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual.<br />

Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações,<br />

o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso,<br />

os vários momentos se entrelaçam como em um tapete. Da densidade<br />

dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador,<br />

na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da ex-<br />

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periência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional<br />

também se alimente dos impulsos dessa experiência, ele acaba<br />

eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O<br />

ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto,<br />

como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação<br />

através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por<br />

assim dizer, metodicamente sem método (ADORNO, 2003, p. 29-30).<br />

O livro-ensaio aberto, que Gonçalo M. Tavares apresenta em seu<br />

projeto desde o Livro da dança, também elege essa “experiência<br />

intelectual” como modelo, como laboratório de sensações, 2 uma situa -<br />

ção sempre experimental, como processo, em um trabalho que resulta<br />

“metodicamente sem método” em liberdade de espírito, em um<br />

procedimento anacrônico, livre e descontínuo, aberto e fechado ao<br />

mesmo tempo. E nenhum outro procedimento estaria tão próximo de<br />

um estado de dança como o ensaio, na “liberdade que dá ao objeto<br />

a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente<br />

na ordem das ideias” (ADORNO, 2003, p. 41).<br />

A segunda maneira de ler o ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares<br />

é, principalmente, perceber o ensaio como ato em si, como ação,<br />

movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como uma coreografia,<br />

uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que<br />

2 Essa expressão é um desdobramento do estudo de José Gil sobre Fernando<br />

Pessoa, o primeiro capítulo do livro intitulado Fernando Pessoa ou a metafísica<br />

das sensações, que se chama “Laboratório Poético”. José Gil (1987, p. 13)<br />

comenta que Bernardo Soares tem por característica essencial “o facto de não<br />

viver nem escrever senão em situação experimental. O laboratório poético<br />

de Pessoa está em plena actividade no Livro do Desassossego”. Não à toa<br />

José Gil assinala que Bernardo Soares escreve apontando para um movimento<br />

neutro e para um estado larvar de consciência, uma consciência vazada em<br />

uma prosa nítida e com penetração; diz ele: “Não há nada para lá ou para cá<br />

dos fragmentos, do que estes narram: estados larvares de consciência, e uma<br />

consciência dessa consciência vazada nos moldes de uma prosa extremamente<br />

nítida, impressionante de penetração e rigor” (1987, p. 15). Pode-se dizer, de<br />

alguma maneira, que esse procedimento é um estado de dança, mesmo que<br />

ainda embrionário, mas sempre tocado pela repetição do gesto: eis o ensaio<br />

do qual Gonçalo M. Tavares parece tomar posse como despossessão.<br />

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treina, que ensaia. O ensaio seria aquilo que tenta “Treinar a nudez”<br />

e “Experimentar a roupa nua” (TAVARES, 2001, p. 40), diz ele. Ou<br />

seja, uma série de movimentos e de suspensão de movimentos que<br />

devem ser incorporados ao corpo do bailarino por meio de um hábito<br />

nu, de uma rotina nua de trabalho, de treino (exercitar, acostumar, ensaiar<br />

etc.), até que se saiba apenas o próprio corpo-movimento de cor,<br />

incorporado, ou seja, com o coração; e até que o corpo seja pensamento<br />

e resistência, corpo-pensamento-resistência, uma intensidade.<br />

Como sugere Alain Badiou, a partir de Nietzsche, quando fundamenta<br />

a dança como uma metáfora do pensamento, um corpo-pensamento.<br />

Segundo Badiou, ela é exatamente uma intensificação, um pensamento<br />

efetivo no lugar, e não exterior a ele, que se intensifica sobre si<br />

mesmo ou que representa o movimento de sua própria intensidade<br />

(BADIOU, 2002, p. 81). Porque a primeira maneira de ler-escrever<br />

o ensaio e a segunda maneira de ler-escrever o ensaio, ambas, têm a<br />

ver com corpo livre, desejo, estrato, afecção, modos de ser da escrita.<br />

Gonçalo M. Tavares indica em um poema intitulado “O mapa”– citado<br />

a seguir, que pertence ao “livro sete (Autobiografia)”, do livro de<br />

poemas 1, 3 publicado em 2004 –, a sua perspectiva de erro e impossibilidade<br />

de resposta à pergunta “Por que optei por escrever?” como<br />

um motor para seu modo de escrita. A resposta convulsa e imediata à<br />

pergunta é: “Não sei.” Com isso, no poema, ao advertir que a matemática<br />

é uma presença física de método, ele invade a interrogação de<br />

3 O livro de poemas 1 configura quase uma antologia de oito pequenos livros,<br />

de oito projetos aparentemente distintos. Foi publicado em Portugal em 2004<br />

(Relógio D’Água) e no Brasil, em 2005 (Bertrand Brasil). Os livros que compõem<br />

o projeto 1 estão divididos e nomeados como livro um, livro dois, livro<br />

três e assim sucessivamente até o livro oito. Os títulos dos livros, pistas de sua<br />

aparente distinção são, respectivamente, Observações, Livro dos ossos, Atenas<br />

e a metafísica, Frio no Alaska, Homenagem, Explicações científicas e outros<br />

poemas, Autobiografia e Livro das investigações claras. É de se notar que estes<br />

títulos de livros, de alguma maneira, acompanham os títulos que Gonçalo M.<br />

Tavares atribuiu a alguns poemas do Livro da dança na edição brasileira, porque<br />

perseguem a sua ideia de uma poética do movimento que é, ao mesmo tempo,<br />

uma poética de releitura da metafísica e uma tentativa de interferir nela: “Exibição”,<br />

“Sobre o osso”, “A técnica”, “Definição de função”, “Aprendizagem”,<br />

“Indicações quase gerais”, “Biografia e prestígio”, “Coração e cicatriz” etc.<br />

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Bernardo Soares, comezinha e lançada ao chão do moderno, como<br />

um “desassossego”, e procura incessantemente constituir uma correspondência<br />

entre algumas imagens (pelas quais pede desculpas) e essa<br />

pergunta de resposta taxativa e instantânea, mas que não diz nada:<br />

Sempre senti a matemática como uma presença<br />

Física; em relação a ela vejo-me<br />

Como alguém que não consegue<br />

Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado Apertada<br />

nas mangas.<br />

Perdoem-me a imagem: como<br />

Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja<br />

E provocar com a nossa indiferença o desejo<br />

Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um<br />

Mundo onde entro para me sentir excluído;<br />

Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação<br />

Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,<br />

Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever<br />

Não é mais inteligente que resolver uma equação;<br />

Por que optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:<br />

Entre a possibilidade de acertar muito, existente<br />

Na matemática, e a possibilidade de errar muito,<br />

Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar<br />

Mais ou menos sem meta) optei instintivamente<br />

Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa<br />

(TAVARES, 2005, p. 161, grifo do autor).<br />

O poema é uma proliferação deliberada de palavras e faz uso de<br />

uma circunstância da matemática como ponto de partida, porque a<br />

matemática é uma ciência que estuda objetos abstratos (entre eles os<br />

números, as figuras, as funções, as noções de ordem e tantos outros,<br />

daí uma ideia em torno das fabulações da astrologia, dos destinos,<br />

da imaginação de mundos e de universos, da constituição dos mapas<br />

etc.) e as tantas relações existentes entre esses objetos, com um<br />

procedimento sempre suspeito, o do método dedutivo. E um método<br />

que utiliza a dedução não pode ser senão um método que provoca<br />

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desejo no outro: um mundo onde se entra para a sensação do fora,<br />

de exclusão, por isso pode tratar o “infinito”, por exemplo, como um<br />

“objecto exacto”. No fragmento 67 do Livro da dança, intitulado na<br />

edição brasileira como “Um objecto exacto”, ele inscreve:<br />

Entreter o infinito.<br />

Tratar o infinito como objecto, atirá-lo ao chão, partir-lhe a FACE,<br />

curar-lhe as feridas, chamar pelo pai e pela mãe; dar-lhe pão à boca<br />

no dia das doenças, contar-lhe os ossos e, por fim, desprezá-lo.<br />

Entreter o infinito.<br />

Tratar o infinito como objecto.<br />

(TAVARES, 2001, p. 81).<br />

Neste “Um objecto exacto”, note-se, há um convite para deslocar o<br />

infinito de sua abstração numérica e jogá-lo ao chão para quebrá-lo ao<br />

meio, partir a sua face e, principalmente, dar a ele fome, contar seus ossos<br />

e desprezá-lo. Ou seja, dar a ele um corpo, a doença, uma possibilidade<br />

de morte, medo e, como paradoxo, alguma exatidão. O poema<br />

“O mapa”, então, nos apresenta sensações que tocam, principalmente,<br />

algo muito próximo de uma exterioridade, um não sentido da escrita.<br />

Assim, a sua tentativa de resposta pelas possibilidades de acertar muito,<br />

que vêm da matemática, e das de errar muito, que vêm da literatura.<br />

Daí o gesto mais ou menos sem meta nos modos de sua escrita que o<br />

poema já sugere: nada para lá, nada para cá do poema. A conclusão,<br />

na última linha, é categórica, “Escrevo porque perdi o mapa”, mas também<br />

não diz muita coisa, porque um mapa é sempre uma composição<br />

ficcional de um lugar imaginário ou imaginado, construído a partir do<br />

método dedutivo, como um ensaio, movido por uma errância sem método<br />

para atingir uma suposta meta 4 . E, assim, se meta tem a ver com<br />

4 Não por acaso, Gonçalo M. Tavares desenvolve um projeto intitulado “O<br />

Bairro”, que parte de um mapa. Esse mapa é a ficção de um lugar imaginário<br />

ou imaginado, também construída a partir do método dedutivo, sempre como<br />

um ensaio e movida pela errância sem método. Nesse bairro moram escritores,<br />

críticos, filósofos, uma bailarina e coreógrafa (Pina Bausch), que ele chama<br />

de “Senhores”. Esse “O Bairro” é também uma recuperação de sua afirmação:<br />

“Escrevo porque perdi o mapa.”<br />

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limite, fim, termo, remate ou, quiçá, equação resolvida, o que se pode<br />

espaçar depois disso – e a partir do movimento da escrita e seus modos<br />

de operação crítica – é uma errância. E toda errância tem vínculo com<br />

liberdade, com espírito livre e, principalmente, com erro.<br />

Há dois fragmentos do Livro da dança que vêm da anotação do erro,<br />

como título e sugestão, e demarcam a interdição de um pressuposto de<br />

escrita. Na edição portuguesa são os fragmentos 42 e 43, na edição<br />

brasileira se chamam, respectiva e propriamente, “Erro” e “Conselho<br />

consequência da definição de erro”, mas não há alterações dentro dos<br />

textos entre uma edição e outra. É interessante observar que o procedimento<br />

desses fragmentos exemplifica, de algum modo, o princípio<br />

de um plano para a escrita que é constituir um gesto circular e repetitivo<br />

para movê-la, para fazê-la se mover inteiramente. A repetição está<br />

como uma insistência de método e, no primeiro deles, é possível notar<br />

o passeio iniciado entre o erro e o método através dela. No segundo,<br />

um conselho a modo de Zenão de Cício, o estoico (334-262 a. C., que<br />

pregava a remoção das paixões e uma aceitação resignada do destino),<br />

ou como Sêneca em suas “Cartas” 5 , em um movimento circular entre<br />

razão e paixão, mas ao mesmo tempo negando certa condição estoica<br />

ao colocar um corpo como um perseguidor de outros corpos, um<br />

corpo perseguidor de outros sentidos, o que talvez não seja possível;<br />

5 Gonçalo M. Tavares diz em uma entrevista (Entrelivros, n. 29, set. 2007) que<br />

se considera “um filho de Sêneca”, que tem “uma parte estoica”, pois “guarda<br />

alguma distância em relação ao que vai acontecendo”. Diz também que o livro<br />

que mais marcou a sua vida é o das cartas de Sêneca a Lucílio, Cartas a Lucílio,<br />

livro em que Sêneca avisa que só tem domínio de si aquele que não faz de seu<br />

corpo um peregrinador por outros corpos. Ora, o estoicismo está ligado a uma<br />

colocação do ser na razão para sobrepor-se às paixões, mesmo que, depois, se<br />

ligue também a uma clivagem entre corpo e alma em uma tentativa de fazer<br />

com que o homem suplante a dor e, principalmente, a dor da perda provocada<br />

pela morte; dor que é uma inimiga da razão. Sabe-se que Sêneca (Corduba, 4<br />

a.C. — Roma, 65 d.C.), diz Joaquim Brasil Fontes (1992, p. 15) na apresentação<br />

a uma pequena edição brasileira de Consolationes (Cartas consolatórias), falava<br />

para e contra uma sociedade aristocrática, culta e em perpétuo sobressalto,<br />

em que Nero era o imperador e se autointitulava senhor da vida e da morte.<br />

Joaquim Fontes chama atenção para o quanto Sêneca tensiona a língua latina e<br />

a filosofia estoica, em uma dupla racionalidade, a da ordem das palavras e a da<br />

ordem do mundo, com um discurso entre razão e paixão.<br />

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sempre para tentar entender esta lacuna entre o erro e a correção do<br />

erro, entre voltar atrás e seguir em frente e, ainda, voltar atrás se atrás<br />

for seguir em frente:<br />

e<br />

Claro que podemos errar e não voltar atrás para corrigir o erro porque<br />

o erro não é o ERRO o erro só começa no corrigir, errar e avançar não<br />

é errar: é avançar; errar e corrigir não é corrigir: é errar (TAVARES,<br />

2001, p. 53).<br />

Só voltar atrás se atrás for à Frente.<br />

(TAVARES, 2001, p. 54).<br />

Ensaiar, no exemplo desses fragmentos, está no sentido daquilo que<br />

a dança se distingue e, ao mesmo tempo, também se assemelha: erro<br />

e correção e voltar atrás como se fosse voltar à frente. Esse movimento<br />

que se dá entre uma coisa ou outra é estabelecido por uma espécie<br />

de “primeira matemática” (expressão que Gonçalo M. Tavares indica<br />

e usa no fragmento citado a seguir, intitulado “A 2ª Matemática”), porque<br />

ainda é feita e pensada a partir de ordem e regras, quando toda<br />

oposição estabelece uma escolha entre uma coisa OU outra, como<br />

a paixão ou a razão no plano estoico ou o erro e sua correção,<br />

como está no trecho citado anteriormente. Desfazer isso é armar o<br />

paradoxo, arma-se o paradoxo quando propõe-se que o começo de<br />

algo, como o erro, está em sua correção, o que normalmente seria<br />

o contrário: a correção seria o fim do erro, e não o seu começo. O<br />

paradoxo, para Gonçalo Tavares, é o que abre o belo para sobreviver 6<br />

– “O paradoxo abre o belo. / A sobrevivência do belo: é urgente tornar<br />

PARADOXO o belo: / A sobrevivência do belo” (TAVARES, 2001,<br />

p. 46) –, seria, segundo ele, “mudar o corpo para melhor” (TAVARES,<br />

2001, p. 46), ou seja, “Evitar Pitágoras. Evitar Pitágoras dos números.<br />

/ Evitar Pitágoras dos números no centro do corpo” (TAVARES, 2001,<br />

p. 45). Para depois, seguindo o gesto circular e de repetição, refazer<br />

6 Na edição brasileira do Livro da dança esse fragmento, que é o de número<br />

35 na edição portuguesa, aparece intitulado como “Sobreviver” (p. 49). Na sequência,<br />

o fragmento que se inicia com “Evitar Pitágoras” (p. 48) é o de número<br />

34 na edição portuguesa e se intitula, na edição brasileira, como “Evitar”.<br />

