Revista Sinais Sociais N16 pdf - Sesc
Revista Sinais Sociais N16 pdf - Sesc
Revista Sinais Sociais N16 pdf - Sesc
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.sesc.com.br<br />
16<br />
SESC | Serviço Social do Comércio ano 5 | maio > agosto | 2011<br />
SESC | Serviço Social do Comércio<br />
REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA<br />
GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO,<br />
BRASIL<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />
Sueli Ângelo Furlan<br />
A HORA DE IR PARA A ESCOLA<br />
Daniel Santos<br />
CRIATIVIDADE<br />
Marsyl Bulkool Mettrau<br />
ISSN 1809-9815<br />
ano 5 | maio > agosto | 2011<br />
16<br />
ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA:<br />
PENSANDO OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA<br />
DO RIO DE JANEIRO<br />
Monique Assis<br />
Nilda Teves<br />
GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO<br />
BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE<br />
DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E<br />
MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO<br />
Murilo Mariano Vilaça
v.5 nº16<br />
maio > agosto | 2011<br />
SESC | Serviço Social do Comércio<br />
Administração Nacional<br />
ISSN 1809-9815<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />
PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL<br />
Antonio Oliveira Santos<br />
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL<br />
Maron Emile Abi-Abib<br />
COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />
Mauro Lopez Rego<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Álvaro de Melo Salmito<br />
Mauricio Blanco<br />
Nivaldo da Costa Pereira<br />
SECRETÁRIO EXECUTIVO<br />
Mauro Lopez Rego<br />
ASSESSORIA EDITORIAL<br />
Andréa Reza<br />
EDIÇÃO<br />
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral<br />
Christiane Caetano<br />
PROJETO GRÁFICO<br />
Vinicius Borges<br />
SUPERVISÃO EDITORIAL<br />
Jane Muniz<br />
PRODUÇÃO EDITORIAL<br />
Duas Águas| Ieda Magri<br />
REVISÃO<br />
Clarissa Penna<br />
REVISÃO DO INGLÊS<br />
Idiomas & cia<br />
DIAGRAMAÇÃO<br />
Livros & Livros | Susan Johnson<br />
PRODUÇÃO GRÁFICA<br />
Celso Clapp<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/<br />
ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC,<br />
Departamento Nacional, 2006 - .<br />
v.; 30 cm.<br />
Quadrimestral.<br />
ISSN 1809-9815<br />
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I.<br />
Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .<br />
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO5<br />
EDITORIAL7<br />
SOBRE OS AUTORES8<br />
REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA GESTÃO<br />
AMBIENTAL EM MATO GROSSO, BRASIL10<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />
Sueli Ângelo Furlan<br />
A HORA DE IR PARA A ESCOLA38<br />
Daniel Santos<br />
CRIATIVIDADE86<br />
Marsyl Bulkool Mettrau<br />
ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA: PENSANDO<br />
OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA DO RIO DE<br />
JANEIRO108<br />
Monique Assis<br />
Nilda Teves<br />
GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO<br />
BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE<br />
DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E<br />
MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO142<br />
Murilo Mariano Vilaça<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
3
APRESENTAÇÃO<br />
A revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> tem como finalidade precípua tornar-se um<br />
espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.<br />
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.<br />
Pluralidade no sentido de que a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é aberta para a<br />
publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no<br />
Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas<br />
páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício<br />
poder-se-ão manifestar.<br />
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas<br />
Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade:<br />
“Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo<br />
ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como<br />
principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”<br />
Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos<br />
– de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão<br />
mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.<br />
Importa para a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> artigos em que a fundamentação<br />
teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das<br />
ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum.<br />
Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer<br />
as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os<br />
objetos em estudo.<br />
O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes,<br />
de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com<br />
suas reflexões como para segmentos do grande público interessados<br />
em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.<br />
Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente<br />
ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse<br />
debate, é a intenção do SESC com a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />
Antonio Oliveira Santos<br />
Presidente do Conselho Nacional do SESC<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
5
EDITORIAL<br />
No intuito de assegurar a sobrevivência, as sociedades humanas<br />
criam fortalezas que podem se tornar causa ou evidência de suas próprias<br />
fragilidades. O Estado hobbesiano busca a paz interna e a defesa<br />
comum e, para tanto, retira de cada membro uma parcela de sua<br />
liberdade. Ao homem contemporâneo “pós-tudo”, resta tentar compatibilizar,<br />
com engenho e arte, as estruturas abstratas, lógicas e gerais<br />
com o plano individual, concreto e corporificado de sua realidade.<br />
A presente edição da <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> traz algumas contribuições a essa<br />
perene tarefa. O modelo de atividade física escolar defendido por<br />
Fernando de Azevedo na primeira metade do século XX é objeto da<br />
crítica de Murilo Mariano Vilaça, por implicar a normalização simultânea<br />
nos campos da educação, da saúde e da moral. Também com forte<br />
referência histórica, Monique Assis e Nilda Teves produzem estudo sobre<br />
projetos que têm a dança como meio de inclusão social, e apontam<br />
para a tensão entre sua vitalidade artística e dramática e as ameaças da<br />
apropriação estritamente pedagógica, ou de sua mera reificação.<br />
Outros dois artigos abordam a eficácia de políticas públicas, instrumentos<br />
modernos de busca da “paz interna” almejada por Hobbes.<br />
Daniel Santos apresenta relevantes reflexões na comparação entre<br />
os benefícios da creche e da pré-escola no processo educacional.<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel e Sueli Ângelo Furlan discutem<br />
a contribuição do ICMS Ecológico para a conservação ambiental.<br />
Finalmente, o trabalho de Marsyl Bulkool Mettrau aborda a criatividade,<br />
considerada atributo exclusivamente divino em outras épocas e<br />
civilizações e que, no presente, sinaliza para a existência de infinitas<br />
perspectivas humanas e sociais ainda não formuladas.<br />
Maron Emile Abi-Abib<br />
Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
7
SOBRE OS AUTORES<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade<br />
de São Paulo. Mestre em Geografia (área de concentração: Ambiente e<br />
Desenvolvimento Regional) pela Universidade Federal de Mato Grosso (2009).<br />
Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato Grosso<br />
(2006). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas<br />
(Inau). Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Geografia Agrária e Conservação<br />
da Biodiversidade do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora<br />
do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas<br />
Brasileiras (Nupaub) da Universidade de São Paulo. Docente de cursos de pós-graduação<br />
do Instituto de Capacitação e Pós-Graduação. Última publicação: Estância<br />
Ecológica SESC Pantanal: surgimento e consolidação no contexto pantaneiro (2011).<br />
Daniel Santos<br />
Doutor em Economia pela Universidade de Chicago, atualmente é professor no<br />
IBMEC-RJ e vice-secretário executivo da Sociedade Brasileira de Econometria.<br />
Suas áreas de concentração são em economia da educação e avaliação de políticas<br />
públicas. Recentemente, vem se especializando em desenvolvimento infantil,<br />
com especial interesse no impacto de intervenções focalizadas na primeira infância<br />
sobre diversas dimensões de sucesso individual ao longo do ciclo de vida.<br />
Marsyl Bulkool Mettrau<br />
Doutora em Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal. Mestre em<br />
Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora titular<br />
da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e professora aposentada da Universidade<br />
do Estado do Rio de Janeiro. Autora de livros sobre estudos atuais da<br />
inteligência humana, entre os quais: Inteligência: patrimônio social (2000) e Educação<br />
moral, inteligência e altas habilidades (2007). Ministra regularmente cursos<br />
e oficinas sobre o tema.<br />
Monique Assis<br />
Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá. Licenciada em Educação<br />
Física pela Universidade Gama Filho. Mestre e doutora em Educação Física pela<br />
Universidade Gama Filho, atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação<br />
8<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011
dessa universidade. Desenvolve suas pesquisas na área do imaginário social,<br />
atuando principalmente nos temas: análise do discurso (imagem e palavra), questões<br />
relacionadas à imagem corporal, cultura popular e o consumo associado ao<br />
aperfeiçoamento do corpo.<br />
Murilo Mariano Vilaça<br />
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e<br />
em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em<br />
Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharel e licenciado em<br />
Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Educação Física pela<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente colaborador da Pós-Graduação<br />
em Pedagogia Crítica da Educação Física nessa instituição. Professor substituto de<br />
Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ no biênio 2009-2010.<br />
Membro dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) do Hospital Universitário Clementino<br />
Fraga Filho (UFRJ) e do Instituto Nacional do Câncer (Inca).<br />
Nilda Teves<br />
Licenciada em Matemática e Física e em Pedagogia pela Universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia das Ciências e doutora em Educação Brasileira<br />
pela mesma universidade. Possui formação em Psicanálise e é professora aposentada<br />
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi diretora-geral de Ensino da<br />
Secretaria de Educação e da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio<br />
de Janeiro e professora titular da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professora<br />
titular da Universidade Gama Filho. Tem experiência na área de filosofia com<br />
ênfase em Filosofia da Ciência, atuando principalmente com os temas: fundamentos<br />
filosóficos da educação, cultura organizacional, educação física, cidadania e<br />
cultura popular.<br />
Sueli Ângelo Furlan<br />
Professora assistente do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras<br />
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) desde 1986. Mestre<br />
e doutora em Geografia Física pela USP. Bacharel e licenciada em Biologia e<br />
Geografia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas socioambientais em<br />
Conservação de Florestas Tropicais, coordenando o Grupo de Pesquisa Litoral<br />
Sudeste: Ambiente, Conservação e Populações Tradicionais, vinculado ao Laboratório<br />
de Climatologia e Biogeografia da USP. Credenciada no Programa de Pós-<br />
-Graduação em Ciências Ambientais da USP. Coordenadora do Núcleo de Apoio<br />
à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub) da<br />
USP. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Florestas Culturais na Amazônia.<br />
Coordena a elaboração dos Planos de Manejo dos Parques Naturais do Rodoanel<br />
Trecho Sul e coordenou a elaboração de planos de manejo de áreas protegidas na<br />
Mata Atlântica.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
9
REPERCUSSÕES DO ICMS<br />
ECOLÓGICO NA GESTÃO<br />
AMBIENTAL EM MATO<br />
GROSSO, BRASIL<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />
Sueli Ângelo Furlan<br />
10 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
Instrumentos de política pública exercem um papel essencial na aplicabilidade<br />
dos princípios, diretrizes e normas que estruturam a questão ambiental no<br />
Brasil. Nesse contexto, a implantação de unidades de conservação (UCs) pode<br />
ser considerada um dos procedimentos basilares, sendo essas áreas as principais<br />
referências para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E), um importante<br />
instrumento de incentivo econômico que vem respondendo paulatinamente<br />
às demandas para garantir a conservação ambiental. Este artigo visa verificar<br />
de que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido em Mato Grosso, buscando<br />
compreender como esse mecanismo contribui para o incentivo à gestão<br />
ambiental no estado. Os resultados indicaram que a forma pela qual o ICMS<br />
Ecológico vem sendo implementado tem repercussão como um incremento<br />
ainda insuficiente para o setor ambiental dos municípios. Com a previsão de<br />
incorporar aspectos qualitativos ao cálculo do recurso, esse instrumento tende<br />
a se tornar mais eficiente como incentivo às práticas conservacionistas no estado,<br />
indo além do seu caráter compensatório em direção a uma perspectiva<br />
socioambiental.<br />
Palavras-chave: ICMS Ecológico, políticas públicas, Mato Grosso<br />
Political Policies tools play an essential, role in the applicability of the principles,<br />
guidelines and standards that structure the environmental issue in Brazil. In this<br />
context the implementation of the conservation units can be considered one of<br />
the basic procedures, being these areas the main references for the calculation<br />
of the Ecological ICMS (E-ICMS), one important tool of economical incentive<br />
that has been gradually responding to the demands to ensure the environmental<br />
conservation. This article aims to verify how the E-ICMS has reflected<br />
in the State of Mato Grosso, seeking to comprehend how this tool contributes<br />
for the incentive of the environmental management in the State based on the<br />
perspectives that it has pointed. The results indicated that the way in which the<br />
E-ICMS has been implemented has had a repercussion as an increment still insufficient<br />
for the environmental sector of the municipalities. With the prognosis<br />
of incorporating qualitative aspects to the resource calculation, this tool tends<br />
to become more efficient as an incentive to the conservation practices in the<br />
State, going beyond its compensatory nature towards a social-environmental<br />
perspective.<br />
Keywords: Ecological ICMS, public policies, Mato Grosso<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
11
INTRODUÇÃO 1<br />
É fato notável que as transformações sociais, políticas e econômicas<br />
que gradualmente constroem a história humana na Terra implicam<br />
novas formas de organização da sociedade e novas configurações do<br />
espaço. Inerente a esse processo, a questão ambiental 2 é um dos temas<br />
mais emergentes nas agendas políticas de diversos países, especialmente<br />
nas últimas duas décadas, com a mobilização em escala<br />
local, regional e global e a necessidade premente de outros padrões<br />
para o desenvolvimento.<br />
Na busca pela melhoria das condições socioambientais atuais, a sustentabilidade<br />
tem sido um dos caminhos para a implementação de<br />
mecanismos que orientam para a igualdade, a equidade e a solidariedade,<br />
embutidas no conceito de desenvolvimento (SACHS, 2004,<br />
p. 14), para que os limites do ambiente sejam reconhecidos e determinantes<br />
no processo de construção das políticas públicas. A sustentabilidade<br />
intenta estabelecer a ligação entre os elementos naturais e os<br />
usos humanos que ocorrem em escalas variadas de tempo e espaço,<br />
de forma a considerar as necessidades de ambos, que compõem um<br />
mesmo sistema complexo (BERKES et al., 2008, p. 54).<br />
A partir dessas premissas, a precaução quanto à exploração dos elementos<br />
naturais constitui um princípio importante para avançar em<br />
direção à sustentabilidade, considerando a insubstitutibilidade do<br />
capital natural, que pode ser entendido como o ambiente de forma<br />
ampla (LIU et al., 2010, p. 54), incluindo árvores, minerais, ecossistemas,<br />
atmosfera, entre outros fatores dos quais a sociedade depende e<br />
usufrui (COSTANZA et al., 1997, p. 254).<br />
Como meio de incorporar tais concepções, os instrumentos de política<br />
pública exercem um papel fundamental na aplicabilidade das<br />
1 Agradecemos ao professor dr. Paulo Antônio de Almeida Sinisgalli, docente<br />
do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (Procam – USP), pelas<br />
reflexões levantadas no decorrer de sua disciplina Economia do Meio Ambiente,<br />
que contribuíram para o aprimoramento do trabalho.<br />
2 O termo refere-se às iniciativas, mobilizações e ações que refletem, de maneira<br />
geral, a necessidade de uma forma sustentável de desenvolvimento, que<br />
engloba, entre outros aspectos, a conservação ambiental.<br />
12 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
políticas ambientais. Os instrumentos do tipo comando e controle<br />
(ICC) compreendem um conjunto de mecanismos aplicados para a<br />
regulação quantitativa e qualitativa das relações que envolvem a utilização<br />
dos recursos naturais (PERMAN et al., 1999, p. 303), tais como:<br />
licenciamento ambiental, zoneamento, outorga pelo uso dos recursos<br />
hídricos, padrões de qualidade, fiscalização e penalidades.<br />
Entretanto, há apontamentos que indicam a insuficiência da utilização<br />
exclusiva dessa categoria de instrumentos; entre eles, Motta<br />
(1997, p. 70) destaca a escassez de recursos financeiros e humanos e<br />
as dificuldades de integração intergovernamental nas suas diferentes<br />
escalas.<br />
Com o caráter de complementação aos instrumentos do tipo comando<br />
e controle, os instrumentos econômicos, ou de mercado, têm<br />
sido empregados de forma a incrementar a política ambiental, configurando-se<br />
ainda como meios importantes para a geração de receitas<br />
destinadas a subsidiar demandas para a proteção dos recursos naturais<br />
(MOTTA, 1997, p. 72).<br />
No Brasil, a implantação de áreas destinadas à proteção ambiental,<br />
denominadas Unidades de Conservação (UC), pode ser considerada<br />
um dos procedimentos mais eficientes de políticas públicas nesse setor,<br />
e se caracteriza como a principal referência, juntamente a outros<br />
critérios ambientais, para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E). O<br />
ICMS Ecológico é um importante instrumento de compensação e incentivo<br />
econômico, que pode vir a responder às demandas para uma<br />
proteção mais eficiente das Unidades de Conservação, das terras indígenas<br />
e quilombolas, no caso específico de Mato Grosso. Como será<br />
abordado posteriormente, esse é um mecanismo que varia de acordo<br />
com cada estado brasileiro.<br />
Nesse contexto, as unidades de conservação exercem um papel<br />
significativo, pois possibilitam compreender o funcionamento dos<br />
processos naturais e sua capacidade de resiliência. Esse conceito, originado<br />
da Ecologia, tem contribuído para as reflexões acerca da importância<br />
de áreas naturais protegidas, bem como dos princípios da<br />
sustentabilidade. Seu significado, de forma geral, está pautado na possibilidade<br />
de garantir a capacidade dos organismos e ecossistemas de<br />
evoluir em termos de táticas de sobrevivência, mediante a absorção<br />
das consequências da dinâmica transformação que incidem continua-<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
13
mente sobre os mesmos (BERKES et al., 2008, p. 59-60). Berkes et al.<br />
destacam a potencialidade do conceito para iluminar a análise dessa<br />
ampla e complexa perspectiva.<br />
The concept of resilience helped to move ecological anthropology toward<br />
a dynamic, ecological perspective that investigated processes of<br />
change and equilibrium and disequilibrium, through an examination<br />
of the relationship among the environment, individuals, and groups<br />
(BERKES et al., 2008, p. 61) 3 .<br />
A criação de áreas naturais protegidas tem como marco referencial<br />
a criação do Yellowstone National Park, em 1872, nos Estados Unidos.<br />
Entretanto, já existiam registros anteriores de áreas protegidas, mas<br />
com objetivos diferentes (reservas de caça, por exemplo). A partir desse<br />
marco, outros países iniciaram a criação de parques e outras áreas<br />
protegidas. O Brasil instituiu sua primeira área protegida em 1937, o<br />
Parque Nacional do Itatiaia, localizado na divisa dos estados de Minas<br />
Gerais e Rio de Janeiro.<br />
Gradualmente essa prática foi se ampliando, tanto no que se refere<br />
aos seus objetivos quanto em quantidade, por diversos países. Visando<br />
regulamentar e padronizar os conceitos que surgiram por consequência<br />
dessa expansão, foram realizados eventos mundiais, bem como se<br />
definiram questões fundamentais em uma legislação cada vez mais<br />
específica. Em meio a esse processo, foram se instituindo novos tipos<br />
de áreas protegidas, de acordo com sua localização em determinado<br />
território, podendo ser de responsabilidade pública ou privada, assim<br />
como foram definidos os objetivos de sua existência.<br />
Nessa trajetória, tornou-se cada vez mais evidente a ideia de que as<br />
áreas protegidas não se constituem como “ilhas” de biodiversidade –<br />
concepção inicialmente embutida nessa iniciativa, que via essas áreas<br />
como unidades isoladas de um contexto social, econômico e cultural.<br />
Dessa forma, os objetivos dessa prática também foram revistos.<br />
3 Tradução livre: O conceito de resiliência contribuiu na condução da antropologia<br />
ecológica à uma abordagem dinâmica, uma perspectiva ecológica que<br />
investigou os processos de mudança, equilíbrio e desequilíbrio, considerando<br />
a relação entre ambiente, indivíduos e grupos.<br />
14 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza<br />
(SNUC, Lei 9.985 de 18 de julho de 2000) é a principal referência<br />
na implementação de áreas protegidas. De acordo com o SNUC, são<br />
atribuídos às unidades objetivos diversos, que variam conforme a categoria<br />
que ocupam, sendo a conservação da biodiversidade a razão<br />
fundamental de existência dessas áreas, as quais também podem contemplar,<br />
por exemplo, pesquisa científica, turismo e reconhecimento<br />
e valorização da sociodiversidade, por diferentes formas de interação<br />
com comunidades adjacentes.<br />
Apesar dos avanços gerados pela criação das unidades de conservação<br />
ao longo do tempo, os conflitos envolvendo essas áreas têm<br />
origens remotas e estão encravados no dilema entre o paradigma do<br />
crescimento econômico e os pressupostos para a conservação da natureza,<br />
permeando tanto aspectos técnicos quanto políticos e econômicos,<br />
e variando amplamente de acordo com cada localidade. Decorrem<br />
daí, portanto, diversos conflitos socioambientais, que envolvem<br />
comunidades rurais, grupos indígenas, organizações privadas, poder<br />
público de diferentes escalas e demais atores, que compõem as arenas<br />
para negociação dos interesses, muitas vezes divergentes.<br />
Na tentativa de avançar para além dessa dicotomia, é premente a<br />
busca por alternativas mitigadoras das dificuldades de criação e manutenção<br />
das áreas de conservação. Dessa forma, o ICMS Ecológico<br />
pode contribuir não apenas como instrumento compensatório, mas<br />
também como mecanismo incentivador da proteção dos recursos naturais,<br />
podendo ser direcionado à manutenção de unidades de conservação<br />
públicas, ou gerido como um recurso complementar pelos<br />
proprietários de reservas privadas.<br />
Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo verificar de<br />
que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido na gestão ambiental<br />
em Mato Grosso e como esse instrumento pode contribuir para o<br />
incentivo à conservação de áreas de interesse para a conservação no<br />
estado, mediante as perspectivas apontadas.<br />
Os procedimentos e métodos operacionais para a realização da pesquisa<br />
envolveram duas etapas: a primeira, quantitativa (levantamento<br />
de dados estatísticos), e a segunda, qualitativa (análise dos resultados).<br />
Os dados primários e secundários foram obtidos a partir de pesquisa<br />
documental e bibliográfica.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
15
Assim, foram coletadas informações de diferentes fontes documentais,<br />
tais como legislação, relatórios institucionais e anuários estatísticos.<br />
Os dados foram reunidos e tabulados em planilhas, e posteriormente<br />
foi realizada a análise das informações encontradas, a qual se subsidiou<br />
nas bibliografias consultadas. Essa segunda etapa se baseou na<br />
abordagem qualitativa.<br />
Portanto, a análise conduziu aos resultados de forma polissêmica, a<br />
partir do levantamento quantitativo como subsídio a uma abordagem<br />
qualitativa do fenômeno pesquisado, aproximando-se, assim, das diferentes<br />
possibilidades de reflexão à luz do levantamento bibliográfico,<br />
numa perspectiva interdisciplinar.<br />
1 ASPECTOS GERAIS DO ICMS ECOLÓGICO<br />
Prover a sociedade requer do Estado a instituição de meios para<br />
garantir o atendimento às necessidades tanto coletivas quanto individuais.<br />
Para o alcance desse objetivo, o Sistema de Tributação Nacional<br />
foi estabelecido, com o propósito de arrecadar recursos para atender<br />
às demandas oriundas da sociedade.<br />
O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias<br />
e sobre Prestação de Serviços de Transportes Interestaduais, Intermunicipais<br />
e de Comunicação (ICMS) foi instituído pelo Artigo 155º<br />
da Constituição Federal de 1988, que, complementado pelos Artigos<br />
157º, 158º e 159º, determina os critérios de distribuição desse imposto.<br />
É um tributo de competência dos estados e do Distrito Federal e é regulamentado<br />
pela Lei Complementar n° 87/1996, também conhecida como<br />
Lei Kandir. De acordo com a legislação, parte desse recurso (25%) deve<br />
ser destinada aos municípios conforme lei estadual e o restante (75%),<br />
destinado ao estado (denominado Valor Adicionado Fiscal – VAF).<br />
No início da década de 1990, surgiu a alternativa que propõe que<br />
parte desses 25% destinados aos municípios seja ponderada por critérios<br />
ambientais, originando o ICMS Ecológico (IBGE, 2005, p. 51-52),<br />
como ficou conhecido. Em 1991, pela Lei Complementar nº 59 de<br />
1º de outubro, o ICMS Ecológico tornou-se uma determinação legalmente<br />
instituída pela primeira vez no país, no Paraná, e que pode ser<br />
definido como um meio de “incentivo econômico de gestão ambiental<br />
que visa compensar financeiramente os municípios que apresen-<br />
16 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
tam áreas destinadas especificamente à conservação e preservação do<br />
meio ambiente” (IBGE, 2005, p. 52).<br />
As ideias precursoras, sobre as quais o ICMS Ecológico se apoia, têm<br />
origem em outros países, que dispõem de mecanismos fiscais voltados<br />
tanto à penalização decorrente da degradação, especialmente ligada<br />
às questões de desmatamento, como também aos mecanismos de<br />
incentivo, como a isenção de tributos às propriedades que mantêm<br />
áreas de interesse para conservação (LOUREIRO, 2002, p. 40-42).<br />
Atualmente, 14 estados brasileiros possuem a política do ICMS Ecológico<br />
instituída: Acre, Amapá, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,<br />
Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do<br />
Sul, Rondônia, São Paulo e Tocantins (The Nature Conservancy, 2011).<br />
Conceitualmente, não se trata de uma modalidade de ICMS, ou<br />
mesmo de tributo, como o nome pode sugerir. Seu caráter é distributivo,<br />
sendo uma forma encontrada para compensar a escolha pela conservação<br />
ambiental de áreas que poderiam ser destinadas à geração<br />
de recursos fiscais aos municípios com atividades econômicas como<br />
agricultura e pecuária. Motta exemplifica esse princípio, relacionando-o<br />
ao custo de oportunidade inerente à escolha:<br />
Restrições ao uso da terra em unidades de conservação impõem perdas<br />
de geração de receita, visto que atividades econômicas são restritas<br />
in-situ. A renda líquida abdicada pelas restrições dessas atividades<br />
é uma boa medida do custo de oportunidade associado com a criação<br />
dessa unidade de conservação. O uso de renda líquida decorre do fato<br />
de que a renda bruta dessas atividades sacrificadas tem que ser deduzida<br />
dos seus custos de produção, que também restringem recursos<br />
para a economia. De fato, a renda líquida significa a receita líquida<br />
provida pelas atividades sacrificadas e representaria, assim, o custo de<br />
oportunidade da conservação (MOTTA, 1997, p. 8).<br />
Segundo o autor, o custo de oportunidade pode também se caracterizar<br />
como um dos métodos de valoração de bens e serviços privados<br />
substitutos:<br />
Esse método mensura as perdas de renda nas restrições da produção<br />
e consumo de bens e serviços privados devido às ações para conser-<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
17
var ou preservar os recursos ambientais. (...) É amplamente utilizado<br />
para estimar a renda sacrificada em termos de atividades econômicas<br />
restringidas pelas atividades de proteção ambiental e, assim, permitir<br />
uma comparação desses custos de oportunidade com os benefícios<br />
ambientais numa análise de custo-benefício (MOTTA, 1997, p. 21).<br />
Para que a compensação seja equivalente à possibilidade de uso,<br />
é indispensável a valoração econômica dos serviços ecossistêmicos e<br />
simulações das possibilidades de uso. No primeiro caso, há diversos<br />
métodos que podem ser utilizados para estimar o valor monetário dos<br />
serviços prestados pelos ecossistemas. Trata-se de um tema de caráter<br />
interdisciplinar, que vem se desenvolvendo nas fronteiras da Economia<br />
Ecológica.<br />
Entretanto, vale ressaltar que os critérios para o cálculo do ICMS<br />
Ecológico em Mato Grosso não se baseiam na possibilidade de uso,<br />
como sugere o custo de oportunidade, apesar de seguir o mesmo princípio<br />
compensatório, mas têm como base aspectos quantitativos (área<br />
espacial e fator de conservação) para o cálculo do recurso a ser destinado<br />
ao município.<br />
O entendimento de que o ICMS Ecológico seja destinado aos municípios<br />
para efetivação da conservação das áreas protegidas nem<br />
sempre é incorporado pelos atores da gestão pública municipal, visto<br />
que o município tem autonomia quanto à destinação ou utilização do<br />
ICMS Ecológico arrecadado, e a questão ambiental geralmente não<br />
tem sido considerada entre as prioritárias nas agendas políticas, como<br />
será mencionado em seguida.<br />
2 REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA<br />
GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO<br />
O ICMS representa uma das principais fontes de receita tributária dos<br />
estados. Em Mato Grosso, segundo dados dos Relatórios Anuais de Balanço<br />
Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda<br />
(SEFAZ-MT), esse imposto corresponde em média ao equivalente a 90%<br />
do total de receita tributária arrecadada, com progressivo aumento a<br />
cada ano, como ilustra a Figura 1, que demonstra a evolução do ICMS<br />
arrecadado em Mato Grosso no período de 1999 a 2009.<br />
18 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
Valor em bilhões<br />
4,50<br />
4,00<br />
3,50<br />
3,00<br />
2,50<br />
2,00<br />
1,50<br />
1,00<br />
0,50<br />
0,00<br />
Figura 1<br />
Evolução do ICMS arrecadado em Mato Grosso − 1999 a 2009<br />
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009<br />
Fonte: Relatórios Anuais de Balanço Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda<br />
(SEFAZ-MT).<br />
Mato Grosso foi o sexto estado a aderir à política do ICMS Ecológico,<br />
derivado da arrecadação do ICMS, instituída em 2000 com a<br />
Lei Complementar nº 73 de 7 de dezembro e regulamentada com o<br />
Decreto nº 2.758 de 16 de julho de 2001, que esclarece conceitos e<br />
orientações quanto aos procedimentos técnicos e administrativos para<br />
o cumprimento da Lei, cria o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação<br />
e apresenta os aspectos inerentes aos cálculos desse recurso<br />
nos municípios, considerando não apenas fatores quantitativos, mas<br />
também qualitativos.<br />
Os fatores qualitativos foram definidos mais detalhadamente dez<br />
anos mais tarde, pela Instrução Normativa nº 1, de 5 de maio de<br />
2010, que regula procedimentos administrativos para a organização<br />
do Cadastro Estadual de Unidades de Conservação e Terras Indígenas,<br />
a operacionalização dos cálculos e a gestão do Programa do ICMS<br />
Ecológico e a publicação e democratização das informações.<br />
O órgão responsável pela execução desses dispositivos legais em<br />
Mato Grosso é a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA-MT),<br />
por meio da Coordenadoria de Unidade de Conservação, ligada à Superintendência<br />
de Biodiversidade. De acordo com o Relatório sobre a<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
19
aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso no período de 2002 a<br />
2007, elaborado por essa Secretaria,<br />
tais critérios [qualquer critério ou conjunto de critérios relacionados à<br />
busca de solução para problemas ambientais] são utilizados para a determinação<br />
do “quanto” cada município deverá receber na repartição<br />
dos recursos financeiros arrecadados com o Imposto sobre Circulação<br />
de Mercadorias e Serviços (ICMS). (...) O ICMS Ecológico surgiu como<br />
forma de compensar financeiramente os municípios que possuem restrições<br />
de uso do solo de seus territórios por conterem Áreas Indígenas<br />
e Unidades de Conservação; bem como a necessidade da estruturação<br />
de instrumentos alternativos de políticas públicas para a conservação<br />
ambiental (SEMA-MT, 2008, p. 4).<br />
Para a distribuição dos 25% do ICMS, o estado definiu cinco parâmetros,<br />
entre eles os critérios ambientais que atualmente são Unidades<br />
de Conservação e Terras Indígenas, às quais é atribuído o percentual<br />
de 5% do ICMS, como ilustrado na Tabela 1.<br />
Tabela 1<br />
Critérios e percentuais utilizados para distribuição do ICMS<br />
a que os municípios mato-grossenses têm direito<br />
Critérios Percentuais (%)<br />
Valor adicionado 75<br />
Receita tributária própria 4<br />
População 4<br />
Área do município 1<br />
Coeficiente social 11<br />
Unidade de Conservação/Terra Indígena 5<br />
Total 100<br />
Fonte: SEMA-MT (2010, p. 13).<br />
A Lei Complementar nº 73 instituiu inicialmente, além do critério de<br />
Unidades de Conservação e Terras Indígenas, o Saneamento Ambien-<br />
20 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
tal, que correspondia a mais 2% para os aspectos ambientais. Em 20<br />
de janeiro de 2004, a Lei Complementar nº 157 redistribuiu valores<br />
e reformulou os cálculos. Com esse dispositivo, o critério de Saneamento<br />
Ambiental foi extinto e os 5% referentes às Unidades de Conservação<br />
e Terras Indígenas foi mantido. Os 2% correspondentes ao<br />
Saneamento Ambiental, com sua supressão, foram transferidos para o<br />
Coeficiente Social.<br />
Cada um dos critérios para a distribuição dos 25% de direito dos<br />
municípios compreende um conjunto de condições específicas. O extinto<br />
fator Saneamento Ambiental considerava os sistemas de captação,<br />
tratamento e distribuição de água, sistemas de coleta, tratamento e disposição<br />
final de resíduos sólidos e sistemas de esgotamento sanitário do<br />
município. O critério vigente, que pesa sobre a ponderação ambiental<br />
(Unidades de Conservação e Terras Indígenas), considera aspectos relativos<br />
ao tamanho dessas áreas e categorias (no caso das Unidades de<br />
Conservação) e situação fundiária, as quais refletem o fator de correção.<br />
Dessa forma, segundo o Anexo 1 da Lei Complementar nº 73 de<br />
7 de dezembro de 2000, o cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso<br />
é realizado atualmente da seguinte maneira:<br />
ICMS-E = IUCTI x VRFP<br />
IFPICMS<br />
IUCTI corresponde ao Índice de Unidade de Conservação ou Terra Indígena;<br />
VRFP corresponde ao Valor Recebido do Fundo de Participação;<br />
IFPICMS representa o Índice Final de Participação no ICMS e ICMS-E<br />
é o valor do ICMS Ecológico de determinado município em dado mês.<br />
O Índice de Unidades de Conservação e Terras Indígenas utilizado<br />
na equação corresponde ao ano anterior ao aplicado e é calculado a<br />
partir do Fator de Conservação do Município (FCM) multiplicado pelo<br />
Fator de Conservação do Estado (FCE):<br />
IUCTI = FCM x FCE<br />
O Fator de Conservação do Município (FCM) corresponde à somatória<br />
dos Fatores de Conservação das Unidades de Conservação e das<br />
Terras Indígenas contidas no seu território (Σ FCUCsTIs):<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
21
FCM = Σ FCUCsTIs<br />
O Fator de Conservação específico de cada área é calculado pela<br />
relação entre a área da Unidade de Conservação ou Terra Indígena e<br />
a área total do município, ponderado por um fator de correção (FCo):<br />
FCUC ou TI = Área UC ou TI x FCo<br />
Área do município<br />
Portanto, o Fator de Correção constitui-se em um elemento significativo<br />
no cálculo do ICMS Ecológico dos municípios, e tem como<br />
base o nível de restrição das áreas. De acordo com o Anexo 2 da Lei<br />
Complementar nº 73 de 7 de dezembro de 2000, os Fatores de Correção<br />
com referências às Unidades de Conservação foram definidos<br />
por categoria, como mostra a Tabela 2.<br />
Tabela 2<br />
Fatores de correção das categorias de áreas protegidas<br />
para cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso<br />
Categoria da área protegida Fator de correção<br />
Reserva Biológica 1,0<br />
Estação Ecológica 1,0<br />
Parque Nacional, Estadual, Municipal 0,7<br />
Monumento Natural 0,8<br />
Refúgio de Vida Silvestre 0,8<br />
Área de Proteção Ambiental 0,2<br />
Floresta Nacional, Estadual, Municipal 0,5<br />
Reserva Extrativista 0,5<br />
Área de Relevante Interesse Ecológico 0,3<br />
Reserva de Fauna 0,4<br />
Reserva de Desenvolvimento Sustentável 0,5<br />
Reserva Particular do Patrimônio Natural 0,2<br />
Estrada Parque 0,3<br />
Terra Indígena* 0,7*<br />
Área de Proteção Especial 0,5<br />
*Fator correspondente às Terras Indígenas registradas. Os demais níveis de consolidação jurídico-formal<br />
sofrem variação (Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001). Fonte: Anexo 2 da Lei Complementar nº<br />
73 de 7/12/2000 (SEMA-MT, 2009, p. 30).<br />
22 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
Com a consideração de critérios qualitativos em conjunto com os<br />
quantitativos, com a Instrução Normativa nº 01, de 5 de maio de<br />
2010, os Fatores de Correção das áreas protegidas foram alterados,<br />
podendo alcançar escores máximos conforme as condições ambientais<br />
das unidades, que podem evoluir gradualmente. A Tabela 3 apresenta<br />
os escores mínimos e máximos, ou seja, o intervalo de índices<br />
numéricos estabelecido para cada categoria.<br />
Tabela 3<br />
Escores mínimos e máximos do Fator de Correção das áreas<br />
protegidas em Mato Grosso para cálculo do ICMS Ecológico<br />
Categoria da área protegida<br />
Escores mínimos e máximos<br />
do Fator de Correção<br />
Municipal Estadual Federal<br />
Reserva Biológica 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />
Estação Ecológica 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />
Parque 1,0 – 14,3 1,5 – 5,0 1,0 – 3,0<br />
Monumento Natural 1,0 – 5,0 1,0 – 3,0 1,0 – 1,5<br />
Refúgio de Vida Silvestre 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0 1,0 – 1,5<br />
Área de Proteção Ambiental 1,0 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0<br />
Floresta 1,0 1,0 – 4,0 1,0 – 1,5<br />
Reserva Extrativista 1,0 1,0 – 2,5 1,0 – 1,5<br />
Área de Relevante Interesse Ecológico 1,0 1,0 – 2,0 1,0<br />
Reserva de Fauna 1,0 1,0 – 2,0 1,0 – 1,5<br />
Reserva de Desenvolvimento Sustentável 1,0 1,0 1,0 – 2,5<br />
Reserva Particular do Patrimônio Natural 1,0 1,0 – 20,0 1,0 – 15,0<br />
Estrada Parque 1,0 1,0 – 2,0 1,0<br />
Terra Indígena 1,0 1,0 1,0 – 4,0<br />
Área de Proteção Especial 1,0 – 2,0 1,0 1,0<br />
Território Quilombola 1,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />
Fonte: Anexo II da Instrução Normativa nº 01, de 5/5/2010 (MATO GROSSO, 2010).<br />
Quanto ao Fator de Correção atribuído às Terras Indígenas, o parâmetro<br />
considerado se baseia no nível de consolidação jurídico-formal<br />
das áreas, conforme apresentado na Tabela 4.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
23
Tabela 4<br />
Fatores de Correção de Terras Indígenas de acordo com<br />
os níveis de consolidação jurídico-formal<br />
Nível de consolidação jurídico-formal da terra indígena Fator de correção<br />
Registradas 0,70<br />
Homologadas 0,65<br />
Reservadas/dominiais 0,60<br />
Demarcadas 0,55<br />
Em demarcação 0,45<br />
Declaradas 0,40<br />
Identificadas 0,30<br />
Em identificação 0,00<br />
A identificar 0,00<br />
Fonte: Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001 (SEMA-MT, 2009, p. 43).<br />
Portanto, os municípios mato-grossenses que possuem em seu território<br />
Unidades de Conservação e Terras Indígenas têm direito ao recebimento<br />
do ICMS Ecológico, instrumento que possui como critério<br />
determinante a existência legal dessas áreas.<br />
Dos 141 municípios mato-grossenses, 86 recebem o ICMS Ecológico<br />
de acordo com o tamanho das Unidades de Conservação e Terras<br />
Indígenas, bem como os fatores de conservação das categorias dessas<br />
áreas. Ou seja, ainda são considerados apenas parâmetros quantitativos,<br />
o que significa que quanto maior a área do município ocupada<br />
por áreas protegidas, bem como seu fator de conservação, tanto maior<br />
será o valor de recursos do ICMS Ecológico destinado a ele (SEMA-MT,<br />
2008, p. 6 e 7).<br />
Visando aperfeiçoar os critérios para o cálculo do recurso, a Instrução<br />
Normativa nº 001 representa um avanço para que o cálculo leve<br />
em consideração não apenas o tamanho da área e o Fator de Correção<br />
como dado genérico, mas, principalmente, a qualidade ambiental de<br />
determinada unidade, isto é, que as ações estejam, de fato, compatíveis<br />
satisfatoriamente aos objetivos das categorias de manejo.<br />
Os chamados escores são definidos após avaliação dos critérios qualitativos,<br />
de atribuição da SEMA-MT, que gradualmente vem estabele-<br />
24 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
cendo metodologias para avaliar e definir os Fatores de Correção das<br />
áreas protegidas do estado. A previsão para efeito financeiro da fase<br />
da avaliação qualitativa foi estabelecida para o ano de 2013 em diante<br />
