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Revista Sinais Sociais N16 pdf - Sesc

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www.sesc.com.br<br />

16<br />

SESC | Serviço Social do Comércio ano 5 | maio > agosto | 2011<br />

SESC | Serviço Social do Comércio<br />

REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA<br />

GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO,<br />

BRASIL<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />

Sueli Ângelo Furlan<br />

A HORA DE IR PARA A ESCOLA<br />

Daniel Santos<br />

CRIATIVIDADE<br />

Marsyl Bulkool Mettrau<br />

ISSN 1809-9815<br />

ano 5 | maio > agosto | 2011<br />

16<br />

ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA:<br />

PENSANDO OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA<br />

DO RIO DE JANEIRO<br />

Monique Assis<br />

Nilda Teves<br />

GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO<br />

BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE<br />

DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E<br />

MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO<br />

Murilo Mariano Vilaça


v.5 nº16<br />

maio > agosto | 2011<br />

SESC | Serviço Social do Comércio<br />

Administração Nacional<br />

ISSN 1809-9815<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011


SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL<br />

Antonio Oliveira Santos<br />

DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL<br />

Maron Emile Abi-Abib<br />

COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />

Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />

Mauro Lopez Rego<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Álvaro de Melo Salmito<br />

Mauricio Blanco<br />

Nivaldo da Costa Pereira<br />

SECRETÁRIO EXECUTIVO<br />

Mauro Lopez Rego<br />

ASSESSORIA EDITORIAL<br />

Andréa Reza<br />

EDIÇÃO<br />

Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral<br />

Christiane Caetano<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Vinicius Borges<br />

SUPERVISÃO EDITORIAL<br />

Jane Muniz<br />

PRODUÇÃO EDITORIAL<br />

Duas Águas| Ieda Magri<br />

REVISÃO<br />

Clarissa Penna<br />

REVISÃO DO INGLÊS<br />

Idiomas & cia<br />

DIAGRAMAÇÃO<br />

Livros & Livros | Susan Johnson<br />

PRODUÇÃO GRÁFICA<br />

Celso Clapp<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/<br />

ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC,<br />

Departamento Nacional, 2006 - .<br />

v.; 30 cm.<br />

Quadrimestral.<br />

ISSN 1809-9815<br />

1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I.<br />

Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .<br />

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />

As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO5<br />

EDITORIAL7<br />

SOBRE OS AUTORES8<br />

REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA GESTÃO<br />

AMBIENTAL EM MATO GROSSO, BRASIL10<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />

Sueli Ângelo Furlan<br />

A HORA DE IR PARA A ESCOLA38<br />

Daniel Santos<br />

CRIATIVIDADE86<br />

Marsyl Bulkool Mettrau<br />

ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA: PENSANDO<br />

OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA DO RIO DE<br />

JANEIRO108<br />

Monique Assis<br />

Nilda Teves<br />

GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO<br />

BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE<br />

DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E<br />

MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO142<br />

Murilo Mariano Vilaça<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

3


APRESENTAÇÃO<br />

A revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> tem como finalidade precípua tornar-se um<br />

espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.<br />

Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.<br />

Pluralidade no sentido de que a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é aberta para a<br />

publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no<br />

Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas<br />

páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício<br />

poder-se-ão manifestar.<br />

Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas<br />

Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade:<br />

“Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo<br />

ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como<br />

principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”<br />

Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos<br />

– de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão<br />

mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.<br />

Importa para a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> artigos em que a fundamentação<br />

teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das<br />

ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum.<br />

Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer<br />

as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os<br />

objetos em estudo.<br />

O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes,<br />

de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com<br />

suas reflexões como para segmentos do grande público interessados<br />

em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.<br />

Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente<br />

ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse<br />

debate, é a intenção do SESC com a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />

Antonio Oliveira Santos<br />

Presidente do Conselho Nacional do SESC<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

5


EDITORIAL<br />

No intuito de assegurar a sobrevivência, as sociedades humanas<br />

criam fortalezas que podem se tornar causa ou evidência de suas próprias<br />

fragilidades. O Estado hobbesiano busca a paz interna e a defesa<br />

comum e, para tanto, retira de cada membro uma parcela de sua<br />

liberdade. Ao homem contemporâneo “pós-tudo”, resta tentar compatibilizar,<br />

com engenho e arte, as estruturas abstratas, lógicas e gerais<br />

com o plano individual, concreto e corporificado de sua realidade.<br />

A presente edição da <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> traz algumas contribuições a essa<br />

perene tarefa. O modelo de atividade física escolar defendido por<br />

Fernando de Azevedo na primeira metade do século XX é objeto da<br />

crítica de Murilo Mariano Vilaça, por implicar a normalização simultânea<br />

nos campos da educação, da saúde e da moral. Também com forte<br />

referência histórica, Monique Assis e Nilda Teves produzem estudo sobre<br />

projetos que têm a dança como meio de inclusão social, e apontam<br />

para a tensão entre sua vitalidade artística e dramática e as ameaças da<br />

apropriação estritamente pedagógica, ou de sua mera reificação.<br />

Outros dois artigos abordam a eficácia de políticas públicas, instrumentos<br />

modernos de busca da “paz interna” almejada por Hobbes.<br />

Daniel Santos apresenta relevantes reflexões na comparação entre<br />

os benefícios da creche e da pré-escola no processo educacional.<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel e Sueli Ângelo Furlan discutem<br />