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o trecho ao dizer: “Entender Pitágoras / Entender Pitágoras para além<br />

dos números / Entender Pitágoras para além dos números no centro<br />

do coração no coração do corpo. / (...) / Evitar amar entender<br />

Pitágoras. / O corpo deve ao mesmo tempo, no mesmo momento,<br />

evitar amar e entender” (TAVARES, 2001, p. 45). Sobreviver e evitar<br />

passam a ser as ações do ensaio, e se lido aqui também como ato e<br />

ação, não teria a ver com método? Assim, é possível pensar que Gonçalo<br />

M. Tavares, ao passear entre o erro e o método, e ao tomar o erro<br />

como método, dá origem a um modo de uso da escrita “metodicamente<br />

sem método”, ou seja, a presença de um e de outro em uma<br />

mesma equação onde um não anula o outro porque é importante ter<br />

várias hipóteses. Isto, do “é importante ter várias hipóteses” e do “importante<br />

é o método”, está na peça de teatro intitulada “A colher de<br />

Samuel Beckett”, publicada em Portugal em 2002, no livro A colher<br />

de Samuel Beckett e outros textos:<br />

Quatro acções. (conta pelos dedos) Beber, olhar, deitar, organizar. Quatro<br />

acções possíveis. Podia ser pior. Há quem não tenha quatro acções.<br />

Há quem tenha menos. 4. Quatro. Não é mau. (pausa) Aborrecido deve<br />

ser quando se tem uma única acção. (pausa) É preciso organizarmo-nos<br />

para ter sempre várias acções a fazer. Nunca deixar que fique só uma.<br />

Nunca. (pausa) Sempre várias. Hipóteses, é a palavra. É importante ter<br />

várias hipóteses. Uma, duas, 3, 4. Uma ou outra ou outra ou outra [...]<br />

O importante é o método. Como utilizar o quê. (pausa, sorriso) [...] Não<br />

interessam as acções, mas sim como. (pausa)<br />

(TAVARES, 2002, p. 22-23).<br />

Não custa, depois desse exemplo, lembrar que proponho pensar, primeiro,<br />

o ensaio como ato, e que ele quando é ação e repetição para<br />

uma apreensão ou aprendizado é método. Depois, segundo, proponho<br />

pensar o ensaio como modo de uso da escrita, e que para a constituição<br />

de uma “cultura filosófica” ele é “metodicamente sem método”.<br />

Já no livro Breves notas sobre ciência, publicado em Portugal em<br />

2006, o primeiro dos volumes da sua “Enciclopédia”, Gonçalo M.<br />

Tavares escreve uma anotação intitulada “A 2ª matemática”, a partir<br />

de Wittgenstein, para insistir dessa vez na ideia de uma equação não<br />

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esolvida, quando a meta e o limite são feitos do erro da primeira<br />

matemática, que se constitui, também, por sua vez, de proposições<br />

incontestáveis da segunda matemática. Este ir e vir da equação, agora,<br />

leva a um pensamento constituído de opostos, a uma arquitetura<br />

sinuosa de um pensamento construído para o paradoxo: mal e bem,<br />

exatidão e falha, alto e baixo etc. Porque há também, aí, uma questão<br />

de crença – “Se todos os homens acreditarem” – e não apenas de resultado,<br />

há algo aí para além do mundo e completamente tocado pela<br />

imaginação, pela fantasia:<br />

A 2ª matemática<br />

Questão de Wittgenstein:<br />

“Se todos os homens acreditarem que 2 x 2 = 5,<br />

2 x 2 será ainda igual a 4?”<br />

Existe uma 2ª matemática atrás da primeira.<br />

É feita daquilo que é Erro na primeira, e é ainda —<br />

como a primeira matemática — feita de ordem e regras.<br />

Os erros da 2ª Matemática são também proposições<br />

incontestáveis na 1ª Matemática.<br />

[Pensar nos opostos. No mal e no bem. Na<br />

exactidão e na falha. No alto e no baixo].<br />

(TAVARES, 2006, p. 65).<br />

Assim, a escrita de Gonçalo M. Tavares não vai apenas de uma forma<br />

a outra, como transformação, mas sim como metamorfose, como<br />

aquilo que se move por dentro da forma ensaio, entre ato em si (treino,<br />

repetição, método) e o seu como fazer, modo de operar livremente<br />

a escrita para a construção de uma “cultura filosófica”, a construção<br />

de um pensamento. Pois são os próprios livros de Gonçalo M. Tavares<br />

que sugerem, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade de deslocamento<br />

da perspectiva meramente literária, quanto uma tentativa de<br />

contato mais direto e mais aberto com algumas outras questões que os<br />

atravessam de uma maneira sistematicamente circular, coisas que vêm<br />

da filosofia e da dança, por exemplo. E isso se faz necessário porque<br />

é o próprio Gonçalo quem defende a ideia de que toda arte deve<br />

ser feita a partir de uma resistência, e que a grande resistência do ser<br />

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humano no mundo agora ainda é pensar, ainda é o pensamento 7 ; e<br />

que unir literatura e pensamento não é um ato de vanguarda, mas, ao<br />

contrário, é apenas uma interessante volta às raízes. Ele lembra que na<br />

antiguidade clássica, por exemplo, poesia e filosofia andavam juntas,<br />

elas eram uma mesma coisa, depois é que se separaram, e uni-las em<br />

uma só outra vez é voltar às raízes. Já aqui, de algum modo, estabelece<br />

que lhe interessa uma concepção circular da história, anacrônica,<br />

como modo de uso, leitura e escrita do ensaio.<br />

2 A DANÇA, o ESPÍRito LivRE<br />

Segundo Nietzsche, o que o falso “espírito livre” gostaria de perseguir<br />

com todas as forças é a “universal felicidade do rebanho em pasto<br />

verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para<br />

todos” (NIETZSCHE, 1992, p. 48), bem como todo o seu desejo e projeto<br />

para a arte e para a filosofia seria apenas o silêncio, a quietude, o<br />

“mar liso” ou ainda o entorpecimento, a embriaguez como vingança<br />

sobre a vida, como ausência de resistência, embotamento dos sentidos,<br />

em oposição àqueles que “sofrem de superabundância de vida” 8 , de<br />

7 Em entrevista para o jornal Rascunho (Curitiba, 5 de janeiro de 2010), perguntado<br />

acerca do uso notório de um pensamento mais reflexivo em sua literatura,<br />

algo muito próximo da filosofia, como uma armadilha contra o senso comum,<br />

Gonçalo M. Tavares responde que: “Pensar é ainda um dos atos de resistência<br />

do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas<br />

é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica,<br />

a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se<br />

separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.”<br />

8 Em Nietzsche contra Wagner, Nietzsche faz uma distinção entre dois tipos de<br />

“sofredores”, que resultam do movimento da arte e da filosofia como socorro e<br />

remédio da vida em crescimento ou da vida em declínio. Ele diz que existem<br />

dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que buscam<br />

uma compreensão e perspectiva trágica da vida, tendo no conhecimento<br />

trágico e na arte dionisíaca o mais belo luxo da cultura; e os que sofrem de<br />

empobrecimento de vida, que necessitariam ao máximo de brandura e paz,<br />

que se encerrariam em horizontes otimistas e seguros, pouco instáveis – são<br />

os décadents (1999, p. 59-60). Ou ainda, pode-se intuir, este pode ser o falso<br />

espírito livre, o corpo cativo, obediente e sem dança, “rapazes bonzinhos e<br />

desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis,<br />

mas que são cativos e ridiculamente superficiais” (NIETZSCHE, 1992, p. 48).<br />

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profundidade no corpo e no pensamento; que sofrem de vontade livre,<br />

desejam uma arte dionisíaca, uma compreensão trágica do corpo, um<br />

corpo profundo, e uma compreensão trágica da vida. Não por acaso, o<br />

ensaio (aqui compreendido sempre nos dois movimentos já indicados)<br />

deseja certa “liberdade de espírito”, como sugeriu Adorno, o que se<br />

assemelha muito ao espírito livre do qual também nos fala Nietzsche.<br />

Em Ecce Homo, publicado em 1908, que por si só já é um livro-reação,<br />

Nietzsche comenta acerca de Humano, demasiado humano (1878):<br />

Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se<br />

proclama um livro para espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa<br />

uma vitória – com ele me libertei do que não pertencia à minha<br />

natureza. A ela não pertence o idealismo: o título diz “onde vocês<br />

veem coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado<br />

humanas!”... Eu conheço mais o homem... Em nenhum outro<br />

sentido a expressão “espírito livre” quer ser entendida: um espírito<br />

tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse (NIETZSCHE,<br />

2008, p. 69, grifos do autor).<br />

De alguma forma, esse “espírito tornado livre, que de si mesmo de<br />

novo tomou posse”, agora também com a posse da sua vontade plena<br />

e contra qualquer idealismo ou saída através de uma verdade espiritual,<br />

seja ela qual for, pode ser pensado junto à ideia de um “corpo<br />

soberano”, na acepção de Georges Bataille, leitor atento de Nietzsche.<br />

Bataille afirma que nada pode ser mais necessário e mais forte em nós<br />

do que a revolta, a desobediência do corpo, a suspensão da lei; que<br />

sem esse sentimento não podemos amar e nem estimar nada, pois<br />

tudo leva a marca da submissão. Dessa forma, Bataille propõe, com<br />

Nietzsche, um princípio de rebeldia, um “riso insidioso” no lugar do<br />

temor, da submissão, pois é próprio da revolta não se deixar submeter<br />

facilmente (BATAILLE, 2008, p. 227-228).<br />

Nietzsche define ainda o “espírito livre” – corpo desobediente e<br />

soberano que procuro demonstrar também nos textos de Gonçalo M.<br />

Tavares, bem como o texto inteiro como um corpo furioso e desobediente,<br />

corpo de intensidades –, como um desvencilhar-se de toda<br />

crença, de toda convicção profunda ou desejo de certeza, que pode<br />

ser representado por uma escolha, pela arrogância do paradigma, pela<br />

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entrada no conflito, ou seja, escolher um e rejeitar outro, fazer a escolha<br />

certa e o erro etc. E crença entendida “quando uma pessoa chega à<br />

convicção fundamental de que tem de ser comandada” (NIETZSCHE,<br />

2001, p. 241), que é um estado de permanente obediência, de corpo<br />

dócil e servil. Nietzsche vê no “espírito livre” a liberdade de vontade<br />

por excelência e um corpo leve capaz de equilibrar-se sobre delicadas<br />

cordas ou de dançar até mesmo à beira de abismos, mesmo que esse<br />

“espírito livre” – como declara no prólogo para o volume I de Humano,<br />

demasiado humano – Um livro para espíritos livres –, seja uma espécie<br />

de invenção, de ficção sua, uma forma de “manter a alma alegre<br />

em meio a muitos males” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Esses espíritos seriam<br />

como “valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e<br />

rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno,<br />

quando se tornam entediantes – uma compensação para os amigos<br />

que faltam” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Porém Nietzsche define, em A<br />

gaia ciência, o “espírito livre por excelência”:<br />

Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de<br />

ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar<br />

um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade,<br />

em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza,<br />

treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades<br />

e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito<br />

seria o espírito livre por excelência (NIETZSCHE, 2001, p. 241, grifos<br />

do autor).<br />

Da mesma forma, para Barthes, uma reflexão sobre o Neutro é um<br />

modo de procurar livremente, de buscar (sempre de modo livre) o<br />

próprio estilo de atuação ou de presença nas lutas do nosso tempo<br />

(BARTHES, 2003, p. 20) – e nessa tarefa estão comprometidos todos<br />

aqueles que se despedem de toda crença, porque toda crença pressupõe<br />

escolher um e rejeitar outro, pressupõe escolher uma intensidade<br />

ou uma “atividade ardente” como um “prazer e força na autodeterminação,<br />

uma liberdade de vontade”, como nas palavras de Nietzsche já<br />

citadas. Por isso mesmo é que, de certa forma, o Neutro se aproximaria<br />

do sentido da dança, um estado quase permanente de dança para<br />

tocar o escuro do contemporâneo; de dança como desvio, embaço,<br />

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como um terceiro termo posto em movimento – um acontecimento,<br />

uma intensidade. Desta forma, outro fragmento de Gonçalo M. Tavares,<br />

extraído do Livro da dança, que parece exemplar para pensar essa<br />

questão é o fragmento 59:<br />

O Zen. SIM.<br />

dançar à beira dos abismos. SIM.<br />

A absoluta Qualidade do que não tem qualidades. SIM.<br />

Da cabeça utilizar a guilhotina para só arrancar o cérebro.<br />

[SIM.<br />

a lua? SIM.<br />

anda lua andas? SIM.<br />

Subir por 1 lado ao cavalo para descer logo a seguir do outro<br />

[lado?<br />

SIM.<br />

INÚTIL. SIM. Muito inútil!<br />

Quanto de inútil?<br />

Muita quantidade de inútil.<br />

Outros FILÓSOFOS?<br />

Por exemplo o Zen que conta histórias:<br />

uma: ele levantava o braço sempre, para tudo.<br />

o que significa isso?<br />

O OUTRO, o aprendiz, põe na explicação palavras. Muitas.<br />

ele, o mestre, por fim, depois de ouvir, levanta o braço.<br />

o outro: mas que significa isso?<br />

e o mestre levanta o braço, o mesmo braço, o braço.<br />

Como é a tua dança, a tua estética, a tua poética?<br />

O braço. É o Braço.<br />

Mas como, o quê?<br />

O braço, levantar o braço!<br />

(TAVARES, 2001, p. 71).<br />

Gonçalo M. Tavares, nesse fragmento, recupera a mesma imagem<br />

de Nietzsche com relação à dança e ao espírito livre, ou seja, “dançar<br />

à beira dos abismos” seria o ato livre por excelência, mas que também<br />

apresenta o desafio, o lance de dados entre a queda, a gravidade<br />

e a leveza irrestrita, o corpo micro, ínfimo, corpo treinado a se equi-<br />

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librar sobre tênues cordas e possibilidades, como uma espécie de funâmbulo.<br />