(SEMA, 2011).<br />
Uma das principais ferramentas, de acordo com a Instrução Normativa<br />
nº 001, é o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação, com<br />
registro atualizado anualmente, que reúne as informações gerais das<br />
áreas protegidas, permitindo acompanhar as ações nelas desenvolvidas.<br />
No portal eletrônico da Secretaria de Estado do Meio Ambiente,<br />
o link para acesso ao Cadastro, até o fechamento desta pesquisa, não<br />
estava disponível.<br />
É importante destacar a necessidade de ampla divulgação e fomento<br />
desse importante canal de comunicação com o público, que pretende<br />
congregar e mobilizar o setor para que os propósitos sejam alcançados<br />
e o processo seja continuamente avaliado e aperfeiçoado. Tal ação poderia<br />
ser complementada por atividades de monitoramento presencial<br />
periódico nas unidades e pela realização de eventos, por exemplo.<br />
Outro aspecto que se torna saliente na análise da Instrução Normativa<br />
nº 001 é a inserção de Território Quilombola no conjunto de áreas<br />
protegidas. Assim como Terras Indígenas, as áreas das comunidades de<br />
remanescentes quilombolas são dotadas de características peculiares<br />
quanto à cultura dos grupos que as ocupam e a relação destes com o<br />
ambiente onde estão inseridos, requerendo estudos com abordagens<br />
específicas para a determinação e avaliação dos critérios qualitativos,<br />
já que o dispositivo legal trata disso superficialmente. Esse talvez seja<br />
um dos pontos mais desafiadores à gestão pública, pois demanda um<br />
trabalho conjunto intra e intergovernamental, articulando instâncias<br />
municipais e estaduais (secretarias de governo), bem como federais,<br />
com as universidades e os institutos de pesquisa.<br />
No contexto apresentado, Mato Grosso possui atualmente 105 Unidades<br />
de Conservação, sendo 38 municipais, 44 estaduais e 23 federais<br />
(SEPLAN-MT, 2010, p. 51-53), além de 74 terras indígenas (SEPLAN-<br />
-MT, 2010, p. 46-51) e 65 comunidades de remanescentes quilombolas<br />
(BRASIL, 2010, p. 23-24). Segundo dados dos relatórios sobre a<br />
aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso, no período de 2002 a<br />
2009 os 86 municípios beneficiados arrecadaram R$ 324.319.496,00,<br />
conforme Tabela 5.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
25
Tabela 5<br />
ICMS Ecológico arrecadado pelos municípios mato-grossenses – 2002 a 2009<br />
Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />
01 ÁGUA BOA 250.832,01<br />
02 ALTA FLORESTA 245.547,89<br />
03 ALTO ARAGUAIA 2.127.043,88<br />
04 ALTO DA BOA VISTA 12.347.563,44<br />
05 ALTO PARAGUAI 645.367,84<br />
06 ALTO TAQUARI 3.645.837,97<br />
07 APIACÁS 11.673.303,45<br />
08 ARIPUANÃ 6.037.923,53<br />
09 BARÃO DE MELGAÇO 1.271.298,97<br />
10 BARRA DO BUGRES 1.065.520,10<br />
11 BARRA DO GARÇAS 6.046.039,69<br />
12 BOM JESUS DO ARAGUAIA 208.356,74<br />
13 BRASNORTE 2.486.244,18<br />
14 CÁCERES 1.250.065,23<br />
15 CAMPINÁPOLIS 8.976.623,90<br />
16 CAMPO NOVO PARECIS 6.684.675,43<br />
17 CAMPO VERDE 173.882,04<br />
18 CANARANA 4.565.378,18<br />
19 CHAPADA DOS GUIMARÃES 3.563.316,71<br />
20 CLÁUDIA 864,57<br />
21 COCALINHO 1.795.421,62<br />
22 COLNIZA 2.961.014,10<br />
23 COMODORO 14.524.510,36<br />
24 CONFRESA 1.063.090,52<br />
25 CONQUISTA D’OESTE 11.080.966,24<br />
26 COTRIGUAÇU 7.011.302,15<br />
27 CUIABÁ 4.086.100,74<br />
28 DIAMANTINO 214.276,17<br />
29 FELIZ NATAL 10.575.251,28<br />
30 GAÚCHA DO NORTE 11.090.875,08<br />
31 GENERAL CARNEIRO 5.212.240,18<br />
26 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
(Continuação Tabela 5)<br />
Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />
32 GUARANTÃ DO NORTE 2.884.937,16<br />
33 GUIRATINGA 999.198,76<br />
34 ITIQUIRA 15.470,97<br />
35 JACIARA 64.659,93<br />
36 JUARA 2.771.029,08<br />
37 JUINA 14.987.012,99<br />
38 LUCAS DO RIO VERDE 5.964,31<br />
39 LUCIARA 1.664.000,22<br />
40 MARCELÂNDIA 2.630.647,30<br />
41 MATUPÁ 3.946.764,63<br />
42 NOBRES 4.052.061,63<br />
43 NORTELÂNDIA 105.002,38<br />
44 NOSSA SENHORA DO LIVRAMENTO 835.776,56<br />
45 NOVA BANDEIRANTES 698.958,69<br />
46 NOVA BRASILÂNDIA 1.454.774,96<br />
47 NOVA CANAÃ DO NORTE 6.397,14<br />
48 NOVA LACERDA 3.621.894,25<br />
49 NOVA MARINGÁ 1.251.750,23<br />
50 NOVA NAZARÉ 12.482.646,24<br />
51 NOVA UBIRATÃ 2.716.807,19<br />
52 NOVA XAVANTINA 197.702,57<br />
53 NOVO MUNDO 4.604.128,45<br />
54 NOVO SANTO ANTÔNIO 11.946.586,89<br />
55 NOVO SÃO JOAQUIM 307.824,75<br />
56 PARANATINGA 3.876.073,70<br />
57 PEDRA PRETA 291,16<br />
58 PEIXOTO DE AZEVEDO 10.103.380,77<br />
59 PLANALTO DA SERRA 60.976,45<br />
60 POCONÉ 2.595.716,43<br />
61 PONTE BRANCA 659.044,39<br />
62 PONTES E LACERDA 2.473.958,89<br />
63 PORTO ALEGRE DO NORTE 4.510.846,05<br />
64 PORTO ESPERIDIÃO 1.408.590,88<br />
27
(Continuação Tabela 5)<br />
Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />
65 PORTO ESTRELA 4.599.144,10<br />
66 POXORÉO 1.855.635,06<br />
67 QUERÊNCIA 9.373.452,08<br />
68 RIBEIRÃO CASCALHEIRA 3.885.384,82<br />
69 RIBEIRÃOZINHO 213.344,27<br />
70 RONDOLÂNDIA 10.717.022,36<br />
71 RONDONÓPOLIS 878.721,69<br />
72 ROSÁRIO OESTE 2.186.749,00<br />
73 SANTA CRUZ DO XINGU 6.806.335,90<br />
74 SANTA RITA DO TRIVELATO 687.329,57<br />
75 SANTA TEREZINHA 4.073.787,37<br />
76 SANTO ANTÔNIO DO LESTE 3.430.978,21<br />
77 SANTO ANTÔNIO DO LEVERGER 647.301,51<br />
78 SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA 3.409.857,41<br />
79 SÃO JOSE DO XINGU 4.167.074,55<br />
80 SAPEZAL 8.159.970,47<br />
81 SINOP 11.096,87<br />
82 SORRISO 27.326,96<br />
83 TANGARÁ DA SERRA 11.781.548,42<br />
84 TESOURO 2.669.014,25<br />
85 VÁRZEA GRANDE 355.280,38<br />
86 VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE 1.561.528,06<br />
TOTAL 324.319.493,50<br />
Fonte: Relatórios da Coordenadoria de Unidades de Conservação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente<br />
de Mato Grosso.<br />
Os municípios que arrecadaram ICMS Ecológico acima de 40% do<br />
valor total do ICMS compreendem 14, do universo de 86, entre os<br />
quais se destacam Conquista D’Oeste, Novo Santo Antônio, Alto da<br />
Boa Vista e Nova Nazaré, que arrecadaram valores superiores a 60%<br />
do total de ICMS repassado. Tais municípios se sobressaem por contemplar<br />
um conjunto de aspectos favoráveis a esse quadro.<br />
A Terra Indígena Marãwatsede, por exemplo, possui tamanho superior<br />
a 120 mil hectares e está localizada no município de Alto da<br />
28 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
Boa Vista, ocupando quase a metade do território do município, o<br />
qual, em termos proporcionais, arrecadou valores representativos do<br />
ICMS no período. Combinação semelhante pode ser encontrada no<br />
município de Conquista D’Oeste, que possui duas Terras indígenas<br />
(Juininha e Sararé) que abrangem uma porção representativa do território<br />
do município, sendo o repasse do ICMS também significativo<br />
proporcionalmente.<br />
Como constatado, esse instrumento pode ser considerado uma importante<br />
fonte de recursos aos municípios que abrangem territórios<br />
desfavoráveis às práticas econômicas convencionais no estado (como<br />
a atividade agropecuária), incentivando-os a manter as Unidades de<br />
Conservação já existentes e motivando-os para a criação e manutenção<br />
de novas áreas protegidas.<br />
Em síntese, trata-se da análise integrada dos seguintes aspectos: tamanho<br />
e categoria de Unidade de Conservação ou Terra Indígena,<br />
tamanho do município e valor total do ICMS repassado. A proporção<br />
pode ser entendida resumidamente da seguinte forma: quanto maior<br />
a Unidade de Conservação ou Terra Indígena em relação ao tamanho<br />
do município onde se encontra, mais restritiva sua categoria; e quanto<br />
maior for a proporcionalidade desses fatores com o valor do ICMS<br />
geral repassado, maior será o ICMS Ecológico arrecadado.<br />
Vale considerar também que tão importante quanto a implantação<br />
formal de normas para manter essa política exequível é o estabelecimento<br />
de critérios para o acompanhamento de como o recurso deverá<br />
ser aplicado pelos gestores municipais, visto que ainda não há,<br />
na política ambiental mato-grossense, instrumentos que assegurem a<br />
gestão e aplicabilidade desse recurso às demandas específicas do setor<br />
ambiental do município.<br />
Para exemplificar essa circunstância, é interessante citar os dados de<br />
um dos municípios mato-grossenses que estão inseridos na política do<br />
ICMS Ecológico, Barão de Melgaço. Segundo informações de gestores<br />
públicos do setor ambiental desse município pantaneiro, localizado<br />
ao sul do estado, há carência de recursos para o setor. Afirmam que o<br />
ICMS Ecológico é resultado decorrente da existência de Unidades de<br />
Conservação, que necessitam de infraestrutura para que possam ser<br />
mantidas (como recursos materiais e pessoal capacitado); entretanto,<br />
ele não tem sido destinado à causa, sendo provavelmente investido<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
29
em outros setores da administração pública, como infraestrutura urbana<br />
e saúde.<br />
Para ilustrar esse quadro – que apresenta o quanto os recursos se<br />
mostram insuficientes e o quanto se necessita de um plano de gestão<br />
eficiente para garantir os objetivos do ICMS Ecológico enquanto incentivo<br />
à conservação ambiental – realizou-se uma análise que tem<br />
como referência a despesa anual aproximada para manutenção de<br />
uma Unidade de Conservação, no caso a Reserva Particular do Patrimônio<br />
Natural SESC Pantanal, com 106.335,86 hectares, localizada<br />
em Barão de Melgaço, uma das principais Unidades de Conservação<br />
do país quanto à estrutura e gestão para proteção dos ecossistemas<br />
pantaneiros.<br />
A Estância Ecológica SESC Pantanal, uma das unidades do SESC em<br />
Mato Grosso, é a instituição proprietária da Reserva. Segundo dados<br />
dos Balanços Anuais da RPPN, a despesa anual para manutenção da<br />
unidade é de cerca de R$ 2.400.000,00 (ano base: 2009).<br />
Ao comparar esse valor com o ICMS Ecológico arrecadado pelo<br />
município de Barão de Melgaço no período de oito anos (2002 a<br />
2009), que foi de R$ 1.271.289,97, e considerando também os outros<br />
73.739,08 hectares de Unidades de Conservação e Terras Indígenas<br />
do seu território, pode-se observar o quanto o recurso deve ser incrementado<br />
para que contribua efetivamente com as iniciativas conservacionistas<br />
que constituem a base de sua razão de existência.<br />
Outros dados a serem observados são os valores monetários atribuí–<br />
dos aos serviços ecossistêmicos. No município de Barão de Melgaço<br />
é possível estabelecer uma análise a partir dos pressupostos dos mecanismos<br />
de valoração dos serviços que o ecossistema oferece como<br />
recursos utilizados para atendimento das necessidades humanas.<br />
De acordo com a pesquisa divulgada por Seidl e Moraes (2000, p. 3),<br />
o valor anual dos serviços ecossistêmicos estimados para o Pantanal da<br />
Nhecolândia (segunda maior sub-região da planície pantaneira) corresponde<br />
a US$ 15,5 bilhões, ou US$ 5 mil por habitante. Nesse cálculo<br />
os autores consideraram as seguintes categorias de serviços ecossistêmicos:<br />
suprimento de água, regulação da perturbação, tratamento de<br />
resíduos, valor cultural, regulação da água, ciclagem dos nutrientes,<br />
recreação e habitat. Outras categorias foram consideradas, mas não<br />
representaram um fornecimento significativo quanto aos serviços.<br />
30 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
Esse estudo de caso pode ser comparado ao caso de Barão de Melgaço,<br />
a terceira maior sub-região da planície pantaneira. É possível<br />
analisar, por um lado, a estimativa de um valor monetário dos serviços<br />
ecossistêmicos pantaneiros e, por outro, um valor monetário que poderia<br />
auxiliar na manutenção desse patrimônio. Entende-se que essa<br />
abordagem da valoração ainda carece de dados para a região referenciada,<br />
mas deve ser considerada como um ponto de partida para<br />
novos estudos que venham a indicar caminhos para o fortalecimento<br />
da proteção do Pantanal.<br />
Nessa perspectiva, é importante considerar também a necessidade<br />
de se estabelecerem parcerias entre as organizações públicas e privadas,<br />
no caso de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) e<br />
Áreas de Proteção Ambiental, de forma que sua manutenção possa<br />
contar com o incentivo do município. Alguns estados, como Paraná e<br />
Mato Grosso do Sul, mantêm as Associações de Proprietários de Reservas<br />
Particulares do Patrimônio Natural, organizações que reúnem<br />
os objetivos de seus associados visando criar mecanismos para auxiliá-<br />
-los no trabalho de manutenção e manejo das Reservas.<br />
A Repams, como é denominada a Associação de RPPNs do Mato<br />
Grosso do Sul, como exemplo de estrutura desse tipo de organização,<br />
tem como objetivo geral promover a preservação do meio ambiente<br />
em RPPNs, contribuindo para o crescimento em área e qualidade dessa<br />
categoria de Unidade de Conservação (REPAMS, 2011).<br />
Entre seus objetivos específicos, a Repams visa promover a troca<br />
de informações entre proprietários de RPPNs, poder público em suas<br />
diferentes instâncias e organizações não governamentais; divulgar as<br />
RPPNs de Mato Grosso do Sul, seus objetivos e atividades; apoiar instituições<br />
públicas e privadas na implementação de políticas voltadas<br />
para a conservação de reservas privadas; identificar projetos incentivadores<br />
da criação de RPPNs no estado e a manutenção das áreas<br />
já existentes, buscando sua sustentabilidade econômica; estimular e<br />
desenvolver pesquisas que contribuam para a missão da organização;<br />
e produzir materiais didáticos e científicos sobre a temática ambiental.<br />
Segundo a Instrução Normativa nº 01, publicada em 2010 em Mato<br />
Grosso, quanto ao aspecto qualitativo das Unidades de Conservação<br />
Privadas (RPPNs), é fundamental que possibilitem a apropriação social<br />
das Reservas, isto é, que implementem ações voltadas à educação<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
31
ambiental, ecoturismo, democratização das informações, regulamentação<br />
(associada ao zoneamento), produção de baixo impacto, pesquisas<br />
e estudos, além de sua conservação e manejo.<br />
A RPPN SESC Pantanal vem atuando e repercutindo de forma a promover<br />
tais frentes de trabalho. O município deveria considerar sua importância<br />
(consequentemente para a arrecadação do ICMS Ecológico)<br />
não somente em proporção territorial, mas também como geradora<br />
de benefícios que ultrapassam a dimensão quantitativa em tamanho<br />
de área. Dessa forma, uma articulação entre a iniciativa privada e a<br />
gestão pública municipal poderia fortalecer esta ação e contribuir para<br />
ações semelhantes.<br />
Observa-se o quanto os recursos destinados à conservação ambiental<br />
ainda podem avançar e contribuir para a gestão ambiental de<br />
Mato Grosso. Espera-se, portanto, que esta pesquisa possa incitar mais<br />
questões para a evolução da temática, repercutindo positivamente no<br />
processo de tomada de decisões dos gestores públicos que visem ao<br />
reconhecimento do importante papel das áreas protegidas no Pantanal<br />
brasileiro.<br />
CONSIDERACÕES FINAIS<br />
A aproximação da economia com as questões ambientais tem proporcionado<br />
um novo olhar sobre o desenvolvimento da sociedade, especificamente<br />
sobre as formas de gestão e planejamento das políticas<br />
públicas, para compatibilizar as diferentes perspectivas de cada um<br />
desses setores, aparentemente dicotômicos, mas fortemente associados<br />
de forma híbrida.<br />
A concepção de um sistema econômico que não encontra limites<br />
tende a se tornar cada vez mais distante das práticas sociais, considerando<br />
que padrões sustentáveis são indispensáveis ao desenvolvimento.<br />
É essencial que o sistema econômico alivie os impactos que<br />
incidem sobre os recursos naturais, que comprometem sua disponibilidade<br />
em quantidade e qualidade nas escalas temporais e espaciais.<br />
As políticas ambientais demandam estratégias eficazes para que os<br />
resultados sejam satisfatórios e permanentemente revistos, avaliados e<br />
incrementados. O ICMS Ecológico tem sido um instrumento promissor<br />
na distribuição de recursos destinados aos municípios, com a imple-<br />
32 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
mentação de medidas compensatórias e incentivadoras à conservação<br />
de áreas protegidas.<br />
Em Mato Grosso, a política do ICMS Ecológico foi implantada há<br />
aproximadamente dez anos. Os avanços para adaptá-la à realidade<br />
mato-grossense têm sido gradualmente alcançados, introduzindo aspectos<br />
condizentes com o contexto socioeconômico dos municípios e<br />
das áreas protegidas. Entretanto, há fatores latentes, que merecem um<br />
melhor embasamento, para que essa política seja fortalecida e seus<br />
reflexos sejam consolidados, a exemplo de outros estados, que têm<br />
obtido êxito e destaque nesse âmbito.<br />
O fortalecimento do tema nas agendas públicas e políticas do estado<br />
e seus municípios é fundamental para instituir a infraestrutura<br />
mínima necessária para a execução da política nesses dois níveis.<br />
Consequentemente, a legislação deverá apresentar detalhamentos,<br />
principalmente quanto aos critérios de análise dos aspectos qualitativos<br />
das áreas e suas categorias, as quais exigem abordagens específicas<br />
quanto aos aspectos físicos, biológicos, ecológicos, culturais,<br />
antropológicos, entre outros, na tentativa de articulá-las da forma<br />
como se apresentam de fato.<br />
O Cadastro Estadual de Unidades de Conservação tem uma função<br />
essencial nesse contexto, podendo ser mais bem divulgado e implementado<br />
junto ao público. A Associação de Proprietários de Reservas<br />
Particulares do Patrimônio Natural também representa um meio potencial<br />
para possibilitar a articulação com a iniciativa privada, que intenta contribuir<br />
para a conservação ambiental em Mato Grosso; porém, poderia<br />
ser mais bem instituída para promover os princípios em que está<br />
alicerçada por meio de eventos e parcerias com organizações afins,<br />
entre outras estratégias, a exemplo de associações de outros estados.<br />
As Terras Indígenas e territórios de comunidades de remanescentes<br />
quilombolas são tipos de territórios com lógicas distintas quanto ao<br />
modo de vida de seus ocupantes, e constituem uma importante lacuna,<br />
para a qual novos estudos devem dedicar atenção, no sentido de<br />
subsidiar políticas públicas para o setor.<br />
Acredita-se que, com a evolução gradual das pesquisas e formulação<br />
de políticas públicas, o cálculo do ICMS Ecológico poderá se aproximar<br />
de um conjunto significativo de fatores na busca por resultados<br />
mais condizentes com as necessidades regionais e locais.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
33
Portanto, o ICMS Ecológico tem apresentado viabilidade, e medidas<br />
como a estruturação das bases para sua execução, e para a democratização<br />
e compartilhamento do processo, bem como a consideração<br />
dos múltiplos critérios a serem ponderados, poderão agregar ainda<br />
mais eficácia à conservação ambiental, promovendo a incorporação e<br />
o aprimoramento dessa política, para que suas repercussões no estado<br />
sejam amplas e exitosas.<br />
34 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
REFERÊNCIAS<br />
ASSOCIAÇÃO DE RESERVAS PARTICULARES DO PATRIMÔNIO NATURAL<br />
DO MATO GROSSO DO SUL. Institucional. Campo Grande, [200-]. Disponível<br />
em: < http://www.repams.org.br/institucional.php?cod=62>. Acesso<br />
em: jul. 2011.<br />
BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. Navigating social-ecological systems:<br />
building resilience for complexity and change. New ork: ork: Cambridge Univer- University<br />
Press, 2008.<br />
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 8. ed. São Paulo:<br />
Cortez, 2006.<br />
COSTANZA, R. et al. The value of the world’s ecosystem services and natural<br />
capital. Nature, n. 387, p. 253-260, 1997.<br />
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Comunidades de remanescentes quilombolas:<br />
certidões expedidas por estado. Brasília, 2010. Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em: jul. 2011.<br />
IBGE. Pesquisa de informações básicas municipais: perfil dos municípios<br />
brasileiros. Rio de Janeiro, 2005.<br />
LIU, S. et al. Valuing ecosystem services: theory, pratice, and the need for a<br />
transdisciplinary synthesis. Annals of the New York Academy of Sciences, n.<br />
1185, p. 54-78, 2010.<br />
LOUREIRO, W. Contribuição do ICMS ecológico à conservação da biodiversidade<br />
no estado do Paraná. Curitiba: Universidade Federal do Paraná,<br />
2002. Originalmente apresentada como Tese de Doutorado.<br />
MATO GROSSO. Instrução Normativa n. 1, de 5 de maio de 2010. Regula<br />
procedimentos administrativos para organização do Cadastro Estadual de Unidades<br />
de Conservação e Terras Indígenas, a operacionalização dos cálculos e<br />
gestão do Programa do ICMS Ecológico, da publicação e democratização das<br />
informações, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Mato<br />
Grosso, Cuiabá, n. 25328, p. 12-15, 28 maio 2010.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
35
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 1999.<br />
Cuiabá, 2000.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2000.<br />
Cuiabá, 2001.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2001.<br />
Cuiabá, 2002.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2002.<br />
Cuiabá, 2003.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2003.<br />
Cuiabá, 2004.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2004.<br />
Cuiabá, 2005.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2005.<br />
Cuiabá, 2006.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2006.<br />
Cuiabá, 2007.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2007.<br />
Cuiabá, 2008.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2008.<br />
Cuiabá, 2009.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />
relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2009.<br />
Cuiabá, 2010.<br />
36 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011
MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. ICMS ecológico.<br />
Cuiabá, 31 jan. 2011. Disponível em:<br />
. Acesso em: jul. 2011.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Relatório sobre a<br />
aplicação do ICMS ecológico no Estado de Mato Grosso: período 2002 a<br />
2007. Cuiabá, 2008.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Coordenadoria de<br />
Unidades de Conservação. ICMS ecológico: conservando a biodiversidade<br />
mato-grossense. Cuiabá, 2009.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral.<br />
Anuário estatístico, 2009. Cuiabá, 2010.<br />
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral.<br />
Mato Grosso em números, 2008. Cuiabá, 2008.<br />
MOTTA, R. S. da. Manual para valoração econômica dos recursos ambientais.<br />
Rio de Janeiro: IPEA; CNPq, 1997.<br />
PERMAN, R. et al. Natural resources & environmental economics. London:<br />
Pearson Education, 1999.<br />
PIMENTEL, C. C. R. Repercussões da Reserva Particular do Patrimônio<br />
Natural SESC Pantanal: um olhar para além dos seus limites. Cuiabá: Universidade<br />
Federal de Mato Grosso, 2009. Originalmente apresentada como<br />
Dissertação de Mestrado.<br />
SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro:<br />
Garamond, 2004.<br />
SEIDL, A. F.; MORAES, A. S. Global valuation of ecosystem services: application<br />
to the Pantanal da Nhecolandia, Brazil. Ecological Economics, n. 33,<br />
p. 1-6, 2000.<br />
THE NATURE CONSERVANC. Portal eletrônico do ICMS ecológico. Cuiabá,<br />
2011. Disponível em: . Acesso em:<br />
jul. 2011.<br />
TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa<br />
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
37
A HORA DE IR<br />
PARA A ESCOLA<br />
Daniel Santos<br />
38 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
Diversos trabalhos têm mostrado que, no Brasil, indivíduos que frequentaram<br />
a pré-escola quando crianças obtêm melhor desempenho escolar, maiores<br />
salários, dentre outros resultados positivos em suas vidas, ao passo que ter<br />
frequentado creche não produz efeitos significativos. Esse fato é intrigante na<br />
medida em que muitos estudos teóricos e descobertas empíricas recentes em<br />
diversas partes do mundo sugerem que quanto antes se começar a investir no<br />
aprendizado, maior serão os benefícios. Este artigo apresenta um panorama da<br />
produção nacional sobre impactos de educação infantil, sugerindo possíveis<br />
interpretações para o dilema e apontando direções para pesquisas futuras que<br />
permitam entender por que creches não têm impacto.<br />
Palavras-chave: educação infantil, creches, desempenho<br />
Several studies have shown that, in Brazil, individuals who attended the preschool<br />
in their childhood achieve a better school performance and higher salaries,<br />
among other positive outcomes in their lives, while having attended daycare<br />
centers does not produce any significant effect. This fact is intriguing in<br />
the sense that many recent theoretical studies and empirical findings in several<br />
parts of the world suggest that the sooner one starts investing in a child’s learning<br />
process, the higher the benefits will be. This article presents an overview<br />
of the Brazilian research on the impacts of the early childhood education, proposing<br />
possible interpretations of the dilemma and pointing out directions for<br />
future research that may allow us to understand why day-care centers do not<br />
cause impact.<br />
Keywords: early childhood education, day care, performance<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
39
INTRODUÇÃO 1<br />
A atenção à primeira infância vem ocupando espaço crescente nas<br />
agendas de pesquisa e formulação de políticas públicas em todo o<br />
mundo nestes primeiros anos do milênio. Por um lado, há farta evidência<br />
de que crianças que nesse período são corretamente estimuladas<br />
aproveitam melhor o conteúdo ensinado ao longo do ciclo educacional<br />
(CUNHA et al., 2006). Por outro lado, há evidência igualmente<br />
abundante de que déficits cognitivos que eventualmente surjam nessa<br />
fase são dificilmente compensados em idades mais avançadas, por<br />
mais que haja investimento das famílias e do governo. A primeira infância<br />
é uma faixa etária crítica em termos de aprendizado, e a insuficiência<br />
de estímulos tem como provável consequência futura um<br />
menor acúmulo de capital humano por parte dos trabalhadores do<br />
país, com prejuízo para nossa capacidade de crescimento. Além disso,<br />
a desigualdade de estímulos tende a produzir desigualdade educacional<br />
e de rendimentos futuros.<br />
Do ponto de vista dos governantes, tais conclusões sugerem que o<br />
fomento ao desenvolvimento infantil deveria estar entre as prioridades<br />
de política social. A grande dificuldade é que nessa idade as crianças<br />
estão predominantemente sob cuidados dos pais, ficando relativamente<br />
pouco expostas aos potenciais benefícios de políticas públicas.<br />
Dentre as relativamente poucas alternativas de ações voltadas ao<br />
desenvolvimento infantil, a oferta de educação infantil em creches e<br />
pré-escolas tem sido uma das principais apostas do Estado nas diversas<br />
partes do mundo.<br />
Os dados brasileiros mostram que, de fato, crianças que passaram<br />
pela pré-escola apresentam desempenho significativamente<br />
superior em várias dimensões de desenvolvimento e bem-estar se<br />
comparadas às que não tiveram essa experiência, mas existe pouca<br />
evidência de que a frequência escolar em idades menores (creches 2 )<br />
tenha algum impacto. Exemplos dessa evidência estão em Barros<br />
1 Agradeço os imprescindíveis comentários de Márcia Gil, Sheila Najberg e de<br />
um parecerista anônimo.<br />
2 A educação infantil no Brasil é dividida em creches (0 a 3 anos de idade) e<br />
pré-escola (4 e 5 anos).<br />
40 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
e Mendonça (1999; 2000), que analisam o impacto da educação<br />
infantil sobre salários na idade adulta e escolaridade atingida,<br />
e em Curi e Menezes-Filho (2006), Felício e Vasconcellos (2007),<br />
Calderini e Souza (2009), Felício et al., (2009) e Guimarães, Pinto e<br />
Santos (2010), que investigam o efeito do ensino infantil sobre o<br />
desempenho escolar ao longo do ensino básico. Esses resultados<br />
são ainda mais intrigantes se considerarmos que o consenso multidisciplinar<br />
que se forma em torno do tema sugere que quanto mais<br />
cedo se investe no desenvolvimento infantil, mais alto é o retorno<br />
(HECKMAN, 2008). Outro fato carece de investigação aprofundada:<br />
algumas estatísticas descritivas sugerem que, no Brasil, é entre as<br />
famílias mais abastadas que ter ido à creche parece fazer alguma<br />
diferença na vida futura das crianças, ao contrário da evidência internacional<br />
de que são as famílias vulneráveis as que mais se beneficiam<br />
desse tipo de serviço.<br />
Este artigo tem como objetivo principal interpretar a ausência<br />
de indícios de que, no Brasil, o ensino anterior aos 4 anos de idade<br />
tenha impactos positivos sobre resultados futuros, bem como<br />
analisar o efeito significativo verificado com a pré-escola. A partir<br />
dessa interpretação, discute-se que recomendações de política educacional<br />
e quais esforços de pesquisa complementares deveriam ser<br />
realizados para evitar que haja defasagem de desenvolvimento na<br />
primeira infância.<br />
1 IDADES CRÍTICAS<br />
A primeira infância é uma das fases da vida em que os indivíduos<br />
estão particularmente propensos ao aprendizado. Os estímulos<br />
recebidos nesse período não somente aumentam o conhecimento<br />
durante essa fase como também facilitam a absorção de novos conhecimentos<br />
no futuro e sua ausência pode levar a defasagens de<br />
desenvolvimento que exigem maiores investimentos futuros para serem<br />
compensadas. Em alguns casos sequer podem ser totalmente<br />
eliminadas.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
41
Fonte: Thompson e Nelson, 2001<br />
Figura 1<br />
Desenvolvimento do cérebro<br />
A Figura 1, extraída de Thompson e Nelson (2001), resume a evidência<br />
neurocientífica sobre as fases de desenvolvimento cerebral e<br />
respectivas susceptibilidades para o aprendizado. Já no sexto mês de<br />
gravidez a quase totalidade dos neurônios que compõem um cérebro<br />
adulto está formada. Então, migram para as regiões do cérebro onde<br />
exercerão funções especializadas, e em seguida formam sinapses uns<br />
com os outros para poder se comunicar e reter informações. Estímulos<br />
externos são fundamentais nessa fase para que o cérebro se organize<br />
de modo eficiente, mantendo apenas as sinapses efetivamente úteis<br />
ao seu funcionamento. Apesar de haver um período relativamente flexível<br />
de “plasticidade” nesse processo de organização, crianças com<br />
déficit de estímulos por longos períodos podem ter dificuldades permanentes<br />
de cognição.<br />
Dentre os indicadores disponíveis para acompanhar o desenvolvimento<br />
cognitivo dos indivíduos, a linguagem ocupa um papel central<br />
nos primeiros anos de vida, quer porque seja uma das primeiras<br />
manifestações cognitivas dos indivíduos, quer porque é insumo<br />
necessário para o desenvolvimento de outras formas de raciocínio.<br />
Complementando a evidência neurocientífica, estudos nas áreas de<br />
educação e psicologia confirmam a dificuldade da aprendizagem tardia<br />
da linguagem, com possíveis consequências sobre outras formas de<br />
aprendizado. A Figura 2 ilustra esses resultados, mostrando notas médias<br />
de adultos que vivem nos Estados Unidos, por idade de chegada<br />
42 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
no país, e sugere que indivíduos que se mudaram depois de adultos<br />
conseguem ter apenas 75% do desempenho linguístico daqueles que<br />
mantiveram contato com a língua desde o nascimento.<br />
Figura 2<br />
Proficiência linguística por idade em que teve contato intenso com a língua<br />
Fonte: Johnson e Newport, 1988.<br />
Se, por um lado, é contundente a evidência de que há formas de<br />
aprendizado enormemente facilitadas nos primeiros anos de vida, não<br />
menos importante é a evidência de que parte da desigualdade cognitiva<br />
observada entre pessoas adultas se forma de fato na primeira infância e<br />
acarreta consequências permanentes em termos de diferenças salariais<br />
e de bem-estar. O gráfico abaixo contém a evolução longitudinal de<br />
notas de linguagem entre crianças equatorianas e traz três informações<br />
importantes: a) filhos de mães mais escolarizadas apresentam melhor<br />
rendimento desde bem cedo (36 meses), mas as diferenças podem ser<br />
consideradas relativamente pequenas; b) as disparidades se mantêm relativamente<br />
baixas até os 4 anos de idade, período em que grande parte<br />
das crianças passa a ter contato mais intenso com experiências extra-<br />
-familiares; c) a partir desse momento, a desigualdade cresce enormemente,<br />
sendo aos 5 anos significativamente maior do que a percebida<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
43
aos 36 meses. Interessante notar que, na métrica do teste, a tendência<br />
inicial de queda é revertida em idades diferentes dependendo do nível<br />
educacional da mãe (por muitos considerada medida mais fiel da qualidade<br />
do ambiente familiar). Com os filhos das mães menos escolarizadas<br />
há modificação da tendência somente aos 5 anos. O aumento de<br />
desigualdade manifestado entre 48 e 66 meses não necessariamente é<br />
consequência apenas de eventos ocorridos nessas idades, tais como a<br />
frequência a escolas diferenciadas. É possível que parte dessa dispersão<br />
resulte do acúmulo de experiências obtidas entre 0 e 4 anos, cujo resultado<br />
apenas se manifesta depois dessa idade.<br />
Fonte: Schady, 2006.<br />
Figura 3<br />
Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (I)<br />
Desenvolvimento cognitivo de crianças entre 36 e 72 meses de idade no Equador<br />
A Figura 4, proveniente de estudo semelhante, porém focada em<br />
uma faixa etária mais avançada, ilustra o fato de que a partir de determinada<br />
idade os resultados cognitivos se cristalizam e há pouca<br />
modificação na desigualdade entre crianças que vivem em ambientes<br />
familiares diferentes. Na medida em que a desigualdade cognitiva provoca<br />
desigualdade no desempenho educacional dos indivíduos, e esta<br />
seja segundo a maioria dos estudos disponíveis a principal fonte de<br />
desigualdade de rendimentos e bem-estar na idade adulta, verifica-se<br />
que a atenção a políticas de desenvolvimento infantil deveria ser<br />
ingrediente fundamental de qualquer política de combate à desigualdade<br />
de oportunidades.<br />
44 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
Figura 4<br />
Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (II)<br />
Fonte: Heckman, 2008<br />
Tendência na média de teste cognitivo (PIAT, da família Peabody)<br />
Com respeito à formação das características não cognitivas dos<br />
indivíduos, os indícios são menos contundentes a respeito da existência<br />
de uma fase crítica nos primeiros anos de vida. De fato, diversos<br />
estudos mostram que algumas dessas características sofrem<br />
mudanças importantes mesmo durante a idade adulta (CUNHA et<br />
al., 2006).<br />
2 EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL<br />
A constatação de que parte da desigualdade de capital humano entre<br />
os indivíduos pode estar sendo gerada já na primeira infância tem<br />
repercussão especial no Brasil, país em que a desigualdade de renda<br />
e riqueza tem sido historicamente um problema agudo. De fato, o<br />
sistema educacional tem dado cada vez mais destaque ao papel desempenhado<br />
pelo ensino infantil, que vem passando por profundas<br />
transformações no período recente.<br />
A educação infantil pública no Brasil é de responsabilidade municipal<br />
e é dividida em dois níveis: as creches, cobrindo o período de<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
45
0 a 3 anos 3 , e a pré-escola, dos 4 aos 6 anos. A iniciativa de integrar os<br />
dois níveis em um mesmo sistema é recente. Se, por um lado, a demanda<br />
por pré-escola surgiu no país como consequência de famílias<br />
que desejavam antecipar o início da educação formal de seus filhos,<br />
tendo portanto o conteúdo educacional como seu principal objetivo,<br />
por outro, a origem das creches está muito mais associada à necessidade<br />
de oferecer às mães uma alternativa de cuidado aos filhos para<br />
que pudessem participar ativamente da força de trabalho. Por essa<br />
razão, durante a maior parte de nossa história recente, as creches brasileiras<br />
estiveram vinculadas às secretarias de assistência social e seus<br />
objetivos e atividades eram direcionados para que as crianças permanecessem<br />
em ambiente seguro e saudável, sem ter no conteúdo educacional<br />
sua prioridade central. Foi apenas com o advento da Lei de<br />
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, que o poder público<br />
transferiu às secretarias de educação a responsabilidade pelas creches,<br />
definindo-as como parte integrante da educação infantil e obrigando<br />
os municípios a formular propostas pedagógicas e currículos adequados<br />
ao novo perfil que se desejava implementar nesses espaços. Os<br />
municípios tiveram dez anos a partir de 1996 para adaptar suas creches<br />
às novas exigências.<br />
Uma segunda transformação importante da legislação que orienta o<br />
funcionamento da educação infantil no Brasil foi a redução da idade<br />
mínima obrigatória de ingresso na escola e a inclusão de frequência<br />
a creches entre os direitos da criança. Fortemente influenciado pela<br />
abundante evidência (nacional e internacional) de que a passagem<br />
pela educação infantil efetivamente proporciona diferenciais permanentes<br />
em diversos indicadores de oportunidade e bem-estar, a lei<br />
foi por diversas vezes alterada de modo a redefinir direitos e deveres<br />
de crianças e pais no que diz respeito ao ensino infantil. Já na LDB as<br />
creches passaram a ser consideradas direito das famílias, obrigando os<br />
municípios a oferecer serviços gratuitos que possam contemplar essa<br />
demanda. Em 2006, as classes de alfabetização tornaram-se obrigatórias<br />
para todas as crianças, reduzindo a idade mínima de ingresso<br />
3 No caso das creches públicas, há em geral um limite mínimo de idade (em<br />
torno de 3 meses) para que uma criança possa ser aceita. Grande parte dos<br />
municípios opta por subdividir as creches em berçários e maternais.<br />
46 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
na escola de 7 para 6 anos e, no final de 2009, o congresso nacional<br />
aprovou nova mudança, tornando toda a pré-escola obrigatória, com<br />
idade de ingresso aos 4 anos a partir de 2011. Ainda persiste um intenso<br />
debate entre educadores, psicólogos e demais profissionais da<br />
área sobre a proposta curricular que deveria vigorar na pré-escola. Um<br />
dos pontos de maior divergência diz respeito à conveniência ou não<br />
de integrar a educação infantil ao ensino fundamental, colocando-se<br />
a alfabetização e a preparação para o início do fundamental como<br />
prioridade da pré-escola.<br />
Finalmente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação<br />
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb),<br />
um importante instrumento de política criado pelo governo<br />
federal para apoiar financeiramente o ensino básico em estados e<br />
municípios, foi recentemente adaptado para poder atender também<br />
às necessidades da educação infantil, revelando mais uma vez<br />
a prioridade que esse nível de ensino vem ocupando na formulação<br />
de políticas educacionais no país. Mais do que simplesmente<br />
incluir a educação infantil entre as finalidades para as quais as<br />
transferências do fundo podem ser usadas, a lei abriu uma exceção<br />
que permite que creches privadas (desde que sem fins lucrativos e<br />
de algum modo conveniadas ao sistema público de creches) possam<br />
receber recursos.<br />
Em recente estudo, Foguel e Veloso (2010) detalham o perfil do<br />
acesso à educação infantil no Brasil, confirmando que, tal como na<br />
maioria dos países latino-americanos 4 , a cobertura do ensino infantil<br />
tem evoluído em ritmo acelerado ao longo da última década.<br />
Mesmo antes da obrigatoriedade prevista em lei, as taxas de acesso<br />
à pré-escola já haviam subido de pouco mais de 50% em 1996 para<br />
cerca de 80% em 2007, já bem próximo da universalização. Nesse<br />
mesmo estudo, os autores mostram também que o uso de creches<br />
no Brasil ainda é significativamente maior entre famílias mais ricas<br />
e educadas, ao passo que na pré-escola é relativamente menos<br />
desigual.<br />
4 Ver UNESCO – World Data on Education (2006/2007). (http://www.ibe.<br />
unesco.org/Countries/WDE/2006/index.html ).<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
47
Tabela 1<br />
Proporção de crianças frequentando educação infantil por idade no Brasil<br />
Idade<br />
(anos)<br />
48 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
Ano<br />
1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007<br />
0 1.1 1.1 1.5 1.3 1.1 1.2 1.6 2.3 1.4 2.2 2.7<br />
1 3.1 3.2 3.3 3.7 3.7 5.1 5.0 6.2 5.7 7.2 8.0<br />
2 7.6 8.1 8.1 9.3 11.5 11.8 11.2 14.3 14.5 17.7 18.3<br />
3 17.4 19.5 20.2 21.7 24.5 26.3 25.5 29.5 30.6 34.6 38.0<br />
4 33.3 36.5 35.7 39.0 43.9 46.0 47.9 50.5 52.6 58.0 60.3<br />
5 51.7 54.8 55.7 57.0 62.7 64.6 67.1 70.9 71.2 75.0 76.8<br />
Fonte: Foguel e Veloso (2010).<br />
Utilizando uma série de perguntas específicas sobre as razões reportadas<br />
pelos pais para não colocar seus filhos nas creches 5 , Foguel<br />
e Veloso (2010) constroem dois tipos de indicadores dicotômicos de<br />
falta de acesso ao ensino infantil. O primeiro (indicador de frequência),<br />
baseado no fato de as crianças estarem ou não fora da escola, assume<br />
o valor zero se a criança não está matriculada e um em caso contrário.<br />
O segundo (indicador de oportunidade) assume o valor um para falta<br />
de acesso apenas se a criança estiver fora da escola e essa situação for<br />
consequência de falta de recursos ou vagas nas escolas disponíveis. Com<br />
base nesses indicadores, os autores calculam, para cada idade, as taxas<br />
de acesso (ou cobertura) e desigualdade 6 de acesso a creches e pré-<br />
-escolas no Brasil, conforme exposto nos gráficos a seguir. Percebe-se<br />
neles que grande parte da desigualdade total existente nas idades mais<br />
novas (linhas claras do segundo gráfico) não resulta de falta de oferta de<br />
vagas em creches, mas, sim, de outros motivos encontrados pelos pais<br />
para que seus filhos não frequentem a escola (linhas escuras) 7 .<br />
5 Suplemento de acesso ao ensino da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios<br />
(PNAD) de 2006.<br />
6 O indicador de desigualdade utilizado é o proposto por Barros et al. (2009).<br />
7 O mais intrigante no que diz respeito ao acesso ao ensino infantil no Brasil<br />
é que no momento da matrícula existe excesso de demanda, no entanto, há<br />
elevadas taxas de rotatividade e desistência ao longo do ano (evidência preliminar<br />
de pesquisa em andamento conduzida por Ricardo Paes de Barros,<br />
avaliando impacto de acesso a creches no Rio de Janeiro).