a contribuição do ICMS Ecológico para a conservação ambiental.<br />

Finalmente, o trabalho de Marsyl Bulkool Mettrau aborda a criatividade,<br />

considerada atributo exclusivamente divino em outras épocas e<br />

civilizações e que, no presente, sinaliza para a existência de infinitas<br />

perspectivas humanas e sociais ainda não formuladas.<br />

Maron Emile Abi-Abib<br />

Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

7


SOBRE OS AUTORES<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade<br />

de São Paulo. Mestre em Geografia (área de concentração: Ambiente e<br />

Desenvolvimento Regional) pela Universidade Federal de Mato Grosso (2009).<br />

Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato Grosso<br />

(2006). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas<br />

(Inau). Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Geografia Agrária e Conservação<br />

da Biodiversidade do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora<br />

do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas<br />

Brasileiras (Nupaub) da Universidade de São Paulo. Docente de cursos de pós-graduação<br />

do Instituto de Capacitação e Pós-Graduação. Última publicação: Estância<br />

Ecológica SESC Pantanal: surgimento e consolidação no contexto pantaneiro (2011).<br />

Daniel Santos<br />

Doutor em Economia pela Universidade de Chicago, atualmente é professor no<br />

IBMEC-RJ e vice-secretário executivo da Sociedade Brasileira de Econometria.<br />

Suas áreas de concentração são em economia da educação e avaliação de políticas<br />

públicas. Recentemente, vem se especializando em desenvolvimento infantil,<br />

com especial interesse no impacto de intervenções focalizadas na primeira infância<br />

sobre diversas dimensões de sucesso individual ao longo do ciclo de vida.<br />

Marsyl Bulkool Mettrau<br />

Doutora em Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal. Mestre em<br />

Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora titular<br />

da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e professora aposentada da Universidade<br />

do Estado do Rio de Janeiro. Autora de livros sobre estudos atuais da<br />

inteligência humana, entre os quais: Inteligência: patrimônio social (2000) e Educação<br />

moral, inteligência e altas habilidades (2007). Ministra regularmente cursos<br />

e oficinas sobre o tema.<br />

Monique Assis<br />

Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá. Licenciada em Educação<br />

Física pela Universidade Gama Filho. Mestre e doutora em Educação Física pela<br />

Universidade Gama Filho, atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação<br />

8<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011


dessa universidade. Desenvolve suas pesquisas na área do imaginário social,<br />

atuando principalmente nos temas: análise do discurso (imagem e palavra), questões<br />

relacionadas à imagem corporal, cultura popular e o consumo associado ao<br />

aperfeiçoamento do corpo.<br />

Murilo Mariano Vilaça<br />

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e<br />

em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em<br />

Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharel e licenciado em<br />

Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Educação Física pela<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente colaborador da Pós-Graduação<br />

em Pedagogia Crítica da Educação Física nessa instituição. Professor substituto de<br />

Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ no biênio 2009-2010.<br />

Membro dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) do Hospital Universitário Clementino<br />

Fraga Filho (UFRJ) e do Instituto Nacional do Câncer (Inca).<br />

Nilda Teves<br />

Licenciada em Matemática e Física e em Pedagogia pela Universidade Federal do<br />

Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia das Ciências e doutora em Educação Brasileira<br />

pela mesma universidade. Possui formação em Psicanálise e é professora aposentada<br />

da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi diretora-geral de Ensino da<br />

Secretaria de Educação e da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio<br />

de Janeiro e professora titular da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professora<br />

titular da Universidade Gama Filho. Tem experiência na área de filosofia com<br />

ênfase em Filosofia da Ciência, atuando principalmente com os temas: fundamentos<br />

filosóficos da educação, cultura organizacional, educação física, cidadania e<br />

cultura popular.<br />

Sueli Ângelo Furlan<br />

Professora assistente do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras<br />

e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) desde 1986. Mestre<br />

e doutora em Geografia Física pela USP. Bacharel e licenciada em Biologia e<br />

Geografia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas socioambientais em<br />

Conservação de Florestas Tropicais, coordenando o Grupo de Pesquisa Litoral<br />

Sudeste: Ambiente, Conservação e Populações Tradicionais, vinculado ao Laboratório<br />

de Climatologia e Biogeografia da USP. Credenciada no Programa de Pós-<br />

-Graduação em Ciências Ambientais da USP. Coordenadora do Núcleo de Apoio<br />

à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub) da<br />

USP. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Florestas Culturais na Amazônia.<br />

Coordena a elaboração dos Planos de Manejo dos Parques Naturais do Rodoanel<br />

Trecho Sul e coordenou a elaboração de planos de manejo de áreas protegidas na<br />