Note-se que Nietzsche faz uso do verbo treinar (üben) para<br />

descrever essa habilidade do corpo em equilibrar-se sobre o próprio desequilíbrio,<br />

corpo treinado, corpo ensaiado para dançar até mesmo<br />

sobre abismos, um ato que pode ser simplesmente para nada, com<br />

“muita quantidade de inútil” (TAVARES, 2001, p. 71), assim como<br />

também pode ser inútil o ato de levantar o braço. Mas esse mesmo ato<br />

de levantar o braço, no fragmento 59, também pode ser lido como<br />

uma existência, o aceno que diz ‘aqui estou’ e isso é também uma<br />

dança, uma estética, uma poética, sem mesmo precisar pôr na explicação<br />

palavras, como faz o aprendiz na pequena história narrada<br />

por Gonçalo M. Tavares. E que ao mesmo tempo é um gesto para<br />

tudo, como aparece no fragmento: “Ele levantava o braço sempre,<br />

para tudo” (TAVARES, 2001, p. 71), ou seja, levantava o braço para<br />

qualquer coisa, sempre, e levantava o braço como afirmação da vida,<br />

da existência – para tudo. Mas esse mesmo gesto repetido e para tudo<br />

também comparece como interrupção, confronto, ou seja, novamente<br />

o ato de hesitar, nem um nem outro, um e outro ao mesmo tempo, que<br />

é muito próximo da proposição ZEN asseverada com um imenso “SIM”<br />

que parece sair como exclamação para todos os lados logo no começo<br />

do fragmento, como se indicasse qual é o seu projeto estético e<br />

político, como resistência, como Neutro.<br />

Não se pode perder de vista que o “silêncio” é uma das 30 figuras<br />

do Neutro que Barthes analisa e que comparecem em alguns fragmentos<br />

de texto ou “no qual, mais vagamente, há Neutro” (BARTHES,<br />

2003, p. 24), sob a forma de pequenas cintilações, para criar um espaço<br />

projetivo de leitura. O fragmento de Gonçalo M. Tavares também<br />

faz uso dessa mesma figura quando o mestre, apenas depois de<br />

ouvir com atenção “O OUTRO”, o aprendiz, levanta o braço. E é bom<br />

lembrar que o Neutro, para Barthes, não corresponde a um silêncio<br />

permanente (vê-se que o mestre fala), mas por um gasto mínimo<br />

de uma operação de fala, nesse caso apenas seguido pelo ato repetido de<br />

levantar o braço. Assim, o “silêncio” corresponde a uma postulação<br />

do direito de calar-se, sem que com isto se tenha perdido o poder,<br />

o ato livre e soberano de não dizer nada. Assim, o ato de levantar o<br />

braço como uma dança ou logro, um silêncio que burla, um desvio,<br />

um gesto para tudo e para nada ao mesmo tempo, que marca uma<br />

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liberdade da vontade, um despedir-se de toda crença para afirmar<br />

uma condição livre, uma espécie de “absoluta Qualidade do que não<br />

tem qualidades” (TAVARES, 2001, p. 71).<br />

Alain Badiou, por sua vez, no texto “A dança como metáfora do<br />

pensamento”, publicado no Pequeno manual de inestética, recupera,<br />

a partir de Nietzsche, esta mesma proposição – entre peso, o falso “espírito<br />

livre” como negação da vida, e corpo livre, desobediente, como<br />

desejo e afirmação da vida –, para pensar a dança como metáfora do<br />

pensamento subtraído de qualquer ideia de gravidade. Ele se pergunta:<br />

“Por que a dança ocorre a Nietzsche como metáfora obrigatória do<br />

pensamento?” E logo em seguida afirma que “a dança é o que se opõe<br />

ao grande inimigo de Zaratustra-Nietzsche, inimigo que ele designa<br />

como ‘o espírito de peso’. A dança é, antes de tudo, a imagem de<br />

um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU,<br />

2002, p. 79). O crítico português José Gil também diz que a finalidade<br />

de qualquer bailarino é vencer o peso do corpo, e que a ausência<br />

do peso, a facilidade são de tal forma vividos pelo bailarino que ao<br />

mesmo tempo em que ele parece ter a propriedade de “um móbil<br />

no espaço”, parece também experimentar essa ausência de peso no<br />

interior do próprio corpo, “como se a sua textura se tivesse tornado<br />

espaço” (GIL, 2004, p. 18). Assim, José Gil faz referência a uma leveza<br />

que é própria do movimento dançado e que o bailarino, espécie<br />

de móbil, na sua sequência de movimentos, abre no espaço infinitas<br />

possibilidades de ausência de peso ou de gravidade, infinitas nuances<br />

de leveza. O fato é que o bailarino nunca vive o peso objetivo do seu<br />

corpo, do corpo inerte e vulgar, o peso do seu “cadáver”, mas a modulação<br />

de intensidades diferentes de leveza, energias de fluxo que<br />

deixam o corpo mais ou menos leve e que são vividas pelo bailarino<br />

como virtualidades. Desse modo, “vencer o peso, tal é o fim primeiro<br />

do bailarino” (GIL, 2004, p. 19). José Gil diz que<br />

Há uma leveza própria do movimento dançado; [...] O bailarino não<br />

vive nunca o seu peso objetivo, científico, o peso do seu corpo-objeto,<br />

o seu cadáver. Avalia a sua leveza atual por comparação com outras<br />

levezas que acaba de atravessar no quadro específico de certa sequência<br />

de movimentos: cada sequência abre múltiplas possibilidades de<br />

ausência de peso, diferentes das oferecidas por outras sequências. São<br />

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a modulação, as transformações da energia de fluxo que tornam o<br />

corpo mais ou menos leve no interior de uma leveza adquirida (a da<br />

posição de pé e a do movimento dançado).<br />

As duas barreiras que limitam de fora a esfera do movimento – o peso<br />

real do corpo inerte; a leveza máxima nunca atingida – nunca são<br />

vividas pelo bailarino como dados atuais; mas apenas como virtualidades<br />

que, se se atualizassem, destruiriam o seu movimento dançado.<br />

O peso específico virtual é a resultante da soma destes dois vetores<br />

contrários (GIL, 2004, p. 21).<br />

Esse esforço do bailarino para vencer o peso do seu corpo objetivo,<br />

corpo-objeto, demonstra ainda uma espécie de saída, um deslocamento<br />

da posição comum do corpo, de uma atitude comum, para<br />

um desequilíbrio do corpo, a dança como um Neutro, um desvio,<br />

uma abertura de sentido (levantar o braço, ato em si, ato incorporado,<br />

quando o braço é o próprio inteiro do corpo e, ao mesmo tempo, ato<br />

para nada). José Gil diz ainda que o bailarino “sai deliberadamente<br />

da postura do homem comum para se deslocar desde o início na dificuldade:<br />

desequilibra-se” (GIL, 2004, p. 21). Gonçalo M. Tavares,<br />

por sua vez, pergunta no fragmento 74 do Livro da dança, intitulado<br />

“Definição de função”, acerca do movimento dançado de sua escrita<br />

inserida no espaço contemporâneo da história e, também, ao mesmo<br />

tempo, fora da história: “O que é a dança que já não se deve dançar?<br />

/ [...] / O que é o corpo que dança bem? / O que é o dançarino?” E<br />

responde, como se gritasse a si mesmo e de si mesmo, o escritor, que<br />

traz a si o milagre para fugir do seu peso de corpo-objeto e do seu cadáver:<br />

“É o COVEIRO! É o COVEIRO!” (TAVARES, 2001, p. 90). Outro<br />

exemplo, que pode prosseguir acerca dessa inserção, é o poema<br />

“Dansa”, com “s”, do livro 1 9 . A inserção agora aparece de maneira<br />

formal na língua do poema, é a grafia da palavra que erra e se move,<br />

“metodicamente sem método”:<br />

9 O poema “Dansa” faz parte do conjunto de poemas que formam o livro<br />

cinco, intitulado Homenagem, do livro 1 (2004).<br />

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Dansa<br />

Tem S a palavra, pois certas curvaturas do mundo<br />

exigem alterações de grafia.<br />

O traço imprevisto obriga a parar a meio;<br />

E à paragem insólita chamarás insólito movimento.<br />

E ficarás contente.<br />

(TAVARES, 2005, p. 109).<br />

Esse “erro” de grafia, essa célula que salta da origem, levanta a questão<br />

acerca de um problema de legitimação do termo: dançar é com<br />

“s”, para oscilar na curvatura do mundo, ou é com “ç”, para insistir na<br />

repetição do comum? A palavra grafada assim, com “s”, clama a sua<br />

revolução, a sua recusa, a sua emancipação. Ela demonstra por fora o<br />

que acontece por dentro, a sua animalidade: sair do comum, provocar<br />

um desequilíbrio: dançar.<br />

Dessa maneira, a partir do primeiro livro de Gonçalo M. Tavares,<br />

pode-se pensar a invenção do corpo no seu trabalho e o seu trabalho<br />

como um corpo-bailarino, o que sai do comum para provocar o desequilíbrio<br />

entre ficção e imaginação. A ideia é propor ler o corpo mais<br />

como esse desvio, como desequilíbrio, e menos simplesmente como<br />

ausência de peso e de gravidade. Uma tarefa da literatura e para a<br />

literatura, um modo de uso político e crítico da literatura construída<br />

com um arsenal de corpos misturados e moventes, é o que parece<br />

propor Gonçalo M. Tavares. Isso nos leva ainda a José Gil, quando ele<br />

diz que “este pequeno deslocamento marca o nascimento da arte ou,<br />

pelo menos, da sua possibilidade” (GIL, 2004, p. 22) e que o bailarino<br />

não se limita a conservar o equilíbrio comum, mas procura uma<br />

espécie de equilíbrio no desequilíbrio, quase que em um estado de<br />

desobediência do corpo, uma resistência, uma intensidade. Mas a luta<br />

para vencer o próprio peso do corpo, essa leveza que deve ser incorporada<br />

ao corpo do bailarino como uma ausência de peso no interior<br />

do corpo – o corpo tornado espaço –, não deve ser compreendida<br />

apenas como simples ausência de peso. Bem como a dança, o voo e<br />

a leveza não são apenas gestos que se opõem ao espírito de peso ou<br />

de gravidade, mesmo que possam ser também uma espécie de marco<br />

fundador, capaz de deslocar todos os marcos de fronteiras já que,<br />

segundo Nietzsche “quem, um dia, ensinar os homens a voar, terá<br />

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deslocado todos os marcos de fronteira; as próprias fronteiras terão<br />

ido pelos ares para ele, que batizará de novo a terra – como ‘a leve’”<br />

(NIETZSCHE, 2006, p. 230).<br />

Para Nietzsche, além da dança apresentar a oposição mais radical<br />

ao espírito de gravidade e de ser capaz de dar à terra o seu novo<br />

nome, “a leve”, ela apresenta, especialmente, o corpo não forçado,<br />

livre e desconfiado, um corpo em estado de desobediência ou ainda,<br />

se pensarmos com José Gil, em desequilíbrio (levantar o braço<br />

como política, dizer que a literatura existe, apontar para uma resistência,<br />

parece propor Gonçalo M. Tavares). Badiou diz que esse corpo<br />

não forçado está em um estado de desobediência que se estende<br />

até mesmo às suas próprias impulsões, que a dança é “a mostração<br />

corporal da desobediência a uma impulsão” (BADIOU, 2002, p. 83,<br />

grifo do autor). Ele concebe a dança também como pensamento, um<br />

“pensamento como refinamento” e diz que essa reflexão está longe<br />

de qualquer princípio da dança como “êxtase primitivo ou agitações<br />

repetidas e descuidadas do corpo”, mas que “a dança metaforiza o<br />

pensamento leve e sutil, precisamente porque mostra a retenção imanente<br />

ao movimento e assim se opõe à vulgaridade espontânea do<br />

corpo” (BADIOU, 2002, p. 83). A vulgaridade seria toda impulsão<br />

que não é retenção, mas apenas um apelo corporal que é imediatamente<br />

obedecido e manifesto, um corpo obediente e incapaz de<br />

resistir a uma solicitação. Dessa forma, a dança seria um corpo subtraído<br />

não apenas de peso, mas também de qualquer vulgaridade.<br />

Esse é o corpo desenhado por Gonçalo M. Tavares em todo o seu<br />

projeto de escrita, um corpo de pensamento leve e sutil, corpo desobediente,<br />

não forçado e desconfiado, corpo subtraído de toda e<br />

qualquer vulgaridade, e que dança. E, seguindo as palavras de Badiou,<br />

“na dança concebida dessa maneira, a essência do movimento está<br />

no que não teve lugar, no que permaneceu não efetivo ou retido<br />

dentro do próprio movimento” (BADIOU, 2002, p. 82, grifo do autor).<br />

Assim, a dança apresenta-se como manifestação do que “não<br />

teve lugar”, da força do movimento retido no corpo, como um devir<br />

permanente – um pensamento como devir, como poder ativo e violento,<br />

na sugestão de Nietzsche –, muito mais do que a prontidão e<br />

exatidão dos movimentos em seus diversos desenhos exteriores. Nas<br />

palavras de Badiou: “Certamente, só se mostrará essa força no pró-<br />

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prio movimento, mas o que conta é a legibilidade poderosa da retenção”<br />

(BADIOU, 2002, p. 82). Tanto é que, em uma passagem, Badiou<br />

recupera de Nietzsche o sentido de corpo não forçado e desconfiado<br />

como atribuição do corpo leve que dança:<br />

Podemos pensar então, adequadamente, o que se diz no tema da<br />

dança como leveza. Sim, a dança opõe-se ao espírito de peso, sim,<br />

é o que dá à terra seu novo nome, “a leve”, mas, definitivamente, o<br />

que é a leveza? Dizer que é a ausência de peso não leva longe. Deve-<br />

-se compreender por leveza a capacidade do corpo de manifestar-se<br />

como corpo não forçado, não forçado até mesmo por si próprio, ou<br />

seja, em estado de desobediência a suas próprias impulsões. [...] A<br />

leveza tem sua essência, daí ser a dança a sua melhor imagem, na<br />

capacidade de manifestar a lentidão secreta do que é rápido. [...]<br />

Nietzsche proclama que “o que a vontade deve aprender é a ser lenta<br />

e desconfiada”. Digamos que a dança pode-se definir como a expansão<br />

da lentidão e da desconfiança do corpo-pensamento (BADIOU,<br />

2002, p. 83, grifo do autor).<br />

Badiou recupera ainda algumas imagens que aparecem em Nietzsche<br />

como fulguração desse corpo que dança, esse espírito “antes de mais<br />

nada”, que é o pensamento subtraído de qualquer espírito de peso e<br />

de qualquer vulgaridade como, por exemplo, a ave, que habitaria o<br />

interior do corpo, a fonte – porque o corpo dançante seria o corpo<br />

que jorra em estado permanente, um “fora do solo” e um “fora de si<br />

mesmo” (BADIOU, 2002, p. 80) –, ou ainda a criança, o corpo leve e<br />

inocente, “o corpo antes do corpo”. Para Badiou a dança é um estado<br />

de inocência porque é um corpo de antes do corpo e que também é<br />

esquecimento, porque é um corpo que esquece o seu próprio peso,<br />

a sua prisão. O corpo é ainda um novo começo, “porque o gesto<br />

da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo”<br />

(BADIOU, 2002, p. 79-80), a sua permanente fundação. Dentro dessa<br />

mesma ideia do corpo como esquecimento e ao mesmo tempo como<br />

eterno começar de si mesmo, como se constantemente inventasse seu<br />

próprio começo, Gonçalo M. Tavares, no fragmento 86 do Livro da<br />

dança, propõe uma espécie de interdição da memória e de retorno ao<br />

corpo sem início nem fim, arremessado no instante:<br />

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135


86.<br />

interditar a memória.<br />

Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência.<br />

Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não<br />

imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante,<br />

a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo<br />

que o FIM.<br />

interditar a memória<br />

a memória é ocupação do espaço<br />

a memória é o não imediato,<br />

a memória é o inteligente.<br />

interditar pois a memória.<br />

O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é estar<br />

presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente<br />

é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente.<br />

a dança não tem Memória.<br />

A criatividade não tem Memória.<br />

O Corpo começa agora no momento que acaba.<br />

O Corpo começa no mesmo sítio que acaba.<br />

O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que<br />

não se recordam o sítio e o tempo anteriores.<br />

CORPO AMNÉSICO<br />

Esqueceu porquê aqui e agora.<br />

Aqui e agora e antes nada.<br />

Aqui e agora e depois nada.<br />

CORPO AMNÉSICO e sem projetos.<br />

Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o nome donde se vê o FUTURO dos<br />