Fonte: Foguel e Veloso, 2010.<br />
Figura 5<br />
Taxas de acesso à educação infantil no Brasil<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
49
3 ESTIMATIVAS DE IMPACTO DE FREQUÊNCIA À EDUCAÇÃO<br />
INFANTIL NO BRASIL E SUAS INTERPRETAÇÕES<br />
Ao mesmo tempo em que está se formando um consenso multidisciplinar<br />
sobre a importância de investimentos em capital humano<br />
durante a primeira infância, sabemos ainda muito pouco a respeito da<br />
melhor forma de realizar esse investimento. As divergências se concentram<br />
essencialmente em estabelecer quando as crianças devem<br />
começar a frequentar a escola (ou mais genericamente se submeter<br />
a algum tipo de cuidado extradomiciliar), em que intensidade, e em<br />
definir qual o tipo ideal de cuidado que uma criança deveria receber.<br />
Estudos que buscam investigar a efetividade do ensino infantil como<br />
meio para promoção de desenvolvimento nem sempre encontram resultados<br />
estatisticamente positivos e significativos. Em primeiro lugar,<br />
escolas infantis não são criadas apenas para educar as crianças, mas<br />
também para permitir que os pais aumentem sua oferta de trabalho.<br />
Parte das estimativas de impacto de instituições que não têm no conteúdo<br />
educacional seu foco principal encontram resultado nulo sobre o<br />
aprendizado. Em segundo lugar, a existência de impactos significativos<br />
depende da adequação da instituição de ensino ao seu público-alvo.<br />
Parte das atividades exercidas na escola depende da existência de ambiente<br />
familiar estimulante para ser melhor aproveitada, mas no caso<br />
de crianças provenientes de famílias particularmente desestruturadas e<br />
vulneráveis pode ser necessário um esforço adicional da escola para<br />
compensar a ausência de tais estímulos. É possível, portanto, que uma<br />
mesma escola tenha impacto positivo se oferecida a uma criança adequadamente<br />
estimulada e impacto nulo se oferecida a uma criança<br />
defasada ou com carência de incentivos complementares em casa.<br />
Apesar de não necessariamente conflitantes, os vários papéis desempenhados<br />
por instituições de ensino infantil podem levar a escolhas<br />
delicadas sobre o tipo de ensino que queremos. Por requerer atenção<br />
individualizada, o ensino infantil apresenta um custo por aluno relativamente<br />
elevado (se comparado a outros níveis de ensino), custo esse que<br />
aumenta ainda mais no caso de intervenções compensatórias. Como os<br />
benefícios em termos de oferta de trabalho dos pais são percebidos antes<br />
dos benefícios associados a um maior acúmulo de capital humano<br />
dos filhos, não raro governantes buscam atender à demanda por escolas<br />
50 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
infantis expandindo serviços com baixo conteúdo educacional. Por outro<br />
lado, se parcela significativa da população beneficiada necessitar de fato<br />
de intervenções do tipo compensatório, é possível que a expansão de<br />
um serviço mediano para esse público não surta o efeito desejado. A<br />
possibilidade de se oferecer serviços diferenciados depende intrinsecamente<br />
da definição de critérios objetivos para determinar quais seriam<br />
as crianças que poderiam ou deveriam receber esse investimento mais<br />
elevado por parte do governo. Como os custos de reparar déficits cognitivos<br />
(e de desenvolvimento em geral) são tipicamente ainda mais altos<br />
em idades mais avançadas, o problema que se coloca é que não fazer<br />
o investimento nessas crianças implicará em ter que fazer investimentos<br />
ainda maiores (e, portanto, com taxa de retorno menor) no futuro, ou<br />
em conviver com níveis elevados de desigualdade 8 .<br />
3.1 RESULTADOS OBTIDOS NO BRASIL<br />
O Brasil não é especialmente rico em bases de dados que possuam<br />
detalhes sobre características de intervenções voltadas ao ensino infantil<br />
e seus respectivos resultados futuros. A Tabela 1 resume as conclusões<br />
dos trabalhos disponíveis na literatura econômica e o Anexo 1<br />
descreve de forma sucinta as bases de dados disponíveis e utilizadas<br />
nesses estudos.<br />
Nos primeiros artigos que investigam o tema, Barros e Mendonça<br />
(1999; 2000) usaram a Pesquisa sobre Padrões de Vida de 1996/97<br />
(PPV-IBGE), que contém perguntas retrospectivas a respeito da frequência<br />
escolar de adultos. Nesses artigos, os autores estimaram por<br />
mínimos quadrados o impacto de ter frequentado o ensino infantil sobre<br />
indicadores educacionais, nutricionais e de inserção no mercado<br />
de trabalho em uma amostra de adultos das regiões Nordeste e Sudeste.<br />
Foi detectado impacto positivo da frequência à pré-escola sobre o<br />
nível educacional atingido e a inserção no mercado de trabalho.<br />
8 Note-se que as estimativas das taxas de retorno dos melhores programas<br />
compensatórios apontam para valores bastante positivos. Isso significa que<br />
esse tipo de investimento não apenas pode ser justificado do ponto de vista de<br />
justiça social, por reduzir as desigualdades de oportunidade entre indivíduos,<br />
como é também eficiente do ponto de vista alocativo.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
51
Os demais artigos mencionados na tabela utilizam amostras de estudantes<br />
matriculados no ensino básico para verificar se aqueles que<br />
frequentaram a educação infantil obtiveram notas maiores em testes<br />
padronizados de matemática e linguagem. Curi e Menezes-Filho 9<br />
(2006) utilizam amostra do Sistema de Avaliação da Educação Básica<br />
(Saeb 2003) para estimar por mínimos quadrados o impacto de começar<br />
os estudos no maternal e pré-escola sobre notas de matemática de<br />
crianças na 4ª, 8ª e 11ª séries do ensino básico, percebendo efeitos<br />
significativos de frequência à pré-escola sobre as notas de matemática.<br />
Felício e Vasconcellos (2007) usam um painel de escolas públicas<br />
presentes no Saeb 2003 e na Prova Brasil 2005 para investigar se nas<br />
escolas em que aumentou a proporção de alunos que iniciaram seus<br />
estudos no maternal ou na pré-escola esses alunos obtiveram incrementos<br />
em suas notas médias obtidas nos exames. Os resultados foram<br />
positivos e significativos tanto para a proporção de ingressantes no maternal<br />
quanto para ingressantes na pré-escola. Calderini e Souza (2009)<br />
juntam informações do Censo Escolar aos dados da Prova Brasil 2005<br />
para estimar o impacto de ter entrado na escola no maternal ou na<br />
pré-escola sobre notas de matemática, tentando lidar com o problema<br />
de endogeneidade dessas variáveis utilizando variáveis de oferta escolar<br />
como instrumento. Pinto, Santos e Guimarães (2010) propõem um<br />
modelo estrutural para lidar com a endogeneidade da decisão familiar<br />
de matricular seus filhos na creche ou na pré-escola utilizando método<br />
de funções de controle com variáveis de oferta escolar e incidência de<br />
doenças contagiosas entre crianças de 0 a 5 anos de idade como restrições<br />
de exclusão, e novamente encontram impactos importantes de<br />
frequência à pré-escola sobre notas de alunos do ensino básico, porém<br />
com pouco efeito adicional de ter frequentado creche.<br />
Felício et al. (2009) usam dados da Provinha Brasil aplicada em todas<br />
as classes de 2ª série do ensino básico da cidade de Sertãozinho<br />
(SP) para estimar o impacto de frequência e exposição à educação<br />
infantil sobre notas de matemática. O estudo difere dos anteriores em<br />
três dimensões importantes: a) os resultados são medidos com menor<br />
distância do tratamento, refletindo características de um sistema de<br />
9 Os autores também utilizam a PPV para realizar uma série de exercícios similares<br />
aos de Barros e Mendonça (1999; 2000), obtendo conclusões semelhantes.<br />
52 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
educação infantil mais recente; b) perguntas de frequência à educação<br />
infantil das crianças são feitas aos pais (e não às crianças, como<br />
ocorre no Saeb e na Prova Brasil); e c) há perguntas sobre frequência<br />
ao ensino infantil em cada ano de vida (ao contrário do Saeb e<br />
da Prova Brasil, que apenas perguntam se a criança foi inscrita pela<br />
primeira vez na escola no maternal, na pré-escola ou no ensino básico).<br />
As principais conclusões sugerem que frequentar o último ano da<br />
pré-escola tem impacto importante sobre o desempenho escolar, mas<br />
permanecer no ensino infantil por mais tempo não acarreta ganhos<br />
adicionais estatisticamente significativos. As estimativas são obtidas<br />
com várias técnicas diferentes (mínimos quadrados, pareamento por<br />
propensity score, entre outras), sendo que todas assumem que não há<br />
seletividade em não observáveis, e produzem resultados semelhantes.<br />
Estudo Base de<br />
dados<br />
Barros e<br />
Mendonça<br />
(1999)<br />
Tabela 2<br />
Estimativas de impacto de ter frequentado ensino infantil<br />
sobre resultados individuais futuros no Brasil<br />
Nível<br />
educacional<br />
PPV Creche Pr (completar<br />
2 o grau antes<br />
de 25 anos)<br />
Favoráveis Nulos<br />
Pré-escola Escolaridade final<br />
Pr (completar<br />
8ª série, 2 o grau<br />
e 3 o grau)<br />
Pr (4ª s. < 14 a.<br />
e 3 o g. < 25 a.)<br />
Taxa de repetência<br />
Renda do trabalho<br />
dos homens<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
Escolaridade final<br />
Pr (completar 8ª série,<br />
2 o grau e 3 o grau)<br />
Pr (4ª s. < 14 a.,<br />
8ª s. < 18 a. e<br />
3 o g. < 25 a.)<br />
Taxa de repetência<br />
Participação feminina<br />
na força de trabalho<br />
Taxa de ocupação feminina<br />
Renda do trabalho<br />
dos homens<br />
Pr (completar 8ª série<br />
antes de 18 anos)<br />
Participação feminina<br />
na força de trabalho<br />
Taxa de ocupação feminina<br />
53
Estudo Base de<br />
dados<br />
Barros e<br />
Mendonça<br />
(2000)<br />
(variável<br />
explicativa<br />
principal:<br />
tempo<br />
frequentado<br />
na creche<br />
ou<br />
pré-escola)<br />
Curi e<br />
Menezes-<br />
Filho (2006)<br />
Felício e<br />
Vasconcellos<br />
(2007)<br />
Nível<br />
educacional<br />
Favoráveis Nulos<br />
PPV Creche Escolaridade final<br />
SAEB/03<br />
e<br />
PPV<br />
SAEB/03<br />
e Prova<br />
Brasil/05<br />
Pré-escola Escolaridade final<br />
Pr (esc. > 4, esc. > 8<br />
e esc. > 11)<br />
Pr (repetência)<br />
Pr (esc. > 4, esc. > 8<br />
e esc. > 11)<br />
Pr (frequentar 3 o grau)<br />
Pr (repetência)<br />
Participação feminina<br />
na força de trabalho<br />
Taxa de ocupação feminina<br />
Renda dos homens<br />
Renda dos homens<br />
Frequentar pré-escola: nulo para z-scores alturaidade<br />
e peso-idade, positivo para peso-altura.<br />
Frequência da merenda escolar: nulo para<br />
z-scores altura-idade, peso-idade e peso-altura.<br />
Tempo de permanência na pré-escola:<br />
Negativo sobre z-score altura-idade<br />
Creche Nota de matemática<br />
4ª série<br />
Pré-escola Pr (concluir<br />
primário, ginásio,<br />
colégio, 3 o grau)<br />
Escolaridade final<br />
Salário<br />
Nota de matemática<br />
4ª série, 8ª série<br />
e 11ª série<br />
Creche (log) Nota de<br />
matemática 4ª série<br />
por regiões:<br />
SE>CO>NE>S>N<br />
Pré-escola (log) Nota de<br />
matemática 4ª série<br />
por regiões:<br />
SE>CO>NE>S>N<br />
Pr (concluir primário,<br />
ginásio, colégio, 3 o grau)<br />
Escolaridade final<br />
Salário<br />
(Continuação Tabela 2)<br />
54 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
Estudo Base de<br />
dados<br />
Calderini e Prova<br />
Souza<br />
(2009)<br />
Brasil/05<br />
Felício<br />
et al (2009)<br />
Pinto,<br />
Santos e<br />
Guimarães<br />
(2010)<br />
Provinha<br />
Brasil<br />
Fonte: Elaboração própria.<br />
Nível<br />
educacional<br />
Favoráveis Nulos<br />
Pré-escola Nota de matemática<br />
4ª série (todos)<br />
Ensino<br />
infantil<br />
Nota de matemática<br />
4ª série (idade<br />
correta)<br />
Nota de matemática<br />
(2ª série)<br />
(ter frequentado)<br />
SAEB/05 Creche Nota de matemática<br />
4ª série<br />
Nota de literatura<br />
4ª série<br />
Pré-escola Nota de matemática<br />
4ª série<br />
Nota de literatura<br />
4ª série<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
Nota de matemática<br />
(2ª série)<br />
(frequentar por<br />
mais de 1 ano)<br />
(Continuação Tabela 2)<br />
A Tabela 2 evidencia o fato de que indivíduos que frequentaram<br />
pré-escola apresentam resultados melhores do que os que não frequentam.<br />
Os ganhos se manifestam na forma de maiores salários e escolaridade<br />
na vida adulta e notas e desempenho educacional ao longo<br />
do ensino básico. Com respeito às notas, o que pode ser interpretado<br />
como medida de influência da pré-escola sobre o desempenho cognitivo<br />
dos indivíduos, os números brasileiros são elevados e bastante<br />
semelhantes aos encontrados em países como Argentina (BERLINSK<br />
et al., 2009), em torno de 0,25 desvio-padrão, e ligeiramente acima<br />
dos obtidos na maioria dos estudos sobre impactos de programas de<br />
ensino infantil em larga escala nos Estados Unidos, entre 0,1 e 0,2 desvios<br />
(BARNETT, 2008). Os resultados obtidos nesses trabalhos tiveram<br />
forte repercussão e influenciaram diretamente a defesa da redução da<br />
idade mínima obrigatória para frequência escolar.<br />
Com respeito à creche, a evidência é bem menos contundente. A<br />
maioria dos estudos não encontra impactos estatisticamente significativos,<br />
ou encontra apenas impactos de pequena magnitude. As leituras<br />
que costumam ser feitas desses números procuram ou questionar a<br />
55
validade das estimativas ou interpretar o significado das mesmas no<br />
contexto do atual sistema de ensino brasileiro.<br />
Para interpretar essa evidência, também encontrada nos Estados<br />
Unidos, é útil esclarecer alguns tipos de intervenções feitas naquele país.<br />
Os programas americanos de ensino infantil se dividem nas seguintes<br />
categorias: a) pre-kindergarten (3 e 4 anos) e kindergarten (5 e 6 anos),<br />
de larga escala e com foco de aprendizado em geral baseado em escolas<br />
formais que, eventualmente, também oferecem ensino básico; b)<br />
daycare centers (0 a 3 anos), de larga escala, são essencialmente programas<br />
pagos, com cuidadoras para tomar conta de um grupo de crianças<br />
em locais mantidos por associações de bairro e outras organizações<br />
da sociedade civil; c) Head Start, programa compensatório de larga<br />
escala focado no desenvolvimento infantil (entendido de modo amplo)<br />
de crianças que vivem em famílias vulneráveis; além de atividades na<br />
escola (em geral em tempo integral), prevê visitas de educadores, médicos<br />
e nutricionistas às famílias para acompanhamento das crianças e<br />
para orientações aos pais, bem como visitas dos pais e filhos para atividades<br />
conjuntas na escola nos finais de semana; d) intervenções-modelo,<br />
experimentais e de pequena escala, em geral de caráter compensatório<br />
e focadas em crianças vulneráveis, e que na maioria das vezes<br />
preveem intervenções simultâneas sobre o aprendizado das crianças e<br />
envolvimento familiar. Grosso modo, os daycare centers se assemelham<br />
ao antigo modelo de creches vinculadas à assistência social, ao passo<br />
que o pre-kindergarten pode inspirar o tipo de creche que está sendo<br />
gestado atualmente nas secretarias de educação brasileiras.<br />
3.2 VALIDADE DAS ESTIMATIVAS<br />
Estimativas de impacto de uma intervenção sobre uma variável de<br />
resultado (digamos, ), em geral, comparam as distribuições de em<br />
um grupo de indivíduos que recebeu a intervenção e outro que não<br />
a recebeu (cujo papel na estimativa é simular o que teria ocorrido ao<br />
grupo tratado no cenário contrafactual em que não recebesse a intervenção).<br />
A qualidade da estimativa depende crucialmente de quão<br />
convincente é a suposição de que a única diferença relevante entre<br />
esses grupos foi o fato de um deles ter sido tratado. Assim, as críticas<br />
às estimativas existentes se concentram em: a) colocar em dúvida a<br />
56 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
suposição acima e b) colocar em dúvida que as variáveis envolvidas<br />
no exercício de estimação sejam corretamente medidas. Em ambos os<br />
casos, podemos dizer que é a validade interna das estimativas que está<br />
sendo questionada.<br />
Adicionalmente, se uma estimativa é feita em uma amostra muito<br />
particular, e suspeitamos que, portanto, suas conclusões não sejam válidas<br />
em outros contextos, ou se desconfiamos que resultados obtidos<br />
em determinado ponto do tempo podem não ser boas aproximações<br />
do impacto de um programa em outros períodos, dizemos que a validade<br />
externa das estimativas é frágil.<br />
3.2.1 VALIDADE INTERNA<br />
DELIMITAÇÃO DOS GRUPOS DE TRATAMENTO E CONTROLE<br />
Idealmente, para estimar o impacto de um tratamento T sobre ,<br />
gostaríamos de poder comparar dois grupos em que a única diferença<br />
entre ambos (em termos da composição de possíveis características<br />
determinantes de ) fosse o fato de que um deles recebeu o tratamento<br />
e o outro não. Na medida em que o grupo de tratados e não tratados<br />
difere em outras dimensões além do recebimento do tratamento,<br />
surge sempre uma suspeita de que eventuais diferenças na distribuição<br />
de entre os grupos sejam causadas por diferenças nessas outras<br />
variáveis, e não propriamente pelo tratamento.<br />
No caso do tratamento em que estamos interessados (frequência<br />
ao ensino infantil) há três conjuntos de características que costumam<br />
afetar diretamente variáveis de resultado futuro (tais como salários,<br />
notas ao longo do ensino básico, ou escolaridade final atingida) e que<br />
podem diferir sistematicamente entre os grupos de pessoas que frequentaram<br />
e que não frequentaram creches e pré-escolas.<br />
O primeiro conjunto são as características individuais das crianças.<br />
Atributos como motivação, inteligência e extroversão frequentemente<br />
não são observados e podem afetar o processo de desenvolvimento<br />
de modo a influenciar resultados futuros. Se as famílias levam em<br />
conta nuances da personalidade dos filhos no instante de decidir se os<br />
matriculam ou não no ensino infantil, a interpretação de causalidade<br />
atribuída ao tratamento em exercícios econométricos pode ficar prejudicada.<br />
Um exemplo de situação em que egressos do ensino infantil<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
57
são não observacionalmente distintos dos não egressos é aquela em<br />
que os pais, acreditando ser a creche boa para seus filhos, mas sem ter<br />
condições de matriculá-los todos, escolhe os mais atrasados em termos<br />
de desenvolvimento como forma de reduzir as diferenças entre irmãos<br />
(comportamento compensatório). De modo inverso, também é possível<br />
que sejam os mais desenvolvidos os escolhidos, sob o argumento<br />
de que podem aproveitar melhor os estímulos oferecidos pelas instituições<br />
educacionais (comportamento complementar). Bernal (2001)<br />
conclui, por meio de estimativa estrutural das decisões simultâneas<br />
das mães de trabalhar e utilizar diferentes formas de deixar seus filhos<br />
sob cuidados de terceiros (seja em daycare centers, pre-kindergartens<br />
ou com adultos), que: a) crianças que ficam a maior parte do tempo<br />
nas creches têm desenvolvimento inferior aos criados pelas mães; b)<br />
crianças com melhores índices de desenvolvimento são as que mais<br />
sofrem com a falta de contato com as mães e as que mais perdem com<br />
o fato de serem inscritas em creches.<br />
O segundo conjunto de variáveis refere-se a características do ambiente<br />
familiar em que a criança é criada. É razoável supor que um<br />
mesmo tratamento, no caso a frequência a alguma instituição de ensino<br />
infantil, tenha efeitos diferentes sobre indivíduos vindos de famílias<br />
diferentes. Para uma criança que vive em domicílio desestruturado,<br />
onde os adultos presentes não oferecem estímulos mínimos para que<br />
se desenvolva, passar boa parte de seu tempo na escola (em detrimento<br />
de passá-lo com a família) produz possivelmente um efeito maior<br />
sobre o desenvolvimento infantil do que em uma criança criada em<br />
família estruturada, para a qual cada hora despendida na escola pode<br />
significar uma hora a menos de convívio com os pais e familiares. Por<br />
outro lado, é possível também que uma mesma hora gasta na escola<br />
seja aproveitada de modo mais intenso por crianças que vivem em<br />
famílias mais estruturadas (se os estímulos recebidos na escola e no lar<br />
forem complementares). Em ambos os casos, crianças que vivem em<br />
famílias diferentes poderiam ser beneficiadas de modo distinto por<br />
um mesmo tratamento. Por esses motivos, a simples comparação de<br />
resultados futuros de crianças que frequentaram e crianças que não<br />
frequentaram ensino infantil pode não resultar em boa estimativa do<br />
impacto causal desse tipo de intervenção, ou do provável resultado<br />
que teriam os não tratados caso tivessem frequentado o ensino infantil.<br />
58 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
Diferenças sistemáticas entre as famílias também surgem por outros<br />
canais. É sabido, por exemplo, que pais mais escolarizados valorizam<br />
mais a educação e, portanto, tendem a ser mais propensos a colocar<br />
seus filhos na escola desde cedo. Por outro lado, e na medida em<br />
que uma das principais razões para que uma família decida matricular<br />
seus filhos no ensino infantil seja liberar o tempo dos pais para poder<br />
trabalhar, é possível que sejam os pais com maiores oportunidades<br />
profissionais os que prefiram colocar seus filhos na escola. Se a qualificação<br />
profissional for correlacionada com outros talentos para criar os<br />
filhos, surge outro espaço para a existência de seletividade na decisão<br />
de matrícula no ensino infantil.<br />
O Gráfico 1, construído com base nos dados do Saeb 2005, ilustra<br />
o fato de que no Brasil famílias mais estruturadas colocam seus filhos<br />
no ensino infantil com maior probabilidade. Pelo gráfico, construído<br />
a partir de uma amostra de alunos do ensino básico, as mães mais<br />
educadas, que frequentam reuniões de pais na escola e que apresentam<br />
atitudes positivas quanto ao empenho dos filhos nos estudos, são<br />
também as que com maior probabilidade matricularam seus filhos em<br />
escolas infantis no passado.<br />
Gráfico 1<br />
Proporção de filhos matriculados no ensino infantil,<br />
por características de ambiente familiar<br />
Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2005.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
59
O terceiro grupo de determinantes de resultados futuros provém de<br />
características de experiências extrafamiliares, em especial relacionadas<br />
às escolas frequentadas entre o momento em que foram matriculados<br />
no ensino infantil e o momento em que os resultados futuros foram medidos.<br />
Famílias que valorizam mais a educação, por exemplo, tendem<br />
ao mesmo tempo a inscrever os filhos mais cedo na escola e a optar por<br />
escolas de melhor qualidade, tanto no ensino infantil quanto posteriormente.<br />
Se parte dessa qualidade não for observável nos dados, há de<br />
novo espaço para a superestimação do impacto de ensino infantil sobre<br />
outras variáveis que reflitam o desenvolvimento individual. Por outro<br />
lado, pais mais educados sabem que não faltarão estímulos aos filhos em<br />
casa e podem valorizar mais aspectos socioafetivos na escola, ao passo<br />
que pais menos educados podem valorizar um tipo de escola mais intensiva<br />
em estímulos cognitivos que eles mesmos não podem proporcionar<br />
aos filhos. Essa é precisamente a conclusão do trabalho de Jacob e Lefgren<br />
(2005). Sendo esse o caso, é possível que seja justamente entre as famílias<br />
menos favorecidas que ocorra um maior impacto do tratamento.<br />
A possibilidade de diferenças não observacionais sistemáticas entre<br />
tratados e não tratados compromete estimativas de impacto baseadas<br />
em simples comparação de resultados futuros desses dois grupos e<br />
requer cuidados estatísticos especiais para lidar com potencial viés de<br />
seleção e endogeneidade da decisão de inscrever os filhos no ensino<br />
infantil. Os trabalhos apresentados na Tabela 2 diferem significativamente<br />
com respeito às técnicas de estimação e bases de dados utilizadas<br />
e nas formas de lidar com problemas de endogeneidade. O<br />
fato de chegarem a conclusões semelhantes faz acreditar que ainda<br />
que essa heterogeneidade possa causar alguma distorção nas estimativas<br />
esse viés não deve ser de grande magnitude. Em primeiro lugar,<br />
grande parte das possíveis diferenças entre tratados e não tratados<br />
tem origem em disparidades existentes no ambiente familiar, para o<br />
qual em geral conseguimos observar uma gama relativamente ampla<br />
de características que podemos usar para isolar o efeito do ensino<br />
infantil. Em segundo lugar, pesquisa qualitativa recente 10 parece indicar<br />
que o principal motivo para matricular crianças em creches é<br />
10 Entrevistas realizadas com pais para um projeto de avaliação de impactos<br />
de creches no município do Rio de Janeiro em andamento.<br />
60 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
viabilizar a oferta de trabalho dos pais, tendo pouca relação com talentos<br />
da criança ou com preferências dos pais por educação. Mesmo<br />
no que diz respeito à qualidade do ensino, a mesma pesquisa revela<br />
que o principal critério para a escolha da instituição educacional é a<br />
proximidade de casa e não a qualidade do ensino. Com respeito à<br />
pré-escola, os resultados obtidos nos trabalhos citados na Tabela 2 são<br />
bastante próximos dos obtidos internacionalmente (BERLINSKI et al.,<br />
2009; BARNETT, 2008), reforçando a impressão de que sejam bastante<br />
próximos do verdadeiro impacto médio na população.<br />
PROBLEMAS DE MENSURAÇÃO<br />
A segunda dificuldade é a medição dos resultados e das características<br />
individuais usadas para tornar comparáveis os grupos de tratamento e<br />
controle. No que diz respeito à validade interna dos resultados obtidos<br />
para o Brasil, o problema de mensuração surge tanto quando se coloca<br />
em xeque a capacidade de um aluno de 4ª série responder fielmente se<br />
frequentou ensino infantil ou não ou ao se estimar o impacto de ter frequentado<br />
creche e pré-escola a partir de dados do Saeb quanto quando<br />
se questiona a qualidade de informações reportadas por adultos sobre<br />
se frequentaram ensino infantil, evento que no caso dos dados da Pesquisa<br />
sobre Padrões de Vida pode ter ocorrido há décadas.<br />
Erros de medida em variáveis explicativas costumam provocar um<br />
viés de impactos medidos a partir de algumas estratégias empíricas<br />
bastante populares em direção a zero em magnitude, que é justamente<br />
o que obtemos no caso dos impactos associados a creches.<br />
No entanto, como mencionado anteriormente, resultados obtidos por<br />
diferentes estratégias e a partir de diferentes bases de dados apontam<br />
para uma conclusão comum de que os impactos de creches são em<br />
geral de pequena magnitude e, frequentemente, estatisticamente insignificantes.<br />
Em particular, o desenho amostral do estudo de Felício<br />
et al. (2009) busca especificamente lidar com o problema, perguntando<br />
aos pais de alunos do 3º ano do ensino fundamental a respeito<br />
da frequência dos mesmos ao ensino infantil. Os autores conseguem<br />
contornar o problema de respostas provenientes de crianças que poderiam<br />
estar insuficientemente informadas e a eventualidade de tais<br />
respostas estarem relacionadas a eventos já distantes no passado. Mesmo<br />
esse estudo obtém impactos insignificantes de ensino infantil em<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
61
idades muito pequenas. Não parece, portanto, que a justificativa para<br />
a ausência de impactos de creches sobre resultados individuais futuros<br />
esteja em deficiências de mensuração.<br />
3.2.2 VALIDADE EXTERNA<br />
A validade das conclusões de um exercício estatístico em contextos<br />
diferentes do caracterizado pela amostra em que é realizado depende<br />
essencialmente de quão parecidos são esses contextos. No caso das<br />
estimativas de impacto do ensino infantil sobre resultados futuros dos<br />
indivíduos, há quatro aspectos que com frequência são questionados.<br />
COBERTURA GEOGRÁFICA<br />
Em primeiro lugar, há exercícios como o de Felício et al. (2009), que<br />
utiliza uma amostra de crianças que frequentam a segunda série do ensino<br />
fundamental na cidade de Sertãozinho (SP), cujas conclusões não<br />
necessariamente valem para a totalidade do território brasileiro se, por<br />
exemplo, o tipo de ensino oferecido nessa cidade destoar bastante do<br />
existente em outras partes. Como os próprios autores argumentam,<br />
Sertãozinho foi escolhido precisamente por contar com um sistema<br />
educacional desenvolvido para padrões brasileiros e devido também à<br />
receptividade da secretaria de educação municipal em permitir e colaborar<br />
para que o estudo fosse feito. O fato de que as conclusões desse trabalho<br />
coincidem tanto qualitativamente quanto quantitativamente 11 com<br />
as obtidas em pesquisas que partem de dados com representatividade<br />
nacional (GUIMARÃES, PINTO e SANTOS, 2010) sugere que sua validade<br />
possivelmente pode ser generalizada para contextos mais amplos.<br />
11 Os autores encontram um impacto de ter frequentado ensino infantil sobre<br />
as notas de matemática de cerca de 0,25 desvio-padrão, bastante semelhante<br />
ao desvio de 0,27 obtido no Brasil por Guimarães, Pinto e Santos (2010).<br />
Adicionalmente, não constatam nenhuma evidência de que alunos que passaram<br />
mais de um ano no ensino infantil obtiveram ganhos superiores aos que<br />
frequentaram apenas um ano. Como a maioria dos indivíduos matriculados<br />
no ensino infantil em determinado ano permanece matriculada nos anos<br />
seguintes, é plausível interpretar esse resultado como evidência de que é a frequência<br />
ao último ano da pré-escola (5 anos de idade) que de fato influencia<br />
o desempenho no exame de matemática aplicado.<br />
62 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
CRECHES DO PASSADO<br />
Uma segunda crítica à validade externa da maioria dos trabalhos<br />
sobre o tema é a de que os impactos medidos podem estar relacionados<br />
a características do sistema educacional do passado, pouco<br />
informativas sobre o presente. Como foi dito anteriormente, o sistema<br />
educacional brasileiro passou por intensa transformação nos últimos<br />
anos, sendo as mudanças mais significativas a reorientação da finalidade<br />
do ensino oferecido nas creches (reforma curricular e passagem<br />
da administração do sistema para as secretarias de educação e não<br />
mais de assistência social), o aumento da disponibilidade de recursos<br />
por meio da inclusão do ensino infantil entre os possíveis beneficiários<br />
de transferências do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento<br />
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação<br />
(Fundeb) e a expansão da rede, com elevação dos requerimentos de<br />
qualificação dos educadores e a redução da idade mínima obrigatória<br />
de entrada das crianças no sistema educacional. É possível, portanto,<br />
que os impactos estimados nos estudos citados estejam associados ao<br />
efeito que um sistema anterior ao vigente tinha sobre o desenvolvimento<br />
cognitivo, que não necessariamente é igual ao impacto que<br />
tem o atual sistema. Ao contrário das críticas anteriores, essa parece<br />
de fato pertinente e estudos adicionais são necessários para saber a<br />
extensão de sua relevância. Entre as bases de dados utilizadas nos<br />
estudos citados neste artigo, o que remete a um tipo de ensino mais<br />
recente é o feito com estudantes da 2ª série de Sertãozinho (FELÍCIO<br />
et al., 2009), pois crianças matriculadas nessa série em 2008 deveriam<br />
ter eventualmente frequentado creches, entre 2000 e 2004 (quando<br />
tinham entre 0 e 3 anos) e pré-escola, entre 2005 e 2006. Se considerarmos<br />
que 2006 foi justamente o final do prazo para que as creches<br />
passassem aos cuidados das secretarias de educação 12 , e que foi a<br />
partir de 2007 que a idade de ingresso na escola foi pela primeira vez<br />
reduzida, é plausível que o ensino recebido pelas crianças de hoje seja<br />
bem diferente (eventualmente com impacto positivo sobre aprendizado)<br />
do recebido pela coorte que em 2008 estava na 2ª série.<br />
12 Grande parte dos municípios, como, por exemplo, o Rio de Janeiro, esperou<br />
até o limite do prazo para fazer a transição.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
63
HETEROGENEIDADE DE IMPACTOS<br />
A terceira (e possivelmente mais contundente) crítica referente à validade<br />
externa das estimativas é a de que pode haver heterogeneidade<br />
dos impactos tanto devido à idade em que os efeitos estão sendo medidos<br />
(um mesmo tratamento pode ter grande efeito sobre um teste<br />
aplicado em determinada idade, mas efeito menor sobre um teste<br />
aplicado em idade posterior) quanto devido ao tipo de tratamento<br />
recebido (duas crianças que disseram ter feito creche em determinada<br />
idade podem efetivamente ter recebido tratamentos bem diferentes<br />
e, consequentemente, com efeitos diferentes sobre um teste futuro<br />
aplicado numa dada idade). Um impacto médio nulo pode ser obtido<br />
tanto por um tratamento que não afeta nenhum dos tratados quanto<br />
por tratamentos que afetem positivamente alguns agentes e negativamente<br />
outros.<br />
Tomando o caso americano 13 , por contar ao mesmo tempo com<br />
diversas bases, com dados longitudinais e bastante completas com respeito<br />
a informações sobre características dos tratamentos (em alguns<br />
casos envolvendo aleatorizações dos grupos de controle e tratamento),<br />
as estimativas para impactos cognitivos da grande maioria das intervenções<br />
de desenvolvimento infantil mostram que ou o impacto é<br />
nulo, de magnitude ínfima (como no caso de daycare centers) ou o<br />
impacto é positivo e significativo em curto prazo e desaparece com o<br />
passar do tempo (ou seja, crianças que fazem provas logo depois de<br />
terem passado por intervenções obtêm desempenho superior às que<br />
não frequentaram o ensino infantil, mas tal diferença é nula quando<br />
ambos os grupos fazem exames já em idades mais avançadas e distantes<br />
do instante da intervenção).<br />
Magnusson et al. (2007) estimam que a frequência ao pre-kindergarten<br />
aos 4 anos tem impacto positivo nas notas obtidas no ano seguinte<br />
(kindergarten), mas já não encontram qualquer impacto nas<br />
notas da classe de alfabetização. Garces e Currie (2002) verificam que,<br />
entre egressos do Head Start, brancos e negros experimentam benefícios<br />
positivos (e de magnitude semelhante) nos primeiros anos do<br />
13 No Brasil, não há bases de dados que acompanhem crianças longitudinalmente,<br />
desde o momento em que poderiam ter frequentado o ensino infantil<br />
até idades em que pudessem estar matriculadas no ensino básico.<br />
64 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
ensino elementar, mas apenas entre os brancos esse efeito é ainda<br />
estatisticamente positivo ao final do segundo grau (e mesmo assim<br />
com magnitude bem inferior à obtida no início do ciclo educacional).<br />
Heckman (2008), conforme Figura 6, mostra que entre crianças vulneráveis<br />
sorteadas para frequentar o programa High Scope/Perry School<br />
se observam significativos ganhos cognitivos nos primeiros anos após a<br />
intervenção, mas aos 8 anos a magnitude desse impacto já é bastante<br />
pequena e desaparece após os 10 anos.<br />
Fonte: Heckman (2008).<br />
Figura 6<br />
Impacto cognitivo do programa High Scope/Perry School<br />
Se, por um lado, grande parte dos programas de ensino infantil tem<br />
impacto relativamente pequeno em longo prazo, por outro, há grande<br />
interesse em se saber a razão pela qual alguns programas revelam ter<br />
impactos persistentes e outros não. Tanto no caso dos brancos que<br />
frequentam o Head Start quanto no caso do programa Abecedarian<br />
(implementado na Carolina do Norte, conforme mostra a Figura 7),<br />
de características semelhantes ao Perry School, os impactos são ainda<br />
encontrados em idades tardias, contrariamente ao caso dos negros do<br />
Head Start ou dos egressos do próprio Perry.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
65
Fonte: Campbell et al., 2001.<br />
Figura 7<br />
Impacto cognitivo do programa Carolina Abecedarian<br />
Parte da resposta parece estar intimamente relacionada à duração<br />
da exposição de crianças vulneráveis a programas de alta qualidade.<br />
No caso do Abecedarian, o acompanhamento das crianças tratadas<br />
perdura até o final do primeiro ciclo do ensino básico, diferentemente<br />
do Perry, que teve dois anos de duração (começando entre 3 e 4 anos<br />
de idade). Pelo primeiro gráfico dos três expostos acima contendo medidas<br />
cognitivas do Abecedarian ao longo do ciclo de vida, vemos<br />
que de fato o efeito de curto prazo é significativamente maior que o<br />
percebido em longo prazo, mas, por outro lado, a magnitude do efeito<br />
estabiliza após os 6 anos e perdura até a idade adulta. De modo semelhante,<br />
Garces e Currie (2002) constatam que as escolas elementares<br />
que os brancos egressos do Head Start frequentaram após sair do pro-<br />
66 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
grama eram sensivelmente melhores do que as escolas frequentadas<br />
pelos negros, e que tal diferença pode explicar por que o impacto do<br />
programa entre os brancos persistiu até a idade adulta ao passo que<br />
entre os negros o mesmo não ocorreu.<br />
No que se refere às creches brasileiras, as conclusões dos estudos citados<br />
sugerem duas possibilidades para interpretar a ausência de impactos<br />
nas estimativas e que deveriam ser objeto de investigação futura. Em<br />
primeiro lugar, é possível que o impacto seja positivo mas efêmero, de<br />
modo que mesmo o estudo com menor distância entre o tratamento e a<br />
medição, que coleta informações na 2ª série do ensino fundamental de<br />
Sertãozinho (cerca de 4 anos após o tratamento), possa já não capturar<br />
a existência de efeitos estatisticamente significativos do programa.<br />
Em segundo lugar, as bases de dados brasileiras carecem de detalhes<br />
sobre as características das intervenções recebidas. De acordo com os<br />
resultados obtidos nos Estados Unidos, programas com maior conteúdo<br />
educacional tendem a ter impactos positivos ao passo que programas<br />
em que as crianças apenas são cuidadas apresentam impactos nulos<br />
ou negativos (como em Bernal, 2008). Além disso, as magnitudes dos<br />
efeitos computados parecem depender da assiduidade das crianças durante<br />
o período do programa e da exposição (tempo integral ou parcial),<br />
informações essas inexistentes em nossos dados. É possível, portanto,<br />
que o impacto nulo reportado nos estudos seja uma espécie de média<br />
ponderada de efeitos positivos de intervenções recebidas por algumas<br />
crianças e efeitos negativos de intervenções recebidas por outras. Nunca<br />
é demais lembrar que no Brasil o sistema de creches foi originalmente<br />
concebido para permitir que as mães pudessem trabalhar, sem que<br />
houvesse o explícito compromisso educacional trazido com a nova LDB<br />
de 1996. É razoável supor, portanto, que grande parte das creches brasileiras<br />
se assemelhe ao modelo dos daycare centers americanos, que<br />
em geral se mostra pouco efetivo para promover o desenvolvimento<br />
infantil, e que as transformações rumo a um direcionamento voltado<br />
ao ensino ainda não teriam se completado, fazendo com que o antigo<br />
modelo ainda perdure em parte importante das creches.<br />
Com a informação existente, é possível conjecturar algumas hipóteses,<br />
que deveriam ser objeto de investigação futura. O Gráfico 2<br />
mostra a diferença entre a nota de matemática do Saeb 2005 entre<br />
crianças que frequentaram e que não frequentaram creche, segundo<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
67
o nível educacional da mãe (tido aqui como proxy para a qualidade<br />
do ambiente familiar). Interessante notar que nas famílias com mães<br />
pouco educadas, crianças que fizeram creche obtiveram performance<br />
pior do que as que não fizeram, ao passo que o oposto ocorre entre as<br />
mães mais educadas. Há duas formas de analisar esse fato: a) estímulos<br />
recebidos na creche são complementares aos recebidos em casa,<br />
de modo que um mesmo estímulo teria impacto relativamente maior<br />
entre crianças que crescem em ambientes melhores, ou b) os estímulos<br />
recebidos na creche são efetivamente diferentes (e melhores para<br />
filhos de mães mais educadas). Se considerarmos que grande parte da<br />
evidência internacional mostra que são justamente as crianças de famílias<br />
mais vulneráveis as que mais se beneficiam do ensino infantil 14 ,<br />
é improvável que a explicação para o fato apresentado neste gráfico<br />
seja a primeira, sugerindo que heterogeneidade de tratamentos pode<br />
ser um elemento importante omitido das análises disponíveis.<br />
Gráfico 2<br />
Diferencial de notas de matemática entre crianças que fizeram e<br />
não fizeram creche, segundo o nível educacional da mãe<br />
Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), 2005.<br />
14 Ver artigos de Lee et al. (1990), Magnusson et al. (2007) e os trabalhos de<br />
Janet Currie e coautores (1995; 1999; 2000; 2002), além do capítulo em<br />
coautoria com Garces no Handbook of Economics of Education v. 2.<br />
68 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
Os dados do Saeb e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios<br />
(PNAD) trazem informações adicionais que podem confirmar<br />
que, no Brasil, as creches que os filhos das famílias abastadas frequentam<br />
podem ter impacto bastante distinto das disponíveis às<br />
famílias vulneráveis. Voltando à Tabela 1, percebe-se que há grande<br />