Mata Atlântica.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

9


REPERCUSSÕES DO ICMS<br />

ECOLÓGICO NA GESTÃO<br />

AMBIENTAL EM MATO<br />

GROSSO, BRASIL<br />

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />

Sueli Ângelo Furlan<br />

10 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


Instrumentos de política pública exercem um papel essencial na aplicabilidade<br />

dos princípios, diretrizes e normas que estruturam a questão ambiental no<br />

Brasil. Nesse contexto, a implantação de unidades de conservação (UCs) pode<br />

ser considerada um dos procedimentos basilares, sendo essas áreas as principais<br />

referências para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E), um importante<br />

instrumento de incentivo econômico que vem respondendo paulatinamente<br />

às demandas para garantir a conservação ambiental. Este artigo visa verificar<br />

de que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido em Mato Grosso, buscando<br />

compreender como esse mecanismo contribui para o incentivo à gestão<br />

ambiental no estado. Os resultados indicaram que a forma pela qual o ICMS<br />

Ecológico vem sendo implementado tem repercussão como um incremento<br />

ainda insuficiente para o setor ambiental dos municípios. Com a previsão de<br />

incorporar aspectos qualitativos ao cálculo do recurso, esse instrumento tende<br />

a se tornar mais eficiente como incentivo às práticas conservacionistas no estado,<br />

indo além do seu caráter compensatório em direção a uma perspectiva<br />

socioambiental.<br />

Palavras-chave: ICMS Ecológico, políticas públicas, Mato Grosso<br />

Political Policies tools play an essential, role in the applicability of the principles,<br />

guidelines and standards that structure the environmental issue in Brazil. In this<br />

context the implementation of the conservation units can be considered one of<br />

the basic procedures, being these areas the main references for the calculation<br />

of the Ecological ICMS (E-ICMS), one important tool of economical incentive<br />

that has been gradually responding to the demands to ensure the environmental<br />

conservation. This article aims to verify how the E-ICMS has reflected<br />

in the State of Mato Grosso, seeking to comprehend how this tool contributes<br />

for the incentive of the environmental management in the State based on the<br />

perspectives that it has pointed. The results indicated that the way in which the<br />

E-ICMS has been implemented has had a repercussion as an increment still insufficient<br />

for the environmental sector of the municipalities. With the prognosis<br />

of incorporating qualitative aspects to the resource calculation, this tool tends<br />

to become more efficient as an incentive to the conservation practices in the<br />

State, going beyond its compensatory nature towards a social-environmental<br />

perspective.<br />

Keywords: Ecological ICMS, public policies, Mato Grosso<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

11


INTRODUÇÃO 1<br />

É fato notável que as transformações sociais, políticas e econômicas<br />

que gradualmente constroem a história humana na Terra implicam<br />

novas formas de organização da sociedade e novas configurações do<br />

espaço. Inerente a esse processo, a questão ambiental 2 é um dos temas<br />

mais emergentes nas agendas políticas de diversos países, especialmente<br />

nas últimas duas décadas, com a mobilização em escala<br />

local, regional e global e a necessidade premente de outros padrões<br />

para o desenvolvimento.<br />

Na busca pela melhoria das condições socioambientais atuais, a sustentabilidade<br />

tem sido um dos caminhos para a implementação de<br />

mecanismos que orientam para a igualdade, a equidade e a solidariedade,<br />

embutidas no conceito de desenvolvimento (SACHS, 2004,<br />

p. 14), para que os limites do ambiente sejam reconhecidos e determinantes<br />

no processo de construção das políticas públicas. A sustentabilidade<br />

intenta estabelecer a ligação entre os elementos naturais e os<br />

usos humanos que ocorrem em escalas variadas de tempo e espaço,<br />

de forma a considerar as necessidades de ambos, que compõem um<br />

mesmo sistema complexo (BERKES et al., 2008, p. 54).<br />

A partir dessas premissas, a precaução quanto à exploração dos elementos<br />

naturais constitui um princípio importante para avançar em<br />

direção à sustentabilidade, considerando a insubstitutibilidade do<br />

capital natural, que pode ser entendido como o ambiente de forma<br />

ampla (LIU et al., 2010, p. 54), incluindo árvores, minerais, ecossistemas,<br />

atmosfera, entre outros fatores dos quais a sociedade depende e<br />

usufrui (COSTANZA et al., 1997, p. 254).<br />

Como meio de incorporar tais concepções, os instrumentos de política<br />

pública exercem um papel fundamental na aplicabilidade das<br />

1 Agradecemos ao professor dr. Paulo Antônio de Almeida Sinisgalli, docente<br />

do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (Procam – USP), pelas<br />

reflexões levantadas no decorrer de sua disciplina Economia do Meio Ambiente,<br />

que contribuíram para o aprimoramento do trabalho.<br />

2 O termo refere-se às iniciativas, mobilizações e ações que refletem, de maneira<br />

geral, a necessidade de uma forma sustentável de desenvolvimento, que<br />

engloba, entre outros aspectos, a conservação ambiental.<br />

12 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


políticas ambientais. Os instrumentos do tipo comando e controle<br />

(ICC) compreendem um conjunto de mecanismos aplicados para a<br />

regulação quantitativa e qualitativa das relações que envolvem a utilização<br />