NOVOS.<br />

Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu)<br />

e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde antes não se<br />

chegou).<br />

Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há<br />

sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora<br />

e só resta ao corpo dançar.<br />

(Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos)<br />

(TAVARES, 2001, p. 104-105).<br />

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“Interditar a memória”, diz o fragmento, interditar a memória de um<br />

corpo preso e que pesa, para que ele seja apenas superfície fina, instante,<br />

nem início nem fim, início e fim ao mesmo tempo, o gesto da dança<br />

que deve ser sempre como se inventasse um novo começo a partir do<br />

que não teve lugar, da força do movimento retido no próprio corpo.<br />

Gonçalo diz ainda que toda memória é ocupação do espaço, começo<br />

de espaço, uma memória inteligente que está sempre um passo atrás<br />

ou à frente e que, por isso mesmo, é um corpo não imediato. O corpo<br />

da dança, para Gonçalo M. Tavares, também é essencialmente sem<br />

memória – “a dança não tem Memória”, ele diz –, é um corpo circular<br />

e paradoxal – “O corpo começa agora no momento em que acaba” –,<br />

um corpo antes do corpo, sem inteligência, sem saber, sem ciência;<br />

corpo como acontecimento aqui e agora, no sítio de sua eclosão,<br />

um corpo-pensamento livre e que jorra, jamais alguém, mas carne,<br />

osso, corpo anterior ao sexo, corpo em sua nudez absoluta, a nudez de<br />

antes da exibição de qualquer ornamento, “nudez que não resulta de<br />

se despojar dos ornamentos, mas, ao contrário, da nudez tal como se<br />

dá ‘antes’ do nome” (BADIOU, 2002, p. 91). É a dança como metáfora<br />

do pensamento e como outra inserção da escrita no espaço-tempo<br />

contemporâneo, como um pensamento em relação, pensamento leve,<br />

que “apresenta-se sem relação com outra coisa senão consigo mesma,<br />

na própria nudez de seu surgimento” (BADIOU, 2002, p. 90, grifo do<br />

autor), no anonimato dos corpos, no apagamento dos sexos, como aparece<br />

no fragmento 29, que na edição brasileira é intitulado “Treinar”:<br />

29.<br />

Treinar a nudez.<br />

Pintar de céu a nudez.<br />

Pintar de sexo a nudez.<br />

Desenhar na nudez a inocência.<br />

Desenhar a Fornicação na nudez.<br />

a nudez clássica igual à nudez actual.<br />

experimentar roupas nuas.<br />

confirmar que a nudez é mais nua que a roupa nua.<br />

Treinar a nudez.<br />

Ser melhor NU que ontem se foi nu, ser melhor nu que ontem<br />

se foi nu.<br />

(TAVARES, 2001, p. 40).<br />

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Mais uma vez Gonçalo M. Tavares faz uso do verbo treinar (exercitar,<br />

acostumar, adestrar, versar, educar, ensaiar), agora para propor<br />

um ensaio da nudez, a repetição da nudez, bem como “experimentar<br />

roupas nuas”, desnudar-se de todo e qualquer ornamento para<br />

sentir no corpo profundo a nudez. Interessante também é que no<br />

fragmento de Gonçalo pode-se ser melhor ou pior NU, por isso a<br />

importância de treinar a nudez, de colocar nudez na dança, até que<br />

o corpo saiba-se NU de vez, e uma nudez sem julgamento ou valor,<br />

que tanto pode ser “céu”, como pode ser “sexo”, “inocência” ou<br />

“fornicação”. É uma nudez expandida, pois ele sugere experimentar<br />

roupas nuas; assim, se pode pensar em uma escrita que seja vestir a<br />

nudez com a própria nudez, o sentido com o não sentido do sentido.<br />

É como se a dança, como afirmou Badiou, fosse sempre uma nova<br />

invenção de começo, nem antes e nem depois, antes nada e depois<br />

nada, um corpo “amnésico”, subtraído de todo saber, de toda memória.<br />

Badiou lembra a conhecida proposição de Mallarmé 10 nas suas<br />

observações críticas de 1886, intituladas “Ballets”, quando este diz<br />

que a bailarina não é uma mulher que dança, visto que não é uma<br />

mulher, mas um corpo anônimo; e que não dança, pois não é a realização<br />

de um saber, mas um “corpo como eclosão”, um “esquecimento<br />

milagroso”. Mallarmé diz ainda que o corpo anônimo que dança é<br />

uma espécie de poema liberto de todo aparelho do escriba, ou seja,<br />

um poema não inscrito, livre e que dança sem deixar vestígio, uma<br />

espécie de corpo desobediente, subtraído de qualquer vulgaridade,<br />

em uma relação direta entre ser e desaparecer – um “hieróglifo” que<br />

dança, uma “aparição como acontecimento”, uma invenção do corpo<br />

de intensidade, do corpo profundo e paradoxal, como parece ser o<br />

projeto de Gonçalo M. Tavares com a sua literatura. Sobre essa proposição<br />

de Mallarmé, Badiou diz:<br />

O que se pronuncia aqui é a dimensão subtrativa do pensamento.<br />

Todo pensamento verdadeiro é subtraído ao saber onde se constitui.<br />

10 Mallarmé deixou alguns breves escritos sobre a dança, algumas observações<br />

críticas – as prosas de circunstâncias –, que foram destinadas a revistas de<br />

pouca circulação na época, mas que mais tarde foram incluídas nos capítulos<br />

Crayonné au théâtre e Ballets do livro Divagations, publicado em 1897.<br />

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A dança é metáfora do pensamento precisamente porque indica por<br />

meio do corpo que um pensamento, na forma de sua aparição como<br />

acontecimento, é subtraído a toda preexistência do saber.<br />

[...]<br />

“A dançarina não dança” quer dizer que o que se vê não é em momento<br />

algum a realização de um saber, embora de parte esse saber seja<br />

sua matéria, ou seu apoio. A dançarina é esquecimento milagroso de<br />

todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa<br />

intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a<br />

dançarina suprime toda dança que sabe porque dispõe de seu corpo<br />

como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é<br />

o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão<br />

(BADIOU, 2002, p. 90, grifos do autor).<br />

Também Valéry, em Degas Danse Dessin, publicado em 1935, faz referência<br />

a essa mesma proposição de Mallarmé. Ele diz que seu encantamento<br />

com a dança pode partir de outro lugar, muito além da cena<br />

comum, fora do palco e fora do solo como, por exemplo, diante de<br />

uma tela onde se encontram grandes Medusas aparentemente fixas e<br />

intocáveis. Valéry abre a perspectiva da dança para além do corpo que<br />

dança, efetivamente, da mulher que dança e põe em cena todo o seu<br />

saber de bailarina, quando diz que uma das mais livres, flexíveis e voluptuosas<br />

das danças possíveis apareceu-lhe em uma tela, em que não se<br />

encontravam mulheres e não se dançava, mas em que se viam Medusas<br />

tão fluidas que pareciam representar todo ideal de mobilidade, em seus<br />

“corpos de cristal elástico” que parecem se mover em “espasmos ondulatórios”,<br />

como se estivessem no dia da grande exibição – “vira-se ao<br />

avesso e se expõe, furiosamente aberta” (VALÉRY, 2003, p. 39). O que<br />

pode nos levar ao fragmento 95 do Livro da dança, “SER PROFUNDO<br />

no dia da EXIBIÇÃO Profunda” (TAVARES, 2001, p. 115). Diz Valéry:<br />

Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela<br />

não é uma mulher, e não dança.<br />

[...]<br />

A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis<br />

apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não<br />

eram mulheres e não dançavam.<br />

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Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida<br />

e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de<br />

seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por<br />

ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo<br />

tempo em que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto<br />

o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os<br />

lados, dá-lhes lugar a menos inflexão e as substitui em sua forma. Lá,<br />

na plenitude incompressível da água que não parece opor nenhuma<br />

resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem,<br />

lá recolhem sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos<br />

para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é<br />

possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direção em que<br />

se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico,<br />

não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que<br />

se possam contar...<br />

Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento,<br />

do veneno de suas forças excedidas, da presença ardente de olhares<br />

carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo,<br />

o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande<br />

Medusa, que, por espasmos ondulatórios de sua torrente de saias<br />

engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e<br />

impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente,<br />

rejeitando todos seus folhos vibráteis, seus vestidos de lábios recortados,<br />

vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta.<br />

Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga em seu espaço,<br />

e sobe como balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e<br />

o ar mortal (VALÉRY, 2003, p. 38-39).<br />

Interessante pensar o quanto Gonçalo M. Tavares também compõe<br />

a sua imagem da dança para além da ideia de um corpo feminino<br />

que dança e expõe todo o seu saber, para além do palco e do solo,<br />

seguindo essa sugestão de Valéry. Mas a figura que Gonçalo formula<br />

ou o seu corpo inventado no texto, que é também o texto como um<br />

corpo, se afasta da descrição feita por Valéry – ainda que se trate,<br />

como propõe Valéry, de um corpo leve de “estranha e impudica insistência”<br />

(VALÉRY, 2003, p. 39), que é afirmação da vida, e que se<br />

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expõe, furiosamente aberto, talvez no instante da “EXIBIÇÃO Profunda”,<br />

porque é nesse momento que entendemos que, para Gonçalo<br />

M. Tavares, não há nenhum corpo completo, que ao corpo que faltam<br />

movimentos chamamos de corpo “INcompleto” (TAVARES, 2001,<br />

p. 91) e ao outro chamamos de deus. Mas que, principalmente, esse<br />

deus não se exibe. Gonçalo retoma a ideia de que o corpo que dança<br />

– no seu “projeto para uma poética do movimento” – é um corpo de<br />

osso e de articulação, um corpo que morre, um corpo sem metafísica,<br />

mais perto do chão, um corpo furioso e sólido, mas também gasoso<br />

e possível de evaporar, enquanto ensaia uma espécie de “dança<br />

desenfreada.” (NIETZSCHE, 2006, p. 268). Logo, o projeto literário<br />

de Gonçalo M. Tavares é também osso, carne, articulação, travessia<br />

violenta, paradoxo e oposição de termos, mas para desfazê-los por<br />

dentro, em contato, em uma armadilha para o sentido. Uma poética<br />

do osso imprevisto que sobrevive como movimento. Ele retoma essa<br />

questão no fragmento 50:<br />

Quando o Movimento acabar o osso sobrevive.<br />

O movimento da dança, o poético no oxigênio, deve MOSTRAR que<br />

o osso SOBREVIVE, o osso permanece quando acabar o Movimento.<br />

(TAVARES, 2001, p. 62).<br />

O fragmento trata da sobrevivência do osso, ele “SOBREVIVE” e<br />

permanece quando se retira a pele e o movimento termina. O osso<br />

nu agora é pele, o que volta a se exibir é de novo a pele. O osso nu<br />

é o que nada tem de flexível, ele é o único sólido que pode se impor<br />

às bailarinas absolutas de Valéry. Tanto que no fragmento 21 a carne<br />

que aparece como possibilidade para a dança, sobrevive e permanece<br />

quando se retira a pele. A carne nua é pele, o que volta a se exibir é<br />

de novo a pele. “A pele é cá fora e mostra-se” (TAVARES, 2001, p. 92).<br />

Diz ele no fragmento 76, que tem um título que indica evidência:<br />

“Isso é claro”. A dança, na escrita de Gonçalo M. Tavares, é a indicação<br />

de uma “poética dos ossos e dos Mortos”, porque ela é o osso nu<br />

que sobrevive quando o movimento acaba; é a carne nua que sobrevive<br />

quando o movimento acaba; osso e carne nus que se exibem como<br />

pele, o milagre. Segue o fragmento 21:<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

141


21.<br />

Meter na dança carne.<br />

a carne é igual no Feminino e no Masculino.<br />

Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo<br />

anterior ao Masculino.<br />

A carne é o corpo anterior ao sexo.<br />

Meter carne na dança.<br />

Deixar a dança ser primeiro que o corpo.<br />

Ao corpo anterior ao Feminino e ao corpo anterior ao<br />

Masculino<br />

é impossível acrescentar algo novo.<br />

Não abrir o exterior do corpo para a carne entrar; Não abrir o<br />

exterior do corpo para deixar sair a CARNE.<br />

Não meter CARNE na Dança. Não tirar CARNE da dança.<br />

Deixar a dança ser Naturalmente Carne.<br />

CARNE: a poética dos ossos e dos Mortos é igual: CARNE.<br />

a Matéria da Poética obedece aos instrumentos de Medida.<br />

Exibir as Medidas da Alma.<br />

A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as<br />

Medidas da alma.<br />

A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as<br />

Medidas da alma.<br />

(TAVARES, 2001, p. 32).<br />

É possível verificar, porém, a partir do fragmento 21 intitulado “Medidas<br />

do corpo”, como Gonçalo M. Tavares elabora mais uma medida<br />

para sua escrita entre o corpo e a dança. A escrita como um ponto de<br />

mesura, de eclosão, de abertura, o seu acontecimento antes do corpo,<br />

como aquele estado de inocência ou de jorro permanente do qual nos<br />

fala Nietzsche e Badiou: como o gesto do bailarino ao dispor do corpo<br />

como se ele fosse inventado, quando a dança é o corpo subtraído de<br />

todo saber de um corpo, de toda ciência. É o corpo eclodido a partir<br />

do esquecimento de todo o seu saber, eis o milagre. E assim, o corpo<br />

como acontecimento paradoxal, ao retirar a pele, termina por “Exibir<br />

as medidas da alma” e passa a ser o osso nu e a carne nua, eis de novo<br />

o milagre. A escrita vem como a força de um movimento retido e sem<br />

lugar, resultado de um “Ser Profundo nos ENSAIOS” (TAVARES, 2001,<br />

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p. 115); a escrita segue a ideia de um corpo não inteligente, AMNÉSICO<br />

e sem projetos, porque é aqui e agora, nem antes e nem depois.<br />

Não por acaso Gonçalo M. Tavares escreve no breve fragmento<br />

de número 82 – que na edição brasileira ganha o significativo título de<br />

“Exclamação” 11 , ou seja, algo que se diz com ênfase ou em voz alta e<br />

que exprime admiração ou alegria –, uma espécie de acontecimento do<br />

corpo aqui e agora, como se a força do não ter lugar do movimento<br />

retido, em estado de desobediência, eclodisse em movimento violento<br />

e espantoso, em dança, em exclamação para todos os lados, como<br />

se também perdesse de vista a sua condição de sujeito do enunciado,<br />

para montar o paradoxo em direção a um sujeito da enunciação:<br />

Alguém me aconteço!<br />

Alguém<br />

me<br />

aconteço.<br />

(TAVARES, 2001, p. 99).<br />

O verso-exclamação “Alguém me aconteço!”, tal qual o gesto de<br />

levantar o braço (verso e gesto para nada, como talvez seja o lugar<br />

da literatura agora: para nada, logo para tudo), também parece conservar<br />

o segredo no corpo, a ausência de sexo e de ornamento na<br />

indeterminação do pronome “alguém” que produz um acontecimento<br />

no corpo; assim como levantar o braço é também um gesto indeterminado.<br />

Tudo não passa de uma tentativa de incorporação, um<br />

exercício de releitura da imagem do escritor como um corpo que se<br />

lança no mundo a partir do que escreve e a partir, principalmente, do<br />

que publica daquilo que escreve. Onde o acontecimento da escrita?<br />

Badiou diz justamente que o movimento desse corpo em eclosão, em<br />

exclamação e que jorra sugere o seguinte: “A dança seria a metáfora<br />

de que todo pensamento verdadeiro depende de um acontecimento.<br />

Pois um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido<br />

entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu<br />

11 Na versão para a edição brasileira de o Livro da Dança (Editora da Casa,<br />

2008) Gonçalo M. Tavares desloca a exclamação para o final do poema: “Alguém<br />

me aconteço./ Alguém/ me/ aconteço!” (TAVARES, 2008, p. 99).<br />

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desaparecer” (BADIOU, 2002, p. 84). E é aqui onde parece residir o<br />

milagre da escrita pensada como um corpo que dança, entre planejar<br />

o milagre e ensaiar, pois o corpo que dança e tão logo desaparece é<br />

também o corpo que dura, o corpo infinito. José Gil, por sua vez, diz<br />

que “não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O<br />

repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia,<br />

uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento”<br />

(GIL, 2004, p. 13). Por isso o corpo leve, desobediente e soberano,<br />

esse corpo de escrita inventado por Gonçalo M. Tavares, “um bailarino<br />

subtil”, atravessa furiosamente todos os seus livros, sem repouso,<br />

em uma dança desenfreada, por dentro do seu permanente começar,<br />

como uma aparição sutil, um fantasma ou um esquecimento milagroso.<br />

Ou na sugestão de Valéry, como uma espécie de movimento<br />

ondulatório de saias engrinaldadas, que o bailarino levanta repetidas<br />

vezes com uma estranha e impudica insistência, em um jogo entre<br />

deixar o corpo à mostra e exposto, e esconder o corpo, fazer o corpo<br />

desaparecer.<br />

Badiou afirma que o corpo dançante tal como ele advém no sítio,<br />

tal como se espaça na iminência, “é um corpo-pensamento, jamais é<br />

alguém” (BADIOU, 2002, p. 87, grifo do autor). É bom lembrar que<br />

para Gonçalo M. Tavares o pensamento, o ato de pensar, é – ainda – o<br />

nosso gesto de resistência agora, como se um pensamento fosse – com<br />

o que afirma Nietzsche – leve e sutil, mas igualmente desconfiado<br />

e desobediente. E vejamos que, acerca desses corpos sugeridos por<br />

Badiou, Mallarmé já declarara que eles são sempre símbolo, apenas,<br />

não alguém. Por isso Gonçalo escreve tão incisivamente que “Alguém<br />

me aconteço!”.<br />

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS<br />

O que parece é que Gonçalo M. Tavares apresenta, a partir desse<br />

primeiro livro, o Livro da dança, que ele define como “projeto para<br />

uma poética do movimento”, e em todos os livros posteriores a este,<br />

um texto que seria, antes, um corpo que cai e que também se eleva,<br />

como um corpo-móbil flexível e que dança, um corpo monstruoso,<br />

soberano, anônimo, desobediente, impossível, como uma criança travessa,<br />

sem gravidade e sem memória, que parece negar toda a ideia<br />

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de corpo orgânico, vulgar, dócil, obediente – o falso espírito livre, espírito<br />