desigualdade na proporção de crianças de 0 a 3 anos matriculadas<br />
em creches, refletindo o fato de que os ricos têm maior probabilidade<br />
de ter seus filhos matriculados do que os pobres 15 . A desigualdade<br />
cai drasticamente quando o indicador de acesso a creches<br />
considera sem acesso somente casos em que os pais gostariam de<br />
inscrever seus filhos, mas não o fizeram por falta de recursos ou<br />
de oferta de creches. Consequentemente, pode-se deduzir que a<br />
maior parte da desigualdade de matrícula resulta do fato de que<br />
famílias pobres voluntariamente decidem não matricular seus filhos<br />
em creches, mesmo quando essa decisão não envolve gastos diretos.<br />
Se o custo deixa de ser empecilho para diferentes famílias, podemos<br />
inferir que diferenças sistemáticas nas decisões de matrícula<br />
devem estar associadas a diferenças nos benefícios, ou seja, no fato<br />
de que as creches a que as famílias pobres têm acesso são relativamente<br />
piores do que as das famílias ricas.<br />
A Figura 8, extraída do mesmo estudo, acrescenta dados a essa suspeita<br />
ao verificar que justamente entre as famílias mais pobres aumenta<br />
a proporção de crianças não matriculadas em creches, sendo razão<br />
para a não inscrição a decisão voluntaria dos pais 16 .<br />
15 Em gráficos complementares, os autores verificam que a proporção de<br />
crianças matriculadas nessa faixa etária cresce com a renda familiar per<br />
capita.<br />
16 Essa explicação é ainda coerente com resultados obtidos por Jacob e<br />
Lefgren (2005). Investigando a importância que dois tipos de informação<br />
transmitidos pelos diretores aos pais na hora de tomarem a decisão de em<br />
que escola infantil matricular seus filhos, os autores concluem que as famílias<br />
mais pobres são as que dão mais peso à resposta “os professores são<br />
comprometidos com a melhora de resultados cognitivos dos alunos”, ao<br />
passo que as mais ricas valorizam mais o fato de os alunos estarem satisfeitos<br />
com a escola.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
69
Proporção de crianças<br />
Figura 8<br />
Proporção de pais que voluntariamente não colocam os filhos na creche<br />
Distribuição de crianças que poderiam ter frequentado creche mas os pais preferiram não<br />
fazê-lo, segundo o centésimo de renda per capita – Crianças entre 0 e 3 anos de idade – 2006<br />
Fonte: Foguel e Veloso, 2010.<br />
Centésimos de renda per capita<br />
se igualmente distribuído<br />
IMPACTOS COGNITIVOS E NÃO COGNITIVOS<br />
Finalmente, um quarto aspecto referente à validade externa das estimativas<br />
está relacionado a outras dimensões de impacto que possam<br />
decorrer da frequência ao ensino infantil não capturadas pelas medidas<br />
correntemente utilizadas (tais como notas de linguagem e matemática,<br />
salários e escolaridade atingida, entre outras). O fato de que<br />
creches não tenham impacto sobre medidas cognitivas não implica<br />
que não possam afetar de modo importante dimensões não cognitivas<br />
do desenvolvimento humano.<br />
Aqui novamente a literatura internacional mostra que pode haver<br />
diferenças importantes de impacto entre programas com diferentes<br />
finalidades. Magnusson et al. (2007), por exemplo, estimam que crianças<br />
matriculadas na escola antes do kindergarten (classe de alfabetização,<br />
5 e 6 anos) sofreram piora em indicadores de agressividade e<br />
autocontrole durante o kindergarten, especialmente quando provenientes<br />
de famílias desestruturadas e em situação de vulnerabilidade.<br />
Os autores também observam que esses efeitos adversos não se manifestam<br />
entre crianças que não precisaram mudar de escola quando<br />
entraram no kindergarten, sugerindo que o canal de causalidade pode<br />
estar na necessidade de mudança de escola e não nas atividades reali-<br />
70 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
zadas nas creches e pre-kindergartens per si. De todo modo, se as características<br />
do sistema educacional forçarem a mudança de ambiente<br />
na passagem da creche para a pré-escola, este deve ser um revés a<br />
mais a ser computado. No estudo, os impactos de creches (daycare<br />
centers e pre-kindergarten centers) não desaparecem ao longo dos<br />
dois primeiros anos do ensino fundamental, ao contrário dos impactos<br />
sobre notas de matemática e linguagem. Duncan et al. (2004), contudo,<br />
ressaltam que tais impactos não cognitivos adversos não afetam o<br />
desempenho escolar das crianças ao longo do ensino básico.<br />
Outros estudos que utilizam intervenções aleatorizadas e acompanham<br />
os indivíduos até a vida adulta 17 mostram conclusões bastante<br />
distintas a respeito de efeitos não cognitivos de programas de ensino<br />
infantil (tais como o High Scope/Perry Program, Carolina Abecedarian<br />
e Chicago CPC). Nesses estudos, é documentado que as crianças<br />
beneficiárias apresentaram indicadores de criminalidade substancialmente<br />
menores que os não beneficiários, bem como casamentos mais<br />
estáveis e menor probabilidade de gravidez precoce. Essas medidas<br />
diferem das anteriores porque: a) nesses programas (de elevado conteúdo<br />
educacional e atenção individualizada às crianças) não houve<br />
mudança de escola; b) a estratégia de identificação do efeito envolve<br />
um experimento aleatório; c) as medidas de impacto não cognitivo<br />
foram realizadas já na idade adulta. A mensagem principal é a de que<br />
o ensino infantil pode ter efeitos importantes e duradouros sobre dimensões<br />
não cognitivas do desenvolvimento, que podem inclusive superar<br />
os impactos cognitivos em termos de suas consequências sobre<br />
bem-estar futuro (CUNHA et al., 2006). Avaliações de custo-benefício<br />
de programas de ensino infantil estão, portanto, incompletas se não<br />
considerarem eventuais benefícios e danos causados pelos mesmos.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS<br />
O QUE TEMOS<br />
Há, grosso modo, três maneiras de interpretar a inexistência de indícios<br />
de que creches tenham impactos sobre resultados futuros dos indi-<br />
17 Heckman (2008), Doyle et al. (2007) e Barnett (2008) resumem evidências<br />
sobre essas intervenções.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
71
víduos. A primeira é o questionamento da qualidade e correção dessas<br />
estimativas, quer por deficiências metodológicas, quer por dificuldades<br />
de mensuração. Os contrapontos a essa interpretação são os de que: a)<br />
os estudos têm sido realizados com diferentes metodologias e bases de<br />
dados, e chegam às mesmas conclusões. Há bases de dados que buscam<br />
especialmente corrigir problemas de mensuração (FELÍCIO et al., 2009),<br />
bem como há iniciativas de incrementar os estudos com informações<br />
adicionais que possam simular condições experimentais por meio de<br />
métodos de variáveis instrumentais e os resultados parecem bastante robustos;<br />
b) as estimativas para a pré-escola estão também em acordo com<br />
as obtidas em outros países (EUA, Argentina), ao passo que o impacto das<br />
creches não destoa do resto do mundo pela simples razão de que nessa<br />
idade a evidência é pouco conclusiva sobre os benefícios do ensino infantil.<br />
De todo modo, é difícil crer que os impactos da pré-escola possam<br />
estar corretos e os de creches não quando as estratégias empíricas usadas<br />
para estimá-los costumam ser a mesma em cada estudo.<br />
A segunda interpretação é a de que o impacto é de fato nulo, o<br />
que significa que os maiores beneficiados pelo serviço oferecido pelas<br />
creches são os pais, que com isso podem aumentar sua oferta de<br />
trabalho. Considerando que crianças em creches públicas custam não<br />
menos que R$300 mensais ao erário, é plausível supor que o custo-<br />
-benefício desse tipo de intervenção seja negativo, pois dificilmente o<br />
incremento na oferta de trabalho dos pais levaria a um aumento de<br />
renda familiar dessa magnitude. Nesse caso, uma política que simplesmente<br />
pagasse R$300 para que um dos pais ficasse em casa tomando<br />
conta do filho provavelmente tornaria a vida de todos melhor.<br />
A dificuldade com esse tipo de argumento é que, para ser válido,<br />
seria necessário que fossem calculados todos os possíveis impactos da<br />
creche sobre resultados futuros e não apenas impactos sobre uma dimensão<br />
específica, como o aprendizado de matemática ou de linguagem.<br />
Frequentar creche ou pré-escola afeta potencialmente múltiplas<br />
dimensões da formação do capital humano e, muitas vezes, conseguimos<br />
estimar seu impacto apenas sobre um conjunto restrito de indicadores.<br />
Em particular, medidas de resultados cognitivos dos indivíduos<br />
são relativamente mais frequentes nas bases de dados disponíveis que<br />
indicadores não cognitivos, ao passo que quando é possível medir<br />
o impacto desse tipo de intervenção sobre estes últimos, frequente-<br />
72 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
mente obtém-se resultados mais importantes que sobre os primeiros.<br />
Uma análise que desconsidere dimensões importantes de impacto tais<br />
como empregabilidade e salários, escolaridade atingida, criminalidade,<br />
propensão à gravidez na adolescência, entre outros, corre o risco<br />
de subestimar os benefícios da intervenção.<br />
O exemplo do Head Start ilustra bem esse ponto. No mesmo texto<br />
em que Garces e Currie (2002) detectam que os ganhos cognitivos<br />
dos brancos tratados pelo Head Start perduram, ao passo que o mesmo<br />
não ocorre com os negros, há evidência de significativo impacto<br />
entre os negros em termos de redução de criminalidade, medida pela<br />
probabilidade de encarceramento antes dos 30 anos de idade. Em<br />
outro trabalho, Lee et al. (1990) comparam o Head Start com outras<br />
formas de pré-escola nos Estados Unidos e verificam que: a) ambas<br />
trazem benefícios de curto prazo às crianças se comparadas a crianças<br />
que não tiveram acesso a qualquer tipo de pré-escola e b) o tipo de<br />
pré-escola (Head Start versus outros) com maiores benefícios depende<br />
essencialmente da medida de resultado utilizada (ver Figura 9).<br />
Figura 9<br />
Impacto do programa Head Start sobre diferentes dimensões de desenvolvimento<br />
Tamanho do efeito em desvios-padrão<br />
0.4<br />
0.3<br />
0.2<br />
0.1<br />
0.0<br />
-0.1<br />
-0.2<br />
Raciocínio<br />
perceptual<br />
Fonte: Lee et al., 1990.<br />
A B C D E<br />
Desempenho<br />
verbal<br />
A Figuras embutidas B Matrizes de Raven C Teste verbal<br />
D Escala de competência social E Inventório de Schaefer<br />
Competência<br />
social<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
Head Start versus outras<br />
intervenções pré-escolares<br />
Head Start versus “sem<br />
experiências pré-escolares”<br />
Efeitos ajustados de participação no (programa pré-escolar) Head Start sobre o desempenho no kindergarten e na<br />
primeira série do ensino fundamental<br />
73
Em outro estudo, Barnett (2004) mostra que se, por um lado, o diferencial<br />
de QI entre tratados e não tratados pelo programa High Scope/<br />
Perry School desaparece quando as crianças completam cerca de 14<br />
anos, por outro, diferenças importantes continuam a ser estimadas até<br />
os 40 anos de idade em dimensões como salários, probabilidade de<br />
possuir casa própria, necessidade de transferências governamentais<br />
e probabilidade de encarceramento. O autor conclui, ainda, que o<br />
programa Abecedarian reduziu a probabilidade de ser fumante quando<br />
adulto, aumentou as chances de estar matriculado na faculdade<br />
ou ter emprego qualificado aos 21 anos, melhorou o desempenho<br />
educacional (reduziu repetência e necessidade de educação especial<br />
e aumentou as chances de completar o segundo e o terceiro graus).<br />
Resultados similares no que diz respeito ao desempenho educacional<br />
e criminalidade são também obtidos nesse artigo para o Chicago<br />
Child-Parent Centers, programa compensatório de larga escala mantido<br />
pela municipalidade de Chicago.<br />
Em recente e detalhado estudo sobre o High Scope/Perry School,<br />
Heckman et al. (2010) estimam que, do total de US$153 mil em benefícios<br />
para a sociedade por indivíduo tratado pelo programa 18 (medidos<br />
em dólares de 2006), cerca de metade (78 mil) resulta de maiores<br />
salários recebidos pelos indivíduos (o ganho salarial sendo três vezes<br />
maior para as mulheres do que para os homens); pouco menos da metade<br />
(67 mil) de economias com criminalidade (especialmente entre<br />
os homens), e o restante de economias com os gastos públicos com<br />
educação (devido à menor repetência) e transferências de renda. Se<br />
considerarmos que dos ganhos salariais ao menos metade resulta de<br />
melhoras em habilidades não cognitivas, temos que parcela significativa<br />
dos eventuais benefícios de uma intervenção na primeira infância<br />
ocorre por canais não cognitivos, e sua mensuração é vital para um<br />
julgamento mais fidedigno do custo-benefício de realizá-la.<br />
A terceira leitura é a de que o resultado médio nulo obtido pelas<br />
investigações resulta de uma combinação de resultados positivos que<br />
o ensino infantil teve sobre algumas crianças com resultados negativos<br />
que teve sobre outras. A insuficiência de informação sobre a qualida-<br />
18 O custo por tratado foi de US$ 17,7 mil, resultando em taxa de retorno de<br />
8,6 %.<br />
74 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
de e intensidade do ensino efetivamente oferecido em cada escola<br />
infantil não permite avaliar com profundidade essa interpretação, mas<br />
a evidência obtida em países em que dados mais detalhados estão<br />
disponíveis a coloca como uma possibilidade concreta.<br />
Nos Estados Unidos, país com maior riqueza de informações sobre<br />
programas de ensino infantil, detecta-se significativa heterogeneidade<br />
nos impactos medidos. Programas com elevado conteúdo educacional,<br />
como alguns pre-kindergartens estaduais e intervenções-modelo<br />
(Perry, Abecedarian, CPC), causam sensível melhora, tanto cognitiva<br />
quanto não cognitiva, ao passo que crianças enviadas a daycare centers<br />
e instituições onde a criança é pouco estimulada não raro apresentam<br />
desenvolvimento inferior às criadas em tempo integral pelos<br />
pais e parentes. Heterogeneidade importante também é verificada<br />
com respeito à duração dos impactos medidos. Apesar de ser isto,<br />
ainda, objeto de intenso debate, a maioria dos resultados sugere que<br />
grande parte da durabilidade está associada à persistência da exposição<br />
da criança ao tratamento. Os benefícios de uma boa escola tendem<br />
a desaparecer com o tempo se em níveis subsequentes a criança<br />
for matriculada em escola de qualidade inferior, fazendo com que<br />
programas com maior duração ou seguidos de outros programas de<br />
qualidade aceitável apresentem com maior probabilidade resultados<br />
positivos a longo prazo.<br />
No Brasil, algumas estatísticas descritivas apontam em direção parecida.<br />
Em primeiro lugar, vimos que entre crianças com mães pouco<br />
educadas, as que frequentaram creches têm desempenho educacional<br />
inferior às que não frequentaram, ao passo que entre os filhos de mães<br />
mais escolarizadas acontece o oposto. Como a maioria das estimativas<br />
do impacto de um tipo específico de ensino infantil disponível mostra<br />
que, ceteris paribus, são as crianças de famílias mais vulneráveis as que<br />
mais se beneficiam, o resultado acima sugere que as crianças estão<br />
de fato recebendo tratamentos distintos. Em segundo lugar, quando<br />
selecionamos apenas as famílias que reportaram que a razão para que<br />
seus filhos não estejam matriculados na creche não é insuficiência de<br />
recursos (quer porque disponham de recursos próprios, quer porque<br />
tenham acesso a vagas em creches gratuitas), observamos que a frequência<br />
com que os pais respondem que simplesmente não querem<br />
matricular a criança é decrescente com a renda familiar per capita.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
75
Uma possível explicação para isso é de novo a hipótese de que as<br />
creches a que os pobres têm acesso não são da mesma qualidade das<br />
dos ricos, fazendo com que, dadas as opções existentes, prefiram criar<br />
seus filhos em casa.<br />
Caso os impactos sejam efetivamente heterogêneos, o desafio é replicar<br />
os casos bem-sucedidos, e fazer com que se generalizem. Um<br />
primeiro passo nessa direção é identificar e estudar quais são os programas<br />
bem-sucedidos e suas características, e isso deveria ser prioridade,<br />
tanto porque, se não houver tal heterogeneidade e o impacto<br />
for efetivamente nulo, uma mudança na prioridade da expansão da<br />
rede de creches deveria ser considerada, quanto porque, caso a explicação<br />
esteja vinculada à heterogeneidade de impactos, torna-se<br />
urgente oferecer aos menos favorecidos serviços com qualidade compatível<br />
à recebida pelos mais ricos.<br />
O QUE QUEREMOS<br />
A partir de um diagnóstico preciso a respeito das razões para que<br />
até hoje não tenham sido detectados impactos importantes de fre -<br />
quência a creches sobre resultados futuros, é possível saber se há,<br />
dentre as experiências já testadas no Brasil, algumas que funcionem<br />
melhor que outras, e que devem servir de modelo para as creches que<br />
temos. Uma primeira questão relevante, portanto, é saber como usar<br />
da melhor maneira possível os recursos que atualmente já são gastos<br />
com o sistema e em que medida os casos bem-sucedidos devem ser<br />
expandidos para que atinjam seu público-alvo.<br />
Uma segunda questão relevante é saber se há espaço para outros<br />
tipos de intervenção educacional, diferentes do modelo de creches,<br />
que devessem ser implementados, ou oferecer serviços distintos a<br />
crianças que partem de condições iniciais diferentes. Ainda que seja<br />
factível, a partir das respostas dadas à questão anterior, aprimorar<br />
nossas creches de modo a que produzam o maior benefício possível,<br />
resta a dúvida de que seja ou não conveniente fazer investimentos<br />
adicionais e complementares para crianças que vivem em ambientes<br />
familiares vulneráveis ou que apresentam defasagens de desenvolvimento<br />
diagnosticadas. Como foi dito, uma creche que mire seu<br />
foco em uma criança com desenvolvimento regular não necessariamente<br />
produzirá o efeito esperado sobre uma criança defasada,<br />
76 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
nem conseguirá reduzir a distância com respeito aos colegas que não<br />
apresentam atraso. De um modo geral, todas as crianças parecem se<br />
beneficiar de atendimento extrafamiliar com conteúdo educacional,<br />
mas é possível que algumas precisem de incentivos adicionais para<br />
alcançar as outras.<br />
A literatura internacional mostra que intervenções bem-sucedidas<br />
destinadas a recuperar o atraso no desenvolvimento de crianças que<br />
vivem em famílias vulneráveis são relativamente caras e exigem cuidados<br />
especiais, talvez porque nesses casos a escola tenha que cumprir<br />
seu papel natural de dar estímulos que em geral as crianças não<br />
recebem em casa e, ao mesmo tempo, compensar as deficiências de<br />
atenção e estímulo da própria família. Dada a importância central<br />
que o ambiente familiar tem sobre o desenvolvimento nas primeiras<br />
fases da vida, é possível que uma escola que seja apenas escola de<br />
fato não faça diferença fundamental na vida de crianças de famílias<br />
desestruturadas, e investimentos maiores deveriam ser considerados.<br />
Doyle, Harmon, Heckman e Tremblay (2007) resumem em cinco<br />
as características de intervenções compensatórias bem-sucedidas ao<br />
redor do mundo:<br />
a) Dosagem: programas que oferecem maiores montantes de intervenção<br />
produzem maiores benefícios;<br />
b) Timing: programas que começam em idades mais tenras e se estendem<br />
por mais tempo produzem benefícios maiores e mais duradouros;<br />
c) Recebimento direto da intervenção: programas que alteram diretamente<br />
a rotina das crianças (por exemplo, ir à escola) produzem<br />
efeitos maiores e mais duradouros que programas que tentam influenciar<br />
os pais na esperança de que criem melhor seus filhos;<br />
d) Benefícios diferenciados: algumas crianças se beneficiam mais<br />
que outras de uma mesma intervenção. As diferenças estão relacionadas<br />
ao tipo de vulnerabilidade inicial delas e ao grau com<br />
que o programa é desenhado para lidar com aquele tipo específico<br />
de vulnerabilidade;<br />
e) Continuidade do suporte: efeitos positivos iniciais tendem a desaparecer<br />
se não houver posterior suporte adequado para manter<br />
tais benefícios.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
77
A essas características, pode-se acrescentar que o envolvimento familiar<br />
com a escola potencializa os benefícios de uma intervenção<br />
educacional. A maioria dos programas relativamente bem-sucedidos<br />
como High Scope/Perry School, Carolina Abecedarian, Chicago CPC<br />
e Head Start, apenas para citar alguns, continham (ou contêm) algum<br />
tipo de acompanhamento direto com as famílias, quer na forma de<br />
visitas periódicas de educadores, médicos, nutricionistas e assistentes<br />
sociais para monitorar o desenvolvimento das crianças e orientar os<br />
pais em como criar seus filhos, quer solicitando a presença simultânea<br />
de pais e filhos para atividades conjuntas na escola.<br />
Finalmente, análises de custo-benefício das melhores intervenções<br />
apontam para taxas de retorno ao investimento realizado bastante<br />
atrativas, apesar do elevado custo inicial. Além disso, essas taxas<br />
parecem ser especialmente altas para crianças sob risco de vulnerabilidade,<br />
sugerindo que se deva tratar desigualmente aos desiguais,<br />
disponibilizando aos menos favorecidos condições para que eventuais<br />
carências de estímulos familiares sejam compensadas por cuidados e<br />
estímulos recebidos na escola. A prudência recomenda, contudo, que<br />
intervenções inovadoras e caras devam sempre ser implementadas em<br />
pequena escala, inicialmente, e avaliadas antes que possam ser replicadas<br />
em larga escala. Intervenções-modelo como o Perry School ou<br />
o Abecedarian são expostas a críticas válidas de que ao menos um<br />
dos insumos utilizados em sua confecção não é facilmente contabilizável<br />
em termos de custos ou mesmo replicável (a que preço for):<br />
a dedicação e o compromisso dos educadores que as construíram e<br />
mantiveram de modo abnegado. Na impossibilidade de se replicar<br />
em larga escala tais intervenções, avaliações constantes e rigorosas<br />
são necessárias para selecionar os aspectos positivos que possam ser<br />
aproveitados em redes públicas, mas governos certamente deveriam<br />
estimular que tais experiências em pequena escala surgissem como<br />
forma de se apreender características que realmente importam no desenvolvimento<br />
infantil.<br />
78 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
REFERÊNCIAS<br />
BARNETT, W. S. Benefit-cost analysis of preschool education. 2004. Dis- Disponível<br />
em: . Acesso em: abr. 2011.<br />
BARNETT, W. S. Preschool education and its lasting effects: research and<br />
policy implications. Boulder and Tempe: Education and the Public Interest<br />
Center & Education and Policy Research Unit, 2008. (Working paper).<br />
BARROS, R. P.; MENDONÇA, R. Uma avaliação dos custos e benefícios da<br />
educação pré-escolar no Brasil. 2000. Mimeografado.<br />
BARROS, R. P. et al. (Org.). Measuring inequality of opportunities in Latin<br />
America and the Caribbean. Worldbank: Conference Edition, 2009.<br />
BARROS, R. P. et al. A short-term cost-effectiveness evaluation of better<br />
quality daycare centers. 2010. Mimeografado.<br />
BECKER, G. Human capital: a theoretical and empirical analysis with special<br />
reference to education. 3 rd . ed. [S.l.]: The University of Chicago Press, 1993.<br />
BERLISNK, S.; GALIANI, S.; GERTLER, P. The effect of pre-primary education<br />
on primary school performance. Journal of Public Economics, n. 93, 2009.<br />
BERLISNK, S.; GALIANI, S.; MANACORDA. Giving children a better start:<br />
preschool attendance and school-age profiles. Journal of Public Economics,<br />
n. 92, p. 1416–1440, 2008.<br />
BERNAL, R. The effect of maternal employment and child care on children’s<br />
cognitive development. International Economic Review, v. 49, n. 4, 2008.<br />
BLAU, D.; CURRIE, J. Pre-school, day care, and after school care: who's minding<br />
the kids? In: HANUSHEK, E.; WELCH, F. (Ed.). Handbook of the econo–<br />
mics of education. Amsterdam: Elsevier, 2006. v. 2, p. 1163–1278.<br />
CALDERINI, S. R.; SOUZA, A. P. Pré-escola no Brasil: seu impacto na qualidade<br />
da educação fundamental. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA,<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
79
37, 2009. Anais do…[S.l.: s.n.], 2009. Disponível em: . Acesso em: abr. 2011.<br />
CAMPBELL, F. A. et al. The development of cognitive and academic abilities:<br />
growth curves from an early childhood educational experiment. Developmental<br />
Psychology, v. 37, n. 2, p. 231-242, 2001.<br />
CARNEIRO, P.; HECKMAN, J. Human capital policy. In: HECKMAN, J.;<br />
KRUEGER, A.; FRIEDMAN, B. (Ed.). Inequality in America: what role for human<br />
capital policies? [S.l.]: MIT Press, 2003.<br />
CUNHA, F. et al. Interpreting the evidence on life cycle skill formation. In:<br />
HANUSHEK, E.; WELCH, F. (Ed.). The handbook of economics of education.<br />
[S.l.: s.n.], 2006, cap. 12, p. 697-812.<br />
CURI; MENEZES-FILHO, N. Os efeitos da pré-escola sobre os salários, a escolaridade<br />
e a proficiência escolar. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONO-<br />
MIA, 34, 2006. Anais do…[S.l.: s.n.], 2006.<br />
CURRIE, J. Does head start help hispanic children? Journal of Public Economics,<br />
n. 74, p. 235-262, 1999.<br />
CURRIE, J.; THOMAS, D. Does head start make a difference? American Economic<br />
Review, v. 85, p. 341-364, 1995.<br />
CURRIE, J.; THOMAS, D. School quality and the longer-term effects of head<br />
start. Journal of Human Resources, v. 35, n. 4, p. 755-774, 2000.<br />
DOLE, O. et al. Early childhood intervention: rationale, timing and efficacy.<br />
[S.l.]: UCD Geary Institute, 2007. (Discussion paper series, 5)<br />
DUNCAN, G.; CLAUSSENS, A.; ENGEL, M. The contribution of hard skills<br />
and socio-emotional behavior to school readiness. [S.l.]: Northwestern University,<br />
2004. Mimeografado.<br />
FELÍCIO, F.; MENEZES, R.T.; ZOHGBI, A.C. The effects of early child education<br />
on literacy scores using data from a new Brazilian assessment tool. In: EN-<br />
CONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 38, 2009. Anais do… [S.l.]: Anpec,<br />
2009. Disponível em: .<br />
Acesso em: abr. 2011.<br />
80 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
FELÍCIO, F.; VASCONCELLOS, L. O efeito da educação infantil sobre o desempenho<br />
escolar medido em exames padronizados. In: ENCONTRO NA-<br />
CIONAL DE ECONOMIA, 35, 2007. Anais do… [S.l.]: Anpec, 2007. Disponível<br />
em: .htm. Acesso em:<br />
abr. 2011.<br />
FOGUEL, M.; VELOSO, F. Early childhood development in Brazil: supply and<br />
quality of daycare and preschool services, and their impacts on future educational<br />
outcomes. 2010. Mimeografado.<br />
GARCES, E.; THOMAS, D.; CURRIE, J. Longer-term effects of Head Start.<br />
American Economic Review, n. 92, p. 999-1012, 2002.<br />
HECKMAN, J. J. Schools, skills and synapses. Dublin: Geary Institute, University<br />
College Dublin, 2008. NBER working paper, 14064.<br />
HECKMAN, J. J. et al. The rate of return to the high scope Perry preschool<br />
program. Journal of Public Economics, v. 94, n. 1-2, p. 114-128, Feb. 2010.<br />
JACOB, B. A.; LEFGREN, L. What do parents value in education: an empirical<br />
investigation of parent’s revealed preferences for teachers. The Quarterly<br />
Journal of Economics, v. 122, n. 4, p. 1603-1637, Nov. 2005. NBER working<br />
paper, 11494.<br />
JOHNSON, J. S.; NEWPORT, E. L. Critical period effects in second language<br />
learning: the influence of maturational state on the acquisition of English as a<br />
second language. Cognitive Psychology, n. 21, p. 60-99, 1989.<br />
LEE, V. et al. Are head start effects sustained?: a longitudinal follow-up comparison<br />
of disadvantaged children attending head start, no preschool, and other<br />
preschool programs. Child Development, v. 61, n. 2, p. 495-507, 1990.<br />
Special Issue on Minority Children.<br />
MAGNUSSON, K. et al. inequality in preschool education and school readiness.<br />
American Educational Research Journal, v. 41, n. 1, p. 115-157, 2004.<br />
MAGNUSSON, K.; RUHM, C.; WALDFOGEL, J. Does prekindergarten improve<br />
school preparation and performance? Economics of Education Review,<br />
n. 26, p. 33-51, 2007.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
81
GUIMARÃES, C.; PINTO, C.; SANTOS, D. The impact of daycare attendance<br />
on math test scores for a cohort of 4th graders in Brazil. 2010. Mimeografado.<br />
SCHAD, N. Early childhood development in Latin America and the Caribbean.<br />
World Bank Policy Research Working Paper, n. 3869, Mar. 2006.<br />
THOMPSON, R.A. NELSON, C. A. Developmental science and the media:<br />
Early brain development. American Psychologist, n. 56, p. 5-15, 2001.<br />
WORLD data on education. 6th. ed. [S.l.]: Unesco, 2006/2007. Disponível<br />
em: . Acesso<br />
em: abr. 2011.<br />
82 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
ANEXO 1<br />
BASES DE DADOS BRASILEIRAS USADAS PARA<br />
INVESTIGAR IMPACTOS DO ENSINO INFANTIL<br />
Os estudos de impacto de ensino infantil sobre resultados futuros<br />
realizados no Brasil (e sumarizados na Tabela 2) utilizam essencialmente<br />
três fontes de dados:<br />
a) Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV), baseada em entrevistas a<br />
cerca de 5 mil domicílios realizadas nas regiões Sudeste e Nordeste<br />
do Brasil, entre março de 1996 e março de 1997. As variáveis<br />
de maior interesse para a estimativa de impacto do ensino infantil<br />
são perguntas retrospectivas dicotômicas sobre se indivíduos frequentarem<br />
ou não cada nível de ensino separadamente, e por<br />
quanto tempo. A pesquisa é particularmente rica em informações<br />
socioeconômicas dos indivíduos, incluindo características educacionais,<br />
do trabalho, de casamento e fecundidade, de consumo e<br />
renda. Dessa forma, é possível associar medidas de bem-estar de<br />
pessoas adultas em 1996/97 com características passadas de acesso<br />
ao ensino infantil. As desvantagens são: a cobertura limitada<br />
(apenas duas regiões do país), fazendo com que conclusões obtidas<br />
dessa amostra não necessariamente possam ser generalizadas<br />
para o restante do país; a ausência de informações detalhadas<br />
sobre a qualidade das escolas que os indivíduos frequentaram; e<br />
a antiguidade, pois além de ter já 13 anos de existência, adultos<br />
que em 1996 reportaram ter frequentado o ensino infantil o fizeram<br />
antes dos anos 80, quando tanto a abrangência da população<br />
coberta por esse tipo de serviço era menor, quanto as características<br />
dos programas desse tipo eram significativamente distintas<br />
das atuais.<br />
b) Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e da<br />
Prova Brasil, base de dados bienal composta por quatro fontes<br />
de informação: provas de português e matemática aplicadas a<br />
cerca de 24 mil estudantes que estejam concluindo o primeiro<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
83
e o segundo ciclos do ensino fundamental (atualmente 5ª e 9ª<br />
séries), e o ensino médio (3º ano); entrevistas com os diretores<br />
das escolas a que esses estudantes pertencem; entrevistas com<br />
os professores das turmas desses estudantes; e questionários preenchidos<br />
pelos próprios estudantes com informações a respeito<br />
de si e de suas famílias. Em geral, os estudos baseados no Saeb<br />
tomam os resultados das provas como medida de resultado e a<br />
resposta dos estudantes sobre o primeiro nível educacional que<br />
frequentaram como variável de interesse. As principais vantagens<br />
da pesquisa são a existência de informações sobre qualidade das<br />
escolas e das turmas que os alunos atualmente frequentam (que<br />
pode aproximar a qualidade da escola que habitualmente vêm<br />
frequentando desde a primeira vez que foram matriculados) e as<br />
próprias notas dos testes, que em geral são tomadas como medida<br />
razoavelmente fiel do estágio de desenvolvimento cognitivo<br />
dos alunos. Dentre as desvantagens estão a ausência de informações<br />
detalhadas sobre a família (em particular não se sabe a renda<br />
e detalhes da composição de irmãos) e o questionamento sobre<br />
a acurácia das informações reportadas pelos estudantes, tanto a<br />
respeito de características de seus pais quanto sobre o primeiro<br />
nível educacional que frequentaram (principalmente entre os alunos<br />
que ainda estão completando o primeiro ciclo do fundamental).<br />
Adicionalmente, para nossos propósitos, é ruim o fato de que<br />
a pergunta sobre frequência ao ensino infantil seja feita de modo<br />
a que os estudantes apenas tenham que responder quando foram<br />
pela primeira vez à escola, sendo admissíveis as respostas “maternal”<br />
(creche), “pré-escola”, “primeira série” (do fundamental),<br />
e “depois da primeira série”. Essa estrutura não permite saber<br />
dos estudantes que responderam “maternal”, se também fizeram<br />
“pré-escola” ou não. Por esse motivo, o impacto líquido da creche/maternal<br />
é calculado supondo que todos os alunos que entraram<br />
nesse nível permaneceram na escola durante a pré-escola.<br />
c) Um estudo recente (FELÍCIO et al., 2009) inova ao utilizar dados<br />
de uma pesquisa de campo própria, coletada no município de<br />
Sertãozinho (SP) em maio de 2008, composta por uma aplicação<br />
da Provinha Brasil a crianças de segunda série de todas as escolas<br />
84 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011
do município, questionários com os pais dos alunos, professores<br />
e diretores. A base de dados procura corrigir a suspeita existente<br />
sobre a qualidade das respostas dos alunos nas bases do Saeb/<br />
Prova Brasil ao perguntar diretamente aos pais sobre características<br />
da família e sobre o acesso de seus filhos ao ensino infantil.<br />
Além disso, pergunta detalhadamente aos pais se em cada ano de<br />
vida da criança ela esteve inscrita em alguma escola, permitindo<br />
detectar casos de crianças que frequentaram creche mas não pré-<br />
-escola, e também saber por quanto tempo as crianças estiveram<br />
em cada nível de ensino. Finalmente, trata-se da base de dados<br />
em que o público-alvo frequentou o ensino infantil mais recentemente<br />
(para estar na 2ª série do fundamental em 2008, as crianças<br />
precisariam ter nascido em torno de 2001 e ter frequentado<br />
o ensino infantil entre 2002 e 2006). A desvantagem mais óbvia<br />
é a limitação da cobertura geográfica, pois Sertãozinho é um município<br />
particularmente rico para padrões brasileiros e conta com<br />
uma das redes de ensino público mais bem estruturadas do país.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
85
CRIATIVIDADE<br />
Marsyl Bulkool Mettrau<br />
86 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
Este artigo tem a intenção de apresentar algumas concepções de criatividade<br />
e de processo criativo e objetiva descrever as mais importantes perspectivas<br />
nessas áreas. De acordo com a literatura, uma definição e uma interpretação<br />
do conceito de criatividade poderiam considerar várias dimensões: áreas de<br />
expressão, graus, níveis de motivação, relevância social e o contexto dentro do<br />
qual está organizado o processo criativo. Esse processo apresenta um largo espectro<br />
de características e performances, sendo organizado em uma sequência<br />
de fases importantes para o objetivo da explicação, para o desenvolvimento e<br />
a descrição dos grupos criativos. O artigo aborda também temas como insight,<br />
talento e inteligência humana, criatividade individual e grupal. Finalmente, descreve<br />
o pensamento lógico, criativo e também a flexibilidade.<br />
Palavras-chave: criatividade, processo criativo, inteligência<br />
This article intends to present some conceptions of creativity and the creative<br />
process and aims to describe the most important perspectives in these areas.<br />
Several notions emerge when creativity and the creative process are concerned.<br />
According to the literature, we can see that a definition and an interpretation of<br />
the creative concept should consider the following dimensions: expression areas,<br />
degrees, motivation levels, social relevance, and the context within which<br />
the creative process is organized. This process embraces a wide range of features<br />
and performances, organized in a sequence of phases, which are important<br />
for the purpose of explanation, for the development, and for the description<br />
of the creative groups. Furthermore, the article also approaches issues such as<br />
insight, human talent and intelligence, and individual and collective creativity.<br />
Finally, it describes the logical, creative thinking and also the flexibility.<br />
Keywords: creativity, creative process, intelligence<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
87
INTRODUÇÃO<br />
A história intelectual do conceito de criatividade nos remete ao século<br />
XVIII, quando surgiram os debates sobre o gênio criativo e seus<br />
fundamentos. Já Duff (1967, apud LUBART, 2007) diferenciou gênio<br />
criativo e talento, considerando o talento um nível de performance<br />
superior, mas que não necessariamente apresentaria um pensamento<br />
original. De acordo com essa ideia, que se desenvolveu progressivamente,<br />
a criatividade seria uma forma excepcional de genialidade,<br />
diferente do talento, determinada por fatores genéticos e condições<br />
ambientais (ALBERT e RUNCO, 1999 apud LUBART, 2007).<br />
No decorrer do século XIX, alguns autores sustentaram a ideia de<br />
que gênio criativo seria aquele que apresentasse a criatividade a partir<br />
de um nível excepcional de originalidade, que dependeria da capacidade<br />
de associar ideias.<br />
O início do século XX trouxe novas contribuições ao conceito de<br />
criatividade. Binet realizou estudos de caso baseados na criação literária,<br />
sustentando que o pensamento criativo teria associação com parte<br />
da inteligência. Freud referiu-se à criatividade como resultado de uma<br />
tensão entre realidade consciente e pulsões inconscientes, sugerindo<br />
que os artistas e os escritores criam para expressar seus desejos inconscientes<br />
através de meios culturalmente aceitáveis.<br />
Essa tensão criativa refere-se também a uma superposição do objetivo<br />
pessoal, individual (o que queremos) com a clareza da análise da realidade<br />
(onde estamos). É necessária uma força para unir um e outro, a qual<br />
corresponderia à tensão na busca de nova resolução. Esse processo, uma<br />
vez em andamento, gera um tipo de aprendizado que não significa apenas<br />
a aquisição de mais informação, mas sim a ampliação da capacidade<br />
de produzir os resultados que desejamos. Sua duração é longa, pois se<br />
trata de um aprendizado produtivo que dura a vida inteira.<br />
Também Ribot (1900) abordou o papel da inteligência, da emoção<br />
e do inconsciente no pensamento criativo (LUBART, 2007). O interesse<br />
pela criatividade como agente de crescimento econômico social é<br />
constante. Indica-o, por exemplo, o livro de . P. Guilford, Creativity,<br />
de 1950, considerado um precursor do tema.<br />
O fato histórico do Sputinik, o primeiro satélite artificial da história,<br />
lançado ao espaço pela União Soviética em 4 de outubro de 1957,<br />
88 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
deu origem à disputa espacial com os EUA, e foi, de certo modo, outro<br />
detonador de interesse no assunto, pois acelerou a pesquisa científica<br />
no campo. Foram iniciados novos programas de estudo dedicados ao<br />
tema da criatividade, destinando-se grandes quantias de dinheiro para<br />
o financiamento de pesquisas na área, além da organização de simpósios<br />
interdisciplinares impulsionados pela Michigan State University.<br />
Desses estudos resultaram, entre outros, os ensaios reunidos por<br />
Anderson e publicados em 1995 sob o título Creativity and its Cultivation.<br />
Seguiram-se novas publicações e textos coletivos envolvendo de<br />
Anderson a Erich Fromn, de Guilford a Hilgard, de Maslow a Margareth<br />
Mead e de Roger a Sennet. A criatividade tornou-se um objeto de estudo<br />
científico, específico e interdisciplinar, e a sociedade pós-industrial<br />
se nos apresenta como um sistema programado e criativo, tendo<br />
como centro a invenção, a cientificidade, os valores, os símbolos e a<br />
estética (DE MASI, 2003).<br />
As consequências e repercussões dos estudos voltados mais especificamente<br />
para a criatividade têm sido intensas e temos uma expressão<br />
de Einstein que bem o demonstra: “Quando observo a mim mesmo e<br />
os meus métodos de pensamento, chego à conclusão de que o dom<br />
da imaginação foi mais importante para mim do que a minha capacidade<br />
de assimilar conhecimentos”. Ainda nessa perspectiva, temos<br />
Niemeyer: “Na arquitetura, a intuição desempenha um papel tão importante<br />
quanto o conhecimento... A imaginação e a espontaneidade<br />
são para mim as fontes da arquitetura” (DE MASI, 2003, p. 567).<br />
1 PROCESSO CRIATIVO E CRIATIVIDADE<br />
Já em 1953, Osborn descreveu o processo criativo como um processo<br />
que envolve sete etapas: orientação, preparação, análise, criação,<br />
incubação, nova síntese e avaliação. Anziem descreveu outras características<br />
do processo criativo no século XX: a saisissement (surpresa),<br />
como a tomada de consciência do problema a resolver; a estruturação<br />
do código que rege o tipo de conhecimento implícito em um determinado<br />
processo criativo; a composição e a realização da ideia; o<br />
licenciamento e o dissabor (sensação causada pela frustração de uma<br />