dos recursos naturais (PERMAN et al., 1999, p. 303), tais como:<br />

licenciamento ambiental, zoneamento, outorga pelo uso dos recursos<br />

hídricos, padrões de qualidade, fiscalização e penalidades.<br />

Entretanto, há apontamentos que indicam a insuficiência da utilização<br />

exclusiva dessa categoria de instrumentos; entre eles, Motta<br />

(1997, p. 70) destaca a escassez de recursos financeiros e humanos e<br />

as dificuldades de integração intergovernamental nas suas diferentes<br />

escalas.<br />

Com o caráter de complementação aos instrumentos do tipo comando<br />

e controle, os instrumentos econômicos, ou de mercado, têm<br />

sido empregados de forma a incrementar a política ambiental, configurando-se<br />

ainda como meios importantes para a geração de receitas<br />

destinadas a subsidiar demandas para a proteção dos recursos naturais<br />

(MOTTA, 1997, p. 72).<br />

No Brasil, a implantação de áreas destinadas à proteção ambiental,<br />

denominadas Unidades de Conservação (UC), pode ser considerada<br />

um dos procedimentos mais eficientes de políticas públicas nesse setor,<br />

e se caracteriza como a principal referência, juntamente a outros<br />

critérios ambientais, para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E). O<br />

ICMS Ecológico é um importante instrumento de compensação e incentivo<br />

econômico, que pode vir a responder às demandas para uma<br />

proteção mais eficiente das Unidades de Conservação, das terras indígenas<br />

e quilombolas, no caso específico de Mato Grosso. Como será<br />

abordado posteriormente, esse é um mecanismo que varia de acordo<br />

com cada estado brasileiro.<br />

Nesse contexto, as unidades de conservação exercem um papel<br />

significativo, pois possibilitam compreender o funcionamento dos<br />

processos naturais e sua capacidade de resiliência. Esse conceito, originado<br />

da Ecologia, tem contribuído para as reflexões acerca da importância<br />

de áreas naturais protegidas, bem como dos princípios da<br />

sustentabilidade. Seu significado, de forma geral, está pautado na possibilidade<br />

de garantir a capacidade dos organismos e ecossistemas de<br />

evoluir em termos de táticas de sobrevivência, mediante a absorção<br />

das consequências da dinâmica transformação que incidem continua-<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

13


mente sobre os mesmos (BERKES et al., 2008, p. 59-60). Berkes et al.<br />

destacam a potencialidade do conceito para iluminar a análise dessa<br />

ampla e complexa perspectiva.<br />

The concept of resilience helped to move ecological anthropology toward<br />

a dynamic, ecological perspective that investigated processes of<br />

change and equilibrium and disequilibrium, through an examination<br />

of the relationship among the environment, individuals, and groups<br />

(BERKES et al., 2008, p. 61) 3 .<br />

A criação de áreas naturais protegidas tem como marco referencial<br />

a criação do Yellowstone National Park, em 1872, nos Estados Unidos.<br />

Entretanto, já existiam registros anteriores de áreas protegidas, mas<br />

com objetivos diferentes (reservas de caça, por exemplo). A partir desse<br />

marco, outros países iniciaram a criação de parques e outras áreas<br />

protegidas. O Brasil instituiu sua primeira área protegida em 1937, o<br />

Parque Nacional do Itatiaia, localizado na divisa dos estados de Minas<br />

Gerais e Rio de Janeiro.<br />

Gradualmente essa prática foi se ampliando, tanto no que se refere<br />

aos seus objetivos quanto em quantidade, por diversos países. Visando<br />

regulamentar e padronizar os conceitos que surgiram por consequência<br />

dessa expansão, foram realizados eventos mundiais, bem como se<br />

definiram questões fundamentais em uma legislação cada vez mais<br />

específica. Em meio a esse processo, foram se instituindo novos tipos<br />

de áreas protegidas, de acordo com sua localização em determinado<br />

território, podendo ser de responsabilidade pública ou privada, assim<br />

como foram definidos os objetivos de sua existência.<br />

Nessa trajetória, tornou-se cada vez mais evidente a ideia de que as<br />

áreas protegidas não se constituem como “ilhas” de biodiversidade –<br />

concepção inicialmente embutida nessa iniciativa, que via essas áreas<br />

como unidades isoladas de um contexto social, econômico e cultural.<br />

Dessa forma, os objetivos dessa prática também foram revistos.<br />

3 Tradução livre: O conceito de resiliência contribuiu na condução da antropologia<br />

ecológica à uma abordagem dinâmica, uma perspectiva ecológica que<br />

investigou os processos de mudança, equilíbrio e desequilíbrio, considerando<br />