cativo e “ridiculamente superficial” do qual fala Nietzsche. De<br />

outra maneira, pensando com José Gil, o projeto de Gonçalo M.<br />

Tavares aponta para um gesto dançado que abre no espaço a dimensão<br />

do infinito, pois “seja qual for o lugar onde se encontra o bailarino,<br />

o arabesco que descreve transporta o seu braço para o infinito” (GIL,<br />

2004, p. 14), pois, como já foi visto, o corpo do bailarino é sempre<br />

transportado pelo movimento em um gesto que começa antes dele,<br />

do próprio movimento, e que se prolonga depois dele. José Gil diz que<br />

“tudo se passa no espaço do corpo do bailarino” (GIL, 2004, p. 14)<br />

que abre buracos no espaço comum, que faz furos no espaço comum,<br />

vulgar, para abrir nele um campo de ventilação, de ar, uma espécie<br />

de estado de desobediência, de queda, de desequilíbrio, de quebra do<br />

movimento que provocará sempre outros movimentos, pois o gesto<br />

da dança inventa sempre novos começos, como um corpo que jorra<br />

para fora de si mesmo.<br />

Por esses e outros tantos desdobramentos podemos pensar que<br />

Gonçalo M. Tavares faz uso de um procedimento singular, como tarefa,<br />

da e na sua escrita, que é o de abrir o corpo da palavra, da frase,<br />

como um bailarino enraivecido em uma travessia violenta (a expressão<br />

é de Nietzsche), até projetá-las para fora, EXIBI-LAS, e armar um<br />

espaço em cada uma delas como um corpo que busca alcançar as<br />

intensidades mais altas, um corpo que é um círculo de desejos. José<br />

Gil chama a esse procedimento, na dança, de “plano de imanência da<br />

dança”, que se dá quando as ações do corpo já não se distinguem dos<br />

movimentos do pensamento, e isso pode ser tomado como uma consciência<br />

do corpo; corpo que passa a ser um corpo-pensamento, que<br />

se abre e se fecha, que pode ser atravessado por diferentes fluxos de<br />

vida; corpo que é uma pura afirmação da vida. Para José Gil, “dançar<br />

é criar a imanência graças aos movimentos” (2004, p. 44).<br />

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REfERêNCiAS<br />

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida.<br />

São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003. (Coleção Espírito crítico).<br />

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller.<br />

São Paulo: Estação Liberdade, 2002.<br />

BARTHES, Roland. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: M.<br />

Fontes, 2003.<br />

BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 1944-<br />

1961. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Ed., 2008.<br />

GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio<br />

D’Água, 1987.<br />

GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma<br />

filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1992.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O caso Wagner. Trad., notas e posfácio<br />

Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio<br />

Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro<br />

para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 2005. v. 1.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos<br />

e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

2006.<br />

NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é.<br />

Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.<br />

SÉNECA. Cartas consolatórias. Trad. Cleonice Furtado de Mendonça.<br />

Campinas: Pontes, 1992.<br />

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TAVARES, Gonçalo M. Breves notas sobre ciência. Lisboa: Relógio d’Água,<br />

2006.<br />

TAVARES, Gonçalo M. A colher de Samuel Beckett e outros textos. Porto:<br />

Campo das Letras, 2002.<br />

TAVARES, Gonçalo M. O humor e ironia com rigorosa habilidade e disciplina:<br />

entrevista. Jornal Rascunho, Curitiba, 5 jan. 2010.<br />

TAVARES, Gonçalo M. Ler para ter lucidez: entrevista. Entrelivros, São Paulo,<br />

n. 29, set. 2007. Entrevista concedida a Joca Terron.<br />

TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.<br />

TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Florianópolis: Ed. da Casa, 2008.<br />

TAVARES, Gonçalo M. 1. Lisboa: Relógio D’Água, 2004.<br />

TAVARES, Gonçalo M. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.<br />

VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. Trad. Christina Murachco, Célia<br />

Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.<br />

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CAio PRADo JR.<br />

E o iNtELECtuAL<br />

mARxiStA HoJE<br />

Marco Aurélio Nogueira<br />

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O presente artigo propõe-se a dialogar com a obra e a trajetória de Caio Prado<br />

Júnior, um dos mais importantes intelectuais marxistas do Brasil. A intenção<br />

não é proceder a uma avaliação em detalhe de sua produção, nem analisar as<br />

relações que essa produção teve com a época e com as opções políticas do<br />

historiador, trabalho que já foi realizado por diversos pesquisadores. Pretende-<br />

se, em vez disso, “usar” seu percurso e seu estilo para refletir livremente sobre<br />

alguns traços do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes<br />

à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto, tratado<br />

aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os intelectuais.<br />

Palavras-chave: Caio Prado Jr.; intérpretes do Brasil; Marxismo<br />

This article proposes to engage in dialogue with the work and the trajectory of<br />

Caio Prado Júnior, one of the most influential historians and Marxist intellectuals<br />

of Brazil. The intention is not to evaluate his production in detail, nor follow<br />

the relationships she had with the Brazilian society and the historian’s political<br />

options, something already conducted by several researchers. Instead, its intention<br />

is to “use” his trajectory and style to freely reflect on some traces of Marxism<br />

in Brazil and especially on certain dilemmas inherent in the performance<br />

of the Marxist intellectuality. Caio Prado Jr. will, therefore, be treated here as a<br />

parameter for a broader reflection on the intellectuals.<br />

Keywords: Caio Prado Jr.; Brazilian studies; Marxism<br />

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iNtRoDuÇAo<br />

Na atual época histórica, a melhoria da capacidade de compreensão<br />

do mundo tornou-se uma exigência. Não podemos nos contentar<br />

em ser meros consumidores de informações. Também não é suficiente<br />

atuar de modo excessivamente especializado, como se o domínio<br />

verticalizado de um único campo de saber bastasse para agir sobre<br />

o mundo. Devemos nos empenhar para ir além de informações e<br />

conhecimentos especializados, organizando-os em um quadro mais<br />

abrangente e aberto para a totalidade da experiência social. De certo<br />

modo, estamos sendo obrigados a viver como intelectuais, ou seja,<br />

como pessoas que fazem da relação com as ideias e os pensamentos<br />

uma espécie de pão cotidiano.<br />

Dentre os “clássicos” do pensamento social brasileiro, Caio da Silva<br />

Prado Júnior (1907-1990) ajusta-se como uma luva nessa consideração<br />

inicial. Ele não foi somente um historiador, e certamente não<br />

foi um historiador acadêmico, ainda que sua obra tenha sido fundamental<br />

para que uma historiografia acadêmica se consolidasse entre<br />

nós. Foi seguramente um historiador no melhor sentido da palavra:<br />

ajudou-nos a descobrir o Brasil, quer dizer, desvendou-nos o modo<br />

como nos tornamos brasileiros, o legado que recebemos da experiência<br />

histórica e os problemas que o século XX teria pela frente. Mas<br />

não se limitou a isso. Foi também geógrafo, escritor, político e editor,<br />

para nos lembrarmos das atividades profissionais a que se dedicou. E<br />

em cada uma dessas áreas, atuou de forma singular, sem reproduzir<br />

mecanicamente os padrões associados à sua classe social, às suas origens<br />

sociais, e acima de tudo sem perder de vista a sociedade como<br />

um todo. Foi, em suma, um intelectual na melhor acepção da palavra.<br />

No texto que se segue, não se pretende avaliar o teor da obra de<br />

Caio Prado Jr., nem acompanhar as relações que ela manteve com<br />

a sociedade brasileira ou analisar as opções políticas do intelectual,<br />

trabalho já realizado por diversos pesquisadores. Pretende-se, em vez<br />

disso, “usar” sua trajetória para refletir livremente sobre alguns traços<br />

do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes<br />

à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto,<br />

tratado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os<br />

intelectuais.<br />

150 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


1 À PRoCuRA DA REvoLuÇÃo buRGuESA<br />

Caio Prado não foi um intelectual que se manteve recluso em alguma<br />

esfera superior, sem contato vivo com a sociedade ou alheio à<br />

agenda da época. Bem ao contrário, foi um intelectual público, que<br />

viveu em contato corporal com seu tempo, integrado às lutas sociais<br />

e às questões que se debateram ao longo de um importante trecho<br />

do século XX. Foi também um intelectual marxista. E como marxista,<br />

envolveu-se intelectualmente com a política e com o Partido Comunista<br />

Brasileiro (PCB). Nessa condição, atuou como um organizador<br />

de cultura, seja como homem de partido, escritor e historiador, seja<br />

como editor.<br />

Tudo isso em uma fase decisiva da vida nacional, entre 1930 e 1980,<br />

anos que assistiram à consolidação do capitalismo no Brasil mas que<br />

não se caracterizaram pela estabilização de uma relação política e<br />

social com a democracia, nem pela sedimentação no país de uma<br />

cultura democrática. Foram anos de desenvolvimento econômico, de<br />

urbanização, de redefinição das relações entre o campo e a sociedade,<br />

de afirmação das modernas classes sociais no Brasil – ou seja, anos<br />

em que a vida moderna se disseminou pela sociedade. Mas não foram<br />

anos de democratização política: não houve consolidação de um sistema<br />

democrático de governo, de práticas democráticas, de modos<br />

democráticos de pensar e fazer política, nem mesmo de ampliação<br />

categórica do sufrágio. Duas décadas de democracia representativa<br />

(1946-1964) terminaram por simbolizar uma espécie de espasmo em<br />

uma longa noite de desenvolvimento econômico combinado com autoritarismo<br />

político, de capitalismo induzido e sem democracia.<br />

Esse contraste entre desenvolvimento econômico-social e desenvolvimento<br />

político tingiu toda a história brasileira. Não foi um acaso,<br />

portanto, que tenha aparecido em posição de destaque na elaboração<br />

teórica de Caio Prado, ainda que nem sempre de forma explícita ou<br />

adequada. O historiador fez dele, devidamente adaptado, uma espécie<br />

de chave para compreender a história brasileira, que ele via como<br />

envolvida por um processo em que o desenvolvimento se fazia sem<br />

rupturas radicais, reiterando o passado e com isso travando o futuro.<br />

Ao longo do tempo, teriam sido dois os efeitos principais desse “modelo”<br />

de desenvolvimento.<br />

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Em primeiro lugar, o processo conservador de desenvolvimento dificultava<br />

que o passado terminasse de passar, ou seja, ficasse para trás.<br />

Como ele escreveu em um de seus livros, vivemos a “assistir pessoalmente<br />

às cenas mais vivas de nosso passado”, frase com que, segundo<br />

ele, um professor francês havia definido os brasileiros como um povo<br />

a ser invejado pelos historiadores, que podiam trabalhar com o passado<br />

como se ele estivesse presente o tempo todo. Caio Prado sempre<br />

reiterou sua hipótese de trabalho: entre nós, é enorme a capacidade<br />

de resistência e reprodução da velha estrutura colonial, fonte de tantos<br />

problemas e de tantos desafios teóricos e práticos. Na “Introdução”<br />

redigida para Formação do Brasil contemporâneo, cuja primeira<br />

edição é de 1942, ele assim se expressou:<br />

Observando-se o Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo<br />

em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em<br />

linhas definidas; que não “tomou forma”. É verdade que em alguns<br />

setores aquela transformação já é profunda e é diante de elementos<br />

própria e positivamente novos que nos encontramos. Mas isto, apesar<br />

de tudo, é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto,<br />

em todo caso, atrás daquelas transformações que às vezes nos podem<br />

iludir, sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até<br />

nos admira de aí achar e que não é senão [o nosso] passado colonial<br />

(PRADO JR., 1970, p. 11).<br />

Em segundo lugar, o mencionado contraste iria se traduzir em déficit<br />

de subjetividade política, problematizando o protagonismo das classes<br />

sociais. A sociedade ficava como que sem energia para produzir, tanto<br />

entre as classes dominantes quanto entre as camadas subalternas<br />

(escravos, brancos marginalizados, agregados, desocupados, trabalhadores<br />

subalternos, operários), sujeitos políticos com competência para<br />

desenvolver ação consequente e eficaz, defendendo seus interesses<br />

mas também contribuindo para plasmar o país. O historiador se voltava<br />

para o Brasil do século XIX, mas a frase parecia escrita para toda uma<br />

época: na análise dos movimentos insurrecionais da primeira metade<br />

do século XIX, e mesmo depois, na luta abolicionista, por exemplo, ele<br />

registra “a ineficiência política das camadas inferiores da população<br />

brasileira”, ou mesmo sua “atitude revolucionária inconsequente”.<br />

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Nem os negros nem a população livre das camadas médias e inferiores<br />

estavam em contato com fatores capazes de lhes dar organicidade<br />

e consciência política. Tais setores,<br />

sem coesão, sem ideologia claramente definida, mesmo quando alcançam<br />

o poder, tornam-se nele completamente estéreis. Em todos<br />

os movimentos populares [do período imediatamente posterior à Independência],<br />

o que mais choca é sua completa desagregação logo<br />

que passa o primeiro ímpeto da refrega (PRADO JR., 1977, p. 60-61).<br />

O mesmo raciocínio poderia ser estendido para as classes dominantes,<br />

que nunca souberam elaborar politicamente seus interesses e<br />

por isso nunca apresentaram um projeto, uma ideia de país, com que<br />

convocar (e subordinar) os demais grupos e setores sociais.<br />

Tal modo de pensar foi importante para que se aperfeiçoasse o entendimento<br />

da revolução burguesa no Brasil e da trajetória seguida<br />

pelo país rumo à modernidade. Tornou-se uma das decisivas influências<br />

da historiografia e do modo brasileiro de pensar o Brasil.<br />

Caio Prado Jr. tratou em um registro forte, absolutizado, a ideia de<br />

que o passado não termina nunca de terminar, o que o levou, por<br />

exemplo, a dar pouca atenção às transformações ocorridas na sociedade<br />

brasileira a partir de 1930. Foi bastante criticado por ter empreendido<br />

análises que insistiram exageradamente no prolongamento<br />

do capitalismo mercantil, de base colonial, no país. Não há em seus<br />

escritos a consideração da afirmação industrial na economia brasileira,<br />

como se o capital tivesse parado no tempo. Sequer trabalharia a hipótese<br />

da industrialização retardatária, com a qual teria podido equacionar<br />

o tema. O Brasil, para ele, mesmo depois de 1964, permanece<br />

ancorado no passado, capitalista com certeza, desde sempre, mas sem<br />

pujança industrial e sem capitalização radical do mundo agrário. Com<br />

isso, não faltariam críticas e registros ao que se chamou de seu “marxismo<br />

estranho” (SANTOS, 2001).<br />

Há, de fato, uma limitação em seu modo de conceber o desenvolvimento<br />

capitalista no Brasil. Vista em grande angular, porém, sua<br />

concepção teve a vantagem de acentuar (de forma unilateral, digamos<br />

assim) o peso do passado na história brasileira. Ofereceu um retrato<br />

do Brasil que desautorizava qualquer tipo de ilusão ufanista, qualquer<br />

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idealização ou simplificação analítica, funcionando como um alerta<br />