expectativa). Finalmente, é De Masi quem resume: a criatividade foi<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
89
considerada como capacidade de construir e destruir; de revelar segredos;<br />
de ver antes dos outros e de fazer ver aos outros; de apresentar<br />
originalidade marcada pela avaliação social; de ser pesquisa como<br />
forma regida por um pensamento dotado de originalidade, unidade e<br />
qualidade rara de ser; conquista de alto grau de subjetividade na arte,<br />
de alto grau de objetividade na ciência; de usar um modo para liberar-<br />
-se das escolhas habituais e obrigatórias; de ser conquista capaz de enriquecer<br />
não apenas os aspectos criativos, mas todo o gênero humano;<br />
de ser um método diferente do pensamento comum, capaz de chegar<br />
a resultados que o pensamento comum poderá entender, aceitar e<br />
apreciar somente num segundo momento (DE MASI, 2003).<br />
Criatividade é uma palavra forte, um conceito complexo e um tema<br />
da atualidade, sobre o qual muitos falam mas poucos entendem, pois<br />
se refere a cada nova forma de dizer, fazer, pensar ou construir qualquer<br />
coisa, ideia ou produto.<br />
É necessário ter muito conhecimento sobre o tema para afirmar que<br />
o “potencial criador é inerente ao ser humano”, como o faz Ostrower<br />
(1989, p. 9). Penso também que a criatividade é uma dimensão da<br />
inteligência, pois lida com algumas das muitas categorias ou elementos<br />
que compõem nossa inteligência, como a memória, a ordenação, a<br />
intuição, a percepção etc., necessários e participantes na criatividade,<br />
no processo criativo e na inteligência humana.<br />
Vale ressaltar ainda que o tema da criatividade vem, nos últimos<br />
anos, recebendo atenção ampliada, relacionado a questões de outras<br />
áreas, como educação, psicologia e até mesmo na área empresarial,<br />
devido à interdisciplinaridade do assunto e à crescente e visível necessidade<br />
de novas soluções e novas respostas para a humanidade continuar<br />
seu caminho, o caminho da busca incessante de novas transformações<br />
necessárias para o crescimento e evolução da vida humana.<br />
“O vício de se pensar que a criatividade só existe nas artes deforma<br />
toda a realidade humana” (Ostrower, 1989, p. 39) e é uma maneira de<br />
excluir as inúmeras condições criativas existentes em outras áreas. A<br />
maioria das pessoas tem uma representação sobre ser criativo apenas<br />
como uma pessoa que toca, pinta, desenha, dança etc. Mas os cientistas,<br />
os pensadores, os filósofos e os técnicos, entre outros, também<br />
são criadores, embora seus produtos não sejam sempre concretos e<br />
visíveis em um primeiro olhar, em um primeiro momento. Apreciar<br />
90 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
e encorajar o uso da criatividade é uma necessidade para atender às<br />
demandas crescentes de nosso mundo em constantes e rápidas transformações<br />
e também para a vivência cotidiana.<br />
Usualmente a criatividade pode ser percebida mediante alguns<br />
comportamentos, tais como: motivação extremamente alta em determinado<br />
campo de esforço; inconformidade (variando em graus);<br />
facilidade para quebrar algumas convenções; e manutenção de altos<br />
padrões de excelência e autodisciplina relacionados ao trabalho<br />
de criação. Nas pessoas que demonstram ter criatividade, nota-se<br />
profundo compromisso com o esforço criativo, podendo aparentar<br />
até certo desligamento em outras tarefas que não sejam aquelas<br />
de seu interesse específico, isto é, seu campo de criação. Às vezes<br />
torna-se difícil conviver com ela, tanto no grupo social quanto no<br />
grupo de trabalho ou familiar, pois apresenta múltiplos e variados<br />
funcionamentos.<br />
Ao comentar o processo criativo, devemos elencar outro aspecto<br />
que faz parte do seu funcionamento: trata-se do insight, que corresponde<br />
a uma aparente e súbita compreensão da natureza de alguma<br />
coisa, resultando, na maior parte das vezes, em uma abordagem<br />
inédita. Essa compreensão súbita é, na verdade, só aparentemente<br />
súbita, pois muito esforço, motivação, concentração e conhecimentos<br />
já existentes, relacionados à tentativa de uma nova descoberta, são<br />
acionados. O que é súbito é a própria descoberta e um profundo e<br />
extenso esforço direcionado ao alvo que se pretende atingir.<br />
No processo de insight, nota-se ainda, às vezes, que a própria criatividade<br />
está sendo realizada na perspectiva da resolução de um problema,<br />
que contém todas as etapas necessárias para ser bem resolvido.<br />
Assim, todo novo ângulo ou nova ótica assemelha-se a um novo<br />
problema, a ser resolvido no campo da aceitação e de seu uso. Além<br />
disso, quase sempre é possível perceber, nas leituras biográficas e na<br />
observação de sujeitos em ação e em pleno uso de seu potencial criador,<br />
que há no processo criativo um período de repouso, ao qual se<br />
segue um período de intenso esforço, em que se percebe uma explosão<br />
de mais flexibilidade mental, a fim de favorecer a emergência<br />
do insight. Logo, o insight não é súbito. O resultado da incubação e<br />
emergência da ideia, o ato ou objeto criado é que nos é apresentado<br />
de forma súbita, isto é, quando não se está esperando.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
91
Ainda descrevendo a pessoa criativa, podemos observar, em seu<br />
convívio com outras, que ela se expressa algumas vezes demonstrando<br />
irritação, insatisfação ou até algum nível de agressão, que correspondem<br />
ao processo de desejar e poder criar alguma coisa e ainda<br />
não ter conseguido selecionar maneiras para fazê-lo. Usualmente o<br />
meio social não favorece, não encoraja e, muitas vezes, não possibilita<br />
a realização criativa, especialmente quando se trata das ideias<br />
de pessoas mais pobres, moradoras de periferias, que têm uma vida<br />
cotidiana mais restrita em possibilidades socioculturais. Essas pessoas<br />
têm ideias, mas não encontram acolhimento e local para apresentá-las<br />
e desenvolvê-las. Na conjuntura difícil do dia a dia, o grupo social tem<br />
sido impedidor ou dificultador da expressão da criatividade e do reconhecimento<br />
das expressões do processo criativo em muitas pessoas,<br />
tanto adultas quanto crianças e adolescentes.<br />
Uma sociedade de atores criativos teria melhores chances de encontrar<br />
respostas mais eficazes e de propor a promoção da criatividade,<br />
tanto no sistema educacional quanto no sistema empresarial, o que<br />
permitiria encarar novos problemas de maneira mais criativa, procurando<br />
novas soluções a partir de novas necessidades e perspectivas.<br />
No campo de estudos da criatividade, um dos marcos da abordagem<br />
científica do gênio criativo é a obra Gênio hereditário, de 1869<br />
(FRANCIS GALTON apud SIMONTON, 2002).<br />
Dentre os gênios reconhecidos pela humanidade temos, por exemplo,<br />
Charles Darwin, que fez suas pesquisas em casa e foi muito afortunado,<br />
uma vez que sua família lhe proporcionou o ambiente especial<br />
de que necessitava para ler e escrever, refletir e fazer experimentos.<br />
Note-se a importância do suporte afetivo, seja ele familiar, do grupo<br />
social ou até mesmo individual.<br />
Simonton (2002) aponta a necessidade de se definir e diferenciar<br />
genialidade e criatividade, uma vez que se trata de tema com o qual<br />
grande parte das pessoas já convive ou reconhece em biografias, jornais,<br />
publicações técnicas e históricas, filmes, entre outros. Para o autor,<br />
a genialidade refere-se à qualidade daquilo ou de quem é gênio.<br />
No que diz respeito aos indivíduos, o termo gênio passou a corresponder<br />
à descrição de algum talento, capacidade ou inclinação natural,<br />
especialmente quando ela ultrapassa as normas usuais e esperadas de<br />
contribuição.<br />
92 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
Simonton (2002) nos remete a Galton (1869), que definia gênio em<br />
termos de reputação duradoura, como os homens e mulheres que receberam<br />
o Prêmio Nobel – Niels Bohr (Física), Marie Curie (Química),<br />
Ivan Pavlov (Medicina e Filosofia) e Toni Morrison (Literatura), entre<br />
outros –, que foram reconhecidos por suas notáveis contribuições em<br />
suas respectivas áreas, além de contribuições para o conhecimento<br />
humano e a humanidade. A conceituação de gênio refere-se àqueles<br />
que são donos de uma rara habilidade, de uma capacidade de produzir<br />
ideias perenes e absolutamente originais, que favoreçam amplamente<br />
o grupo social e a sociedade global.<br />
Há alguns outros fenômenos psicológicos associados à criatividade<br />
e compreendê-los corresponde a uma necessidade, pois tanto nossa<br />
vida cotidiana familiar e social se beneficiam com esta compreensão<br />
quanto as relações no mundo do trabalho. As empresas já demonstram<br />
em cursos, capacitações, treinamentos e anúncios um interesse<br />
crescente pelos estudos da criatividade de seus empregados e da<br />
própria instituição, para se adaptarem aos mercados de trabalho em<br />
evolução constante e rápida.<br />
2 COMO PERCEBER A CRIATIVIDADE?<br />
O processo criativo é complexo e de difícil observação. No passado<br />
falava-se de criatividade referindo-se quase sempre às atividades<br />
artísticas, praticamente em oposição às outras experiências,<br />
como a conceituação matemático-científica ou qualquer tipo de<br />
pesquisa e habilidade técnica ou motora. Entretanto, podemos<br />
chamar também de criativa uma pessoa que sempre faz perguntas,<br />
descobre problemas onde outros encontram respostas satisfatórias,<br />
que é capaz de juízos e julgamentos autônomos e independentes<br />
(da família, da escola, da sociedade etc.), que recusa o já codificado<br />
e remanuseia objetos e conceitos, sem se deixar inibir pelo<br />
conformismo de aceitar os produtos como já se apresentam. Há um<br />
leque variado de comportamentos, ações, ideias e produtos que<br />
configuram criatividade. Os artistas também podem ser analíticos,<br />
porque dedicam muita atenção e tempo até chegar ao produto<br />
final, aos materiais e à tecnologia que seus trabalhos e suas produções<br />
artísticas exigem.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
93
Ostrower (1989) e Rodari (1982) sustentam que “a função criativa<br />
da imaginação pertence tanto ao homem comum como ao cientista<br />
e ao técnico; tanto é essencial para descobertas científicas como para<br />
o nascimento da obra de arte ou a criação de novas técnicas; é realmente<br />
condição necessária à vida cotidiana” (RODARI, 1982, p. 141).<br />
Vygotsky (1982, p. 18) ressalta que os “germes da imaginação criativa<br />
manifestam-se já nas brincadeiras da vida infantil”.<br />
A brincadeira e o jogo não são uma simples recordação de impressões<br />
vividas, mas uma reelaboração criativa delas. A imaginação é um<br />
processo pelo qual o homem, desde criança, combina entre si os dados<br />
da experiência, no sentido de construir uma nova realidade, correspondente<br />
às suas curiosidades e necessidades. É preciso, portanto,<br />
que cada pessoa possa crescer e se desenvolver em um ambiente pleno<br />
de experiências e estímulos em todas as direções possíveis, para<br />
nutrir sua imaginação e aplicá-la em novas atividades.<br />
Segundo a maioria de estudiosos e autores do tema, a motivação é<br />
muito importante no pensamento criativo, pois funciona como uma<br />
fonte para a criação. Assim, ter motivação para ou estar motivado com<br />
alguma coisa significa que você poderá passar cinco anos, cinco horas,<br />
semanas ou muito tempo, enfim, investindo seu pensamento na tentativa<br />
de descobrir a melhor maneira de fazer ou resolver determinadas<br />
situações, apresentar ideias, propostas, projetos etc. Isso significa<br />
dedicar tempo e esforço em relação a algo em que se acredita e que<br />
se deseja.<br />
O processo criativo implica, portanto, esforço, atenção dirigida e<br />
motivação. Fazem parte desse conjunto de múltiplos fatores não só o<br />
contexto ambiental, mas também a motivação, as variáveis de personalidade<br />
e de processos intelectuais, os níveis adequados de conhecimento,<br />
conjugados à flexibilidade cognitiva e à alta concentração na<br />
tarefa, os traços de prontidão para assumir riscos, as crenças flexíveis e<br />
a confiança pessoal na busca criativa. É verdadeiramente um processo<br />
complexo. Não devemos menosprezá-lo nem deixar de incluí-lo<br />
em nossa organização empresarial, individual ou grupal, desenvolvê-<br />
-lo em todos os campos do saber e do fazer, pois só assim estaremos<br />
exercitando nossa criatividade e a das demais pessoas.<br />
94 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
3 TALENTO E CRIATIVIDADE<br />
Gagné (1997) e Moon (2003) vêm tentando estudar e compreender<br />
o talento como algo que aparece ligado, de alguma forma, à criatividade<br />
e ao processo criativo. O suporte afetivo e o acolhimento familiar<br />
são necessários para o desenvolvimento do talento, pois, se a pessoa<br />
não tiver a possibilidade de conhecer os materiais e produtos necessários<br />
ao seu ato criador, dificilmente poderá expressar sua criatividade.<br />
É conhecida a importância dos elos afetivos criados pela passagem de<br />
sujeitos reconhecidamente criativos na vida pregressa de uma pessoa<br />
criativa: um treinador, um professor, um amigo, entre outros.<br />
Gagné conceitua o talento como um domínio superior de habilidades<br />
sistematicamente desenvolvidas e aplicadas a pelo menos um<br />
campo da atividade humana, podendo ser percebido em uma pessoa<br />
quando comparada a outras atuantes no mesmo campo. O autor agrupa<br />
essas habilidades superiores em cinco domínios: intelectuais (raciocínio,<br />
memória etc.); criativos (originalidade, invenção, humor etc.);<br />
socioafetivos (liderança, empatia etc.); sensório-motor (força, resistência<br />
etc.) e outros (as habilidades sociais). Para ele, a expressão superior<br />
de apenas um desses domínios e habilidades poderia ser chamada de<br />
talento natural. Tais habilidades, que devem ser desenvolvidas, estão<br />
ligadas a motivação, temperamento, personalidade e meio social, e<br />
sua expressão se realiza ao longo da vida pela aprendizagem, pelo<br />
treinamento e exercício. Os talentos implicariam sete campos mais<br />
especialmente definidos: o acadêmico, os jogos de estratégias, o uso<br />
da tecnologia, a arte, o grupo social, os negócios e os esportes.<br />
Já Moon (2003) define talento pessoal como uma capacidade excepcional<br />
de selecionar e atingir metas difíceis que se relacionem a<br />
interesses, habilidades, valores e contextos em que a pessoa vive.<br />
Os conceitos de talento e criatividade se relacionam, mas não significam<br />
a mesma coisa nem se apresentam de formas idênticas, pois<br />
a criatividade envolve imaginação e o talento envolve aprendizagem.<br />
Claro que imaginação e aprendizagem não são excludentes, porém a<br />
imaginação independe da aprendizagem e o talento depende, para<br />
seu desenvolvimento, da prática e do conhecimento para se expressar<br />
plenamente. Aceitar e reconhecer o talento é uma necessidade e um<br />
compromisso social. O Brasil é conhecido por suas riquezas naturais<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
95
e, talvez por isso, faz pouco uso de seus recursos humanos e investe<br />
pouco neles. Fingir que não existem talentos é uma forma de mentir<br />
e de não ter que se ocupar nem se preocupar com a questão de<br />
desenvolvê-los (METTRAU, 2000).<br />
Embora haja muita publicação folclórica sobre as grandes descobertas<br />
e os grandes descobridores em todas as áreas, é sabido que muitas<br />
delas, hoje imprescindíveis à vida humana, resultaram da exploração<br />
de ocorrências casuais ou de incidentes aparentemente inesperados<br />
que, aliados à atitude de observação e ao senso de oportunidade,<br />
foram transformados em nova descoberta. Isso não invalida todo o<br />
processo criador até o momento final de seu desdobramento, seu uso<br />
e sua transformação em nova produção ou produto.<br />
Vale ressaltar que há ainda muita desinformação e relativamente<br />
pouca pesquisa sobre o campo de estudos referente à pessoa criadora<br />
e à criatividade. Boa parte da sociedade, ainda nos dias atuais,<br />
apresenta certo temor em relação ao desenvolvimento e ampliação<br />
dos traços criativos, por relacionarem algumas características da criatividade<br />
a doença mental, atos de loucura ou mesmo delinquência.<br />
Quando se pensa ou se escreve sobre essa inadequada correlação,<br />
não se costuma fazer um levantamento da história de vida de cada sujeito,<br />
seus antecedentes familiares etc. Um sujeito que é criativo pode<br />
ter desenvolvido em si ou ter em sua família algum aspecto patológico<br />
que não tem a ver, necessariamente, com sua criatividade ou seu talento.<br />
São situações distintas, embora possíveis, e acarretam alguma<br />
confusão quando obtidas em leituras e informações mais superficiais e<br />
populares sobre a questão.<br />
A criação é uma busca de ordenações e significados, e é no próprio<br />
quotidiano que o homem sente necessidade de ser consciente,<br />
compreender, analisar e ordenar os fenômenos que o rodeiam, avaliando<br />
o sentido das formas por ele ordenadas para comunicar-se com<br />
os outros seres humanos, correspondendo, portanto, a necessidades<br />
existenciais. Assim, o homem não cria só porque gosta ou quer, mas<br />
sobretudo porque precisa, e os processos de criação ocorrem tanto no<br />
âmbito da intuição quanto no pensamento racional.<br />
Usualmente as pessoas consideradas inteligentes e bem-sucedidas<br />
percebem quando o ambiente em que se encontram pode ou não<br />
permitir que aproveitem ao máximo seu talento. Buscam o ambiente<br />
96 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
favorável não apenas para realizar um trabalho competente, mas também<br />
para fazer algo importante, usando suas possibilidades e habilidades.<br />
Elas criam suas próprias oportunidades, em vez de deixar que<br />
estas sejam limitadas pelas circunstâncias em que se encontram<br />
(STERNBERG, 2000a). Mesmo que não seja uma regra geral, muitos<br />
reduzem sua participação se não houver um meio favorável e estimulador<br />
para que seu talento se desenvolva e se ressentem por não<br />
receberem o reconhecimento social de suas produções, atividades realizadas<br />
ou propostas oferecidas.<br />
Estudos de Torrance (1965), um clássico do tema, ressaltaram com<br />
veemência que é necessário desenvolver alguns aspectos específicos,<br />
como tornar-se sensível a falhas ou deficiências na informação,<br />
identificar dificuldades ou elementos que faltam, formular hipóteses<br />
e comunicar os resultados encontrados, para que se realizem todas as<br />
fases da criatividade propriamente dita. Trazendo essa reflexão para<br />
a perspectiva laboral, vemos que esses aspectos, necessários e vitais,<br />
nem sempre recebem encorajamento nos espaços tanto empresariais<br />
quanto educacionais. Ainda assim, há pessoas que apresentam variados<br />
talentos nos campos do saber ou do fazer e que se tornam muito<br />
férteis, apesar de não terem tido oportunidade de escolarização,<br />
isto é, oportunidade de aprendizagem sistematizada e institucional<br />
(METTRAU, 2000). Temos, então, quando não nos preocupamos com<br />
o desperdício do talento e da criatividade, dois tipos de perdas: a<br />
referente à pessoa propriamente dita e a referente ao grupo social,<br />
ou seja, a perda relacionada a uma coletividade, a perda da própria<br />
criatividade enquanto campo de estudos, de produção e de avanços<br />
conceituais.<br />
A imaginação criadora é uma capacidade de combinação e reelaboração<br />
de elementos essencial ao ser humano. Vygotsky (1982),<br />
Ostrower (1989) e outros estudiosos caracterizam a imaginação criadora<br />
como uma função vital ao ser humano e ao desenvolvimento<br />
social global e, portanto, temos justa razão para cultivá-la em todo<br />
o nosso percurso de vida.<br />
Sem criatividade nosso mundo não caminharia. Estaríamos ainda<br />
sem fogo, sem roda, sem eletricidade, telefone e avião, entre outras<br />
criações, o que hoje é impensável. Obviamente cada nova criação faz<br />
emergir novos usos e novas dependências desses usos, pois nos acos-<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
97
tumamos de tal maneira a produtos e obras criadas que sentimos sua<br />
falta em nosso cotidiano se eles nos forem tirados.<br />
4 INTELIGÊNCIA E CRIATIVIDADE<br />
A Figura 1 apresenta o Diagrama de Mettrau (2004), no qual uma<br />
das três dimensões da inteligência humana é a criatividade.<br />
Figura 1<br />
Diagrama de Mettrau (2004)<br />
O diagrama apresenta movimento circular e contínuo, indicando<br />
que nossa inteligência não tem hierarquia em suas expressões criativa,<br />
afetiva e cognitiva nem existem campos de maior ou menor<br />
expressão entre elas, pois apresentam funcionamento ininterrupto<br />
em todas as fases de nossas vidas. O funcionamento da inteligência<br />
humana é um processo dinâmico, sem local de início nem fim, que<br />
englobaria três expressões distintas, mas indissociáveis e sem hierarquia<br />
entre si. Essas diferentes expressões se iniciam, se realizam<br />
e se desenvolvem no contexto do grupo social, isto é, o homem<br />
não existe, não se realiza nem se desenvolve fora do grupo social<br />
(METTRAU, 2004; 2009).<br />
98 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
Criar, conhecer e sentir são as diferentes expressões da inteligência<br />
humana. É possível ao homem expressar sua inteligência de variadas<br />
maneiras e formas, pois ele é capaz de criar (criação), perceber e<br />
conhecer o que cria (cognição) e sentir emoções sobre sua criação.<br />
“Criar, perceber o que cria e sentir são, exatamente, as dimensões que<br />
distinguem o ser humano dos demais animais” (METTRAU, 2004, p.<br />
257). A partir desse diagrama, a criatividade é vista como uma dimensão<br />
da inteligência humana.<br />
As pessoas necessitam obter novos conhecimentos sobre seu próprio<br />
funcionamento inteligente e criativo, para compreender e enriquecer<br />
uma variedade de tipos de interesses e possibilidades, para se libertar<br />
da maioria dos mitos e fantasias que correm sobre esses dois campos<br />
de estudos.<br />
O tema da inteligência humana continua sendo um tópico inter e<br />
transdisciplinar, exigindo reflexão e debate contínuos sobre seus múltiplos<br />
aspectos. O Diagrama de Mettrau é parte de uma ideia maior,<br />
qual seja, a compreensão de que nossa inteligência é um patrimônio<br />
social, que devemos cuidar e preservar ao máximo, com atenção e<br />
cuidado, favorecendo sempre um desenvolvimento mais completo de<br />
todas as pessoas e suas potencialidades.<br />
5 FATORES INDIVIDUAIS DA CRIATIVIDADE<br />
Estudos de Sternberg e Lubart (1991; 1993; 1995) sugerem que<br />
deve haver convergência de fatores individuais e ambientais para que<br />
venha a ocorrer a criatividade. A confluência de múltiplos fatores distinguiria<br />
a pessoa muito criativa de uma pessoa apenas modestamente<br />
criativa (STERNBERG, 1996).<br />
Ao examinar processos intelectuais de pessoas criativas, as pesquisas<br />
dão destaque para a competência na descoberta do problema (quando<br />
se verificam as falhas ou os procedimentos até então existentes em determinados<br />
campos) e para a definição e seleção de estratégias de resolução.<br />
Sternberg (1992) chamou a capacidade de expressão global de “ver a<br />
grande tela” (opondo-se à concentração em detalhes), que é ainda aliada<br />
à preferência pela novidade e produtividade geradora de muitas ideias.<br />
Outro fator componente e importante é a flexibilidade. Por flexibilidade<br />
entendemos a aptidão de apreender um único objeto, uma<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
99
única ideia sob ângulos diferentes; ter sensibilidade à mudança como<br />
a capacidade de se libertar de uma ideia inicial para explorar novas<br />
pistas. Flexibilidade é palavra-chave envolvida com a criatividade,<br />
pois reflete a mobilidade e a maleabilidade do pensamento (LUBART,<br />
2007). Segundo o autor, observa-se que, do ponto de vista cognitivo,<br />
temos algumas capacidades intelectuais consideradas essenciais ao<br />
ato criativo:<br />
a) identificar, definir e redefinir (o problema ou a tarefa);<br />
b) revelar, dentro do ambiente, as informações relativas ao problema<br />
(situação, tarefa);<br />
c) observar as semelhanças nas diferentes áreas que clareiam o problema<br />
(semelhança, analogia, comparação, metáfora);<br />
d) escolher e fazer comparação seletiva;<br />
e) reagrupar elementos diversos da informação que, quando reunidos,<br />
vão formar uma nova ideia (combinação seletiva);<br />
f) gerar várias possibilidades (pensamento divergente);<br />
g) autoavaliar sua evolução para solução de problemas;<br />
h) libertar-se de uma ideia inicial para explorar novas pistas.<br />
O estudo da criatividade remete-nos a um interesse suplementar,<br />
qual seja, o de levantar grande número de questões, tanto de ordem<br />
científica quanto de ordem existencial, que podem ser agrupadas em<br />
cinco problemáticas mais amplas: questões referentes a definições; à<br />
origem das diferenças individuais; ao domínio de expressão do ato<br />
criativo; à criatividade em si; e, por último, a questão: a criatividade<br />
pode se expressar em vários campos distintos ou atingir unicamente<br />
um domínio específico em cada pessoa?<br />
Outra perspectiva se refere à identificação e à medida da criatividade.<br />
Qual seria a definição científica da criatividade e quais seriam os<br />
meios e instrumentos capazes de avaliá-la?<br />
6 GRUPOS CRIATIVOS<br />
Para tentar responder a algumas dessas difíceis questões, De Masi<br />
(1997) faz uma análise de treze grupos históricos, conjugada ao estudo<br />
da literatura sobre criatividade, ressaltando algumas constantes que<br />
100 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
dizem respeito à personalidade dos sujeitos criativos individualmente<br />
e à organização dos grupos nos quais eles operam.<br />
Quanto aos fatores individuais, podem-se destacar nos estudos desses<br />
grupos: forte motivação dos artistas e cientistas com a atividade<br />
idealizada e realizada; habilidades intelectuais e percepção rigorosa<br />
por forte envolvimento emotivo; amplo senso de união por pertencer<br />
ao mesmo grupo; espírito de iniciativa, confiança e reciprocidade;<br />
vontade firme, dedicação total e flexibilidade (DE MASI, 1997).<br />
Quanto às características dos grupos criativos, destacam-se: a convivência<br />
pacífica na mesma equipe com diferentes modelos de personalidade;<br />
a procura obstinada de um ambiente físico acolhedor, bonito<br />
e funcional; a interdisciplinaridade; a forte complementaridade e a<br />
afinidade cultural dos membros; habilidade na concentração de energias<br />
de cada um no objetivo comum; busca e encontro de recursos<br />
para calibrar a natureza afetiva com o profissionalismo e para facilitar<br />
o intercâmbio entre desempenhos e funções. Como se vê, nada fácil<br />
de obter, atingir e manter.<br />
Podemos afirmar que criar é dar forma a algo novo em qualquer campo<br />
do pensamento e da atividade e, portanto, o ato de criar abrange<br />
a capacidade de compreender, que, por sua vez, envolve outras capacidades,<br />
como relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER,<br />
1989). Assim, a criação pode ser vista como uma dimensão da<br />
inteligência. Os indivíduos altamente criativos têm necessidades fortes<br />
voltadas para o desconhecido, o inusitado, o paradoxal, o misterioso<br />
e o inexplicável. De modo geral, a sociedade não oferece reconhecimento,<br />
nem mesmo demonstra interesse no encorajamento e na<br />
persistência dessa curiosidade mais intensa apresentada por alguns.<br />
Em constantes e aceleradas mudanças, necessitamos, de forma essencial<br />
e especial, da imaginação e da criatividade, compreendendo<br />
e aceitando a diversidade de talentos e das diferentes personalidades.<br />
Os variados profissionais deveriam, portanto, dispor de todas as ocasiões<br />
possíveis para a descoberta e a experimentação estética, artística,<br />
desportiva, científica, cultural, tecnológica e social, a fim de captar e<br />
usar as indicações de novas ideias e criações.<br />
Criatividade, portanto, corresponde a uma maior flexibilidade mental,<br />
que impulsiona a pessoa para outros patamares de realização e<br />
pode ser definida como “o processo de produzir alguma coisa que é ao<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
101
mesmo tempo original e de valor” (STERNBERG, 2000, p. 332). Não<br />
está diretamente relacionada ao conhecimento acadêmico, mas sim a<br />
uma produção que pode ocorrer na área acadêmica, cultural, tecnológica<br />
ou artística. Sternberg define a criatividade como a capacidade<br />
de ir além do já estabelecido para gerar ideias novas e interessantes.<br />
Ostrower (1989), artista plástica, criadora, professora e escritora,<br />
ressalta que, do mesmo modo que a percepção, a intuição é um processo<br />
dinâmico e ativo, que tem participação atuante no ambiente, e<br />
que é também um sair-de-si para captar novas buscas de conteúdos<br />
significativos. Os processos de perceber e intuir são afins, tanto é assim<br />
que não só a intuição está ligada à percepção, como o próprio ato de<br />
perceber talvez não seja outra coisa senão um contínuo ato de intuir.<br />
Já outro autor, De Bono (1994), diferencia dois modelos de pensamento:<br />
o vertical (lógico, natural) e o lateral (criativo), descrevendo-os<br />
como diferentes, porém complementares. Segundo o autor, fazemos<br />
muito uso do pensamento vertical e pouquíssimo do pensamento lateral,<br />
ainda que essa forma de pensamento seja muito valiosa para<br />
reconhecer ideias dominantes e polarizadoras, gerar as diversas maneiras<br />
de examinar situações e relaxar o rígido controle exercido pelo<br />
pensamento lógico (DE BONO, 1994).<br />
Já cabe perguntar, a esta altura, quando é que um grupo pode ser chamado<br />
de criativo e quais as propostas disciplinares que mais nos ajudarão<br />
para desvendar os segredos da criatividade coletiva, e ainda novas questões:<br />
como pode nossa sociedade perder seus talentos e não usar a criatividade?<br />
Voltamos nossa preocupação, agora, para uma sociedade toda ela<br />
mais criativa, com base no estudo de grupos criativos (DE MASI, 2003).<br />
Lent, um estudioso e pesquisador atual do campo da neurologia,<br />
afirma que é pelo desenvolvimento da percepção que também podemos<br />
desenvolver a criatividade. “Percepção é a capacidade de associar<br />
informações sensoriais à memória e à cognição (conhecimento)<br />
de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e<br />
orientar o nosso comportamento” (LENT, 2001, p. 556).<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Novos saltos no curso da história acontecem e continuarão a acontecer<br />
com base nas grandes descobertas nos campos teóricos e práticos.<br />
102 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
Foram necessários muitos milênios de vida arcaica para produzir o<br />
Estado moderno; foram necessários quinhentos anos de organização<br />
moderna para produzir a sociedade industrial e apenas dois séculos de<br />
indústria bastaram para provocar o advento pós-industrial. A imaginação<br />
pessoal é influenciada pela experiência (quantitativa e qualitativa),<br />
pela realidade e pelas experiências passadas, incluindo a participação<br />
da memória. Apoia-se na experiência direta com a realidade, pois se<br />
trata de um enlace da imaginação pessoal com a realidade concreta.<br />
“Percebe-se a necessidade de ampliar sempre as experiências se queremos<br />
proporcionar uma base suficientemente sólida para a atividade<br />
criadora” (VGOTSK, 1982, p. 18).<br />
Todos somos ou podemos ser observadores, pois observar tanto se<br />
ensina quanto se aprende. Desenvolver a observação é um dos caminhos<br />
para se desenvolver a criatividade em todas as idades, circunstâncias<br />
e locais. A importância de encorajar e oferecer variadas experiências<br />
no cotidiano e no ambiente é uma prioridade cada vez mais<br />
visível, uma vez que as pessoas passam a conviver, nos dias de hoje,<br />
mais constantemente com as diferenças e com os diferentes. Oferecer<br />
um ambiente facilitador para o desenvolvimento do potencial criativo<br />
existente em todos nós atende à necessidade de saúde mental, além<br />
de facilitar, ampliar e qualificar nosso viver cotidiano. Delors (1996)<br />
sugere que, nos diversos espaços sociais, a arte e a poesia, aliadas à<br />
ciência e à tecnologia, deveriam ocupar lugar de destaque, a fim de<br />
impulsionar e expandir a ampliação da imaginação e da criatividade<br />
ao longo do desenvolvimento humano.<br />
O comportamento criativo pode ser entendido a partir do exame<br />
de nossa atitude pessoal em relação: ao nosso potencial criativo, ou<br />
seja, como nos vemos em nossas interações com outras pessoas na<br />
busca de novas soluções; às combinações realizadas quando usamos<br />
o já conhecido, tanto o conhecimento formal quanto as diversas<br />
experiências; às novas formas que imaginamos para lidar com novas<br />
situações ou descobertas; e, finalmente, à nossa capacidade de<br />
avaliar novos resultados a partir dessas outras perspectivas e análises<br />
(WECHSLER, 2009).<br />
A análise e a reflexão desses variados aspectos significantes nos remetem<br />
à nossa afetividade e ao quanto ela é significativa no campo<br />
dos estudos da criatividade. É de Noller (apud GLIGIO, WECHSLER<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
103
e BRAGOTTO, 2009) o exemplo de uma equação simbólica relativa<br />
ao processo criativo: Criatividade = f.a (C, I, A), interpretando-se a<br />
criatividade como função (f) de uma atitude (a), em direção ao uso<br />
benéfico e positivo da criatividade, em combinação com três fatores:<br />
conhecimento (C), imaginação (I) e avaliação (A). Essa equação criativa<br />
formata, um pouco mais rigidamente, os diversos fatores que irão<br />
compor o conjunto de nosso comportamento criativo.<br />
Os novos tempos ficam velhos muito rapidamente, levando-nos<br />
ao espanto. No sistema social, o conhecimento teórico, a ciência e<br />
a informação ocupam o papel central que já pertenceu à produção<br />
manufatureira. No sistema cultural, o individualismo e o narcisismo<br />
adquirem vigor crescente (DE MASI, 1997). Os burocratas têm medo<br />
da inovação, os criativos temem o imobilismo. As duas posições serão<br />
cada vez mais inconciliáveis. Vencerão os mais criativos, porque a sociedade<br />
pós-industrial se alimenta de invenções; não tem outra saída<br />
senão premiar a iniciativa e jogar para fora do mercado o imobilismo<br />
(DE MASI, 2000).<br />
Em conclusão, já vimos que a espécie humana é dotada de possibilidades<br />
e inúmeros comportamentos inteligentes, cada vez mais<br />
diferenciados, conforme demonstram as invenções e as descobertas<br />
que auxiliam e fazem parte da evolução de nosso mundo. É de Morin<br />
o pensamento aqui expresso: “o desenvolvimento das competências<br />
inatas anda a par do desenvolvimento das aptidões para adquirir, memorizar<br />
e tratar o conhecimento. É, pois, esse movimento espiral que<br />
nos permite compreender a possibilidade de aprender. Aprender não<br />
é apenas reconhecer o que de maneira virtual já era conhecido. Não<br />
é apenas transformar o desconhecido em conhecido. É a conjunção<br />
do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do<br />
conhecimento e do desconhecimento” (MORIN, 1995, p. 71).<br />
Neste artigo, o talento e a criatividade não são concebidos como<br />
dom, mas sim como conjunto de características e comportamentos<br />
que podem e devem ser desenvolvidos e ampliados na interação com<br />
o mundo, e que se apresentam em grande variedade de possibilidades.<br />
Para os talentosos nem sempre tem sido fácil demonstrar ou<br />
expressar suas capacidades diferenciadas, pois há uma tendência à<br />
conservação e à padronização.<br />
104 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
REFERÊNCIAS<br />
ALBERT, R. S.; RUNCO, M. A. A history of research on creativity. In: STERN-<br />
BERG, R. J. (Ed.). Handbook of creativity. Cambridge: Cambridge University<br />
Press, 1999. p. 16-31.<br />
DE BONO, E. Criatividade levada a sério: como gerar idéias produtivas através<br />
do pensamento lateral. Trad.: Nivaldo Montingelli JR. São Paulo: Pioneira,<br />
1994.<br />
DELORS, J. et al. Educação um tesouro a descobrir. Porto: Edições ASA,<br />
1996. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação<br />
para o século XXI.<br />
DE MASI, D. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.<br />
DE MASI, D. (Org.) A emoção e a regra: os grupos criativos na Europa de<br />
1850-1950. Trad.: Elia Ferreira Edel. Brasília, D.F.: UnB; Rio de Janeiro: J.<br />
Olympio, 1997.<br />
DE MASI, D. (Org.) O ócio criativo. Entrevista a Maria Serena Palieri. Trad.<br />
Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.<br />
GAGNÉ, F. De la superdotacion al talento: un modelo de desarrollo y su impacto<br />
en el lenguaje. Ideación: la revista en español sobre superdotación, n.<br />
10, p. 13-23, mayo 1997.<br />
GALTON, F. Hereditary genius: an inquiry into its laws and consequences.<br />
In: SIMONTON, D. K. A origem do gênio: perspectivas darwinianas sobre a<br />
criatividade. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />
GIGLIO, Z. G.; WECHSLER, S. M.; BRAGOTTO, D. (Org.) Da criatividade à<br />
inovação. Campinas: Papirus, 2009.<br />
LENT, R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociência.<br />
São Paulo: Atheneu, 2001. p. 556.<br />
LUBART, T. Psicologia da criatividade. Trad.: Márcia Conceição Machado<br />
Moraes. Porto Alegre: ArtMed, 2007.<br />
METTRAU, M. B. Altas habilidades, talento e excelência: do ensino fundamental<br />
à universidade. In: ALMEIDA, L. S.; SILVA, B. D.; CAIRE, S. (Org.).<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
105
Actas do I Seminário Internacional Contributos da Psicologia em Contextos<br />
Educativos. Braga: Centro de Investigação em Educação/Instituto de Educação/Universidade<br />
do Minho, 2010. p. 707-718.<br />
METTRAU, M. B. Criatividade e inteligência valsando, onde tudo começa...:<br />
criatividade: encorajar e apreciar. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE<br />
EDUCAÇÃO INFANTIL, 4., Rio de Janeiro, 2004. Anais... Rio de Janeiro: Associação<br />
Brasileira de Educação Infantil, 2004. p. 255-258.<br />
METTRAU, M. B. Imaginário, criatividade e processo criativo. In: AZEVEDO,<br />
N. S. N.; SCOFANO, R. G. (Org.). Recortes do imaginário. Campinas: Alínea,<br />
2009. p. 53-76.<br />
METTRAU, M. B. Inteligência: patrimônio social. Rio de Janeiro: Ed. Dunya,<br />
2000.<br />
METTRAU, M. B. Psicomotricidade e altas habilidades, inteligência, criatividade,<br />
movimento e espaço: apreciando nossas diferenças. In: FERREIRA, C. A.<br />
M.; RAMOS, M. I. B. (Org.). Psicomotricidade, educação especial e inclusão<br />
social. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2007. Cap. 16, p. 205-221.<br />
MOON, S. M. Personal talent. High Ability Studies, n. 14, p. 5-21, 2003.<br />
OSTROWER, F. Acasos e criação artística. 2. ed. Rio de Janeiro: Campos,<br />
1995.<br />
OSTROWER, F. Criatividade e processo de criação. 7. ed. Petrópolis: Vozes,<br />
1989.<br />
PETRAGLIA, I. C. Edgar Morin: a educação e a complexidade do ser e do<br />
saber. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
RIBEIRO, V. M. T. F. Novos desafios e oportunidades no ensino do processo<br />
criativo nas organizações. In: GIGLIO, Z. G.; WECHSLER, S. M.; BRAGOTTO,<br />
D. (Org.). Da criatividade à inovação. Campinas: Papirus, 2009. p. 185-206.<br />
RIBOT, T. A. Essai sur l’imagination créatrice. In: LUBART, T. Psicologia da<br />
criatividade. Porto Alegre: Artmed, 2007.<br />
RODARI, G. Gramática da fantasia. 7. ed. São Paulo: Summus, 1982.<br />
SIMONTON, D. K. A origem do gênio: perspectivas darwinianas sobre a criatividade.<br />
Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />
106 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011
STERNBERG, R. J. A inteligência para o sucesso pessoal: como a inteligência<br />
prática e criativa determina o sucesso. Rio de Janeiro: Campus, 2000a.<br />
STERNBERG, R. J. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artmed, 2000b.<br />
STERNBERG, R. J. Successful intelligence. New ork: Simon & Schuster,<br />
1996.<br />
STERNBERG, R. J.; LUBART, T. Creative giftedness: a multivariate investment<br />
approach. Gifted Child Quartely, v. 37, n. 1, p. 7-15, 1993.<br />
STERNBERG, R. J.; LUBART, T. Defying the crowd: cultivating creativity in a<br />
culture of conformity. New ork: Free Press, 1995.<br />
STERNBERG, R. J.; LUBART, T. An investment theory of creativity and its development.<br />
Human Development, n. 34, p. 1-31, 1991.<br />
TORRANCE, E. P. Gifted children in the classroom. New ork: Macmillan,<br />
1965.<br />
VGOTST, L. S. A formação social da mente. 3. ed. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1989.<br />
VGOTST, L. S. Imaginación y realidad. In: VGOTSK, L. S. La imaginacion<br />
y el arte en la infancia. Madrid: AKAL, 1982. p. 15-29.<br />
WECHSLER, S. M. Estilos de pensar e criar: implicações para a liderança. In:<br />
GIGLIO, Z. G.; WECHSLER, S. M.; BRAGOTTO, D. (Org.) Da criatividade à<br />
inovação. Campinas: Papirus, 2009. p. 39-59.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
107
ENTRE O DRAMA E A<br />
TRAGÉDIA: PENSANDO<br />
OS PROJETOS SOCIAIS DE<br />
DANÇA DO RIO DE JANEIRO<br />
Monique Assis<br />
Nilda Teves<br />
108 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
Os objetivos do presente estudo foram: a) explicitar as construções imaginárias<br />
que norteiam as práticas cotidianas dos projetos sociais de dança no Rio de Janeiro;<br />
e b) identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte e a<br />
formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar cotidiano desses<br />
projetos. Para tanto, utilizou-se uma trilha metodológica composta pela análise<br />
do discurso, conforme a concepção desenvolvida por Eni P. Orlandi (1988;<br />