a relação entre ambiente, indivíduos e grupos.<br />

14 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza<br />

(SNUC, Lei 9.985 de 18 de julho de 2000) é a principal referência<br />

na implementação de áreas protegidas. De acordo com o SNUC, são<br />

atribuídos às unidades objetivos diversos, que variam conforme a categoria<br />

que ocupam, sendo a conservação da biodiversidade a razão<br />

fundamental de existência dessas áreas, as quais também podem contemplar,<br />

por exemplo, pesquisa científica, turismo e reconhecimento<br />

e valorização da sociodiversidade, por diferentes formas de interação<br />

com comunidades adjacentes.<br />

Apesar dos avanços gerados pela criação das unidades de conservação<br />

ao longo do tempo, os conflitos envolvendo essas áreas têm<br />

origens remotas e estão encravados no dilema entre o paradigma do<br />

crescimento econômico e os pressupostos para a conservação da natureza,<br />

permeando tanto aspectos técnicos quanto políticos e econômicos,<br />

e variando amplamente de acordo com cada localidade. Decorrem<br />

daí, portanto, diversos conflitos socioambientais, que envolvem<br />

comunidades rurais, grupos indígenas, organizações privadas, poder<br />

público de diferentes escalas e demais atores, que compõem as arenas<br />

para negociação dos interesses, muitas vezes divergentes.<br />

Na tentativa de avançar para além dessa dicotomia, é premente a<br />

busca por alternativas mitigadoras das dificuldades de criação e manutenção<br />

das áreas de conservação. Dessa forma, o ICMS Ecológico<br />

pode contribuir não apenas como instrumento compensatório, mas<br />

também como mecanismo incentivador da proteção dos recursos naturais,<br />

podendo ser direcionado à manutenção de unidades de conservação<br />

públicas, ou gerido como um recurso complementar pelos<br />

proprietários de reservas privadas.<br />

Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo verificar de<br />

que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido na gestão ambiental<br />

em Mato Grosso e como esse instrumento pode contribuir para o<br />

incentivo à conservação de áreas de interesse para a conservação no<br />

estado, mediante as perspectivas apontadas.<br />

Os procedimentos e métodos operacionais para a realização da pesquisa<br />

envolveram duas etapas: a primeira, quantitativa (levantamento<br />

de dados estatísticos), e a segunda, qualitativa (análise dos resultados).<br />

Os dados primários e secundários foram obtidos a partir de pesquisa<br />

documental e bibliográfica.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

15


Assim, foram coletadas informações de diferentes fontes documentais,<br />

tais como legislação, relatórios institucionais e anuários estatísticos.<br />

Os dados foram reunidos e tabulados em planilhas, e posteriormente<br />

foi realizada a análise das informações encontradas, a qual se subsidiou<br />

nas bibliografias consultadas. Essa segunda etapa se baseou na<br />

abordagem qualitativa.<br />

Portanto, a análise conduziu aos resultados de forma polissêmica, a<br />

partir do levantamento quantitativo como subsídio a uma abordagem<br />

qualitativa do fenômeno pesquisado, aproximando-se, assim, das diferentes<br />

possibilidades de reflexão à luz do levantamento bibliográfico,<br />

numa perspectiva interdisciplinar.<br />

1 ASPECTOS GERAIS DO ICMS ECOLÓGICO<br />

Prover a sociedade requer do Estado a instituição de meios para<br />

garantir o atendimento às necessidades tanto coletivas quanto individuais.<br />

Para o alcance desse objetivo, o Sistema de Tributação Nacional<br />

foi estabelecido, com o propósito de arrecadar recursos para atender<br />

às demandas oriundas da sociedade.<br />

O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias<br />

e sobre Prestação de Serviços de Transportes Interestaduais, Intermunicipais<br />

e de Comunicação (ICMS) foi instituído pelo Artigo 155º<br />

da Constituição Federal de 1988, que, complementado pelos Artigos<br />

157º, 158º e 159º, determina os critérios de distribuição desse imposto.<br />

É um tributo de competência dos estados e do Distrito Federal e é regulamentado<br />

pela Lei Complementar n° 87/1996, também conhecida como<br />

Lei Kandir. De acordo com a legislação, parte desse recurso (25%) deve<br />

ser destinada aos municípios conforme lei estadual e o restante (75%),<br />

destinado ao estado (denominado Valor Adicionado Fiscal – VAF).<br />

No início da década de 1990, surgiu a alternativa que propõe que<br />

parte desses 25% destinados aos municípios seja ponderada por critérios<br />

ambientais, originando o ICMS Ecológico (IBGE, 2005, p. 51-52),<br />

como ficou conhecido. Em 1991, pela Lei Complementar nº 59 de<br />

1º de outubro, o ICMS Ecológico tornou-se uma determinação legalmente<br />

instituída pela primeira vez no país, no Paraná, e que pode ser<br />

definido como um meio de “incentivo econômico de gestão ambiental<br />

que visa compensar financeiramente os municípios que apresen-<br />

16 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


tam áreas destinadas especificamente à conservação e preservação do<br />

meio ambiente” (IBGE, 2005, p. 52).<br />

As ideias precursoras, sobre as quais o ICMS Ecológico se apoia, têm<br />

origem em outros países, que dispõem de mecanismos fiscais voltados<br />

tanto à penalização decorrente da degradação, especialmente ligada<br />

às questões de desmatamento, como também aos mecanismos de<br />

incentivo, como a isenção de tributos às propriedades que mantêm<br />

áreas de interesse para conservação (LOUREIRO, 2002, p. 40-42).<br />

Atualmente, 14 estados brasileiros possuem a política do ICMS Ecológico<br />

instituída: Acre, Amapá, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,<br />

Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do<br />

Sul, Rondônia, São Paulo e Tocantins (The Nature Conservancy, 2011).<br />

Conceitualmente, não se trata de uma modalidade de ICMS, ou<br />

mesmo de tributo, como o nome pode sugerir. Seu caráter é distributivo,<br />

sendo uma forma encontrada para compensar a escolha pela conservação<br />

ambiental de áreas que poderiam ser destinadas à geração<br />

de recursos fiscais aos municípios com atividades econômicas como<br />

agricultura e pecuária. Motta exemplifica esse princípio, relacionando-o<br />

ao custo de oportunidade inerente à escolha:<br />

Restrições ao uso da terra em unidades de conservação impõem perdas<br />

de geração de receita, visto que atividades econômicas são restritas<br />

in-situ. A renda líquida abdicada pelas restrições dessas atividades<br />

é uma boa medida do custo de oportunidade associado com a criação<br />

dessa unidade de conservação. O uso de renda líquida decorre do fato<br />

de que a renda bruta dessas atividades sacrificadas tem que ser deduzida<br />

dos seus custos de produção, que também restringem recursos<br />

para a economia. De fato, a renda líquida significa a receita líquida<br />

provida pelas atividades sacrificadas e representaria, assim, o custo de<br />

oportunidade da conservação (MOTTA, 1997, p. 8).<br />

Segundo o autor, o custo de oportunidade pode também se caracterizar<br />

como um dos métodos de valoração de bens e serviços privados<br />

substitutos:<br />

Esse método mensura as perdas de renda nas restrições da produção<br />

e consumo de bens e serviços privados devido às ações para conser-<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

17


var ou preservar os recursos ambientais. (...) É amplamente utilizado<br />

para estimar a renda sacrificada em termos de atividades econômicas<br />

restringidas pelas atividades de proteção ambiental e, assim, permitir<br />

uma comparação desses custos de oportunidade com os benefícios<br />

ambientais numa análise de custo-benefício (MOTTA, 1997, p. 21).<br />

Para que a compensação seja equivalente à possibilidade de uso,<br />

é indispensável a valoração econômica dos serviços ecossistêmicos e<br />

simulações das possibilidades de uso. No primeiro caso, há diversos<br />

métodos que podem ser utilizados para estimar o valor monetário dos<br />

serviços prestados pelos ecossistemas. Trata-se de um tema de caráter<br />

interdisciplinar, que vem se desenvolvendo nas fronteiras da Economia<br />

Ecológica.<br />

Entretanto, vale ressaltar que os critérios para o cálculo do ICMS<br />

Ecológico em Mato Grosso não se baseiam na possibilidade de uso,<br />

como sugere o custo de oportunidade, apesar de seguir o mesmo princípio<br />

compensatório, mas têm como base aspectos quantitativos (área<br />

espacial e fator de conservação) para o cálculo do recurso a ser destinado<br />

ao município.<br />

O entendimento de que o ICMS Ecológico seja destinado aos municípios<br />

para efetivação da conservação das áreas protegidas nem<br />

sempre é incorporado pelos atores da gestão pública municipal, visto<br />

que o município tem autonomia quanto à destinação ou utilização do<br />

ICMS Ecológico arrecadado, e a questão ambiental geralmente não<br />

tem sido considerada entre as prioritárias nas agendas políticas, como<br />

será mencionado em seguida.<br />

2 REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA<br />

GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO<br />

O ICMS representa uma das principais fontes de receita tributária dos<br />

estados. Em Mato Grosso, segundo dados dos Relatórios Anuais de Balanço<br />

Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda<br />

(SEFAZ-MT), esse imposto corresponde em média ao equivalente a 90%<br />

do total de receita tributária arrecadada, com progressivo aumento a<br />

cada ano, como ilustra a Figura 1, que demonstra a evolução do ICMS<br />

arrecadado em Mato Grosso no período de 1999 a 2009.<br />

18 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


Valor em bilhões<br />

4,50<br />

4,00<br />

3,50<br />

3,00<br />

2,50<br />

2,00<br />

1,50<br />

1,00<br />

0,50<br />

0,00<br />

Figura 1<br />

Evolução do ICMS arrecadado em Mato Grosso − 1999 a 2009<br />

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009<br />

Fonte: Relatórios Anuais de Balanço Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda<br />