para algumas de nossas dificuldades.<br />

Não estaria Caio Prado, com ela, querendo enfatizar que, no Brasil,<br />

dada a falta de uma subjetividade política consistente, o político não<br />

poderia funcionar como fator de estruturação social e desfecho histórico?<br />

Que o país integra uma história feita mais por “fatos” que por<br />

escolhas e construções políticas deliberadas, mais por “processos” que<br />

por “projetos”? Sua ênfase no peso do passado indicaria, assim, que<br />

no Brasil moderno a condição periférica, de base colonial, entranhou-<br />

se em todas as práticas e instituições, condicionando a marcha mesma<br />

da modernização e tingindo de incoerência e imperfeição a lógica<br />

da acumulação capitalista, ao menos até certo trecho do caminho. O<br />

passado pesado entrelaçou-se com ela e deu origem a formas inusitadas<br />

de vida moderna, potencializando os efeitos da “desagregação<br />

política” dos movimentos populares e da precária subjetividade política<br />

das classes sociais.<br />

O fato de Caio Prado Jr. ter sido um intelectual marxista certamente<br />

facilita o entendimento dessas suas hipóteses de trabalho e de seu estilo<br />

como historiador. O estudo do capitalismo como modo de produção,<br />

como sistema social e como Estado distingue o marxismo como teoria. Ao<br />

adotá-lo como ferramenta de trabalho, o intelectual foi inevitavelmente<br />

projetado para esse campo de observação, com o que ficou incentivado<br />

a buscar na história brasileira os elos e as contradições que a ativavam e<br />

a revelavam como um todo complexo, explicando seus padrões de desenvolvimento,<br />

seus atores, suas estruturas de funcionamento.<br />

Mas Caio Prado foi um marxista singular, e não somente “estranho”.<br />

Antes de tudo porque não se deixou modelar pelo marxismo realmente<br />

existente, pelo modo como a época dizia que se devia ser marxista.<br />

Especialmente entre os anos 1930 e 1940, e mesmo depois, o marxismo<br />

ainda não havia construído para si uma prática intelectual propriamente<br />

dita. Os marxistas eram, em sua maioria, revolucionários e<br />

políticos profissionais que também produziam teoria. Suas referências<br />

estavam na revolução, no partido político, na classe operária, no movimento<br />

comunista internacional, tudo o mais deveria ser um desdobramento<br />

disso. Faziam ciência, com certeza, mas também seguiam as<br />

orientações políticas e partidárias, concedendo algo a elas, ainda que<br />

fosse de forma protocolar.<br />

154 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


Quando Caio Prado publicou seu ensaio de interpretação materialista<br />

do Brasil (Evolução política do Brasil, que é de 1933), o ambiente<br />

intelectual não sugeria nem referendava a visão que ele começaria a<br />

adotar: a do desenvolvimento capitalista conservador e a do déficit de<br />

subjetividade política das classes subalternas. Muito ao contrário. Com<br />

a exceção do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), todos<br />

afirmavam a aproximação inevitável do socialismo como decorrência<br />

do desenvolvimento e da crise do capitalismo. Os subalternos, partido<br />

revolucionário e classe operária à frente, pareciam prontos para tomar<br />

o poder e reformar o mundo.<br />

Havia, portanto, no movimento comunista da época, mais confiança<br />

e empolgação do que realismo, rigor e distanciamento crítico, mais<br />

“otimismo da vontade” que “pessimismo da inteligência”, usando a<br />

bela expressão de Romain Rolland insistentemente empregada por<br />

Gramsci. É verdade que, com a ascensão triunfante do nazifascismo<br />

na Europa e no Japão, o clima de confiança cedeu. No Brasil, a derrota<br />

rápida da insurreição de 1935 ajudou a que se percebesse o quanto<br />

havia de ingenuidade nos marxistas. Mesmo assim, porém, o distanciamento<br />

crítico não chegou propriamente a preponderar, até porque<br />

também foi prejudicado por outros dois traços comuns do marxismo<br />

da época: o “obreirismo”, que supervalorizava a cultura e os procedimentos<br />

intelectuais de uma classe operária vista em abstrato, e o<br />

apego ritual e quase religioso às orientações recebidas dos centros oficiais<br />

do movimento comunista internacional. Tudo somado, entre as<br />

décadas de 1920 e 1940 irá se manifestar aquela característica que<br />

Leandro Konder brilhantemente chamou de “derrota da dialética”.<br />

Mais preocupado em “preparar os militantes políticos para a aceitação<br />

disciplinada das palavras de ordem emanadas da direção” (p. 44), o<br />

marxismo predominante perderia sua dimensão dialética e terminaria<br />

por ser praticado de modo tosco, sem vigor teórico (KONDER, 1988,<br />

p. 44-45).<br />

Seguindo à margem desse processo, Caio Prado Jr. adotaria um<br />

marxismo muito pessoal, que de algum modo o imunizou contra as<br />

tendências gerais. Foi sempre inimigo declarado do uso mecânico e<br />

doutrinarista de esquemas revolucionários para “enquadrar” os fatos<br />

brasileiros, como se fosse possível transpor para os trópicos, sem mais<br />

nem menos, elaborações válidas para outros contextos históricos ou<br />

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como se fosse procedimento metodológico válido construir e manusear<br />

conceitos a priori, sem raiz na observação criteriosa dos fatos.<br />

Em sua obra, aliás, não há discussão doutrinária ou embates em torno<br />

dos textos clássicos do marxismo. A história – a realidade social em<br />

seu vir-a-ser – sempre foi para ele mais importante. Uma conhecida<br />

passagem de A revolução brasileira (publicado em 1966) é exemplar<br />

de seu modo de pensar:<br />

No Brasil, talvez mais que em outro lugar, a teoria da revolução, na<br />

qual direta ou indiretamente, deliberada ou inadvertidamente, se inspira<br />

todo pensamento brasileiro de esquerda, e que forneceu mesmo<br />

os lineamentos gerais de todas as reformas econômicas fundamentais<br />

propostas no Brasil, a teoria marxista da revolução se elaborou sob o<br />

signo de abstrações, isso é, de conceitos formulados a priori e sem<br />

consideração adequada dos fatos; procurando-se posteriormente, e<br />

somente assim – o que é o mais grave – encaixar nesses conceitos a<br />

realidade concreta. Ou melhor, adaptando-se aos conceitos aprioristicamente<br />

estabelecidos, e de maneira mais ou menos forçada, os fatos<br />

reais (PRADO JR., 1978, p. 33).<br />

Não há confiança e empolgação em suas análises, por mais que ele<br />

também tenha sido seduzido pela revolução que ocorria na União<br />

Soviética e por mais que tenha estabelecido relações regulares e bastante<br />

disciplinadas com o Partido Comunista Brasileiro. Ao contrário,<br />

há nele muita prudência prospectiva e muito realismo político. A “teorização<br />

às avessas que vai dos conceitos aos fatos e não inversamente”<br />

pesaria como uma bola de chumbo sobre as esquerdas do país,<br />

impedindo-as de alcançar formulações que estivessem efetivamente<br />

sintonizadas com as situações concretas:<br />

A política revolucionária ficou exposta ao sabor das circunstâncias<br />

imediatas, oscilando continuamente entre os extremos do sectarismo<br />

e do oportunismo, e sem uma linha precisa capaz de orientar seguramente,<br />

em cada momento ou situação, a ação revolucionária (PRADO<br />

JR., 1978, p. 34).<br />

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Também por isso, seu relacionamento com o partido seria quase<br />

sempre polêmico, repleto de divergências e discrepâncias teóricas<br />

substantivas, como já foi assinalado por diversos estudiosos do tema<br />

(SANTOS, 2001; RICUPERO, 2000; REGO, 2000; SECCO, 2008).<br />

2 SER iNtELECtuAL E mARxiStA<br />

A postura de Caio Prado Jr. como marxista e como comunista esclarece<br />

importantes traços de sua biografia e de sua obra historiográfica.<br />

Oferece-nos uma ótima oportunidade para dar destaque a alguns dilemas<br />

do intelectual e particularmente do intelectual marxista no Brasil,<br />

do homem de ideias que se projeta para o campo da atuação política.<br />

Mas o que é o intelectual marxista, que traços o particularizam no<br />

universo cultural?<br />

1. Antes de tudo, o intelectual marxista vale-se de um método de investigação,<br />

de uma perspectiva metodológica: a totalidade concreta, a<br />

historicidade dialética, perspectiva que Marx assimilou da filosofia de<br />

Hegel e desenvolveu em sentido materialista. O marxismo é uma teoria<br />

que persegue o alcance de “sínteses” por meio de um trabalho de<br />

unificação das múltiplas determinações que organizam os processos<br />

sociais. O tratamento do real como um todo complexo e articulado faz<br />

com que o marxista rejeite a unilateralidade, o esquematismo e a simplificação.<br />

Para ele, o ser social é um produto humano, historicamente<br />

determinado, complexo e contraditório, que precisa ser interpelado<br />

como um todo. Causalidades simples tornam-se assim tão precárias<br />

quanto o determinismo mecânico, quer dizer, a tentativa de fazer com<br />

que tudo derive de uma única determinação, seja ela a economia, a<br />

política, as ideias ou a tecnologia, por exemplo. As causalidades, na<br />

verdade, traduzem-se no marxismo como interações dialéticas, que<br />

devem ser apreendidas historicamente. O modo de produção (a economia)<br />

é um decisivo fator de determinação, mas não é o único fator<br />

com potência explicativa. Nem o único, nem necessariamente o mais<br />

importante. Forças não econômicas jogam um peso igualmente decisivo<br />

na história, a começar da política, seja como ação política seja<br />

como superestrutura e institucionalidade política.<br />

Para o marxismo, o pensamento se afirma enquanto movimento,<br />

sendo, portanto, sempre incompleto: não está vazio de verdade, mas<br />

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não detém toda a verdade. A razão procede por sucessivas aproximações<br />

e alcança verdades que são sempre parciais e provisórias. Por<br />

isso, o marxista valoriza a dúvida, a incerteza, a necessidade de rever<br />

sempre o que se considera descoberto ou conhecido. Ao mesmo tempo,<br />

recusa a ideia de que a ciência pode tudo, que é a única forma de<br />

saber, tão perfeita que dispensaria até mesmo a arte, a sensibilidade, o<br />

conhecimento espontâneo, a criatividade, a imaginação, a religiosidade<br />

e especialmente a observação criteriosa dos fatos.<br />

2. Ser um intelectual marxista é portanto, em segundo lugar, empregar<br />

a perspectiva da totalidade concreta para investigar a realidade com<br />

o máximo rigor e objetividade, valorizando o conhecimento em si.<br />

O pensamento crítico dialoga permanentemente com a realidade:<br />

busca compreendê-la, alcançá-la por inteiro, reunificá-la. É desafiado<br />

por ela. Por isso mesmo, pode ser mais ou menos favorecido pelos arranjos<br />

sociais e pela cultura prevalecente em cada época histórica. Isto<br />

significa recusar os determinismos sedutores, com suas causalidades<br />

rígidas, e dar atenção dedicada ao incessante jogo de determinações<br />

recíprocas entre forças desiguais e contraditórias. A realidade somente<br />

pode ser compreendida se for pensada como processo, movimento,<br />

contradição, unidade do diverso. No fundo, tudo está ligado a tudo<br />

o tempo todo, e a astúcia do pensamento é perseguir o movimento<br />

que articula, aproxima e afasta as partes: os fluxos, as determinações<br />

(NOGUEIRA, 2005).<br />

3. O intelectual marxista persegue o conhecimento e a verdade do<br />

real, mas faz isso associado a uma proposta de intervenção e a um ideal<br />

de transformação social. Assimila o marxismo como uma teoria política<br />

em um duplo sentido: está sempre em busca da tradução política daquilo<br />

que é obtido pelo conhecimento crítico e vê a ação política como<br />

eixo estruturador da vida em sociedade.<br />

Ao longo do século XX, a exacerbação mecanicista do determinismo<br />

econômico tendeu, durante décadas, a congelar a política na esfera<br />

“determinada” das superestruturas, com o correspondente cancelamento<br />

da dimensão do sujeito e da vontade. Houve bastante menosprezo<br />

pela teorização sistemática da política e do Estado. O marxismo<br />

ficou assim em dificuldades para acompanhar as mudanças imponentes<br />

que apareceram na esfera mesma do político (generalização do<br />

sufrágio, socialização da política, democracia de massa, novos sujeitos<br />

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políticos). Ao invés de buscarem uma reconstrução teórica que superasse<br />

o caráter incompleto do pensamento de Marx, muitos de seus<br />

intérpretes procuraram simplesmente usar os fundamentos teóricos<br />

de Marx para ativar estratégias políticas. O dogmatismo paralisou a<br />

dialética marxista e fez com que o marxismo – bem como todos os<br />

seus produtos tópicos (teoria da revolução, teoria do Estado, teoria do<br />

partido) – parasse no tempo, deixasse de acompanhar e assimilar as<br />

transformações que se foram processando na realidade social do capitalismo.<br />

Como escreveu Caio Prado, “a longa fase de acentuado dog -<br />

matismo que imperou em todo pensamento marxista, como fruto dos<br />

graves erros do estalinismo”, somada às características culturais brasileiras,<br />

pesaram negativamente, “embaraçando qualquer tentativa de<br />

verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração científica”. Os prejuízos<br />

consolidaram-se “em concepções rígidas, verdadeiros dogmas que se<br />

tornaram altamente respeitáveis” (PRADO JR., 1978, p. 34).<br />

4. O ideal de transformação social projeta o marxismo para o terreno<br />

da revolução social. O intelectual marxista, porém, não pensa<br />

a revolução como um momento mágico, localizado no tempo, com<br />

data certa para começar e ser concluído. Trata-se essencialmente de<br />

um processo de lutas, tensões, conflitos e negociações, no decorrer<br />

do qual se acumulam forças que projetam reformas estruturais e<br />

se empenham para sua implementação. Há uma mola processual<br />

e “consciente” nas revoluções imaginadas pelo marxismo. Ainda que<br />

possam conhecer momentos de explosão popular ou de aceleração<br />

das mudanças, o que conta é o longo prazo, aquilo que pode haver<br />

de transformação estrutural e sustentável da vida social. E ainda que<br />

o “acaso” e a espontaneidade social possam jogar algum peso na dinâmica<br />

reformadora das revoluções, o que conta é a capacidade que<br />

os sujeitos sociais têm de produzir organização política e projetos de<br />

transformação social. A revolução concebida pelos marxistas, assim,<br />

não é a passagem abrupta de um sistema social a outro, mas sim uma<br />

sucessão de reformas de variada intensidade e no decorrer das quais<br />

se encadeiam rupturas nas estruturas sociais, nas relações econômicas,<br />

no Estado e no equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias<br />

sociais. Ela se distingue claramente de uma “insurreição”, que se<br />

vale do emprego da força para derrubar um governo ou um regime.<br />

Seu sentido real e profundo aponta bem mais para a transformação<br />

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abrangente, processo que pode ser estimulado por insurreições mas<br />