1993; 1996), e pelos estudos de etnometodologia, apresentados por Coulon<br />
(1995). As observações de campo se realizaram em dois projetos sociais e envolveram<br />
diferentes aspectos que ultrapassavam a dimensão da dança, mas que<br />
são indissociáveis da produção de sentido gerada por essa prática. Características<br />
abrangentes do projeto, como localização, condições materiais, origem<br />
e formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário, murais,<br />
gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário do projeto e<br />
as formas como os alunos expressam sua adesão e identificação com diferentes<br />
vivências da dança. Na investigação perceberam-se outros significados para os<br />
projetos, tais como heterogeneidade, identidade, divertimento, deslocamento<br />
de sentidos nas relações entre ócio e trabalho, casa e rua, desilusão, imbricações<br />
com o patrocínio e os vários interesses em jogo, preconceitos, segregação.<br />
Palavras-chave: favela, projetos sociais de dança, imaginário social<br />
The present study’s objective was to: a) explain the imaginary constructions that<br />
guide the daily practices of the dance social projects in Rio de Janeiro; and b)<br />
identify how the relationships between the art teaching and the establishment<br />
of the citizenship in the formal structure and in the daily development of these<br />
projects are manifested. For this purpose, a methodology was applied combining<br />
the speech analysis technique according to the concept developed by Eni<br />
P. Orlandi (1988, 1993, 1996) and the ethno-methodology studies presented<br />
by Coulon (1995). The field observations occurred in two social projects and<br />
involved different aspects that surpassed the dance realm but are inseparable<br />
from the production of meaning generated by all this practice. The project’s<br />
comprehensive features such as location, material conditions, origin, and professional<br />
training mingled with details like clothing, murals, slangs, hairstyles, in<br />
short, signals that suggest the project’s image and the ways how these students<br />
express their connection to and identification with different dance experiences.<br />
This investigation brought up other significances for the projects such as: heterogeneity,<br />
identity, recreation, displacement of meanings in the relationships<br />
between leisure and work, home and street, disappointment, imbrications with<br />
sponsorship and the various interests at stake, prejudice and segregation.<br />
Keywords: slum, dance social projects, social image<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
109
INTRODUÇÃO<br />
A Proclamação da República consolidou e remodelou a cidade do<br />
Rio de Janeiro, sem, no entanto, permitir que se formassem cidadãos.<br />
Isso parece um contrassenso, uma vez que a implantação do novo<br />
regime, inspirado na melhor tradição da Revolução Francesa de 1789,<br />
se propunha exatamente a trazer o povo para o proscênio da cena<br />
política. É difícil imaginar uma República sem participação pública. Da<br />
Matta e Soarez (1999) trouxeram à tona o caráter arbitrário e elitista<br />
da situação. Segundo os autores, a reduzida participação popular no<br />
processo de transição republicana conferiu-lhe um aspecto de surpresa,<br />
mais próximo do que se convencionou chamar de golpe. A massa<br />
populacional foi tomada de assalto pela parada militar de Deodoro e<br />
reagiu com incredulidade frente àquele evento aleatório e completamente<br />
exterior ao curso normal de seu cotidiano.<br />
As ideias de uma democracia liberal estavam realmente sem contexto<br />
em nossa sociedade, ou, como diz Schwarz (2000), estavam definitivamente<br />
“fora do lugar”.<br />
Refletindo sobre a disparidade entre a sociedade brasileira negra de<br />
origem escravista e as ideias do liberalismo europeu, Sérgio Buarque<br />
de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, observa que a tentativa de<br />
implantação da cultura europeia em nosso território, em geral adverso<br />
em todos os sentidos, tornou-se, nas origens da sociedade brasileira, o<br />
fato dominante e mais rico em consequências. Para o autor, “trazer de<br />
países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições e nossas<br />
ideias e tentar manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável<br />
e hostil caracteriza nossa história, somos uns desterrados em nossas<br />
próprias terras” (HOLANDA, 2002, p. 31) 1 .<br />
1 Essa expressão do autor pode ser estendida para a concepção de dança<br />
acadêmica que foi trazida para o Brasil. O rigor dos padrões estéticos do balé<br />
clássico russo e europeu não se adequava nem ao corpo arredondado, nem à<br />
cor morena, e muito menos ao espírito dos brasileiros. Era como se um novo<br />
corpo tivesse que ser construído.<br />
110 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
Era como se a elite carioca se julgasse europeia 2 , branca e superior,<br />
em contraste com uma maioria negra ou mestiça, formada em grande<br />
parte por ex-escravos, que insistiam em contaminar a estética e a<br />
cultura da cidade com seus hábitos perniciosos e primitivos e com sua<br />
religiosidade impregnada de crenças indígenas e práticas africanas.<br />
O enredo do drama carioca, portanto, delineava-se na dualidade de<br />
duas ordens de valores, de duas morais: a moral do senhor, representada<br />
por uma elite participativa, e a moral escrava, serviçal, estranha,<br />
porém útil, mas principalmente privada de qualquer direito político.<br />
Uma leitura dessa dicotomia da cidade já estava presente, no início<br />
do século XX, na obra de João do Rio, pseudônimo do jornalista e<br />
escritor Paulo Barreto. Esse personagem lendário da historiografia do<br />
Rio de Janeiro foi um dos primeiros a ler a cidade dual que se tornou<br />
o Rio depois das reformas de Pereira Passos.<br />
Era como se a cidade real, por onde circulava uma rica tradição<br />
popular, não pudesse fazer parte da cena moderna. Como nos diz<br />
Gomes (1996), era vista como obscena e deveria estar fora, para não<br />
manchar o cenário ideal de cidade civilizada, cujo emblema era a<br />
Avenida Central, inaugurada em 1909.<br />
Vê-se que a favela, ao longo do século XX, foi se construindo como<br />
um espelho invertido da cidade urbana e civilizada, e o favelado,<br />
como um fantasma, um outro, foi percebido a partir do que se esperava<br />
de um cidadão urbano nos moldes europeus. Essas duas cidades,<br />
marcadas pela ordem e pela desordem, entram em conflito e<br />
se complementam, se entranham e se estranham, desaprendendo e<br />
aprendendo cada vez mais uma linguagem comum com que poderiam<br />
se comunicar.<br />
2 O sonho dos dirigentes políticos de tornar a cidade do Rio de Janeiro uma<br />
capital cultural nos moldes europeus fez com que, em 1909, fosse criado<br />
o Theatro Municipal, com o objetivo de receber as companhias de danças<br />
internacionais, e em 1927, se inaugurasse a primeira escola oficial profissionalizante<br />
de dança no Brasil, seguindo os padrões estéticos do balé clássico<br />
europeu e russo.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
111
1 A DANÇA ARTÍSTICA SOBE O MORRO<br />
Desde os anos 1990, vários coreógrafos e bailarinos que compõem<br />
o cenário da dança artística do Rio de Janeiro estão investindo na vivência<br />
da dança em comunidades de baixa renda, levando as técnicas<br />
de dança para corpos que, como tradutores do texto e do contexto<br />
social, carregam em si o estigma da exclusão social. Tais coreógrafos<br />
pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como matéria-<br />
-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem espaço<br />
para a democratização da vivência da arte.<br />
A dança artística sobe o morro pela ação de projetos sociais que<br />
são, de certo modo, veiculados pela mídia e contam com o apoio de<br />
patrocinadores governamentais e da iniciativa privada, cujos interesses<br />
são diferentes e contrastantes.<br />
No trabalho desenvolvido por Silvia Soter 3 (2002), A dança no Rio de<br />
Janeiro: uma alternativa contra a exclusão, foi elaborada uma cartografia<br />
dos projetos sociais em dança na cidade. Segundo a autora, o balé<br />
clássico, a dança contemporânea, a dança de rua e as danças populares<br />
são alguns exemplos das práticas oferecidas para as comunidades.<br />
Embora todas utilizem a dança como eixo comum, suas propostas diferem<br />
quanto a seus objetivos e metas.<br />
O relatório final do estudo apresentou a catalogação de 32 projetos,<br />
sem garantir a cobertura de todo o universo existente, descrevendo<br />
seus conteúdos quanto ao estilo de dança e aos objetivos do projeto,<br />
o número e o perfil das pessoas atendidas, os benefícios oferecidos<br />
(cesta básica, serviço médico e odontológico, assistência social etc.),<br />
características dos financiadores e investidores privados, tempo de<br />
existência dos projetos, apresentações artísticas, entre outros aspectos.<br />
O estudo de Soter revela uma significativa inserção de projetos sociais<br />
ligados à dança na cidade do Rio de Janeiro. Observa a autora<br />
que tal fenômeno, já presente desde 1989, ganha vulto a partir de<br />
3 Silvia Soter é formada em dança pela Universidade de Paris VIII e em Artes<br />
pela PUC-RJ, além de ser crítica de dança do jornal O Globo. Seu estudo foi<br />
patrocinado pelo Programa de Bolsas RioArte, do Instituto Municipal de Arte e<br />
Cultura, e teve como objetivo mapear os projetos de prática de dança oferecidos<br />
gratuitamente a comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro.<br />
112 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
1998, quando surgem 26 dos 32 projetos catalogados, que desenvolvem<br />
propostas sociais e artísticas. Os profissionais envolvidos nos<br />
projetos pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como<br />
matéria-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem<br />
espaço para a democratização da vivência da arte, elaborando temas<br />
como: resgate da cidadania, recuperação da autoestima, da identidade<br />
cultural e étnica, inclusão social e construção de um futuro. Pautando-se<br />
no bordão da inclusão social, esses projetos entram em cena<br />
no espaço social da favela e nos palcos da cidade, produzindo, além<br />
de um espetáculo artístico, crenças, fantasias e ilusões.<br />
Esses movimentos vêm, de certa forma, propondo sentidos alternativos<br />
à cidadania e à política, mediante a ideia da democratização<br />
da arte. Trata-se de múltiplas ações e projetos sociais de resgate da<br />
cidadania e construção do indivíduo promovidos por ONGs, Igrejas,<br />
empresas e profissionais liberais. São movimentos que complementam<br />
a ação estatal ou caminham em direção oposta, como resposta a uma<br />
crise de cidadania. Pressupõe-se, nesse caso, que a sociedade civil<br />
acaba participando na implementação de novas políticas públicas,<br />
criando redes de sociabilidade e pontes de sentido entre o cidadão e a<br />
sociedade, além de promover um processo educacional mediado pela<br />
corporeidade. Isso porque a educação não se esgota na instrução de<br />
conteúdos de conhecimento, ela passa necessariamente pelo corpo,<br />
pela capacidade de sentir, ver, ouvir e tocar o mundo. Segundo Ferreira<br />
(1993), o corpo todo do homem é seu limite de captação do mundo.<br />
É, pois, mediante sua corporeidade que a pessoa chega às coisas.<br />
Um projeto social de dança trafega por duas linguagens, por duas<br />
formas de ver o mundo. Por um lado, sendo um projeto social, traz<br />
consigo questões que norteiam o pensamento moderno, como direito<br />
à cidadania, desigualdades sociais, marginalidade e alteridade. Por outro,<br />
o fato de lidar com a dança se depara com a dimensão anárquica,<br />
plástica e trágica da arte de se embrenhar pelas fissuras do instituído<br />
e transformá-lo.<br />
Considerando essas reflexões, o presente estudo se desenvolveu a<br />
partir de três objetivos principais:<br />
a) Investigar os sentidos de dois projetos sociais de dança oferecidos<br />
gratuitamente a comunidades de baixa renda da cidade do Rio de<br />
Janeiro, conforme expressos nos discursos dos alunos.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
113
) Explicitar as construções imaginárias que norteiam as práticas cotidianas<br />
desses projetos.<br />
c) Identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte<br />
e a formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar<br />
cotidiano dos projetos.<br />
Como estratégia metodológica, optou-se por trabalhar o imaginário<br />
presente nos discursos dos alunos dos projetos de dança<br />
trilhando diversos percursos. Dentro dessa temática, Gilbert Durand,<br />
em seu livro O Imaginário (1999), aponta para outras combinações<br />
de análise, que fogem de uma lógica binária, as quais ele denominou<br />
de bacia semântica, em que A não necessariamente segue B<br />
e tampouco C; há, de fato, uma pluralidade de combinações, produzindo<br />
diferentes sentidos. Para tornar o termo “bacia semântica”<br />
mais claro, pode-se pensar no curso de um rio, constantemente<br />
regulado pelo fluxo de seus afluentes: o rio representa o superego<br />
institucional e seus afluentes e escoamentos trazem o que é<br />
marginal, seus mitos condutores, seus motivos pictóricos, tudo o<br />
que se mistura com o instituído e que, necessariamente, transforma<br />
seu curso.<br />
2 RESULTADOS<br />
As observações de campo envolveram diferentes aspectos que<br />
ultrapassavam a dimensão da dança, mas que são indissociáveis da<br />
produção de sentido gerada por essa prática. Características abrangentes<br />
do projeto, como localização, condições materiais, origem e<br />
formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário,<br />
murais, gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário<br />
do projeto e as formas como os alunos expressam sua adesão e<br />
identificação a diferentes vivências da dança.<br />
Qualquer observação de campo é arbitrária e incompleta se não<br />
incorpora a complexidade e a dramaticidade das experiências observadas<br />
e vividas. Cada projeto se constitui em um universo de sentidos<br />
que se apresentam e se velam a todo instante. Mesmo assim, após as<br />
observações, o bate-papo com os alunos e coreógrafos e o compartilhamento<br />
de momentos singulares começaram a revelar pistas sobre<br />
os significados daquelas práticas.<br />
114 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
Os alunos, em geral, gostam de dar depoimentos sobre sua experiência<br />
dentro e fora da dança, revelando orgulho de fazer parte daquela<br />
tribo, sem, contudo, deixar de apontar a realidade que eles vivem<br />
fora do projeto. Segundo Maffesoli (1987), a constituição dessas tribos<br />
se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma ética<br />
específica e no quadro de uma rede de comunicação.<br />
Na medida em que as histórias de vida eram relatadas, a pluralidade,<br />
a heterogeneidade e a riqueza de experiências recheavam aqueles<br />
discursos, mostrando desde o início que o que fora visto nas reportagens<br />
jornalísticas em relação aos projetos não abarcava a complexidade<br />
do todo. Outros sentidos começaram a emergir.<br />
Na interpretação das reportagens de jornal observou-se que, de<br />
modo geral, os discursos se baseavam em premissas falsas, as quais,<br />
como aponta Orlandi (1993), foram consideradas verdadeiras por<br />
uma produção ideológica historicamente construída e reforçada ao<br />
longo dos anos. O discurso social do asfalto considera que todos os<br />
jovens dos morros da cidade do Rio de Janeiro são iguais, possuem<br />
uma só face de favelado – ou seja, são o outro da cidade, o feio, o<br />
preto, o pobre – e que precisam ser salvos, corrigidos ou inseridos<br />
urgentemente.<br />
As premissas da “salvação”, recorrendo ao imaginário religioso, da<br />
“correção”, sob o viés da moralidade, e da “inserção”, dentro de uma<br />
perspectiva política, são formas elegantes de exclusão, uma vez que as<br />
soluções assistencialistas, na maioria das vezes, não atendem às questões<br />
relativas ao direito à diferença (DEMO, 1998).<br />
Retornando à cidade partida, parte-se do princípio de que toda divisão<br />
de classes é definida por uma determinação econômica; os ricos<br />
moram no asfalto e os pobres e miseráveis nos morros. Entretanto, a<br />
partir dessa primeira divisão vieram outras, que não mais se reportavam<br />
a um fato, mas que foram se construindo simbolicamente no imaginário<br />
das pessoas. Ser favelado, por derivações morais estabelecidas pela ideologia<br />
dominante, abarca as questões da etnia, ou seja, significa ser negro;<br />
da ordem social, significa ser desviante; da cultura, ser aculturado;<br />
da sociedade, não exercer a cidadania; das artes, não possuir qualquer<br />
acesso; e da educação, ser quase analfabeto, por uma questão de precariedade<br />
do ensino público, ou mesmo por uma dificuldade de aprendizado<br />
oriunda de uma debilidade genética inerente à sua origem.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
115
Essa homogeneização do discurso foi enfocada nos estudos de<br />
Preteceille e Valladares (2000), que revelam que seria ingênuo considerar<br />
o universo das favelas como uma unidade ou um espaço homogêneo,<br />
pois elementos indicativos de sua diversidade logo aparecem:<br />
localização dentro da cidade; relevo do terreno; antiguidade; grau de<br />
consolidação das construções; verticalização; nível dos equipamentos<br />
e serviços; condição jurídica de ocupação; presença ou não de “organização”<br />
de tráfico de drogas. Muitas vezes a arquitetura pode até<br />
se mostrar monótona, apresentando algumas semelhanças no tipo de<br />
material de construção, nos quintais, nos tipos de portas e janelas e até<br />
na distribuição dos cômodos, mas logo as diferenças se definem nos<br />
acessórios que se destacam no interior das casas, pelo tipo de mobília,<br />
pelos aparelhos eletrodomésticos: fogão de seis bocas, freezer, presença<br />
de aparelhos eletrônicos, como televisores, videocassetes, DVDs,<br />
CDs e computadores.<br />
Os acessórios funcionam como símbolo de status, uma forma de<br />
comunicar as distinções sociais. É o que Bourdieu (1992) chama de<br />
“capital simbólico”, referindo-se ao acúmulo de bens de consumo que<br />
atestam a classe social de quem os possui. Entretanto, esse capital não<br />
é estático, ele só se mantém como capital simbólico na medida em<br />
que se cria em torno dele uma produção de sentidos que faça com<br />
que ele atenda aos desejos dos consumidores. Muitos adolescentes<br />
entrevistados fizeram questão de mencionar que passavam o dia “jogando<br />
videogame, e do último tipo, minha madrinha me deu de Natal”.<br />
Mais que um simples jogo, o videogame é um símbolo.<br />
Avançando além das questões econômicas e geográficas, a diversidade<br />
da favela também aparece na coloração da pele, no nível de<br />
escolaridade, na vivência da arte, nas experiências de vida, nos gostos,<br />
desejos e fantasias, na religião, nos princípios morais, enfim, existe<br />
um universo de diferenças de uma favela para outra e dentro de uma<br />
mesma favela.<br />
Pode-se dizer que a favela é composta por várias tribos, com mecanismos<br />
de regulagem muito sofisticados e distintos. Segundo Maffesoli<br />
(1987), de fato existe uma partilha geográfica e simbólica de territórios,<br />
formando vários reagrupamentos, que se apoiam em múltiplas<br />
sociabilidades. Para o autor, “o coeficiente de pertença não é absoluto,<br />
cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo<br />
116 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
em cada um deles uma parte importante de si” (p. 202). O espaço<br />
social compreende várias redes flexíveis de jogos de linguagem, em<br />
que vários códigos são compartilhados por um determinado grupo.<br />
Essa pluralidade de tribos torna o conceito de “cidade partida” pouco<br />
abrangente, uma vez que ele traduz uma dicotomia que reduz em<br />
dois os territórios da cidade. Contudo, tanto a favela quanto a cidade<br />
se constituem em uma multidão de aldeias, onde as pessoas se<br />
enraízam, se retraem, buscam abrigo e segurança. Enfim, a cidade é<br />
um grande mosaico urbano ou, como aponta Harvey (1996), o tecido<br />
urbano é uma colagem de espaços e misturas altamente diferenciados.<br />
Quando se entrevista os jovens que moram nos morros, se apreende<br />
que há uma diversidade de experiências de vida tão grande que o<br />
asfalto, aprisionado em sua miopia e seu autocentramento narcísico,<br />
nem sonha conhecer. Vianna (1997), ao estudar o fenômeno dos bailes<br />
funk no Rio de Janeiro, relata essa mesma tendência e comenta<br />
que os subúrbios da cidade são sempre considerados como territórios<br />
inexplorados e selvagens, “onde um antropólogo pode descobrir ‘tribos’<br />
desconhecidas como se estivesse na floresta Amazônica” (p. 12).<br />
O que ocorre é que muitas tribos do asfalto (os jesuítas modernos)<br />
desconhecem o que se passa nas favelas (índios) e, muitas vezes, são<br />
eles (os jesuítas) que determinam o que, quando e onde devem ser<br />
feitos os movimentos de intervenção social (catequese).<br />
3 O PROJETO I<br />
O Projeto I teve seu início em 1997, em uma favela da Zona Norte da<br />
cidade do Rio de Janeiro, e desenvolve um trabalho de dança e teatro<br />
com jovens e crianças da comunidade. Atualmente funciona no morro<br />
e também em um sobrado antigo situado numa rua do mesmo bairro.<br />
As atividades oferecidas são: balé, dança afro-brasileira, dança moderna/jazz,<br />
mobilidade articular, expressão e consciência corporal,<br />
pesquisa de movimento, laboratório de coreografia, contato e improvisação,<br />
interpretação, inglês e cidadania.<br />
Já passaram pelo Projeto 325 pessoas entre 7 e 25 anos, e atualmente<br />
ele conta com 113 alunos de dança e 19 alunos do curso técnico de<br />
som e iluminação. O Projeto se mantém pelo patrocínio da Petrobras<br />
e pelos cachês das apresentações.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
117
3.1 AS VISITAS<br />
O primeiro contato da pesquisadora com o Projeto I se deu na I<br />
Jornada de Dança e Inclusão, realizada na Universidade Gama Filho<br />
em 2000, quando foi feita uma apresentação de dança/teatro com<br />
diálogos e coreografias que tinham como tema a realidade social que<br />
eles viviam no morro, com destaque para a questão da miséria, da violência<br />
e da etnicidade negra. Outros encontros se deram em apresentações<br />
e mesas-redondas e, por conta do presente estudo, em visitas<br />
periódicas às sedes do Projeto para registro de observações de campo<br />
e entrevistas.<br />
A primeira visita se deu na sede do Projeto, que fica na subida do<br />
morro. Logo se percebeu que as ruas da favela possuem uma ordenação<br />
espacial bastante diversa e surgem aos nossos sentidos de modo<br />
insólito, apresentando sérios problemas de orientação para os que não<br />
estão familiarizados com o local. Possuem uma lógica topográfica e,<br />
por que não dizer, uma gramática de valores bastante peculiares, inoculando<br />
em seus moradores gostos, costumes, hábitos, modos e opiniões<br />
políticas e contribuindo para tornar os moradores do asfalto cada vez<br />
mais estrangeiros no local.<br />
A sede do Projeto tinha uma sala de dança com espelhos na parede<br />
e outras salas que podiam atender a diferentes atividades. Parecia ser<br />
também um espaço para encontro de jovens. O local era limpo e todo<br />
pintado de branco.<br />
Uma segunda visita, quando foi realizado todo o trabalho etnográfico,<br />
se deu na outra sede, um sobrado antigo e adaptado para abrigar<br />
as atividades do Projeto. A sala de aula tinha padrões considerados<br />
razoáveis para uma escola de dança: 63 metros quadrados de área,<br />
piso de linóleo 4 , espelhos e barra em toda a sua volta, um escritório<br />
de coordenação com sofá e computador, uma pequena recepção com<br />
uma secretária oriunda da comunidade, uma biblioteca e uma cozinha<br />
“para as crianças poderem lanchar 5 ”, segundo a coreógrafa, e um<br />
4 Piso emborrachado adequado para a dança em sala de aula e no palco.<br />
5 As crianças fazem as refeições na sede para que possam se deslocar da<br />
escola diretamente para o projeto, utilizando o uniforme escolar, e assim economizar<br />
no tempo e no gasto com transporte.<br />
118 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
anheiro misto. Todo o acabamento do local era bastante simples,<br />
com paredes cinza, chão de madeira, louças brancas e um mural coberto<br />
por folhas impressas com diversas informações.<br />
Fui assistir a um espetáculo. Emocionante. Muito criativo. Muito diferente.<br />
Em termos de dança, uma companhia ainda nova, crua em<br />
termos de técnica, porém com bastante expressividade. Como se eles<br />
soubessem o que queriam passar teatralmente. Tinham muita força<br />
para representar o que estavam sentindo e o que viviam. Havia muita<br />
improvisação, muito estudo do movimento, muitas experimentações<br />
cênicas. Gostei!<br />
O debate em si já era emocionante, toda a companhia participava<br />
e todos falavam. Impressionante como aqueles jovens eram alegres<br />
e articulados para falar, muito mais que qualquer bailarino de classe<br />
média, pensei. Falavam sobre a experiência na dança, sobre o preconceito.<br />
Fiquei maravilhada.<br />
Logo percebi uma conscientização política que passava, principalmente,<br />
pela fala da coreógrafa. Ela dizia: “Falo sobre as coisas que me<br />
indignam, sobre o que as pessoas não querem ver”.<br />
Quando a plateia começou a participar do debate, a questão sobre o<br />
que movia as pessoas a assistirem ao espetáculo começou a ficar mais<br />
clara. As pessoas olhavam para a coreógrafa como se ela fosse uma<br />
pessoa especial, “salvando” aqueles jovens. Tudo me soou como uma<br />
espécie de idealização ideológica e religiosa. O olhar e as palavras<br />
proferidas pela plateia eram de admiração. Mas não de um êxtase<br />
provocado por uma obra de arte.<br />
O aspecto artístico parecia não ser o principal. Dois comentários da<br />
plateia confirmaram minhas intuições. Uma moça falou: “Como foi<br />
apresentar esse trabalho em uma mostra de dança?” (a mostra a que<br />
ela se referia ocorre todo ano, ocasião em que várias companhias de<br />
dança conhecidas se apresentam em teatros espalhados pela cidade).<br />
A coreógrafa respondeu que tinha sido muito legal e que, afinal, eles<br />
eram uma companhia de dança, o que, subliminarmente, deixava claro<br />
que eles não se representavam como pobres e favelados que tiveram<br />
a oportunidade de dançar, mas como artistas bailarinos.<br />
A segunda pergunta foi ainda mais significativa. Na verdade não foi<br />
uma pergunta, foi uma colocação que mais ou menos dizia assim: “Eu<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
119
estou muito emocionada, achei o trabalho fantástico, você conseguiu<br />
fazer um espetáculo belíssimo sem nenhum ator ou bailarino.” A coreógrafa<br />
logo retrucou: “Eles são todos atores e bailarinos.” A moça logo<br />
retificou o que disse, explicando que se referia a bailarinos famosos,<br />
visto que alguns projetos colocavam a Ana Botafogo para dançar com<br />
as bailarinas. E seguiu se justificando. Tarde demais.<br />
Diário de campo (12 de março de 2003)<br />
3.2 AS AULAS DE DANÇA<br />
As aulas acontecem durante todo o dia, várias turmas entram e<br />
saem, ocupam os corredores e a cozinha, conversam, se arrumam ou<br />
se desarrumam, dependendo da aula a ser feita.<br />
Uma das aulas observadas foi a de dança contemporânea, ministrada<br />
por professor formado pela própria companhia. A inserção dos<br />
alunos no ensino da dança é uma característica destacada pelo professor:<br />
“Depois de toda a nossa vivência, nós devemos ser agentes multiplicadores.<br />
Não dá para ficar somente dançando e se apresentando.”<br />
Essa prática possui outros desdobramentos, pois esse mesmo professor<br />
também trabalha em outros projetos sociais e centros culturais.<br />
A fala do professor sugere algumas pistas, que se evidenciaram no<br />
decorrer da análise. A ideia de multiplicação revela um caráter de missão,<br />
isto é, de um dever a cumprir. Uma missão de transformação da<br />
realidade social, ou uma missão religiosa que envolve a disseminação<br />
de uma crença. Existe uma construção ideológica do esquema temporal,<br />
em que, como aponta Ansart (1978), o passado, o presente e o<br />
futuro se coordenam e proporcionam à ação presente uma plenitude<br />
de significados. A ideia de evolução, numa perspectiva de esquerda, se<br />
baseia num esquema de invalidação do passado, que sublinha toda a<br />
gênese da injustiça e da exploração social que se pretende erradicar. O<br />
que o professor quer é transformar a realidade social, criar alternativas<br />
contra o recrudescimento da miséria e da segregação racial e social.<br />
A dança, portanto, ainda não deixou de ser associada a aspectos<br />
funcionais. Por que “não dá para ficar somente dançando e se apresentando”?<br />
Mesmo que todo o processo seja temperado por momentos<br />
lúdicos e artísticos, isso é silenciado no discurso, ressurgindo, porém,<br />
no significado de sua prática no dia a dia.<br />
120 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
As aulas de dança contemporânea observadas revelam a grande<br />
mistura de linguagens presentes no Projeto , como: elementos de solo<br />
da dança moderna com ênfase nos movimentos de contração e expansão<br />
e alongamento, elementos de força da dança contemporânea<br />
e gestos influenciados pela dança de rua e pela dança afro-brasileira.<br />
Na vivência corporal, outros imaginários são resgatados, proporcionando<br />
um distanciamento de aspectos mais ligados ao utilitarismo e<br />
uma aproximação da dimensão artística e lúdica.<br />
Essa corporeidade, desprendida de um discurso racional, permite<br />
que os mitos e os deuses da mitologia negra sejam evocados no palco.<br />
Há nos espetáculos um resgate das origens étnicas, ao mesmo tempo<br />
em que o cotidiano atual do morro também é coreografado. Essa tendência<br />
de levar o morro para o palco se assemelha à corrente bauschiana,<br />
que transporta gestos cotidianos para a cena, dando-lhes uma<br />
dimensão estética.<br />
O próprio fato de levar a pobreza dos gestos cotidianos contemporâneos<br />
para o palco ou algumas danças socialmente consagradas já<br />
é uma forma de denunciá-los, de mostrar seus limites e interdições<br />
e a partir daí transformá-los. A improvisação, a retórica urbana e os<br />
objetos ordinários que compõem o cenário das favelas, como sacos<br />
de lixos, ganham uma dimensão estética e toda uma outra rede de<br />
sentidos quando postos em cena.<br />
Essa ideia de transformação abre espaço para uma plasticidade semântica,<br />
em que a ação de dar uma nova forma pode ser vivida de<br />
várias maneiras. Dar nova forma ao cotidiano pode significar que a<br />
rotina será alterada, que novas relações serão formadas, que outros<br />
mitos e crenças serão reavivados, que os desejos podem mudar, enfim,<br />
que outras formações simbólicas permearão o cotidiano desses<br />
jovens, criando novos sentidos a partir das novas experiências vividas.<br />
Diferentemente da cristalização de sentidos do discurso social mostrado<br />
nos jornais, transformar não passa só pela ideia de abandonar<br />
a favela e ser incorporado no universo do asfalto, ou deixar de ser<br />
desviante, ocioso, mundano, ou de se perder na vida optando pelo<br />
espaço da rua. O verbo transformar é polissêmico, é vivido por cada<br />
bailarino de forma singular e única. Não existe um modelo de transformação<br />
quando se pensa em uma experiência artística, lúdica, criativa.<br />
Cada um se transfigura de modo diferente a partir da arte.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
121
3.3 A AULA DE CIDADANIA<br />
Logo colocaram a professora de cidadania para conversar comigo. Ela<br />
me explicou o que fazia, fiquei pensando a razão da inserção daquela<br />
aula em um projeto de dança.<br />
Diário de campo (14 de março de 2003)<br />
Entre as muitas aulas de dança, os bailarinos também têm, semanalmente,<br />
aulas de cidadania, compondo o conteúdo curricular do Projeto .<br />
A aula de cidadania é dada por uma jornalista, que utiliza primordialmente<br />
jornais como material didático para gerar temas para discussões.<br />
“Eu não fico falando sobre coisas que estão fora do universo<br />
deles, eu lido com fatos diários, abordando questões que vão desde a<br />
economia do país e os direitos do cidadão a dicas de saúde, alimentação,<br />
cuidados com o corpo, sexualidade”, disse a professora. E revelou<br />
que muitas vezes precisa iniciar o tema de cidadania falando da necessidade<br />
de existir para a sociedade, “e o primeiro passo está na certidão<br />
de nascimento, que muitos não têm”. É interessante pensar nos<br />
dados populacionais oferecidos pelo IBGE e a quantidade de pessoas<br />
que não possuem sequer registro de nascimento; ou seja, existe uma<br />
camada da população invisível aos olhos do Estado, cuja cidadania é<br />
prematuramente inviabilizada.<br />
A professora conta que é solicitada pelos alunos e suas famílias, que<br />
a consultam sobre situações como falta de luz, cobrança indevida das<br />
contas de telefone, como tirar documentos ou como cozinhar de forma<br />
saudável 6 .<br />
Analisando com mais rigor essa questão, indaga-se o porquê da<br />
inserção diária de aulas sobre “cidadania” em um projeto artístico.<br />
Existem algumas construções imaginárias que estariam regendo o programa<br />
curricular do Projeto? É possível que a aula de cidadania seja<br />
usada para lhes dar legitimidade, justificando sua “relevância social”,<br />
reproduzindo o imaginário que circula na sociedade de que, para um<br />
projeto ter importância, valor e patrocínio, deve estar vinculado a uma<br />
6 A professora diz que ensina como preparar comida macrobiótica, e anda o<br />
tempo todo com uma foto que a mostra com 40 quilos a mais. “Acho que isso<br />
impressiona os alunos, eles aderem à dieta rapidinho”, diz ela.<br />
122 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
ideia de funcionalidade? A prática da dança em si não seria suficiente?<br />
Só dançar? Para quê?<br />
Um projeto que valorizasse maciçamente os aspectos mais sensíveis,<br />
estéticos e lúdicos do indivíduo talvez não obtivesse reconhecimento<br />
social, nem mesmo dentro do próprio grupo, que tem como pressupostos<br />
a valorização étnica e uma perspectiva de transformação social.<br />
O direito à arte, à ludicidade, à fantasia, ao sonho e ao lazer não são<br />
questões suficientemente “relevantes” para sustentarem um projeto<br />
social, como se a educação não passasse também pela capacidade de<br />
sentir, ver, ouvir e tocar o mundo.<br />
O mesmo acontece em relação às exigências feitas aos alunos. Todos<br />
devem estar matriculados na escola para participarem do Projeto, a<br />
“Petrobras exige isso para dar o patrocínio”, diz um aluno. Contudo,<br />
a maioria revela um grande desinteresse pelo espaço social da escola,<br />
muitos afirmam que só a frequentam para não serem expulsos do Projeto,<br />
outros a frequentam por desejo das mães e alguns revelam que<br />
“terminar o segundo grau é a única forma de fazer uma faculdade de<br />
artes cênicas, educação física ou dança”.<br />
O Projeto, ao valorizar a aula de cidadania nos moldes formais<br />
ou exigir que os alunos frequentem a escola para poderem dançar,<br />
abre espaço para que a fala do instituído penetre num universo<br />
essencialmente artístico. O discurso hegemônico se infiltra através<br />
de pequenas brechas e não para de se reproduzir, o que pode levar<br />
a um empobrecimento da potência artística e lúdica de criação do<br />
Projeto, uma vez que pode funcionar como agente inibidor das<br />
paixões e das emoções. Entretanto, sem capital o projeto fenece. É<br />
necessário ter capital para realizá-lo; ao mesmo tempo, é prudente<br />
controlar sua voracidade, sob pena de empobrecer todo o conteúdo<br />
artístico.<br />
3.4 OS ALUNOS<br />
Os alunos são predominantemente negros e em sua maioria residem<br />
no morro, embora alguns venham de outras comunidades. Existe uma<br />
adesão muito grande de homens, o que não é comum no meio da<br />
dança, principalmente com adolescentes. Talvez, mais do que a possibilidade<br />
de se conseguir algumas vantagens por fazer parte de um<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
123
projeto social 7 , o próprio estilo de dança baseado nos elementos de<br />
cultura corporal 8 dos alunos é significativo para eles e, principalmente,<br />
se distancia do estereótipo feminilizante atribuído ao balé clássico.<br />
Um dos alunos chegou a comentar que no início não se autodenominava<br />
bailarino, pois tinha vergonha do que os amigos iriam dizer: “Quando<br />
me perguntavam, eu dizia que era passista, aprendiz de mestre-sala<br />
do Salgueiro Mirim, até rei Momo, qualquer coisa, menos bailarino.” O<br />
bailarino foi criando uma polissemia da dança para poder se explicar. Ao<br />
associá-la com o samba, daí a ideia de passista, ou com as escolas de samba<br />
e o Carnaval em geral, ele tenta pertencer a algo que já é legitimado<br />
pelos pares e usa um acordo de falas para não ser considerado diferente.<br />
Hoje em dia, ser bailarino do Projeto I, segundo esses alunos, é<br />
possuir referências, é pertencer a um tipo de linguagem, é ser reconhecido<br />
entre os pares do morro e do asfalto. Um aspecto interessante<br />
observado é que há professores que dão aulas em vários projetos, alunos<br />
que fazem apresentações especiais em outras academias, bailarinos e<br />
coreógrafos que são convidados para dançar no Projeto I, enfim, bailarinos<br />
do asfalto e do morro se misturam, se diferenciam e se igualam,<br />
desenvolvem parcerias, trocam saberes e dividem uma mesma cena.<br />
No momento das trocas não há pobre ou rico, o que se vê são bailarinos.<br />
De fato, se por um lado eles se diferenciam em seu modo de<br />
inserção social, por outro eles compartilham códigos, vínculos simbólicos<br />
que os aproximam uns dos outros, representações coletivas. Não<br />
importa se alguém é branco ou preto, o que importa é se a perna sobe<br />
180 graus, se a pirueta é em quarta ou segunda posição, ou se fulano é<br />
alongado, talentoso, exibicionista, entre outras coisas. Xiberras (2000)<br />
afirma que qualquer perspectiva de inserção ou inclusão tem necessariamente<br />
que passar por longo caminho até que espaços reais para as<br />
trocas simbólicas sejam abertos.<br />
7 O Projeto oferecia uma bolsa de R$50 para cada aluno.<br />
8 Um ensino a partir da concepção de cultura corporal, de acordo com a<br />
interpretação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pode ser relacionado<br />
à estrutura desse projeto, uma vez que tem como proposta valorizar as<br />
formas de expressão que os alunos trazem da comunidade, resgatar elementos<br />
de uma etnicidade menosprezada pela “cultura branca” dominante e, a partir<br />
daí, criar uma nova linguagem artística.<br />
124 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
A participação no Projeto permite que novos códigos sejam internalizados<br />
e que sejam construídas pontes de sentido entre os indivíduos<br />
e a dança, ou seja, a prática da dança os inclui, lhes dá sentido de pertença<br />
e de filiação. Isso também pode ser percebido nos bate-papos<br />
antes das aulas, nos períodos de descanso ou nos camarins antes das<br />
apresentações. Tudo gira em torno de eventos, associados às vivências<br />
proporcionadas pela prática artística. Pode-se dizer, entretanto, que<br />
são momentos efêmeros de igualdade social, pois não são transformadas<br />
as condições objetivas de vida.<br />
3.5 O LAZER<br />
Conversei com os bailarinos e perguntei o que havia mudado na vida<br />
deles com o Projeto. Duas coisas chamaram a atenção: a ideia de disciplina<br />
e uma rejeição aos bailes funk. Talvez o baile funk represente o<br />
Outro da disciplina. É a festa versus a ordem. O projeto, então, parecia<br />
estar na categoria da ordem, mas não era só isso.<br />
Diário de campo (15 de março de 2003)<br />
Quando perguntados sobre o que fazem nos momentos de lazer,<br />
aos sábados e domingos, os alunos falavam do lugar social do Projeto,<br />
ou seja, incorporavam discursos normativos para tentar reforçar sua<br />
posição de não desviante. Desse modo, temas como “ficar na rua”,<br />
“ficar à toa” ou frequentar bailes funks eram prontamente evitados. “Eu<br />
agora estou mais calmo. Estou saindo pouco, não tenho muito tempo e<br />
às vezes estou muito cansado...”. Ou, como disse outra bailarina: “Eu<br />
fico em casa, vendo televisão. Lá onde eu moro é meio perigoso. Tem<br />
dias que tem hora para chegar e hora para sair. Prefiro ficar quieta em<br />
casa...” Se, por um lado, a violência é um dado de realidade na vida<br />
contemporânea, ela não é o único fator que apaga do discurso desses<br />
jovens a representação da rua. Parece existir uma moral que constantemente<br />
policia suas expressões mais soltas. O discurso instituído visto<br />
nas reportagens dos jornais também surge nos projetos, ao menos<br />
como um acordo de falas entre os bailarinos e o pesquisador externo.<br />
Muitas vezes os bailarinos colocam a participação no Projeto como<br />
um divisor de águas em suas vidas. “Antes eu só zoava por aí ou ficava<br />
pensando besteira...”, disse um bailarino. E outro: “Eu ia a todos<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
125
os bailes funk da minha comunidade e de outros lugares, mas agora,<br />
quando você começa a entender de música e dança, não tem mais<br />
saco de ir a esses lugares...”<br />
Todo processo de ensino da arte certamente transforma os indivíduos<br />
em sua capacidade de sentir o mundo, uma vez que os bailarinos<br />
desenvolvem outros gostos, novos vocabulários e outros modos de<br />
fruir a arte. Entretanto, o baile funk está na ordem do lazer, do divertimento<br />
e da festa, ele não pode ser visto como o Outro do Projeto,<br />
não pode ser substituído por algo que esteja na dimensão da ordem,<br />
e sim por novas formas de ludicidade, expressividade, sensualidade e,<br />