(SEFAZ-MT).<br />

Mato Grosso foi o sexto estado a aderir à política do ICMS Ecológico,<br />

derivado da arrecadação do ICMS, instituída em 2000 com a<br />

Lei Complementar nº 73 de 7 de dezembro e regulamentada com o<br />

Decreto nº 2.758 de 16 de julho de 2001, que esclarece conceitos e<br />

orientações quanto aos procedimentos técnicos e administrativos para<br />

o cumprimento da Lei, cria o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação<br />

e apresenta os aspectos inerentes aos cálculos desse recurso<br />

nos municípios, considerando não apenas fatores quantitativos, mas<br />

também qualitativos.<br />

Os fatores qualitativos foram definidos mais detalhadamente dez<br />

anos mais tarde, pela Instrução Normativa nº 1, de 5 de maio de<br />

2010, que regula procedimentos administrativos para a organização<br />

do Cadastro Estadual de Unidades de Conservação e Terras Indígenas,<br />

a operacionalização dos cálculos e a gestão do Programa do ICMS<br />

Ecológico e a publicação e democratização das informações.<br />

O órgão responsável pela execução desses dispositivos legais em<br />

Mato Grosso é a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA-MT),<br />

por meio da Coordenadoria de Unidade de Conservação, ligada à Superintendência<br />

de Biodiversidade. De acordo com o Relatório sobre a<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

19


aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso no período de 2002 a<br />

2007, elaborado por essa Secretaria,<br />

tais critérios [qualquer critério ou conjunto de critérios relacionados à<br />

busca de solução para problemas ambientais] são utilizados para a determinação<br />

do “quanto” cada município deverá receber na repartição<br />

dos recursos financeiros arrecadados com o Imposto sobre Circulação<br />

de Mercadorias e Serviços (ICMS). (...) O ICMS Ecológico surgiu como<br />

forma de compensar financeiramente os municípios que possuem restrições<br />

de uso do solo de seus territórios por conterem Áreas Indígenas<br />

e Unidades de Conservação; bem como a necessidade da estruturação<br />

de instrumentos alternativos de políticas públicas para a conservação<br />

ambiental (SEMA-MT, 2008, p. 4).<br />

Para a distribuição dos 25% do ICMS, o estado definiu cinco parâmetros,<br />

entre eles os critérios ambientais que atualmente são Unidades<br />

de Conservação e Terras Indígenas, às quais é atribuído o percentual<br />

de 5% do ICMS, como ilustrado na Tabela 1.<br />

Tabela 1<br />

Critérios e percentuais utilizados para distribuição do ICMS<br />

a que os municípios mato-grossenses têm direito<br />

Critérios Percentuais (%)<br />

Valor adicionado 75<br />

Receita tributária própria 4<br />

População 4<br />

Área do município 1<br />

Coeficiente social 11<br />

Unidade de Conservação/Terra Indígena 5<br />

Total 100<br />

Fonte: SEMA-MT (2010, p. 13).<br />

A Lei Complementar nº 73 instituiu inicialmente, além do critério de<br />

Unidades de Conservação e Terras Indígenas, o Saneamento Ambien-<br />

20 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


tal, que correspondia a mais 2% para os aspectos ambientais. Em 20<br />

de janeiro de 2004, a Lei Complementar nº 157 redistribuiu valores<br />

e reformulou os cálculos. Com esse dispositivo, o critério de Saneamento<br />

Ambiental foi extinto e os 5% referentes às Unidades de Conservação<br />

e Terras Indígenas foi mantido. Os 2% correspondentes ao<br />

Saneamento Ambiental, com sua supressão, foram transferidos para o<br />

Coeficiente Social.<br />

Cada um dos critérios para a distribuição dos 25% de direito dos<br />

municípios compreende um conjunto de condições específicas. O extinto<br />

fator Saneamento Ambiental considerava os sistemas de captação,<br />

tratamento e distribuição de água, sistemas de coleta, tratamento e disposição<br />

final de resíduos sólidos e sistemas de esgotamento sanitário do<br />

município. O critério vigente, que pesa sobre a ponderação ambiental<br />

(Unidades de Conservação e Terras Indígenas), considera aspectos relativos<br />

ao tamanho dessas áreas e categorias (no caso das Unidades de<br />

Conservação) e situação fundiária, as quais refletem o fator de correção.<br />

Dessa forma, segundo o Anexo 1 da Lei Complementar nº 73 de<br />

7 de dezembro de 2000, o cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso<br />

é realizado atualmente da seguinte maneira:<br />

ICMS-E = IUCTI x VRFP<br />

IFPICMS<br />

IUCTI corresponde ao Índice de Unidade de Conservação ou Terra Indígena;<br />

VRFP corresponde ao Valor Recebido do Fundo de Participação;<br />

IFPICMS representa o Índice Final de Participação no ICMS e ICMS-E<br />

é o valor do ICMS Ecológico de determinado município em dado mês.<br />

O Índice de Unidades de Conservação e Terras Indígenas utilizado<br />

na equação corresponde ao ano anterior ao aplicado e é calculado a<br />

partir do Fator de Conservação do Município (FCM) multiplicado pelo<br />

Fator de Conservação do Estado (FCE):<br />

IUCTI = FCM x FCE<br />

O Fator de Conservação do Município (FCM) corresponde à somatória<br />

dos Fatores de Conservação das Unidades de Conservação e das<br />

Terras Indígenas contidas no seu território (Σ FCUCsTIs):<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