que necessariamente não o é: “O significado próprio se concentra na<br />

transformação, e não no processo imediato através de que se realiza”,<br />

na formulação precisa de Caio Prado (1978, p. 2).<br />

Precisamente por isso, revolução e reforma são termos que se aproximam<br />

e se completam.<br />

5. Isso significa que o intelectual marxista atua com os olhos nos<br />

processos de democratização social e na democracia política como<br />

princípio de governo e deliberação. Seu foco não é exclusivamente a<br />

revelação do que há de autoritarismo, opressão e miséria social nos<br />

sistemas capitalistas e o combate ao caráter classista do poder do Estado.<br />

Maior relevância é depositada na compreensão do processo por<br />

meio do qual se possam atingir a recomposição e o alargamento do<br />

sistema político, a incorporação e a integração social, a expansão e a<br />

consolidação da democracia em sentido amplo. Sua agenda inclui,<br />

por isso, tanto uma reflexão sobre a sociedade em que se vive e sobre<br />

seus sujeitos quanto uma reflexão sobre o sistema de regras que<br />

devem ser adotadas para que se possa disputar democraticamente o<br />

poder. O marxismo assimila o tema da representação política. Faz isso<br />

por meio da crítica da ideia liberal de representação, problematizando-a<br />

por seu caráter restrito e limitado, mas também pela rejeição de<br />

qualquer ideia imperativa ou vinculada de representação, que veja o<br />

representante político como uma extensão mecânica e passiva dos interesses<br />

de classe. Sua teoria da representação democrática incorpora<br />

a participação social e vê nela um decisivo fator de revigoramento e<br />

ampliação do sistema representativo.<br />

Para o intelectual marxista, a democracia é também democratização,<br />

processo de disseminação progressiva de valores, práticas, instituições<br />

e espaços de deliberação democrática. Sua ideia de democracia,<br />

portanto, aceita a perspectiva do avanço processual por meio de<br />

acúmulos e consolidações, que não eliminam lutas e antagonismos e<br />

pretendem ser obtidos de forma legal, conforme leis e constituições.<br />

Trata-se de uma ideia de democracia como recurso reformador, como<br />

critério de convivência e como valor universal, um bem a ser defendido<br />

e protegido.<br />

Caio Prado Júnior foi um intelectual marxista em todos esses sentidos.<br />

Ressalto aqui, para com ela concordar, a principal hipótese da<br />

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pesquisa desenvolvida por Bernardo Ricupero: “Boa parte do interesse<br />

da obra de Caio Prado Jr. provém precisamente de sua associação<br />

com o marxismo”. Ele “não é qualquer marxista do Brasil, mas verdadeiramente<br />

um marxista brasileiro, isto é, alguém que abre caminho<br />

para uma aproximação da teoria marxista com a realidade brasileira”<br />

(RICUPERO, 2000, p. 24). Sua obra representa a “nacionalização” do<br />

marxismo, a elaboração dessa teoria em interação com as condições<br />

específicas de nossa experiência histórico-social. Nele, as ideias se<br />

transformaram em “sentimento de uma realidade”, sentimento esse<br />

revelado “na paixão com que se voltou para dentro de seu país, não<br />

se encantando com a prática da imitação, tão comum na reflexão intelectual<br />

brasileira” (REGO, 2000, p. 23-24).<br />

Caio Prado relacionou-se com o marxismo como método da totalidade<br />

concreta, como teoria social e como teoria da ação, buscando<br />

atuar em prol de uma revolução que reestruturasse e democratizasse<br />

a sociedade brasileira. Travou conhecimento com a literatura marxista<br />

quase ao mesmo tempo em que se aproximou e aderiu ao Partido<br />

Comunista, em 1931. Ao final da juventude, ainda que sem alarde ou<br />

exacerbação verbal, rompeu com os limites políticos e ideológicos de<br />

sua classe de origem, interessou-se pelo socialismo e saiu em busca<br />

do Brasil e do mundo. Descobriu a pobreza, a miséria, as diferenças<br />

regionais, fatores que o impulsionaram para a militância comunista.<br />

“Eu era na realidade um burguês rico, de educação e visão europeia,<br />

acostumado ao conforto material. Ignorava até então a nossa realidade”,<br />

observou certa vez a Maria Cecília Naclério Homem. A partir de<br />

então, despertaria para os problemas brasileiros e para as soluções:<br />

Começou seu engajamento e o estudo sistemático do Brasil, adotando<br />

uma postura receptiva constante. Passou a trabalhar com o presente<br />

e o passado, em vista do futuro. Sua dimensão de história será muito<br />

mais ampla porque pretende transformá-la tanto pela produção escrita<br />

quanto pela própria participação dos acontecimentos políticos e culturais<br />

(apud D’INCAO, 1989, p. 47).<br />

Depois de aderir ao Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado foi preso<br />

(em 1935, permanecendo na cadeia até 1937), viajou e fez contatos<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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com outros partidos, conheceu militantes de vários tipos e foi eleito<br />

deputado estadual em São Paulo (1947), cargo que abandonou quando<br />

o PCB teve o registro cassado, em 1948. Em 1943, juntamente com<br />

Monteiro Lobato e Arthur Neves, fundou a Editora Brasiliense e, nos<br />

anos 1950, a <strong>Revista</strong> Brasiliense, publicação que teria extraordinária importância<br />

na história política do Brasil. Nela, Caio publicou numerosos<br />

artigos históricos e políticos, muitos dos quais voltados para a estrutura<br />

agrária brasileira. A revista contribuiu para a formação de inúmeros intelectuais<br />

durante os anos em que circulou (de 1955 a 1964).<br />

Caio Prado foi um militante, mas jamais se deixou constranger intelectualmente<br />

pelo PCB. Não permitiu que o partido exigisse dele algo<br />

mais que lealdade, nem aceitou que o partido postulasse a função<br />

de “administrar” o impulso criativo e crítico do intelectual, fosse uma<br />

espécie de dono e gestor do conhecimento. Levou a sério a perspectiva<br />

de que atitude crítica e autonomia são requisitos essenciais para<br />

que o intelectual possa funcionar como usina de ideias, como agente<br />

cultural, e possa, desse modo, colaborar para que um partido atue<br />

adequadamente, isto é, fazendo escolhas e apostas corretas, desenhando<br />

programas factíveis, aprimorando seus cálculos. Terminou por<br />

ser, talvez sem plena consciência disso, um fator de contestação no<br />

interior do movimento comunista, contestação que só não repercutiu<br />

mais intensamente devido ao desinteresse que Caio Prado teve pelas<br />

disputas internas e pela luta ideológica que se processava no partido.<br />

Em nenhum momento chegou a integrar a direção partidária e nunca<br />

chegou a ser propriamente valorizado pelos comunistas.<br />

Seu relacionamento com o PCB sempre pressupôs que o partido não<br />

conseguia fazer escolhas políticas adequadas porque teorizava a partir<br />

de modelos e esquemas preconcebidos (fragilmente universalizados)<br />

e não de elaborações que fossem capazes de interagir com o processo<br />

real, traduzi-lo corretamente, compreendendo suas determinações e<br />

empregando-as para fazer análise política e projetar a revolução. Seu<br />

convívio com o PCB foi sempre eminentemente polêmico: vieram<br />

dele algumas das mais contundentes críticas à teoria e à prática que<br />

prevaleciam no partido. A revolução brasileira (1966) foi o ápice disso.<br />

Caio Prado Jr. não rompeu com o partido, nem dele se afastou.<br />

Foi uma situação atípica, especialmente se se levar em conta que as<br />

direções do PCB não costumavam ser tolerantes com aqueles que<br />

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atuavam com autonomia e espírito crítico aguçado. O fato reforça a<br />

tese de que o intelectual e o partido chegaram a uma “solução de<br />

acomodação” (RICUPERO, 2000, p. 128). Ao partido certamente interessava<br />

o vínculo de Caio Prado e o intelectual optou por aceitar<br />

certas restrições e críticas para não ser um “independente diletante”.<br />

No fundo, é provável que não tenha vislumbrado a possibilidade de<br />

ser um marxista tout-court fora desse ambiente, no qual seria possível<br />

pensar e agir como parte de um movimento potencialmente capaz de<br />

levar à prática certas soluções cogitadas teoricamente. Tratou o PCB<br />

como um partido que “historicamente sempre defendeu certa categoria<br />

social, o proletariado, além de ser um partido em que não entra o<br />

interesse pessoal” (apud SECCO, 2008, p. 50).<br />

Afinal, também o intelectual que não deseje ser diletante necessita<br />

de uma referência coletiva para poder ser produtivo. Isso significa<br />

encontrar um difícil equilíbrio entre pensamento e ação, autonomia e<br />

compartilhamento, conhecimento e pedagogia. O PCB foi essa referência,<br />

do mesmo modo que a <strong>Revista</strong> Brasiliense funcionou como um<br />

“segundo” partido, a plataforma a partir da qual Caio Prado operou<br />

como intelectual. Ação e pensamento puderam assim conviver.<br />

3 iNtELECtuAiS E mARxiSmo HoJE<br />

A época é de crise e perda de prestígio do marxismo. Há quase um<br />

consenso a decretar a “morte de Marx”, que flutua paradoxalmente<br />

sobre uma realidade, o capitalismo globalizado, que repõe sem cessar<br />

a validade de muitas teses de Marx, sua capacidade de permanecer<br />

interpelando os termos da dinâmica social. O marxismo que se repõe<br />

hoje, porém, não é de modo algum a doutrina onisciente e fechada,<br />

autossuficiente e dogmática, que vicejou em outras épocas, mas<br />

sim uma teoria carregada de potência explicativa, plural e dialética. O<br />

marxismo não está morto, mas há algo morto no marxismo.<br />

É equivocada a afirmação de que o marxismo como teoria política<br />

foi somente insuficiência e dogma. Em seu interior, entre outras coisas,<br />

produziu-se também uma proposição teórica como a do italiano<br />

Antonio Gramsci, categoricamente voltada para a reconstrução da<br />

abordagem marxista do Estado e da política, para o estabelecimento<br />

dos fundamentos de uma “teoria ampliada do Estado”, assentada em<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />

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uma inovadora teoria da hegemonia e da sociedade civil. Gramsci,<br />

além disso, caminhou ao largo da versão reducionista de Marx, com a<br />

qual se fixara uma quase absoluta dependência da construção social<br />

em relação à estrutura econômica. Superou tal versão, insistindo no<br />

reconhecimento de que o marxismo se singulariza por ser uma teoria que<br />

afirma, ao mesmo tempo, a autonomia relativa dos âmbitos da economia,<br />

da política, da ética e da cultura e a recíproca influência entre<br />

eles. Seu marxismo é uma teoria política que exclui o voluntarismo e<br />

o arbítrio (derivados da desconsideração dos condicionamentos econômicos)<br />

assim como o fatalismo e a subalternidade (resultantes da<br />

conversão da “determinação econômica” em “economicismo”).<br />

É preciso considerar também que as falhas e dificuldades teóricas<br />

do marxismo – suas insuficiências enquanto proposta científica – não<br />

decorreram de defeitos congênitos, epistemológicos ou ontológicos,<br />

inerentes à própria teoria, mas derivaram, ao menos em parte, dos<br />

condicionamentos, impactos e desdobramentos do movimento comunista.<br />

São problemas políticos que têm a ver com os nexos entre teoria<br />

e movimento político e que, portanto, só podem ser resolvidos com a<br />

redefinição destes mesmos nexos: ou com sua superação, quer dizer,<br />

com sua reposição em bases completamente novas, ou com seu cancelamento<br />

em nome da plena autonomização da teoria.<br />

Pressionado pela própria história da teoria, pela crise do marxismo<br />

e pela desagregação dos partidos comunistas em praticamente todos<br />

os países, o intelectual marxista tornou-se um personagem em busca<br />

de reinserção e contagiado por uma espécie de crise de confiança. Ele<br />

ainda encontra impulso para se reproduzir em nossos dias? Ele ainda<br />

faz sentido, ainda é necessário? Que obstáculos encontra para se afirmar<br />

e se expandir?<br />

O intelectual marxista não tem mais como ser um homem de partido<br />

no sentido de estar formalmente integrado a uma organização<br />

política concreta. Ele certamente precisa ser partidário: tomar partido<br />

e pôr-se em defesa de uma parte da sociedade, a dos subalternos, a<br />

dos excluídos, explorados e humilhados. Mas não precisa ser necessariamente<br />

um militante partidário em sentido estrito, muito menos<br />

um dirigente ou um funcionário de partido. E isso por dois motivos.<br />

Primeiro, porque a nossa não parece ser mais uma época de partidos<br />

entendidos como veículos de transformação social. Os partidos atuais<br />

164 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


são figuras burocráticas, dedicadas à disputa eleitoral e ao controle<br />

do poder. Não são entidades voltadas para a produção de cultura, de<br />

valores, de formas de identidade. Deixaram de ser canais de paixões<br />

políticas, dedicam-se somente a interesses. Segundo, porque o intelectual<br />

que opera nas condições do capitalismo globalizado precisa ser<br />

livre de injunções para poder ser intelectual. Dado o empobrecimento<br />

cultural dos partidos, o casamento entre eles e os intelectuais parece<br />

ser problemático, mais propenso a produzir dor que prazer.<br />

Mas os intelectuais, a rigor, só têm como se realizar na política e a<br />

partir da perspectiva da política. Afinal, política não é sinônimo de<br />

poder, nem de mundo dos profissionais da política, mas um campo<br />

em que se disputam ideias a respeito do viver coletivo e em que se<br />

aposta nas possibilidades de construir o social, planejar o futuro, tornar<br />

mais justa a convivência entre grupos e pessoas. O intelectual que<br />

não se coloca nessa perspectiva e se recusa a pensar o todo – que se<br />

fecha em sua especialização, em seu corporativismo – mantém-se em<br />

função subalterna.<br />

Os diferentes tipos de intelectuais críticos e democráticos, e entre<br />

eles os marxistas, enfrentam outro problema. É que a vida pública está<br />

hoje em crise. O Estado, a ideia de Estado, a dimensão ética e educativa<br />

do Estado, tudo isso está envolto em um profundo mal-estar.<br />

Assiste-se à intensificação do mercado e à valorização da sociedade<br />

civil contra o Estado. É uma época com pouca política, na qual os<br />

cidadãos não encontram respostas para seus problemas no sistema político,<br />

não confiam nele e preferem não olhar para ele. A própria polí tica<br />

é vista com desconfiança, especialmente se for identificada com Estado e<br />

vida coletiva.<br />

Os ambientes em que vivemos parecem “despolitizados”, vazios de<br />

perspectiva cívica, com reduzida noção do que é público. Nada dá<br />

muito sentido e expressão às comunidades em que nos inserimos e<br />

que nos orientam. Das organizações profissionais à comunidade política<br />

“nacional”, o clima é de desconforto e melancolia. Assistimos a uma<br />

complicada alteração nas formas mesmas com que cada um pensa a<br />

sua relação com o todo: com os demais, com o Estado, com a história,<br />

com o futuro. O trabalho intelectual ficou com seu eixo deslocado.<br />

Uma constatação pode nos ajudar a entender isso. Presenciamos a<br />

radicalização daquele “desencantamento do mundo” de que falava<br />

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Max Weber no início do século XX. Protagonizamos uma era de especialização,<br />

racionalização e profissionalização intensas, em que estão<br />

sendo roubadas as bases que fomentavam a reprodução do intelectual<br />

rebelde, que não se submete a rotinas institucionais, não aceita as<br />

divisões rígidas do trabalho e está sempre mergulhado em embates<br />

doutrinários. É uma era que reduziu dramaticamente a possibilidade<br />

objetiva de que se empreendam esforços teóricos totalizantes. No<br />

lugar do romantismo revolucionário, dos conflitos éticos e da paixão<br />

cívica, entraram em cena o cálculo criterioso, as carreiras bem planejadas,<br />

o pragmatismo institucional, o respeito aos cânones e ritos burocráticos.<br />

O saber especializado parece frear o impulso intelectual para<br />

alçar-se ao “universal”, à crítica abrangente dos sistemas, à proposição<br />

de novos desenhos de vida.<br />

A época é individualista e individualizadora. Fragmenta e diferencia<br />

sempre mais, exacerba direitos e interesses, faz com que as obrigações,<br />

os deveres, sejam vistos como fardo e ônus. Nela, as pessoas lutam<br />

por interesses e por identidade, e essas lutas não produzem mais<br />

vida coletiva, ainda que sejam justíssimas. São lutas que produzem<br />

tensão e efervescência, mas não conseguem se traduzir em formas<br />

mais avançadas de convivência.<br />

Paradoxalmente, a nossa também se tornou uma era de instituições<br />

e organizações, situação que reflete o estágio de complexidade social<br />

em que nos encontramos. Em boa medida, as instituições chamam<br />

para si as tarefas “pedagógicas” que antes cabiam aos intelectuais. As<br />

atividades intelectuais estão cada vez mais condicionadas por orientações<br />

políticas que se confundem com iniciativas organizacionais,<br />

com seus invólucros administrativos, seus arranjos e suas restrições. A<br />

sombra da burocracia agigantou-se. Cresceu o atrito entre a liberdade<br />

intelectual e a rotina institucionalizada.<br />

É uma época de muita informação e pouco conhecimento. Há muitas<br />

ideias no ar, mas não temos certeza se elas são mesmo ideias (formas<br />

novas e sistematizadas de reflexão sobre o mundo) ou somente<br />

informações um pouco mais articuladas. Mesmo no terreno das informações,<br />

travestidas ou não de ideias, a dispersão, o detalhe, o supérfluo<br />

e o imediatismo parecem ser a regra. Os efeitos da informatização repercutem<br />