principalmente, desmedida. Por que, então, ele deve ser enfaticamente<br />
negado? Frequentar os bailes assume um estatuto de transgressão<br />
social, étnica e moral, além de figurar na lista dos pecados a serem<br />
evitados.<br />
Vianna (1997) aponta para algumas pistas referentes a essa questão.<br />
Em primeiro lugar, as ideias de conscientização negra, que originalmente<br />
circulavam no mundo funk durante o tempo da Banda Black<br />
Rio e se tornaram emblemáticas pelas músicas de James Brown 9 , não<br />
estão mais presentes, ou seja, não há qualquer tipo de proposta política<br />
que envolva a questão da etnia, da superação do racismo ou<br />
do resgate do orgulho de ser negro no movimento funk. Outro ponto<br />
importante, segundo o autor, é que muitas vezes as roupas e gírias usadas<br />
nos bailes são parte integrante do estilo de vida dos traficantes e<br />
ladrões cariocas. Afirmar que todos os bandidos da cidade frequentam<br />
o mundo funk não é justificável, “mas que existem relações entre os<br />
dois mundos, como entre o funk e o pagode, isso me parece evidente”<br />
(p. 104).<br />
E, por fim, outro ponto do baile funk que o faz ser tão odioso para<br />
a sociedade é que ele “não serve para nada”, não há de fato nenhuma<br />
funcionalidade nessa folia. Os bailarinos se divertem como se o<br />
mundo fosse acabar, naquele momento não há passado nem futuro,<br />
9 James Brown, em 1968, em um movimento de conscientização dos negros<br />
norte-americanos, cantava: “Say it loud – I’m black and I’m proud”. Segundo<br />
Vianna (1997) James Brown era um dos cantores mais tocados nos bailes<br />
da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1970, dentro do espírito “black is<br />
beautiful”.<br />
126 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
é o tempo vivido. O baile funk está na dimensão da festa, por isso seu<br />
caráter efêmero e subversivo. A festa traz à tona tudo o que é combatido,<br />
como a desordem, o esbanjamento, a diversão e o vício e, entre<br />
outras coisas, abre as percepções, anima os sentidos, enfim, propõe<br />
experiências humanas que não se esgotam na racionalidade produtiva<br />
10 . “A festa é excesso em todos os sentidos, para não fazer sentido<br />
algum” (VIANNA, 1997, p. 108).<br />
3.6 SER ARTISTA<br />
Comecei a circular. Observei que os alunos eram em sua maioria negros<br />
e pardos. Todos se vestiam de forma artística, era uma faixa colorida<br />
na cabeça, os cabelos de trancinha, dreads, roupas soltas. Em<br />
momento nenhum pareciam querer copiar algum modelo do asfalto,<br />
possuíam uma estética própria, sempre procurando um resgate da cultura<br />
negra. Pareciam misturar um estilo artístico com uma valorização<br />
da cultura negra.<br />
Diário de campo (20 de março de 2003)<br />
Ser artista não reside em reproduzir modelos do asfalto. Embora<br />
atualmente o grupo se apresente em diversos locais e seja coreografado<br />
por bailarinos do asfalto e do exterior, a arte está em buscar novas<br />
formas de expressão levando-se em conta toda a sua história.<br />
Isso pode ser facilmente observado na estética incorporada pelos<br />
alunos no cotidiano. Os cabelos nunca são alisados, ao contrário,<br />
usam elementos que destacam suas características étnicas, como black<br />
power, trancinhas, dreadlocks, permanente afro, cordinha, sem<br />
contar as faixas e os lenços utilizados nos penteados, havendo alguns<br />
alunos que se especializaram em produzir as barbas e cabelos dos<br />
colegas. As roupas, por sua vez, realçam as linhas e as curvas dos<br />
corpos, em oposição ao estilo predominante no vestuário da dança,<br />
que busca destacar um biótipo longilíneo. De acordo com Maffesoli<br />
(1987), quando uma tribo começa a existir, seus componentes deixam<br />
de ser massa e singularizam-se em um grupo específico, com<br />
10 Para entender a complexidade das relações entre a festa e a sociedade<br />
moderna, conferir Duvignaud (1982).<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
127
novos códigos a serem compartilhados. No caso, é a tribo dos atores/<br />
bailarinos negros e pardos.<br />
A dança que eles dançam também possui características particulares.<br />
Ao mesmo tempo em que uma técnica acadêmica, como o balé<br />
clássico, é ensinada e aprimorada diariamente, existe a valorização do<br />
que lhes é singular, as origens, os movimentos corporais, o tipo físico, a<br />
musicalidade e a experiência de vida. “Utilizo os elementos da favela<br />
como material cênico. Em vez de esconder, trago para a cena o lixo, os<br />
cobertores, o funk, a violência urbana, o preconceito, as brincadeiras,<br />
as gírias”, diz a coreógrafa, que enfatiza sua posição de artista, e não<br />
de assistente social. “Minha motivação é artística, tudo o que vejo é<br />
levado para o palco”.<br />
A fala da coreógrafa, de certa forma, vai de encontro às falas atribuídas<br />
às coreógrafas do discurso jornalístico. Se nos jornais elas aparecem<br />
sob o véu do discurso religioso de salvação e caridade, dispostas<br />
a se sacrificarem para ajudar crianças a fugirem do inferno, no caso<br />
representado pela polissemia da rua, o desejo da coreógrafa do Projeto<br />
I de levar a dança para as comunidades carentes está norteado por<br />
questões artísticas.<br />
A representação dos alunos também se transforma. Se para os jornais<br />
eles são vistos como desvalidos, excluídos, marginais ou mendigos,<br />
para a coreógrafa do Projeto I, eles são alunos de uma escola de<br />
arte, que se preparam para desenvolver novas formas de dançar e de<br />
se relacionar com o mundo.<br />
Isso não quer dizer que seu discurso não tenha também um forte<br />
conteúdo ideológico: “Gosto de levar ao palco as coisas que me indignam,<br />
para ver se os próprios alunos e o público são profundamente<br />
afetados, por terem que ver o que geralmente todo mundo tenta esconder”.<br />
A arte, para a coreógrafa, em alguns momentos, passa pelo<br />
viés de conscientização e transformação social, como se a arte servisse<br />
para afastar qualquer tipo de pensamento ingênuo e livrar os indivíduos<br />
da “alienação” em que eles vivem. Ela, inclusive, se utiliza da<br />
expressão guerrilha cultural para denominar esse tipo de ação. Será<br />
que esse é o papel da arte?<br />
Este pode até ser um desdobramento da arte: sensibilizar as pessoas<br />
para questões referentes às injustiças sociais, mas não pode ser<br />
sua essência. E, se esse for um desdobramento, por que ser mostra-<br />
128 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
do justamente por bailarinos negros e pobres, moradores de favela?<br />
É, novamente, estigmatizá-los e reduzi-los a só uma possibilidade de<br />
expressão, obstruindo alguns caminhos criativos, deixando pouco espaço<br />
para a revolução do novo.<br />
Tudo parecia muito organizado, e como eu já vinha acompanhando<br />
o trabalho dessa companhia há alguns anos, percebi que estava tudo<br />
bem estruturado. Não era só uma companhia de dança, mas um projeto<br />
pedagógico de formação de cidadania com objetivos bem definidos.<br />
Fiquei com medo de toda essa organização abandonar o caos<br />
necessário para a criação artística. Lembrei de Nietzsche.<br />
Diário de campo (22 de março de 2003)<br />
4 O PROJETO II<br />
Dois bailarinos/coreógrafos com ampla formação em balé clássico e<br />
dança contemporânea e com passagens pelos principais balés da Europa<br />
e dos Estados Unidos vieram para o Brasil, a partir de um convite<br />
da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro, para montar<br />
uma companhia de dança contemporânea carioca e um projeto social<br />
em dança.<br />
Com a formação da companhia, o grupo de profissionais concebeu<br />
um projeto social que tem como prioridade o ensino do balé e da<br />
dança contemporânea para crianças e adolescentes de comunidades<br />
de baixa renda da cidade. Até a realização desta pesquisa, cem jovens<br />
já haviam passado pelo Projeto. Esses jovens são oriundos da<br />
Vila Olímpica da Maré, da Cia. Étnica de Dança e da Fundação Darcy<br />
Vargas. O patrocínio vem do repasse da Prefeitura, embora os organizadores<br />
tenham comentado que não lhes foi repassado tudo o que<br />
foi prometido. “A gente está aguentando quanto pode, mas é muito<br />
difícil trabalhar no Brasil. Nós tínhamos um projeto, que na verdade o<br />
prefeito nunca ‘canetou’, tudo ainda é meio incerto, não dou garantia<br />
desse projeto social, e até da companhia durar muito mais tempo. Eu<br />
vim da Europa com uma proposta concreta, de montar uma companhia<br />
de dança contemporânea na cidade e um projeto social, mas as<br />
coisas, as promessas e o dinheiro ficaram mais no papel do que na<br />
realidade”, diz o coreógrafo.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
129
A expressão “canetar”, utilizada no discurso do coreógrafo, significa<br />
tornar oficial o acordo, “assinar embaixo”, estar formalmente comprometido<br />
com o Projeto. O fato de o prefeito não querer firmar o<br />
acordo, mesmo que algum dinheiro esteja sendo repassado, denota<br />
as bases frágeis ou talvez excessivamente burocráticas em que esses<br />
projetos culturais e sociais muitas vezes se constroem, daí seu caráter<br />
efêmero e sua frouxidão na determinação de objetivos e metas.<br />
Se as coisas não se oficializarem nem se tornarem uma proposta<br />
municipal de incentivo às artes, ou seja, se ficarem no plano pessoal<br />
do conluio, do conhecido “jeitinho” brasileiro e do favor, nunca passarão<br />
pela categoria do direito. O Estado, ao se furtar de assumir um<br />
compromisso, vai ao encontro dos preceitos do liberalismo lockeano.<br />
Não havendo impessoalidade nas relações nem universalidade de<br />
princípios, se toda essa iniciativa não é regida pela questão do direito,<br />
como se pretende formar “cidadãos dançantes”? É interessante conferir<br />
o título da reportagem do jornal O Globo do dia 24 de outubro de<br />
2000: “O Rio é a nova menina dos olhos do coreógrafo dos cidadãos<br />
dançantes”.<br />
4.1 AS VISITAS<br />
O Projeto II acontece num armazém na Zona Portuária da cidade<br />
do Rio de Janeiro, na praça Mauá. As aulas de dança se realizam no<br />
palco de um anfiteatro de aproximadamente 80 metros quadrados de<br />
área, onde foram adaptados espelhos, barras e o piso de linóleo. O<br />
lugar parece não ser reformado há algum tempo, suas características<br />
lembram as dos teatros antigos, com o chão da “arquibancada” coberto<br />
por um carpete vermelho, um piano empoeirado ao fundo e um pé<br />
direito alto, com portas de madeira duplas em formato de arco com<br />
aproximadamente 4 metros de altura.<br />
O contato se deu por telefone, o cronograma das aulas foi repassado,<br />
dando à pesquisadora liberdade para assistir a qualquer aula sem<br />
qualquer restrição de turma ou de horário. A disponibilidade desse<br />
Projeto em ser visitado e investigado academicamente contrastou com<br />
a dificuldade encontrada em outros projetos com maior projeção na<br />
mídia e maior suporte econômico.<br />
130 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
4.2 AS AULAS<br />
Todo o caos e a beleza da existência estavam ali presentes. Era a arte<br />
pela arte, onde uma estética nova e revolucionária surgia. Não havia<br />
amarras quanto a resgates étnicos ou ideologias de direita ou de esquerda.<br />
Era uma estética que abria para o novo, que revolucionava.<br />
Diário de campo (23 de março de 2003)<br />
A aula de balé clássico é dada pelo idealizador, coreógrafo e bailarino<br />
da companhia nos moldes tradicionais, com a utilização de uma<br />
técnica predominantemente europeia. O professor explicava o movimento,<br />
tentando traduzir para os alunos o espírito e o significado<br />
de um gestual inspirado numa estética das cortes francesas do século<br />
XVIII: “Gente, esse movimento de braço (reverência) é uma saudação,<br />
um cumprimento que os nobres faziam entre si nos palácios, durante<br />
as festas e encontros, vocês têm que vivenciar esses personagens”.<br />
O balé clássico está maciçamente presente nas escolas de dança,<br />
mas em geral ele é dado de forma mecânica, funcional, como uma<br />
técnica fundamental de preparação corporal para a dança, havendo<br />
um ofuscamento de seu conteúdo lúdico e simbólico. Esse professor,<br />
talvez por sua passagem pelas companhias de dança europeias, permitiu<br />
que a fantasia se infiltrasse naquela coreografia.<br />
Por mais distante que essa realidade branca, nobre e europeia possa<br />
estar desses bailarinos, ela se atualiza, resgatando o imaginário ocidental<br />
dos contos de fadas, das princesas, dos reis e rainhas. No momento<br />
da dança, a imaginação toma conta e a fantasia se apropria dos corpos<br />
dos bailarinos, inaugurando a dimensão do lúdico; qualquer menina<br />
pode ser Cinderela e qualquer menino, um príncipe valente. Costa<br />
(1999) revela que a experiência corporal lúdica abre espaço para uma<br />
transformação simbólica, permite um desprender-se do cotidiano,<br />
para depois reencontrá-lo transmutado, renovado.<br />
Num pequeno intervalo entre as aulas, em conversas informais, o divertimento<br />
já tomava conta dos discursos daqueles alunos: “Essa aula<br />
é muito divertida, eu adoro dançar” e mais, “gente, estou morta e<br />
nossos pais acham que a gente não faz nada, só se diverte dançando”.<br />
Ao investigar a segunda fala, um dado novo emergiu: há uma cumplicidade<br />
e os pais desejam que os filhos participem de um projeto social<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
131
enquanto são crianças. Qualquer traço de maturidade ou o fato de já<br />
terem terminado o segundo grau faz com que os alunos tenham que<br />
interromper suas atividades para ingressarem no mundo do trabalho.<br />
Algumas falas reforçam esse outro lado da relação das mães com o<br />
Projeto II: “minha mãe até gosta que eu me ocupe, mas também tem<br />
aquele outro lado de ter que arrumar emprego” ou ainda, “o problema<br />
é quando fica grande e começa a perder a graça, a família começa<br />
a te pressionar para trabalhar, não dá mais para ficar fazendo peripécias<br />
por aí”. Na visão das mães, o Projeto II é útil durante uma fase<br />
da vida da criança, posteriormente, até pelo componente viciante da<br />
dança, ele passa a ser um problema.<br />
Após o intervalo, iniciou-se uma aula de dança contemporânea com<br />
uma professora convidada. Essa aula se desenvolve dentro dos pressupostos<br />
atuais da dança contemporânea. Ela é fragmentada, não segue<br />
uma progressão pedagógica de exercícios característicos do balé, utiliza-se<br />
de elementos emprestados de outras técnicas corporais, como<br />
acrobacias e exercícios de interpretação. A aula propõe uma mistura<br />
de referências e um campo aberto para experimentações corporais, o<br />
corpo do bailarino é atravessado por várias correntes, ou seja, uma diversidade<br />
de técnicas compõem a sua formação e dão ao seu discurso<br />
coreográfico um tom de mestiçagem.<br />
O processo de aprendizagem na aula de dança contemporânea é<br />
fundamentalmente autoral, o bailarino vai construindo seus próprios<br />
movimentos a partir de determinadas propostas dadas pelo professor.<br />
A partir daí, uma nova dinâmica se instala na aula: existe uma subversão<br />
da ordem tradicional, vista no balé clássico, em que o professor<br />
determina padrões corretos para os movimentos. Enquanto o balé trabalha<br />
com a ideia de reprodução, a dança contemporânea se recria<br />
constantemente, a partir de uma concepção de transformação. Gomes<br />
(2002), em seus estudos sobre a dança contemporânea carioca, mostra<br />
que há sempre um desejo latente entre os bailarinos e coreógrafos<br />
de transformarem e serem transformados. Para a autora, a dança<br />
lida com a ideia de trânsito, mobilidade, passagem, troca, subversão,<br />
como em um constante processo alquímico.<br />
A alquimia se dá entre a história do bailarino e a dança que ele<br />
dança, ou seja, todos os seus passos carregam sua subjetividade,<br />
seus sonhos e desejos. Não existe somente um modo de se dançar,<br />
132 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
cabe a cada um descobrir e experimentar novas possibilidades de<br />
movimento.<br />
Não se nota no trabalho do Projeto II nenhuma ênfase na questão<br />
da etnia, de resgate de uma cultura africana ou de qualquer proposta<br />
para uma “arte engajada”; todo o processo segue um viés fundamentalmente<br />
artístico. Existe um apagamento da condição social dos<br />
bailarinos, uma vez que isso não é o elemento gerador da criação<br />
na dança.<br />
Em uma leitura tradicional, isso poderia assumir ares de alienação,<br />
porém, dentro de uma perspectiva artística, ocorre um alargamento<br />
de possibilidades, que descolam o indivíduo de suas marcas mais<br />
óbvias. Os bailarinos não são vistos apenas pela sua forma de inserção<br />
social, e sim pela sua capacidade de fantasiar e de criar.<br />
Afinal, não é a arte o mais alto poder do falso, a magnificação do<br />
erro e a santificação da mentira? Relembrando Nietzsche (1996), o<br />
poder do falso deve ser elevado até uma vontade de enganar, vontade<br />
artística, que é a única capaz de rivalizar com o ideal ascético. Para<br />
o autor, os artistas são os inventores de novas possibilidades de vida.<br />
Os aspectos essencialmente lúdicos e estéticos vistos nas aulas forneceram<br />
novas pistas para a pesquisadora sobre um tema recorrente<br />
em pesquisas sobre marginalidade: o papel da casa e da rua no<br />
imaginário dos jovens moradores de comunidades de baixa renda.<br />
As matérias jornalísticas contrapõem esses papéis: a rua representa<br />
a perdição e a casa, a proteção. Nas falas dos alunos outros sentidos<br />
emergiram: “Antigamente eu era muito parado, fui para a Vila Olímpica<br />
para fazer alguma coisa” ou, “Antes eu não me ocupava com<br />
nada. Eu fui para a Vila Olímpica e gostei, antes não tinha nada para<br />
fazer” ou ainda, “Agora eu fico mais em casa, antes ficava largado<br />
na praça, não tinha nada para fazer, mas pelo menos não fazia nada<br />
com outras pessoas, em casa ficava sozinho”. A casa e a rua entram<br />
na mesma rede de sentidos, significam o não ter o que fazer, o vazio<br />
de sentidos. A rua muitas vezes não é opção de experiências que pudessem<br />
trazer algum significado para esses jovens. O projeto social,<br />
então, cria uma rede de sentidos que norteia as práticas cotidianas<br />
dos bailarinos.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
133
4.3 OS ALUNOS<br />
Os professores eram os mesmos que davam aulas para uma companhia<br />
profissional da cidade e os alunos não eram iniciantes, vinham<br />
de outros projetos sociais de dança. Estavam ali para aprimorar sua<br />
capacidade artística, sua técnica, sua expressividade, sua sensibilidade,<br />
e não para se tornarem educados, disciplinados e cidadãos.<br />
Diário de campo (29 de março de 2003)<br />
O Projeto II atua com uma faixa de bailarinos que já possuem<br />
formação inicial em dança, a maioria participa ou já participou de<br />
algum outro projeto social. Talvez isso permita que o Projeto II enfatize<br />
uma formação artística menos pedagogicista. Até por ser elaborado<br />
por um bailarino/coreógrafo, não se propõe e nem se obriga<br />
a assumir o papel da escola ou da família, partindo do princípio de<br />
que quem está ali quer aprimorar sua vivência artística.<br />
Esses bailarinos já formam outra tribo: a linguagem, os gestos, o<br />
vestuário já se diferenciam daqueles que se notam em projetos sociais<br />
formais. Já mostram diferenças entre eles em relação aos estilos<br />
de dança, demonstrando variadas experiências e aptidões. Existe<br />
uma diversidade de identidades, que possuem em comum aquele<br />
território onde valores e referências são compartilhados.<br />
Talvez por esse Projeto viver uma incerteza quanto à sua continuidade,<br />
não existe uma escola, mas uma multiplicidade de tendências.<br />
O preço dessa riqueza artística pode ser o caráter efêmero<br />
e, portanto, pós-moderno do processo. Entretanto, de acordo com<br />
Maffesoli (2003), essa perspectiva de viver o agora em seu máximo<br />
vigor, sem pensar racionalmente no desenrolar dos fatos futuros, dá<br />
espaço para que uma ética vivida no presente adquira mais força<br />
do que uma moral universalista e distante. Uma nova noção de<br />
temporalidade se inaugura. É a vida que se esgota no ato de viver<br />
intensamente o presente. Para o autor, a vida está aqui, e não em<br />
outra dimensão. A participação mágica está arraigada no aqui e no<br />
agora. O mundo de cá é o que se apresenta a ver e a viver, é o gozo<br />
no presente.<br />
134 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
4.4 APOLO E DIONISIO<br />
Durante uma visita ao Projeto, senti imediatamente que meu estudo,<br />
apesar de ter provocado muita dor e sofrimento, tinha valido a<br />
pena. Estava em êxtase lúdico, estético e, por que não dizer, trágico.<br />
Diário de campo (28 de março de 2003)<br />
A questão da temporalidade logo se apresentou como um aspecto<br />
novo no desenrolar deste Projeto. Em primeiro lugar, para a pesquisadora,<br />
no lugar social de público, assistindo ao espetáculo, o tempo<br />
parou. Naquele momento a intensidade do estético e do lúdico<br />
rompeu com qualquer possibilidade de linearidade do tempo.<br />
A noção de projeto, com objetivos bem definidos e coerentes<br />
com uma progressão linear ordenada, foi brutalmente invadida e<br />
esteticamente dominada por uma força criativa que eternizou aquele<br />
instante.<br />
Todo trabalho de corpo, que consiste numa sucessão de passos desenvolvidos<br />
ao longo dos anos, pareceu abandonar uma perspectiva<br />
puramente técnica para se transformar em inúmeras possibilidades de<br />
gozo. O lúdico e o estético se conjugaram e o ato de dançar resgatou a<br />
dimensão do jogo e do belo. Dentro de uma perspectiva trágica, Apolo<br />
e Dionisio se reencontraram. A representação artística, portanto, traz a<br />
essência e a aparência, a luz e as trevas, a superabundância das forças<br />
dionisíacas dentro de uma estética apolínea. É nessa união que a vida<br />
se faz sentir, onde ela se afeta, onde ela propriamente é.<br />
Para Nietzsche (1996), a arte trágica produz alegria. Ela surge<br />
como um estimulante da vontade de potência. Nada na vida deve<br />
ser negado, até os aspectos mais tenebrosos devem ser vividos em<br />
sua intensidade. A expansão da vida consiste em aceitar o todo da<br />
existência humana. O autor propõe uma celebração de todas as<br />
forças imanentes, sem a necessidade de se aspirar, de forma mística<br />
ou ideológica, a uma vida perfeita, melhorada ou duradoura.<br />
O Projeto II, ao se furtar de uma retórica linear, moderna e dramática,<br />
situou-se além da moral, da metafísica ou da religião. Permitiu<br />
perceber que não há mais fantasias nem ilusões. É tempo de viver<br />
artisticamente, isto é, celebrar cada instante em sua totalidade, sem<br />
saudades de um amanhã perfeito ou redentor.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
135
A dança bastava-se por si mesma, representava uma intensificação<br />
da vida porque proporcionava uma “pequena morte”, um orgasmo<br />
advindo do êxtase, mas uma morte que traz ainda mais vigor à vida.<br />
Uma vida que se esgota no ato mesmo de sua criação.<br />
Fiquei pensando que as narrativas modernas e a noção de temporalidade<br />
linear a que estamos acostumados realmente assassinam a arte.<br />
O Projeto acontecia naquele momento, não se saberia o que viria depois,<br />
ou amanhã, era o tempo vivido. A corporeidade experimentada<br />
naquele momento era o ser dentro de uma ética vital. Para mim, uma<br />
experiência inesquecível.<br />
Parece realmente que a arte nasce do caos, é a porta de abertura da<br />
cultura para os instintos. É aí que está a verdade. De novo lembrei do<br />
Nietzsche. A arte é mais ação do que reflexão, é ela que transmuta as<br />
forças reativas em ativas. Ela é potência criativa capaz de proporcionar<br />
uma experiência dionisíaca, muito além do bem e do mal.<br />
Diário de campo (2 de abril de 2003)<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Muitas tribos e muitos espaços se formam e se dissolvem a partir da<br />
inserção de projetos desenvolvidos em uma determinada área. Iniciativas<br />
governamentais e não governamentais, patrocínios de empresas<br />
nacionais e internacionais, pessoas de fora da comunidade, com ou<br />
sem subsídio financeiro, associação de moradores e até mesmo indivíduos<br />
das comunidades desenvolvem projetos que transformam a arquitetura<br />
da favela e da cidade e forjam novas subjetividades. Há, por<br />
exemplo, a construção de vilas olímpicas, as salas de aula de escolas<br />
públicas que viram salas de balé, os pátios de igrejas e as praças que<br />
se transformam em palcos, sobrados antigos do Rio de Janeiro cedidos<br />
para serem escolas de dança e teatro e armazéns da Zona Portuária da<br />
cidade que são reformados para abrigarem companhias e projetos<br />
de dança. Todos esses projetos criam códigos de linguagem específicos,<br />
definem gírias, roupas, acessórios e corpos, produzem sentidos e<br />
constroem crenças, fantasias, desejos e sonhos.<br />
A proliferação de projetos sociais permite uma vivência rica e<br />
múltipla da arte; entretanto, a dependência de capital e suas imbri-<br />
136 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
cações políticas os transformam em iniciativas caóticas, desordenadas<br />
e efêmeras. Muitos projetos são criados e descontinuados sem<br />
qualquer tipo de planejamento racional ou de justificativa pública.<br />
Algumas favelas, mais assediadas pela mídia, possuem uma dezena<br />
de projetos, como a Mangueira, o Pavão/Pavãozinho e a Rocinha,<br />
enquanto outras, como as da Zona Oeste, do Centro e da Leopoldina,<br />
são absolutamente esquecidas pelo poder público e pela<br />
sociedade civil.<br />
Alguns projetos parecem buscar somente um impacto instantâneo,<br />
são efêmeros, não possuem poder de sustentação, constroem<br />
e destroem sonhos, não podem ser considerados estruturantes na<br />
formação dos indivíduos. O outro lado do colapso dos horizontes<br />
temporais, da busca do impacto imediato e do descaso com a continuidade<br />
dos projetos é uma perda paralela de profundidade. Tudo<br />
acontece rapidamente, como uma série de presentes puros e não<br />
relacionados no tempo.<br />
Atualmente, a produção cultural integrou-se à produção de mercadorias<br />
em geral. Surge no meio artístico e cultural a necessidade<br />
e a urgência de se produzirem novos produtos e novas experimentações<br />
estéticas, para serem imediatamente comercializados. Vale<br />
a pena lembrar Baudrillard (2001), quando afirma que a produção<br />
artística também entrou no estádio de circulação ultrarrápida.<br />
Existe uma produção de necessidades e desejos que mobiliza os<br />
indivíduos a consumirem um determinado produto, que pode ser<br />
um filme, um show, um programa de televisão, um estilo de roupa<br />
ou um espetáculo de dança. Mais do que uma inovação estética ou<br />
uma obra de arte, o que se vê é a atualização do capitalismo, para<br />
manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar<br />
sua lucratividade. A estética se materializou por toda parte<br />
e assumiu uma forma operacional. O sistema funciona não tanto<br />
pela mais-valia da mercadoria, mas pela mais-valia estética do signo<br />
(BAUDRILLARD, 2001).<br />
A arte na favela também entra na lógica da diversificação do capital.<br />
É como se a preocupação estética do momento suplantasse um<br />
compromisso com o depois. Não há um investimento mais longo e<br />
consistente quanto à formação ética dos atores sociais. A passagem<br />
relâmpago dos investimentos transforma da noite para o dia um<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
137
morador da favela em um bailarino ou em um ator de sucesso, para<br />
depois novamente devolvê-lo à favela, com poucas possibilidades<br />
de dar prosseguimento ao seu trabalho, pois o capital que o impulsionou<br />
já migrou para novas experimentações estéticas. O que<br />
vem depois parece não importar, existe um abandono da ideia de<br />
continuidade.<br />
Muitos projetos sociais de dança têm uma duração que parece<br />
estar ligada a uma estética do acontecimento. Interessante notar,<br />
contudo, que a palavra “projeto” tem sua origem etimológica no<br />
latim, projectus, e significa “ação de lançar para frente, de se estender,<br />
extensão”.<br />
É importante que a lógica do capital não anuvie a dimensão artística<br />
e ética dos projetos. Senão, em vez de projeto social, haverá<br />
um evento social que formará, no lugar de artistas, empresários da<br />
dança e bailarinos frustrados. Por sua vez, os projetos que se engessam<br />
em algumas metanarrativas modernas de resgate da cidadania,<br />
da etnia, ou que se baseiam em qualquer forma de engajamento<br />
rígido, que controlam o tempo aprisionando-o a uma linearidade<br />
racional, transformam-se em projetos pedagógicos formais, em que<br />
a dança é usurpada de sua dimensão lúdica e estética.<br />
O homem cidadão pode até ser produzido, mas e o homem artista?<br />
Será que o projeto criou uma alma externa feita para ser vista<br />
somente de fora? As marcas exteriores do balé não deixam dúvidas,<br />
tatuam o corpo e os gestos, permitem um reconhecimento imediato<br />
a qualquer olhar dirigido ao espelho.<br />
Antes de ser um cidadão, entretanto, o artista é criador. Ele, de<br />
fato, prescinde do espelho, a intensidade de sua potência criativa<br />
lhe mostra a dimensão de sua existência. Ele sente tragicamente o<br />
mundo, não reflete sobre ele, tenta transformá-lo a cada instante.<br />
Todo projeto social de dança deveria se desenrolar como um drama,<br />
sem contudo abandonar seus aspectos trágicos, como as duas<br />
metades de uma laranja. É pela arte que uma cultura se abre para<br />
os instintos, senão, não é arte.<br />
Este estudo não se esgota aqui, muitos outros aspectos do pensamento<br />
sobre a arte e a sociedade escaparam ao escopo da abordagem<br />
proposta. Algumas coisas, porém, ficaram claras: a pobreza<br />
não aniquila a alegria de viver, o drama e o trágico são vividos em<br />
138 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
todas as classes sociais, cada um a sua maneira. Novas formas de<br />
vida são inventadas a cada dia e, por fim, a capacidade de viver o<br />
lúdico e o estético define o vigor de uma cultura. Qualquer tentativa<br />
de achatamento dessas potências gera dor e ressentimento. É a<br />
morte em vida.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
139
REFERÊNCIAS<br />
ANSART, P. Ideologia, conflito e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.<br />
BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos.<br />
Campinas: Papirus, 2001.<br />
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,<br />
1992.<br />
BOURDIEU, P. A produção da crença: contribuições para uma economia dos<br />
bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002.<br />
COSTA, V. L. M. Esportes da natureza e risco na montanha: uma trajetória<br />
de jogo com limites e incertezas. Tese (Doutorado) – Universidade Gama<br />
Filho, Rio de Janeiro, 1999.<br />
COULON, A. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
DA MATTA, R.; SOAREZ, E. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico<br />
do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.<br />
DEMO, P. Charme da exclusão social. Campinas: Editores Associados, 1998.<br />
DURAND, G. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.<br />
Rio de Janeiro: Difel, 1999.<br />
DUVIGNAUD, J. El juego del juego. Cidade do México: Fondo de Cultura<br />
Económico, 1982.<br />
FERREIRA, N. T. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1993.<br />
GOMES, R. C. João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro:<br />
Relume-Dumará, 1996.<br />
GOMES, S. A dança para bailarinos-coreógrafos contemporâneos do Rio<br />
de Janeiro. 2002. Dissertação (Mestrado) – Universidade Gama Filho, Rio de<br />
Janeiro, 2002.<br />
HARVE, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996.<br />
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.<br />
140 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011
MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-<br />
-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.<br />
MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades<br />
de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.<br />
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São<br />
Paulo: Cia. das Letras, 1996.<br />
ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. Campinas: Cortez, 1988.<br />
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.<br />
ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.<br />
Petrópolis: Vozes, 1996.<br />
PRETECEILLE, E.; VALLADARES, L. A desigualdade entre os pobres – favela,<br />
favelas. In: HENRIQUES, Ricardo (Org.). Desigualdade e pobreza no Brasil.<br />
Rio de Janeiro: IPEA, 2000. p. 459-485.<br />
SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,<br />
2000.<br />
SOTER, S. A dança no Rio de Janeiro: uma alternativa contra a exclusão:<br />
relatório final. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura/Programa de<br />
Bolsas RioArte, 2002.<br />
VIANNA, H. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.<br />
XIBERRAS, M. Les Théories de l’exclusion. Paris: Armand Colin, 2000.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
141
GINÁSTICA ESCOLAR COMO<br />
DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-<br />
PEDAGÓGICO: UMA<br />
ANÁLISE DA RELAÇÃO<br />
ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE<br />
E MORALIDADE EM<br />
FERNANDO DE AZEVEDO 1<br />
Murilo Mariano Vilaça<br />
1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no VIII Congresso Luso-<br />
-Brasileiro de História da Educação: Infância, Juventude e Relações de Gênero<br />
na História da Educação, em São Luís (MA), em 2010, com o título “O corpo<br />
educado, o homem regenerado: Fernando de Azevedo e o papel da gymnastica<br />
escolar (1915-1933)”.<br />
142 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
Como imperativo, a saúde tem constituído uma complexa rede de relações<br />
de poder-saber. Persuadidos da importância do investimento pessoal na busca<br />
de uma vida considerada saudável, os sujeitos modificam suas condutas,<br />
submetendo-se a um intrincado procedimento de normalização que extravasa<br />
o âmbito biológico da vida, atuando sobre outros aspectos. Neste artigo,<br />
analiso como Fernando de Azevedo articulou saúde, educação e moralidade<br />
por meio da prática denominada ginástica escolar. Partindo da genealogia da<br />
noção moderna de saúde e da sua importância para o controle e organização<br />
do meio social, bem como para a produção de subjetividades, abordo o papel<br />
conferido pelo autor àquela prática no processo de regeneração do povo e na<br />
formação de uma nova nação brasileira. Neste sentido, infiro que, a partir de<br />
uma visão biologicista de educação, Fernando de Azevedo procurou lançar um<br />
investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando no vínculo<br />
entre educação, biologia, política e moral.<br />
Palavras-chave: ginástica escolar, educação, Fernando de Azevedo<br />
As imperative, the health has been a complex network of relationships of power-knowledge,<br />
impacting the subjects. Convinced of the importance of the<br />
personal investment in pursuit of a life considered healthy, the individuals modify<br />
their behaviors, submitting themselves to an intricate normalization procedure<br />
that goes beyond the biological life, working on other aspects. In this<br />
article, I analyze how Fernando de Azevedo articulated health, education, and<br />
morality through the practice known as school gymnastics. From the genealogy<br />
of the modern notion of health and its importance for the control and organization<br />
of the social environment, as well as for the production of subjectivities, I<br />
discuss the role given by the author to that practice in the process of regeneration<br />
of the people and in the formation of a new Brazilian nation. In this sense,<br />
I infer that, from a biological view of education, Fernando de Azevedo sought<br />
to launch a biopolitical investment on the Brazilian population, focusing on the<br />
relationship between education, biology, politics and morality.<br />
Keywords: school gymnastics, education, Fernando Azevedo<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
143
INTRODUÇÃO<br />
A relação histórica entre práticas corporais e pedagógicas, produção<br />
de saberes e exercício do poder com vistas ao governo dos homens<br />
possui várias nuances, múltiplas formas e distintos objetivos. Cada<br />
configuração histórica tem suas particularidades, que são irredutíveis a<br />
um modelo, um método ou um objetivo. O esforço de compreender<br />
a multiplicidade exige observar traços da experiência, visando à apreensão<br />
de alguns sentidos, tendo em vista sua relevância para se compreender<br />
uma época e as relações que estabelece com outros tempos.<br />
Tomando a modernidade como uma passagem histórica marcante<br />
no que tange aos cuidados com a vida, haja vista poder ser identificada,<br />
entre outras coisas, com a emergência de uma série de biociências,<br />
o que, por sua vez, ensejou o nascimento da clínica, da medicina<br />
social e da ideia de saúde pública, é a partir dela, de uma genealogia<br />
das relações de saber-poder que se inventou para governar os sujeitos<br />
e a vida, que constituirei o pano de fundo da discussão central do<br />
presente artigo.<br />
Investigo como Fernando de Azevedo articulou saúde e educação<br />
por meio da prática denominada de ginástica escolar 2 . A partir<br />
duma análise da noção moderna de saúde e da sua importância<br />
para a organização do meio social, estabeleço uma cartografia para<br />
analisar a visão de Azevedo, segundo a qual a ginástica, além de<br />
promover saúde, regeneraria os indivíduos. Inicialmente, focalizo<br />
como a saúde se tornou um imperativo, constituindo uma rede de<br />
relações de poder-saber tipicamente moderna. A análise permitiu<br />
compreender traços da proeminência que aquele imperativo goza<br />
desde a modernidade e como isso repercute, doravante, na formação<br />
das noções de homem. Grosso modo, persuadidos da sua importância,<br />
os sujeitos modularizam suas condutas, submetendo-se<br />
relativamente a um intrincado procedimento de normalização que<br />
extravasa o âmbito biológico da vida humana, atuando sobre outros<br />
2 Embora o termo utilizado nos textos de Fernando de Azevedo seja gymnastica<br />
escolar, neste artigo, usarei sua versão atualizada, mantendo o original apenas<br />
nos títulos dos livros. O mesmo procedimento será feito para outros termos<br />
que tenham grafia atualizada.<br />
144 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
aspectos. Os campos da moralidade e da formação do caráter são<br />
alguns exemplos.<br />
Com o apoio analítico-conceitual da noção foucaultiana de governamentalidade,<br />
especialmente o polo biopolítico, busco, na primeira<br />
parte deste artigo, fazer uma breve cartografia da lógica operatória<br />
na qual a ginástica está inserida, concebida como um dispositivo biopolítico-pedagógico<br />
de gestão da vida. Dessa etapa analítica, depreendo<br />
que Azevedo conjugou, com a ginástica, saberes biocientíficos,<br />
intentos biopolíticos de regeneração étnico-racial e formação moral,<br />
investindo biopoliticamente sobre a população brasileira. Esses apontamentos<br />
serviram de base para analisar a articulação entre elementos<br />
do movimento higienista e a ginástica escolar no pensamento de<br />
Fernando de Azevedo. Cumpre ressaltar que, a partir do século XIX,<br />
viu-se uma crescente influência dos movimentos higienistas no Brasil.<br />
Com eles, a escola passou a exercer uma função indispensável na<br />
prática e formação de hábitos e condutas, na promoção de hábitos<br />
saudáveis.<br />
O foco analítico foi o texto “A poesia do corpo ou a gymnastica escolar:<br />
sua história e seu valor” (1915), no qual a ginástica é denominada<br />
de médico-pedagogia. Secundariamente, outrossim, considero<br />
os textos “Da educação physica: o que ella é, o que tem sido, o que<br />
deveria ser” (1920) e “O problema da regeneração” (1933). Com<br />
eles, foi possível compreender como a ginástica, associada à educação<br />
física, é valorizada como prática escolar capaz de regenerar o<br />
povo brasileiro de um modo radical, a saber, alterando a sua constituição<br />
étnico-racial. As conclusões sugerem que Azevedo, integrando<br />
a noção de governamentalidade biopolítica, reputa à ginástica<br />
um papel fundamental num conjunto de tecnologias que visavam à<br />
prevenção e promoção de dada noção de vida saudável ou higiênica<br />
(biológica), mas, sobretudo, à regeneração de uma população<br />
tida como étnico-racialmente deficiente, prescrevendo uma noção<br />
de vida boa e correta (ético-política), sem a qual a nação brasileira<br />
não progrediria.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
145
1 EIXOS DO IMPERATIVO DA SAÚDE COMO PRINCÍPIO GOVERNAMENTAL<br />
DA VIDA: BIOPOLÍTICA, MEDICALIZAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA<br />
As práticas corporais como atividades de cunho pedagógico intimamente<br />
associadas à educação física como uma disciplina escolar<br />
representam, em certa medida, uma mentalidade atinente à modernidade<br />
educativa. Quer dizer, a modernidade representa um importante<br />
momento na reestruturação do exercício do poder pela produção de<br />
novos campos de saberes, bem como de meios de transmissão daqueles<br />
tidos como oficiais, científicos e verdadeiros, saberes totalizantes e<br />
englobantes, de tal maneira que pudessem ser um eficaz exercício de<br />
poder e de governo (CASTRO, 2006). A modernidade educativa, então,<br />
entendida como uma iniciativa de disciplinarização da sociedade e de<br />
promoção da vida, pode ser analisada a partir dos efeitos que visa a<br />
produzir pelas relações de saber-poder que atualiza, sobretudo acerca<br />
de que subjetividade quer empreender.<br />
Nesse sentido, as práticas corporais estão inseridas na lógica das<br />