aqui de forma intensa. À nossa frente, ergue-se um complexo<br />

e fragmentado sistema de comunicação, com suas inúmeras redes<br />

166 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012


de contatos, suas imagens e informações que explodem sem cessar,<br />

suas sempre novas tecnologias da inteligência, que no mínimo subvertem<br />

os modos “normais” de produzir e transmitir conhecimentos.<br />

Os intelectuais sempre foram peças-chave dos processos de construção<br />

e reprodução de hegemonias. Hoje, nos contextos globalizados,<br />

com suas redes sociais conectadas em tempo real por dispositivos comunicacionais<br />

que operam como artífices de imaginários, fantasias e<br />

“vontades coletivas”, a hegemonia já não flui como antes. Do mesmo<br />

modo, o intelectual sempre deteve o monopólio de trabalhar com<br />

a palavra, e hoje, nas sociedades da informação, todos trabalham com a<br />

palavra e exercem “funções intelectuais”. Estreita-se a especificidade<br />

do intelectual e muda seu papel social.<br />

Tudo isso faz com que o intelectual passe a encontrar enorme dificuldade<br />

de agir publicamente, de se afirmar e com isso de escapar do<br />

cerco que suas próprias instituições o submetem. Todos ficam como<br />

que magnetizados pela indústria cultural, que é sempre mais indústria<br />

do entretenimento.<br />

Expandiu-se o campo de atuação dos intelectuais, seja porque cresceram<br />

as oportunidades de obter audiência, seja porque se expandiu<br />

a produção de conhecimentos, seja porque aumentaram os meios de<br />

difusão de ideias. Os intelectuais certamente não ficaram mais poderosos,<br />

nem estão mais influentes, mas sem eles os sistemas não funcionam.<br />

Quanto mais se expandem os meios de informação e comunicação,<br />

aliás, mais necessários e visíveis ficam os intelectuais. Tendo de responder<br />

a tantas demandas tópicas e especializadas, os intelectuais já não<br />

têm mais como se ocupar daquilo que os tipifica como intelectuais:<br />

o esforço de totalização.<br />

O intelectual público não morreu. Bem ao contrário, sua existência é<br />

uma exigência histórica e não tem como ser sumariamente descartada.<br />

O momento hoje é de certo refluxo, de certa dificuldade, mas ainda<br />

fornece bastante espaço para que nos dediquemos a pensar com autonomia,<br />

a rever nossos procedimentos e nossas apostas. Fazendo isso,<br />

abrimos caminho, mais uma vez, para a reiteração da figura do intelectual<br />

público.<br />

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167


CoNSiDERAÇoES fiNAiS<br />

O modo marxista de pensar e de proceder intelectualmente continua<br />

a ser indispensável. O mundo globalizado é radicalmente diferenciado<br />

e fragmentado. Não pode ser explicado e compreendido por<br />

abordagens que tenham pretensões esquemáticas, excessivamente categóricas<br />

ou dogmáticas. O predomínio unilateral da autoridade dos<br />

especialistas empurra o cidadão para os bastidores da decisão política.<br />

Corrói e enfraquece a democracia. O pensar em termos complexos e<br />

dialéticos, portanto, funciona como uma poderosa alavanca de compreensão:<br />

sua capacidade de totalização devolve sentido ao mundo e<br />

ao viver coletivo.<br />

A assimilação desse modo de pensar está na base tanto de um<br />

melhor entendimento da política, do Estado e da ação de governar<br />

quanto de uma reflexão a respeito dos recursos e caminhos de que<br />

dispomos para que se viabilize algum tipo de recuperação democrática<br />

da política. Isto quer dizer que pensaremos melhor a política se<br />

conseguirmos entendê-la como uma atividade e um espaço que se<br />

inserem em totalidades concretas que precisam ser analisadas e compreendidas.<br />

Veremos, assim, que a política não se rende nem se submete<br />

ao econômico, ao cálculo ou ao imediato, e só se realiza efetivamente<br />

por meio de sujeitos e em contato aberto com a democracia, a<br />

história e a vida comunitária. Para falar com os termos de Caio Prado,<br />

qualquer teoria da revolução ou qualquer projeto de reforma democrática,<br />

“para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos,<br />

será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da<br />

conjuntura presente e do processo histórico de que resulta” (PRADO<br />

JR., 1978, p. 15).<br />

Clássicos como Caio Prado Jr., ao serem revisitados, nos ajudam<br />

mais uma vez, agora não a iluminar e explicar nosso passado, mas a<br />

nos sugerir pistas com que avançar rumo ao futuro.<br />

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REfERêNCiAS<br />

D’INCAO, M. A. (Org.). História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr. São<br />

Paulo: Brasiliense: Unesp, 1989.<br />

KONDER, L. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil,<br />

até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988.<br />

NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. 2. ed. São Paulo: Ed. Senac São<br />

Paulo, 2005.<br />

PRADO JÚNIOR, C. Evolução política do Brasil. 10. ed. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1977.<br />

PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. 10. ed. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1970.<br />

PRADO JÚNIOR, C. A revolução brasileira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,<br />

1978.<br />

REGO, R. M. L. Sentimento do Brasil: Caio Prado Jr.: continuidade e<br />

mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Ed. da<br />

Unicamp, 2000.<br />

RICUPERO, B. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São<br />

Paulo: Ed. 34, 2000.<br />

SANTOS, R. Caio Prado Jr. na cultura política brasileira. Rio de Janeiro:<br />

Mauad: FAPERJ, 2001.<br />

SECCO, L. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo,<br />

2008.<br />

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169


NÚmERoS ANtERioRES<br />

EDiÇÃo 15<br />

EDiÇÃo 16<br />

170<br />

A DESoRDEm Do muNDo<br />

André bueno<br />

ESCutA, ARtE E SoCiEDADE A PARtiR Do mÚSiCo ENfuRECiDo<br />

Daniel belquer<br />

EDuCAÇÃo SuPERioR No bRASiL: o REtoRNo PRivADo E AS REStRiÇÕES<br />

Ao iNGRESSo<br />

márcia marques de Carvalho<br />

APRENDizAGEm PoR PRobLEmAtizAÇÃo<br />

Pedro Demo<br />

A CiDADANiA AtRAvÉS Do ESPELHo:<br />

Do EStADo Do bEm-EStAR ÀS PoLÍtiCAS DE ExCEÇÃo<br />

Sylvia moretzsohn<br />

REPERCuSSÕES Do iCmS ECoLÓGiCo NA GEStÃo AmbiENtAL<br />

Em mAto GRoSSo, bRASiL<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />

Sueli Ângelo furlan<br />

A HoRA DE iR PARA A ESCoLA<br />

Daniel Santos<br />

CRiAtiviDADE<br />

marsyl bulkool mettrau<br />

ENtRE o DRAmA E A tRAGÉDiA: PENSANDo oS PRoJEtoS SoCiAiS DE<br />

DANÇA Do Rio DE JANEiRo<br />

monique Assis<br />

Nilda teves<br />

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EDiÇÃo 17<br />

EDiÇÃo 18<br />

GiNÁStiCA ESCoLAR Como DiSPoSitivo bioPoLÍtiCo-PEDAGÓGiCo:<br />

umA ANÁLiSE DA RELAÇÃo ENtRE EDuCAÇÃo, SAÚDE E moRALiDADE<br />

Em fERNANDo DE AzEvEDo<br />

murilo mariano vilaça<br />

CiDADE mARAviLHoSA: ENCoNtRoS E DESENCoNtRoS NoS PRoJEtoS<br />

DE REmoDELAÇÃo uRbANA DA CAPitAL ENtRE 1902 E 1927<br />

José Cláudio Sooma Silva<br />

A CAPtuRA Do GoSto Como iNCLuSÃo SoCiAL NEGAtivA: PoR umA<br />

AtuALizAÇÃo CRÍtiCA DA ÉtiCA utiLitARiStA<br />

marco Schneider<br />

iNovAÇÃo, tECNoLoGiAS SoCiAiS E A PoLÍtiCA DE CiêNCiA E tECNoLoGiA<br />

Do bRASiL: DESAfio CoNtEmPoRÂNEo<br />

marcos Cavalcanti<br />

André Pereira Neto<br />

RECENtES DiLEmAS DA DEmoCRACiA E Do DESENvoLvimENto No bRASiL:<br />

PoR QuE PRECiSAmoS DE mAiS muLHERES NA PoLÍtiCA?<br />

marlise matos<br />

tRAbALHo iNfANtiL No bRASiL: Rumo À ERRADiCAÇÃo<br />

Ricardo Paes de barros<br />

Rosane da Silva Pinto de mendonça<br />

o DEbAtE PARLAmENtAR SobRE o PRoGRAmA boLSA fAmÍLiA No<br />

GovERNo LuLA<br />

Anete b. L. ivo<br />

José Carlos Exaltação<br />

EDuCAÇÃo PARA A SuStENtAbiLiDADE: EStRAtÉGiA PARA EmPRESAS Do<br />

SÉCuLo xxi<br />

Deborah munhoz<br />

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171


EDiÇÃo 19<br />

172<br />

fAGuLHAS Do AutoRitARiSmo No futEboL: EmbAtES SobRE o EStiLo<br />

DE JoGo bRASiLEiRo Em tEmPoS DE DitADuRA miLitAR (1966-1970)<br />

Euclides de freitas Couto<br />

JuvENtuDES, vioLêNCiA E PoLÍtiCAS<br />

PÚbLiCAS No bRASiL: tENSÕES ENtRE o<br />

iNStituÍDo E o iNStituiNtE<br />

Glória Diógenes<br />

A mÁQuiNA moDERNA DE JoAQuim CARDozo<br />

manoel Ricardo de Lima<br />

UM CONVITE À LEITURA<br />

Gabriel Cohn<br />

CAio PRADo JR. Como iNtÉRPREtE Do bRASiL<br />

bernardo Ricupero<br />

AS RAÍzES Do bRASiL E A DEmoCRACiA<br />

brasilio Sallum Jr.<br />

GiLbERto fREYRE E SEu tEmPo: CoNtExto iNtELECtuAL<br />

E QuEStÕES DE ÉPoCA<br />

Elide Rugai bastos<br />

ENtRE A ECoNomiA E A PoLÍtiCA – oS CoNCEitoS DE PERifERiA<br />

E DEmoCRACiA No DESENvoLvimENto DE CELSo fuRtADo<br />

vera Alves Cepêda<br />

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Caso tenha interesse em receber a revista<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, entre em contato conosco:<br />

Assessoria de Divulgação e Promoção<br />

Departamento Nacional do <strong>Sesc</strong><br />

adpsecretaria@sesc.com.br<br />

tel.: (21) 2136-5149<br />

fax: (21) 2136-5470<br />

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173


174<br />

NoRmAS PARA PubLiCAÇÃo<br />

1 - A revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é editada pelo Departamento Nacional do<br />

Serviço Social do Comércio – <strong>Sesc</strong> e tem por objetivo contribuir para<br />

a difusão da produção acadêmica, proporcionando diálogo amplo sobre<br />

a agenda pública brasileira. A publicação oferece a pesquisadores,<br />

universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais<br />

um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate<br />

sobre grandes questões da realidade social. Tem periodicidade quadrimestral<br />

e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades,<br />

institutos de pesquisa, órgãos governamentais de interesse, principais<br />

bibliotecas no Brasil e em todas as bibliotecas do <strong>Sesc</strong> e Senac.<br />

2 - A publicação dos artigos e ensaios está condicionada à emissão de<br />

parecer de especialistas e dos membros do conselho editorial, garantido<br />

o anonimato dos pareceristas no processo de avaliação. Eventuais<br />

sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo, por parte da Editoria,<br />

são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos<br />

ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.<br />

3 - Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail<br />

sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD (ao endereço a seguir), digitado<br />

em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times<br />

New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5. As páginas<br />

devem ser numeradas no canto direito superior da folha.<br />

Departamento Nacional do <strong>Sesc</strong><br />

Divisão de Planejamento e Desenvolvimento/Gerência de Estudos e<br />

Pesquisas<br />

Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004, Rio de Janeiro/RJ<br />

4 - O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail do(s) autor(es),<br />

que se responsabilizam pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve<br />

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informar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho,<br />

para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica.<br />

A mensagem deve incluir ainda endereço, telefone e, em caso de<br />

mais de um autor, informar o responsável pelos contatos.<br />

5 - O texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres<br />

(sem contar o resumo e as referências bibliográficas). Os resumos<br />

em português e em inglês (Abstract) que acompanham o texto devem<br />

ter entre 10 e 15 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.<br />

6 - O texto deverá conter:<br />

a) título do trabalho em português (no máximo uma linha);<br />

b) título abreviado;<br />

c) nome do(s) autor(es);<br />

d) resumo em português e em inglês;<br />

e) palavras-chave – máximo seis;<br />

f) referências bibliográficas apresentadas conforme as normas da<br />

ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002;<br />

g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001.<br />

7 - Anexos, tabelas, gráficos, fotos, desenhos com suas respectivas<br />

legendas etc. devem indicar as unidades em que se expressam seus<br />

valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados<br />

das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser<br />

apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos<br />

separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos.<br />

Sempre que possível, deverão ser elaborados para sua reprodução<br />

direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi,<br />

formato TIF).<br />

8 - Um currículo (incluindo dados pessoais: nome completo, endereço,<br />

telefone para contato e documentação própria) e um minicurrículo<br />

deverão ser entregues com o artigo. O minicurrículo deverá conter os<br />

principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado,<br />

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áreas de interesse, últimas publicações, e-mail (se assim o desejar) etc. As<br />

siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia<br />

Universidade Católica (PUC). O minicurrículo deverá ter entre 5 e 10<br />

linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.<br />

9 - As referências bibliográficas devem ser dispostas no final do artigo,<br />

em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s)<br />

autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s).<br />

REfERêNCiAS bibLioGRÁfiCAS – ExEmPLoS<br />

176<br />

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LivRoS<br />

BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1976.<br />

BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos<br />

extremos. Campinas: Papirus, 1990.<br />

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 4v.<br />

CAPÍtuLoS DE LivRoS<br />

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra.<br />

In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São<br />

Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p.14-110.<br />

LYOTARD, J.F. Capitalismo energúmeno. In: CARRILHO, Manuel Maria (Org.).<br />

Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvim,<br />

1976. p. 83-134.<br />

ENSAioS Em REviStAS<br />

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível<br />

manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n.<br />

84, p. 817-838, set. 2003.<br />

DoCumENtoS E PESQuiSAS<br />

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): 1982 a 2006.<br />

Rio de Janeiro.<br />

Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Sistema Nacional de Avaliação da<br />

Educação Básica (SAEB): 1995, 1999, 2001, 2005. Brasília, DF.<br />

iNtERNEt<br />

INEP. Sinopses estatísticas da educação básica: 1994 a 2005. Disponível<br />

em: . Pesquisado em jan. 2012.


Esta revista foi composta nas tipologias zapf Humanist 601 bt, em<br />

corpo 10/9/8,5, e itC officina Sans, em corpo 26/16/9/8<br />

e impressa em papel off-set 90g/m 2

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