relações de poder-saber que a modernidade inventou para governar<br />
sujeitos, preenchendo os requisitos para um exercício do poder biopolítico.<br />
Para compreender esse cenário, uma chave interpretativa é<br />
a análise do binômio formado pelo saber médico-higienista. Há a necessidade,<br />
portanto, de se resgatarem traços do movimento higienista,<br />
que data do século XIX, e da ideia de saúde pública. É a partir do<br />
conjunto formado pela relação entre saber médico e medicalização da<br />
sociedade, pela noção de saúde pública e pelo movimento higienista<br />
que traçarei uma cartografia.<br />
O filósofo francês Michel Foucault desenvolveu uma vasta e detalhada<br />
genealogia dos modos de exercício do poder com vistas ao governo.<br />
Sob o termo governamentalidade, ele pesquisou, na década<br />
de 1970, aquilo que considerou como os dois polos do governo dos<br />
outros sob o registro do biopoder, a saber, o poder disciplinar e a<br />
biopolítica, a partir do seu surgimento no século XVII e nos séculos<br />
XVIII e XIX, respectivamente. Na década seguinte, Foucault voltou o<br />
seu olhar para a antiguidade greco-romana, entrecruzando a questão<br />
do governo com a ética, ocupando-se de um estudo detalhado acerca<br />
das práticas de si e das formas de subjetivação (a noção de cuidado de<br />
si, de ascese, de parrhysía etc.) que ensejavam o governo de si.<br />
146 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
O lema da governamentalidade, em todas as suas formas, pode ser<br />
descrito por três questões fundamentais, conforme exposto por<br />
Foucault (2007): “como se governar, como ser governado, como fazer<br />
para ser o melhor governante possível” (p. 277-8). Para tanto, poderes<br />
e saberes são mobilizados. É nesse sentido, o da inserção da política<br />
nos limites de uma lógica, por assim dizer, econômica, da melhor<br />
gestão dos recursos para levar a efeito o objetivo do modo mais eficaz<br />
possível, que Foucault analisou, no curso “Segurança, território<br />
e população” (1978), a crise do poder de pastorado que ensejou a<br />
passagem para a razão de Estado, para o Estado governamentalizado.<br />
Nessas pesquisas, não só sobre as governamentalidades, o foco foucaultiano<br />
está voltado, conforme ele mesmo atesta, para os modos de<br />
objetivação dos sujeitos, isto é, as formas de transformação do ser humano<br />
em sujeito. No post-scriptum “O sujeito e o poder”, publicado<br />
na conhecida obra organizada por Dreyfus e Rabinow (originalmente<br />
intitulada Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics),<br />
Foucault identifica o seu extenso trabalho de reflexão como um empreendimento<br />
que visa a “criar uma história dos diferentes modos<br />
através dos quais, na nossa cultura, os seres humanos têm sido convertidos<br />
em sujeitos” (FOUCAULT, 2001, p. 241). A título de análise,<br />
elejo apenas o polo do governo dos outros, intitulado biopolítica. É o<br />
modo biopolítico de gestão do humano e formação dos sujeitos que<br />
interessa aqui.<br />
Por biopolítica, Foucault entende “a maneira como se procurou,<br />
desde o século XVIII, racionalizar os problemas colocados à prática<br />
governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos<br />
denominados como população” (FOUCAULT, 2008a, p. 359). A<br />
biopolítica é um tipo específico de poder que se centrou no corpo-<br />
-espécie, que constitui uma população de seres vivos transpassados<br />
por uma espécie de mecânica própria calcada nos processos biológicos.<br />
De acordo com Foucault (2005), esse exercício do poder é,<br />
essencialmente, um conjunto de tecnologias cujo objetivo é aumentar<br />
a vida, prolongar a sua duração, multiplicar as suas possibilidades, desviar<br />
seus acidentes e compensar suas deficiências pela gestão de certos<br />
fenômenos vitais. Dentre os fenômenos que apontam sobre o que tal<br />
poder atua, estão, como vimos acima, a proliferação, os nascimentos<br />
e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
147
considerando-se todas as condições que podem fazê-los variar. Esses<br />
fenômenos e condições são inseridos num regime de governo que<br />
une política e economia (FOUCAULT, 2007), uma gestão calculadora,<br />
que pretende oferecer o melhor modo de governar aquela entidade<br />
biológica definida como população, por meio de controles reguladores<br />
variados, normalizadores, que respeitam a lógica dos dispositivos de<br />
segurança.<br />
A lógica operatória dos dispositivos de segurança é descrita por<br />
Foucault (2008b) a partir da análise da intersecção entre caso-risco-<br />
-perigo-crise, própria das técnicas profiláticas de vacinação, tal como<br />
ele aborda utilizando os procedimentos atinentes à variolização na<br />
passagem do século XVIII para o XIX. Com base em seus mecanismos<br />
preventivos, analisa como um problema se distribui numa sociedade,<br />
que risco oferece para as pessoas, qual o perigo objetivo para cada<br />
indivíduo e como gerir uma situação na qual os meios tradicionais não<br />
dão conta, quer dizer, como gerir a crise. Tal regime político está associado<br />
a um campo específico de saber, qual seja, a medicina.<br />
O poder político da medicina “consiste em distribuir os indivíduos<br />
uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los, um a um,<br />
constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e<br />
fixar, assim, a sociedade em um espaço” (FOUCAULT, 2008b, p. 89).<br />
Esse trecho indica que uma série de elementos ligados aos mecanismos<br />
médicos extravasou para o controle social urbano num sentido<br />
ampliado, indiciando o fato de a medicina, entendida como técnica<br />
geral de saúde, ter assumido um lugar cada vez mais importante na<br />
maquinaria de poder a partir do século XVIII. Consoante à interpretação<br />
foucaultiana da modernidade, nesse século nasce um tipo de<br />
poder que está relacionado a um saber médico-administrativo<br />
acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição<br />
de vida, de sua habitação e de seus hábitos (...), uma ascendência<br />
político-médica sobre uma população que se enquadra como uma<br />
série de prescrições que dizem respeito não só à doença mas às formas<br />
gerais da existência e do comportamento (a alimentação e a bebida, a<br />
sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir, a disposição ideal<br />
do habitat (FOUCAULT, 2008b, p. 202).<br />
148 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
Afinal, isolar, individualizar, fixar (em um domicílio, por exemplo), esquadrinhar,<br />
dividir, inspecionar, controlar, registrar etc. são ações ligadas<br />
a práticas que visam a promover um minucioso controle social, pautado<br />
sobretudo na previdência, diretamente ligadas ao saber médico.<br />
Tal procedimento de gestão de populações de humanos é nomeado<br />
por Foucault como medicalização. Por esse conceito se entende um<br />
complexo, indefinido e contínuo processo de normalização biopolítica,<br />
que envolve uma série de práticas, cujos fundamentos estão nos<br />
procedimentos médicos, que têm uma função política de regular condutas,<br />
comportamentos, a vida biológica, incluindo os corpos, para<br />
além do registro das enfermidades. A saúde estava diretamente relacionada<br />
à noção de bem-estar da população, constituindo, em bloco,<br />
saúde-bem-estar, um dos objetivos essenciais do poder político, uma<br />
espécie de imperativo da saúde (FOUCAULT, 2007).<br />
Foucault faz uma análise a partir de uma genealogia da medicina<br />
social. Na sua pesquisa sobre a política de saúde no século XVIII, por<br />
exemplo, destaca as mudanças que implicaram uma nova noso-política,<br />
ou seja, uma nova “política das doenças”, que não deve ser<br />
entendida como uma intervenção do Estado na prática médica de<br />
cima pra baixo e/ou uniforme. De acordo com o filósofo, houve um<br />
deslocamento progressivo dos procedimentos mistos e polivalentes<br />
de assistência à saúde. O objetivo era operar um esquadrinhamento<br />
mais rigoroso das populações. Por um lado, houve a separação entre<br />
pobreza e doença; por outro, estabeleceu-se um novo quadro de distinções,<br />
de diferenciações categoriais e/ou funcionais, no qual a figura<br />
do pobre é substituída pela dos bons ou maus pobres, dos ociosos<br />
voluntários e dos desempregados involuntários etc. Em vez da pobreza,<br />
o que emerge como um problema ou uma categoria é a ociosidade.<br />
Preocupando-se com suas condições e seus efeitos, a nova<br />
noso-política visa basicamente à produtividade, ainda que se guarde<br />
uma estreita relação com a pobreza. Quer dizer, pretendia-se, por um<br />
lado, primordialmente, tornar a pobreza útil, fixando-a nos aparelhos<br />
de produção com um mínimo de vida saudável, isto é, uma vida que<br />
tornasse os indivíduos capazes de produzir; ou, por outro, aliviar ao<br />
máximo o peso dos pobres para o resto da sociedade.<br />
Essas novas regras, que são fruto da problematização da noso-política<br />
ocorrida naquele século, traduzem a organização progressiva da grande<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
149
medicina no século XIX, que é, por sua vez, corporificada por “uma<br />
política de saúde e de consideração das doenças como um problema<br />
político e econômico” (FOUCAULT, 2007, p. 194). Tal política de assistência<br />
não focaliza apenas os pobres, mas sim uma coletividade. Ou<br />
seja, buscam-se efeitos de conjunto, que atinjam toda uma população.<br />
O objetivo geral deve ser compreendido como “a saúde de todos como<br />
urgência para todos; o estado de saúde de uma população” (p. 195).<br />
Na medicalização biopolítica da sociedade, uma série funcional deve<br />
ser implementada e mantida ciosamente, a saber, a disposição da sociedade<br />
como meio de bem-estar físico, saúde perfeita e longevidade.<br />
Essa tríplice função fora exercida por um aparelho que conjugava mecanismos<br />
de garantia da ordem, desenvolvimento canalizado das riquezas<br />
e promoção da saúde em geral: a polícia 3 (FOUCAULT, 2007). Haja<br />
vista o foco do presente artigo, dentre suas múltiplas atividades, destaco<br />
o papel de preservar o respeito, o cumprimento das regras gerais de<br />
higiene. O privilégio dado à higiene marca a noso-política moderna, é<br />
um traço destacado do funcionamento da política médica como instrumento<br />
de controle social. Pensar a medicalização no seu nascedouro<br />
é se remeter à higiene como um regime de saúde de populações, um<br />
regime que envolve práticas profiláticas que foram alargadas ao conjunto<br />
de uma população, a fim de desaparecer com os surtos epidêmicos,<br />
baixar a taxa de morbidade e majorar a duração da vida.<br />
Tais objetivos são operacionalizados pelas instituições, bem como pelas<br />
práticas de saúde pública a elas atinentes. Para a história da saúde pública,<br />
os anos entre 1750 e 1830 foram decisivos. É nessa época, segundo<br />
Rosen (1994), que são lançadas as bases do Movimento Sanitário do século<br />
XIX, estabelecendo alguns princípios que, associados às mudanças<br />
diacrônicas no campo, influenciam a saúde pública até a atualidade. Possivelmente,<br />
é a reboque do Iluminismo que se inicia um ávido impulso<br />
de fazer chegar ao povo os conhecimentos científicos e da medicina, com<br />
o intuito de esclarecer o público sobre os assuntos de saúde e higiene.<br />
É nesse momento histórico que se reconhece a importância dos<br />
dados numéricos precisos sobre os habitantes e tomam força os re-<br />
3 Este termo deve ser entendido num sentido genérico, já que, pelo menos<br />
até o final do Antigo Regime, a polícia não se resumia às instituições policiais<br />
propriamente ditas.<br />
150 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
gistros matemáticos da vida e da morte. Em 1786, o célebre matemático<br />
Pierre Simon Laplace procurou estimar a população francesa<br />
a partir das taxas de nascimento de distritos representativos. A partir<br />
das ideias de Condorcet sobre o uso do cálculo das probabilidades<br />
nas questões de saúde, Philippe Pinel, em 1807, procurou provar,<br />
matematicamente, o valor do tratamento moral de seus pacientes psiquiátricos.<br />
Em 1820, Jeremy Bentham propôs, em seu governo hipotético,<br />
a criação de um escri tório central de estatística. Enfim, vários<br />
Estados, especialmente a França, e estudiosos se debruçaram sobre a<br />
aritmética política (ROSEN, 1994).<br />
Mais tarde, diferentes investigações contribuíram para fortalecer, ainda<br />
mais, a relevância do cálculo estatístico e das probabilidades nas análises<br />
sobre a saúde. Adolpho Quetelet reuniu e organizou dados sobre o tamanho<br />
corporal e procurou expressar, em um valor numérico, o homem<br />
médio. Assim, em 1835, Quetelet apresentou o índice de Quetelet, também<br />
conhecido como índice de massa corporal (IMC), como resultado<br />
da distribuição em uma curva de normalidade. Entre 1849 e 1855, John<br />
Snow publicou dois manuscritos que continham suas conclusões sobre as<br />
mortes por cólera em Londres. Mesmo desconhecendo o agente infec -<br />
cioso, Snow identificou e relacionou, a partir dos dados estatísticos,<br />
o número de mortes de cada área habitada com o grau de poluição no<br />
rio Tâmisa e, portanto, das condições socioeconômicas (ROSEN, 1994).<br />
Desses estudos, pode-se especular, emergiram as raízes do discurso<br />
sobre o risco na saúde pública. Com efeito, o higienismo é um traço<br />
fundamental da rede de tecnologias médico-políticas que constituíram<br />
a ideia de governamentalidade biopolítica nos séculos XVIII e XIX, legando<br />
ao século XX relevante influência – o que não significa identidade<br />
entre elas, mas sim o compartilhamento de alguns sentidos, práticas e<br />
métodos, tais como o estabelecimento ainda hoje de políticas de controle<br />
médico-estatístico de endemias em conjuntos populacionais.<br />
2 A EDUCAÇÃO FÍSICA COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO:<br />
O PAPEL DA GINÁSTICA<br />
A problemática das epidemias é um foco constante da literatura médica<br />
do início do século passado (MIRANDA e DABAT, 2000). Com<br />
base em um modelo flagrantemente higienista, forjado por discursos<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
151
e práticas, sobretudo médicos, que visavam à profilaxia, conforme se<br />
percebe numa pesquisa preliminar nas publicações disponíveis no catálogo<br />
de teses de medicina do Brasil, tal enfoque tem sido largamente<br />
estudado, e seu papel civilizatório vem sendo devidamente trabalhado<br />
na sua estreita relação com a educação (GONDRA, 2000; 2003;<br />
2004). Essa preocupação com as epidemias teria chegado ao Brasil,<br />
com reapropriações e reinterpretações, na passagem do século XIX<br />
para o XX, dando lugar ao cuidado com a saúde da população (GÓIS<br />
JUNIOR e LOVISOLO, 2003). O Movimento Higienista ou Sanitarista<br />
defendia a saúde e a educação pública no ensino de hábitos higiênicos,<br />
ou seja, defendia a ideia de que um povo educado e saudável é<br />
a principal riqueza de uma nação. Acerca desses projetos civilizatórios<br />
e de nação, bem como da ideia de progresso a eles relacionada, é<br />
indubitável a importância dada à ligação entre educação e ensino de<br />
hábitos saudáveis, relacionada ao higienismo.<br />
Segundo Bagrichevsky et al. (2006), a educação física, desde a modernidade,<br />
sempre esteve afinada com os objetivos do controle biopolítico.<br />
Soares (1994), no seu estudo sobre as raízes da educação física<br />
brasileira, descreve como o movimento higienista europeu influenciou<br />
a constituição de um campo de intervenção no qual ela foi inserida. A<br />
educação física vem abrigando tais intentos, tomando para si os ideais<br />
da exercitação corporal como uma espécie de carro-chefe. Isso pode<br />
ser comprovado, entre outras coisas, pela clara prevalência histórica<br />
de enfoques em pesquisas que exploram os determinantes biológicos<br />
da atividade física, sobretudo quanto às suas consequências para<br />
a saúde no indivíduo ativo e no sedentário, em detrimento de uma<br />
abordagem que considere também os elementos socioculturais.<br />
Tal focalização é uma espécie de legado que a epidemiologia dá à<br />
educação física. Palma e Vilaça (2010) analisaram como a epidemiologia<br />
lida contraditoriamente com índices de sedentarismo para definir<br />
estilos de vida de indivíduos de uma população, produzindo rótulos<br />
baseados em pares de oposição binária questionáveis (sedentário versus<br />
ativo), visando ao constrangimento e à modularização de condutas.<br />
Os autores mostram como os critérios usados num mesmo estudo<br />
epidemiológico podem alterar a caracterização de um indivíduo<br />
como sedentário ou ativo. Assim, demonstram como é questionável<br />
o critério científico de determinação de um estilo de vida tido como<br />
152 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
sedentário, o que apontaria menos para uma constatação de cunho<br />
estritamente científico, e mais para uma estratégia moralizante, que<br />
visa a rotular, culpabilizar e normalizar sujeitos.<br />
No âmbito escolar, as práticas corporais parecem estar sob o domínio<br />
da educação. É essa disciplina que é a responsável por operacionalizar<br />
aquelas práticas com fins, por assim dizer, educacionais.<br />
Nesse sentido, a relação entre elas formaria um dispositivo biopolítico-<br />
-pedagógico, uma estratégia biopolítica de controle da vida a partir<br />
de uma prática pedagógica. Como um dispositivo, tem uma função<br />
histórico-estratégica de responder a uma urgência, sendo capaz de se<br />
remodelar permanentemente a fim de se adaptar à próxima demanda.<br />
Ademais, está inserido em um jogo de poder, sempre ligado também<br />
a uma ou mais configurações de saber que nascem dele, mas que,<br />
por outro lado, são sua condição de emergência. Ou seja, o dispositivo<br />
biopolítico-pedagógico articula um conjunto de saberes, atuando<br />
como uma força nas relações de poder que visam a formar o humano,<br />
orientar sua vida, gerir seu comportamento.<br />
Em relação ao dispositivo formado pela educação física e suas práticas,<br />
como a ginástica, cabe apontar que ela se organizou e organiza<br />
fundamentalmente em torno do campo de saberes biomédicos, criando<br />
uma espécie de casamento (im)perfeito (BRACHT, 2003). A fisiologia,<br />
a biomecânica, a bioquímica etc. são alguns dos pilares mais firmes<br />
da educação física. Segundo Bracht, as biociências do esporte, ao<br />
mesmo tempo em que trouxeram legitimidade social, acarretaram um<br />
comprometimento pedagógico da educação física. O casamento com<br />
os esportes e as biociências vem legitimando social e academicamente<br />
a educação física como um campo de saberes e práticas, mas expropria,<br />
em certa medida, sua autonomia pedagógica. Esse é um ponto<br />
bastante relevante, porque um dos mais caros subsídios legitimadores<br />
das práticas corporais é justamente uma suposta promoção da noção<br />
marcadamente biomédica de saúde. Isso vem criando uma relação de<br />
dependência da educação física em relação aos saberes biomédicos,<br />
uma vez que são eles que, via de regra, vêm ratificando ou não a eficácia<br />
das práticas corporais, dando-lhes ou tirando-lhes legitimidade.<br />
Contudo, tal relação de causa-efeito entre atividade física e saúde,<br />
como argumenta Palma (2000), sequer se sustentaria na prática. Embora<br />
fortemente questionável, tal correlação de causalidade serviu e<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
153
segue servindo de fundamento para que a educação física opere como<br />
um dispositivo biopolítico-pedagógico. Como um instrumento pedagógico<br />
que, entre outras coisas, ensina os sujeitos a se governarem a si<br />
mesmos, a educação física foi um precioso dispositivo de governo da<br />
vida, sobretudo em termos higiênicos.<br />
Aliada aos métodos de previsão de riscos, a educação física fora proposta<br />
como uma forma de combate às doenças. Melo (2001), no seu<br />
estudo sobre o nascimento da ideia de que esporte é saúde, aponta<br />
como o remo foi uma prática desportiva que auxiliou na constituição<br />
de um processo de crescente modernização, urbanização e saneamento<br />
da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, no século XIX,<br />
começa-se a perceber uma nova relação dos habitantes com a cidade,<br />
com a água e o mar incorporados, primeiramente, como práticas<br />
higiênicas e terapêuticas, o que foi fundamental para o vertiginoso<br />
desenvolvimento do remo como o “sport saudável”, uma prática desportiva<br />
plenamente adequada às imagens de progresso e de modernidade.<br />
Tais imagens incluíam, como pano de fundo, uma ideia geral<br />
de progresso da nação que se relacionava com o ideal de indivíduos<br />
saudáveis, física e moralmente (MELO, 2001).<br />
A articulação entre discursos e saberes médicos, política e pedagogia<br />
está delineada em termos de higienismo. Citando o eugenista brasileiro<br />
Renato Kehl, Gondra ressalta o destaque dado à higiene, definida<br />
como a solução dos problemas da humanidade, pois seria capaz de<br />
engrandecê-la e de promover sua felicidade, assim como seu bem-<br />
-estar físico e moral, além da evolução somática e intelectual. Ainda<br />
segundo o eugenista, a higiene é uma “arte de conservar a saúde (...),<br />
prolongando a vida dentro dos limites ótimos de sua duração normal”<br />
(KEHL apud GONDRA, 2003, p. 28). Gondra e Garcia (2004) ressaltam<br />
a investida higienista sobre a melhoria das condições de salubridade<br />
da infância. O tratamento de problemas como a má circulação<br />
do ar, que acarretava um alto índice de contaminação, a temperatura<br />
e a umidade elevadas etc. eram alvos da higienização da sociedade,<br />
especialmente do ambiente escolar.<br />
A infância era vista como capaz de proliferar os ensinamentos e hábitos<br />
educacionais e higiênicos. Acreditava-se que ela disseminaria a<br />
consciência higiênica. Ao passo que a criança era vista como uma espécie<br />
de elemento propagador dos ideais higienistas, a escola era um<br />
154 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
dos instrumentos mais relevantes para tal, o que reforça a afirmação<br />
acerca da estreita vinculação entre educação e higienismo.<br />
De acordo com o médico parisiense Alfred Becquerel, a higiene<br />
deveria ser entendida de um ponto de vista mais geral, ou seja, como<br />
higie ne privada, aquela que diz respeito à saúde individual, e como higiene<br />
pública, que se refere à saúde coletiva (GONDRA, 2003). Como<br />
uma espécie de conglomerado de ciências, uma ciência compósita<br />
(física, química, história natural e patologia), ela deveria se dar a tarefa<br />
de fazer florescer a humanidade nos seus mais diversos aspectos. E é<br />
justamente nesse sentido que, de acordo com Gondra (2003), o higienismo<br />
opera como uma matriz de projetos educativos, o que pode ser<br />
aplicado à inteligibilidade do papel dado à educação física. Conforme<br />
Gondra (2000), o uso pedagógico da higiene pode ser identificado na<br />
medida em que ela aparece como um instrumento de aperfeiçoamento<br />
das forças humanas, bem como de desenvolvimento de uma nação.<br />
É na esteira desse pensamento que Fernando de Azevedo, conhecido<br />
redator e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova<br />
(1932), parece perceber o papel da educação física na escola.<br />
Na tese apresentada para o concurso à vaga de professor da cadeira<br />
de ginástica do Gymnasio Mineiro, em 1915, defendia a necessidade<br />
de fundamentar cientificamente a ginástica escolar, a fim de que<br />
ela fosse devidamente utilizada como prática higienista e moralizante<br />
(GÓIS JUNIOR, 2009). Azevedo era um apologista da colaboração<br />
médico-pedagógica no ambiente escolar, propondo a periódica mensuração<br />
de coeficientes ligados a valências físicas, tais como a robustez<br />
e a força muscular, e a introdução de exames antropométricos. Todos<br />
esses elementos deveriam compor um boletim das medições corporais<br />
do aluno, o qual deveria ser assinado por um professor, pelo reitor e<br />
por um médico inspetor (AZEVEDO, 1915).<br />
Segundo Fernando de Azevedo, a cultura física se destinaria a vários<br />
fins. Um deles é definido como ginástica fisiológica. Esta, por sua vez,<br />
subdivide-se em terapêutica e ortopédica e em profilática ou higiênica.<br />
Para ele, era justamente esta subcategoria que devia viger na<br />
escola. Conforme o seu entendimento, a ginástica escolar subdividia-<br />
-se em educativa e higiênica. Enquanto àquela caberia desenvolver a<br />
atenção, a prontidão no movimento, a coragem e a energia, esta tinha<br />
a função de beneficiar o corpo, corrigindo atitudes defeituosas, des-<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
155
congestionando o cérebro, ativando a circulação e obtendo amplitude<br />
do peito (AZEVEDO, 1915). Tal caracterização dá os primeiros indícios<br />
de que a ginástica escolar coadunava-se com os objetivos da governamentalidade<br />
biopolítica.<br />
Para Azevedo, é necessária uma colaboração médico-pedagógica,<br />
reservando ao médico um papel importantíssimo na escola. Dentre<br />
suas funções, “ele deve examinar alunos na entrada do colégio, separando<br />
as duas grandes categorias de normais e anormais; deverá<br />
velar tanto sobre os jogos, como sobre a aplicação de ginástica, e,<br />
sobretudo, da ginástica respiratória” (AZEVEDO, 1915, p. 185). Sua<br />
argumentação é arrematada com a afirmação de que “é preciso, por<br />
isso, que os médicos inspetores sejam competentes, sobretudo, em<br />
higiene escolar, e afeitos ao estudo e à solução dos mil problemas que<br />
com ela se relacionam” (1915, p. 185). Sua adesão aos princípios da<br />
higiene e sua aposta em um suposto poder de controle social aliado à<br />
promoção de certa concepção de vida ficam explícitas.<br />
Azevedo alude à prática da ginástica moderna uma importância<br />
pouco reconhecida em sua época. Desde o aspecto propriamente<br />
físico-motor ou fisiológico da eficácia dos movimentos e desenvolvimento<br />
da energia corporal, passando pelo moral (formação do caráter),<br />
pelo higiênico e pelo regenerativo, ele abre um amplo espectro<br />
de benefícios advindos da prática da ginástica escolar.<br />
Quanto ao primeiro, Azevedo (1915) afirma que a ginástica racional<br />
tem de dar ao escolar “a coordenação desejável à produção dos atos<br />
físicos mais difíceis com o mínimo de esforço” (p. 22), tendo por um<br />
dos seus fins “desenvolver o aparelho locomotor” (p. 54). Recorrendo<br />
à cultura grega antiga e à indiana dos yoghi, Azevedo propugna a<br />
estreita interligação entre o aspecto físico-motor e a moral, afirmando<br />
que “não pode existir educação antagonista do corpo e do espírito”<br />
(p. 52). O homem, entendido como um maquinário orgânico solidário,<br />
sofre a repercussão do “enfraquecimento” dessa solidariedade<br />
harmônica ao nível do estado moral geral, ou seja, do pensamento, da<br />
vontade, dos hábitos e da sociabilidade. Para ele, “o desenvolvimento<br />
do indivíduo e a formação de seu caráter dependem tanto do funcionamento<br />
dos órgãos, como da qualidade de sua educação” (p. 53).<br />
Em outro trecho, há a assertiva de que “a inteligência e a moral não<br />
são, pois, menos influenciadas do que o físico pelo exercício e pelo<br />
156 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
funcionamento dos órgãos (...). A atividade não é menos uma necessidade<br />
moral do que um dever físico” (p. 57-8).<br />
Sua perspectiva é impactante, controvertida, pelo menos nos dias<br />
atuais, pois nela se lê, por exemplo, que “o homem são, cultivado fisicamente<br />
e preparado pelas qualidades do caráter, tem por via de regra<br />
uma predisposição inata à moral”. Além de tal relação ser questionável<br />
do ponto de vista empírico, até mesmo especulativamente parece<br />
insustentável – afinal, se é inata, qual seria o papel daquelas formas de<br />
cultivo físico e de caráter na moralidade? Azevedo chega a citar uma<br />
“tendência para o mal” como resultado de um organismo doentio.<br />
Reportando-se novamente à Grécia Antiga, formula uma relação entre<br />
saúde, qualidades morais e coragem como característica de um tipo<br />
ideal de atleta de corpo e espírito.<br />
Azevedo aduz uma série de nomes para corroborar sua visão. De<br />
Schuyten, toma a ideia de que, pela observação, pode-se concluir<br />
que as crianças mais inteligentes têm mais força muscular; de Stanley<br />
Hall, Feré, Ribot e Binet, a visão de que motricidade e psique estão<br />
em íntima ligação; com Robertson, afirma que o homem é a soma dos<br />
seus movimentos; e, para resumir, põe-se ao lado de Waudsley, apostando<br />
na excêntrica tese de que o caráter do homem é simplesmente<br />
a soma de seus hábitos musculares. Em suma, era o perfeito equilíbrio<br />
do humano, o desenvolvimento harmônico e integral dos alunos, que<br />
Azevedo focalizava, tomando como inconteste a imprescindibilidade<br />
da dedicação aos exercícios físicos e ao cuidado com a cultura corporal<br />
como meio de alcançá-lo.<br />
No que tange à noção de higiene, é menos a ginástica que preocupa<br />
Azevedo do que o ambiente no qual é praticada. O ponto seria,<br />
então, fornecer um lugar asseado, as condições materiais propícias<br />
para que todos os benefícios daquela atividade se desenvolvessem<br />
sem empecilhos. Salas arejadas, iluminadas, sob a influência “salutar”<br />
do sol são tidas como condições de possibilidade do êxito, já que<br />
“sem higiene no local e no fato, não há ginástica profícua” (AZEVEDO,<br />
1915, p. 199).<br />
O aspecto da regeneração, no qual há elementos que expressam<br />
juízos de valor impregnados das pretensões de cientificidade das teorias<br />
da regeneração da época, deixa ainda mais patente a relação que<br />
viemos delineando no decurso do artigo, a saber, que o pensamento<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
157
de Azevedo se insere na lógica da governamentalidade biopolítica. Caracterizando<br />
o brasileiro como um povo sem um tipo étnico definido,<br />
uma etnia ternária, “emperrado, raquítico, destinado à absorção ou ao<br />
menos à quase impossibilidade de galgar agora a posição de destaque<br />
no convívio internacional” (1915, p. 203), Azevedo defende incisiva e<br />
amplamente a necessidade de medicalizar a população do Brasil, a fim<br />
de rejuvenescê-la. Assumindo a modernidade como parâmetro, defendendo<br />
que a educação física pela ginástica escolar é um fato precípuo<br />
para regenerar a sociedade brasileira, logo, a nação, afirma que<br />
não há senão seguir estas tendências modernas, em que triunfa (...) o<br />
princípio de fusão de todas as ciências para um perfeito ideal educativo<br />
– o sincretismo, que tem por objeto o homem em formação nas várias<br />
manifestações da sua personalidade somática e moral” (1915, p. 206).<br />
Progredir é tomado por Azevedo como sinônimo de regenerar física<br />
e moralmente os indivíduos, conforme aquelas pretensões governamentais<br />
biopolíticas. Nesse sentido, “a regeneração física é incontestavelmente<br />
um dos maiores fatores do progresso, se não for talvez<br />
este próprio progresso” (1915, p. 205). Pressupondo uma espécie<br />
de degenerescência do povo brasileiro, eleva a ginástica escolar à<br />
condição de instrumento fundamental de regeneração social. O objetivo<br />
da educação física escolar, das práticas corporais escolares,<br />
seria a formação de um novo homem brasileiro. Azevedo é taxativo<br />
em relação a isso:<br />
Uma vez entrada pela educação nos hábitos do país, a prática da ginástica,<br />
sustentada durante uma larga série de gerações, depuraria a<br />
nossa raça de diáteses mórbidas, locupletando-a progressivamente<br />
pela criação incessante de indivíduos robustos (1915, p. 208-9).<br />
Azevedo conclui sua visão prestigiosa da ginástica, afirmando que<br />
“o país que não tem educação física está morto” (1915, p. 209). Em<br />
suma, povo brasileiro forte se forma a partir da limpeza étnica e racial,<br />
de robustecimento físico e moral, o que é operado por meio da<br />
prática da ginástica escolar no âmbito da educação física, com vistas<br />
à medicalização da sociedade brasileira, a fim de regenerar a nação.<br />
158 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
Tal perspectiva também pode ser vista em outras obras. Azevedo<br />
(1920) defende o melhoramento da raça humana pela democratização<br />
do ensino e da saúde. O exercício físico é tido como uma “maravilhosa<br />
ação mecânica, que corrige e modela a estrutura humana” (p.<br />
22). Azevedo (1933) aposta na educação sanitária como um modo de<br />
inculcar nas crianças hábitos higiênicos, regenerando sujeitos, gerando<br />
uma nova nação. Ao mostrar a importância da saúde, tal educação deveria<br />
criar nos indivíduos, desde a infância, uma vigilância constante,<br />
um cuidado intensivo e extensivo com a vida saudável.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A presente análise demonstrou como Fernando de Azevedo era um<br />
homem do seu tempo, ou seja, estava amplamente coadunado com<br />
alguns dos saberes que graçavam à época, notadamente os biomédicos.<br />
A partir de uma visão biologicista de educação, estava voltado<br />
para um investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando<br />
no vínculo entre biologia, política e moral, em conformidade<br />
com a lógica da governamentalidade biopolítica. Visando à construção<br />
de um novo povo e de uma nova nação, subsidiado pelos valores<br />
higienistas, apostava na educação para a contração de hábitos higiênicos,<br />
considerando as práticas corporais como fundamentais no processo<br />
de regeneração do povo e da nação, o que deveria contar com<br />
a atuação necessária do dispositivo biopolítico-pedagógico.<br />
Sua ideia de que a higiene envolve não só aspectos físicos, mas também<br />
morais, expressa o modelo de medicalização das sociedades modernas,<br />
conforme investigado por Foucault, o que indica sua aposta<br />
numa forma de governo dos outros entendida como uma estratégia de<br />
controle da vida calcada na prevenção. Aliás, como ficou evidenciado,<br />
as práticas corporais tinham um valor profilático, que deveria ser<br />
intensamente usado para fins educacionais.<br />
Assim, a cartografia feita permitiu que o pensamento de Fernando<br />
de Azevedo fosse compreendido em sua inegável inserção na lógica<br />
da governamentalidade biopolítica das populações.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
159
REFERÊNCIAS<br />
AZEVEDO, F. A educação e seus problemas. São Paulo: Ed. Nacional, 1937.<br />
______. A poesia do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e seu valor.<br />
Belo Horizonte: Impr. Oficial do Estado de Minas, 1915.<br />
______. Da educação physica: o que ella é, o que tem sido, o que deveria ser.<br />
São Paulo: Weiszflog Irmãos, 1920.<br />
______. O problema da regeneração. Educação Physica, n. 5, p. 10-13, 1933.<br />
BAGRICHEVSK, M. et. al. Saúde coletiva e educação física: aproximando<br />
campos, garimpando sentidos. In: BAGRICHEVSK, M. et. al. (Org.). A saúde<br />
em debate na educação física. Blumenau: Nova Letra, 2006. v. 2, p. 21-44.<br />
BRACHT, V. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí:<br />
Unijuí, 2003.<br />
CASTRO, E. Leituras da modernidade educativa: disciplina, biopolítica e ética.<br />
In: KOHAN, W.; GONDRA, J. G. (Org.). Foucault 80 anos. Belo Horizonte:<br />
Autêntica, 2006. p. 63-78.<br />
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-<br />
1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
______. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado.<br />
24. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.<br />
______. Nascimiento de la biopolítica: curso en el Collège de France (1978-<br />
1979). Traducción Horacio Pons. Buenos Aires: Fondo de cultura Económica,<br />
2008a.______. Post-scriptum. El sujeto y el poder. In. DREFUS, DREFUS, H. L.; RABI-<br />
NOW, P. Michel Foucault: más allá del estructuralismo y la hermenéutica.<br />
Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2001. p. 241-259.<br />
______. Segurança, território e população: curso no Collège de France<br />
(1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.<br />
GÓIS JÚNIOR, E. Modernismo, raça e corpo: Fernando de Azevedo e a questão<br />
da saúde no Brasil (1920-1930). <strong>Revista</strong> Brasileira de Ciências do Esporte,<br />
Campinas, v. 30, n. 2, p. 39-56, set. 2009.<br />
160 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011
GÓIS JÚNIOR, E.; LOVISOLO, Hugo R. Descontinuidades e continuidades do<br />
movimento higienista no Brasil do século XX. <strong>Revista</strong> Brasileira de Ciências<br />
do Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 41-54, set. 2003.<br />
GONDRA, J. G. A sementeira do porvir: higiene e infância no século XIX. Educação<br />
e pesquisa, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 99-117, jan./jun. 2000.<br />
______. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação na corte imperial.<br />
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.<br />
______. Homo hygienicus: educação, higiene e a reinvenção do homem. Cadernos<br />
CEDES, Campinas, v. 23, n. 59, p. 25-38, 2003.<br />
GONDRA, J. G.; GARCIA, I. A arte de endurecer “miolos moles e cérebros<br />
brandos”: a racionalidade médico-higiênica e a construção social da infância.<br />
<strong>Revista</strong> Brasileira de Educação, n. 26, p. 69-85, mai./ago. 2004.<br />
MELO, V. A. “Esporte é saúde”: desde quando? <strong>Revista</strong> Brasileira de Ciências<br />
do Esporte, Campinas v. 22, n. 2, p. 55-67, jan. 2001.<br />
MIRANDA, C. A. C.; DABAT, C. P. . R. (Org.). Memórias da medicina: catálogo<br />
de teses de medicina do Brasil (1841-1948). Recife: Ed. Universitária da<br />
UFPE, 2000.<br />
PALMA, A. Atividade física, processo saúde-doença e condições sócio-econômicas:<br />
uma revisão da literatura. <strong>Revista</strong> Paulista de Educação Física, v. 14,<br />
n. 1, p. 97-106, 2000.<br />
PALMA, A.; VILAÇA, M. M. O sedentarismo da epidemiologia. <strong>Revista</strong> Brasileira<br />
de Ciências do Esporte, Campinas, v. 31, n. 2, p. 105-119, jan. 2010.<br />
ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec, 1994.<br />
SOARES, C. L. Educação física: raízes europeias e Brasil. São Paulo: Autores<br />
Associados, 1994.<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
161
NÚMEROS ANTERIORES<br />
EDIÇÃO 11<br />
EDIÇÃO 12<br />
162<br />
O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL<br />
DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL<br />
Anderson Eduardo Silva de Oliveira<br />
MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO<br />
DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA<br />
Andréa F. Costa<br />
Maria das Mercês Navarro Vasconcellos<br />
PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA<br />
Graziela Ansiliero<br />
Rogério Nagamine Costanzi<br />
GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL<br />
Análise comparativa das ações recentes para a reforma<br />
dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos<br />
Rafael Parente<br />
INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE<br />
Em busca de abordagens avaliativas e de efetividade<br />
Regina Bodstein<br />
HOMICÍDIO JUVENIL E SEUS DETERMINANTES SOCIOECONÔMICOS<br />
Uma interpretação econométrica para o Brasil<br />
Lisa Biron<br />
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA E O CONCEITO DE SOCIEDADE<br />
CIVIL EM GRAMSCI<br />
Estratégias para o enfrentamento da crise socioambiental<br />
Maria Jaqueline Girão Soares de Lima<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011
EDIÇÃO 13<br />
UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO RECENTE DA TAXA DE DESEMPREGO<br />
SEGUNDO DIFERENTES CLASSIFICAÇÕES<br />
Marina Ferreira Fortes Águas<br />
ÁREAS PROTEGIDAS E INCLUSÃO SOCIAL<br />
Uma equação possível em políticas públicas de<br />
proteção da natureza no Brasil<br />
Marta de Azevedo Irving<br />
DESENVOLVIMENTO INFANTIL<br />
Uma análise de eficiência<br />
Vívian Vicente de Almeida<br />
BIBLIOTECA E CIDADANIA<br />
Ana Ligia Silva Medeiros<br />
ESCOLA E SAMBA: SILÊNCIO DA BATUCADA?<br />
Augusto César Gonçalves e Lima<br />
O BRASIL, A POBREZA E O SÉCULO XXI<br />
Celia Lessa Kerstenetzky<br />
O MERCADO DE TRABALHO METROPOLITANO BRASILEIRO EM 2009<br />
Lauro Ramos<br />
LINGUAGEM, PENSAMENTO E MUNDO<br />
Ludovic Soutif<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />
163
EDIÇÃO 14<br />
EDIÇÃO 15<br />
164<br />
EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO:<br />
UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES<br />
Carlos Frederico B. Loureiro<br />
A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS<br />
Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de S. Valle<br />
A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS<br />
TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937 – 1996)<br />
Ieda Magri<br />
DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES<br />
TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010<br />
Larissa Morais<br />
OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’<br />
Paulo Cesar Duque-Estrada<br />
A DESORDEM DO MUNDO<br />
André Bueno<br />
ESCUTA, ARTE E SOCIEDADE A PARTIR DO MÚSICO ENFURECIDO<br />
Daniel Belquer<br />
A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRI-<br />
ÇÕES AO INGRESSO<br />
Márcia Marques de Carvalho<br />
APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO<br />
Pedro Demo<br />
A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO:<br />
DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO<br />
Sylvia Moretzsohn<br />
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011
Caso tenha interesse em receber a revista<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, entre em contato conosco:<br />
Assessoria de Divulgação e Promoção<br />
Departamento Nacional do SESC<br />
adpsecretaria@sesc.com.br<br />
Tel.: (21) 21365149<br />
Fax: (21) 21365470
Esta revista foi composta nas tipologias Zapf Humanist 601 BT, em<br />
corpo 10/9/8,5, e ITC Officina Sans, em corpo 26/16/9/8, e impressa<br />
em papel off-set 90g/m 2 , na Walprint Gráfica e Editora Ltda.