21


FCM = Σ FCUCsTIs<br />

O Fator de Conservação específico de cada área é calculado pela<br />

relação entre a área da Unidade de Conservação ou Terra Indígena e<br />

a área total do município, ponderado por um fator de correção (FCo):<br />

FCUC ou TI = Área UC ou TI x FCo<br />

Área do município<br />

Portanto, o Fator de Correção constitui-se em um elemento significativo<br />

no cálculo do ICMS Ecológico dos municípios, e tem como<br />

base o nível de restrição das áreas. De acordo com o Anexo 2 da Lei<br />

Complementar nº 73 de 7 de dezembro de 2000, os Fatores de Correção<br />

com referências às Unidades de Conservação foram definidos<br />

por categoria, como mostra a Tabela 2.<br />

Tabela 2<br />

Fatores de correção das categorias de áreas protegidas<br />

para cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso<br />

Categoria da área protegida Fator de correção<br />

Reserva Biológica 1,0<br />

Estação Ecológica 1,0<br />

Parque Nacional, Estadual, Municipal 0,7<br />

Monumento Natural 0,8<br />

Refúgio de Vida Silvestre 0,8<br />

Área de Proteção Ambiental 0,2<br />

Floresta Nacional, Estadual, Municipal 0,5<br />

Reserva Extrativista 0,5<br />

Área de Relevante Interesse Ecológico 0,3<br />

Reserva de Fauna 0,4<br />

Reserva de Desenvolvimento Sustentável 0,5<br />

Reserva Particular do Patrimônio Natural 0,2<br />

Estrada Parque 0,3<br />

Terra Indígena* 0,7*<br />

Área de Proteção Especial 0,5<br />

*Fator correspondente às Terras Indígenas registradas. Os demais níveis de consolidação jurídico-formal<br />

sofrem variação (Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001). Fonte: Anexo 2 da Lei Complementar nº<br />

73 de 7/12/2000 (SEMA-MT, 2009, p. 30).<br />

22 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


Com a consideração de critérios qualitativos em conjunto com os<br />

quantitativos, com a Instrução Normativa nº 01, de 5 de maio de<br />

2010, os Fatores de Correção das áreas protegidas foram alterados,<br />

podendo alcançar escores máximos conforme as condições ambientais<br />

das unidades, que podem evoluir gradualmente. A Tabela 3 apresenta<br />

os escores mínimos e máximos, ou seja, o intervalo de índices<br />

numéricos estabelecido para cada categoria.<br />

Tabela 3<br />

Escores mínimos e máximos do Fator de Correção das áreas<br />

protegidas em Mato Grosso para cálculo do ICMS Ecológico<br />

Categoria da área protegida<br />

Escores mínimos e máximos<br />

do Fator de Correção<br />

Municipal Estadual Federal<br />

Reserva Biológica 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />

Estação Ecológica 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />

Parque 1,0 – 14,3 1,5 – 5,0 1,0 – 3,0<br />

Monumento Natural 1,0 – 5,0 1,0 – 3,0 1,0 – 1,5<br />

Refúgio de Vida Silvestre 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0 1,0 – 1,5<br />

Área de Proteção Ambiental 1,0 1,0 – 3,0 1,0 – 2,0<br />

Floresta 1,0 1,0 – 4,0 1,0 – 1,5<br />

Reserva Extrativista 1,0 1,0 – 2,5 1,0 – 1,5<br />

Área de Relevante Interesse Ecológico 1,0 1,0 – 2,0 1,0<br />

Reserva de Fauna 1,0 1,0 – 2,0 1,0 – 1,5<br />

Reserva de Desenvolvimento Sustentável 1,0 1,0 1,0 – 2,5<br />

Reserva Particular do Patrimônio Natural 1,0 1,0 – 20,0 1,0 – 15,0<br />

Estrada Parque 1,0 1,0 – 2,0 1,0<br />

Terra Indígena 1,0 1,0 1,0 – 4,0<br />

Área de Proteção Especial 1,0 – 2,0 1,0 1,0<br />

Território Quilombola 1,0 1,0 – 2,0 1,0 – 2,0<br />

Fonte: Anexo II da Instrução Normativa nº 01, de 5/5/2010 (MATO GROSSO, 2010).<br />

Quanto ao Fator de Correção atribuído às Terras Indígenas, o parâmetro<br />

considerado se baseia no nível de consolidação jurídico-formal<br />

das áreas, conforme apresentado na Tabela 4.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

23


Tabela 4<br />

Fatores de Correção de Terras Indígenas de acordo com<br />

os níveis de consolidação jurídico-formal<br />

Nível de consolidação jurídico-formal da terra indígena Fator de correção<br />

Registradas 0,70<br />

Homologadas 0,65<br />

Reservadas/dominiais 0,60<br />

Demarcadas 0,55<br />

Em demarcação 0,45<br />

Declaradas 0,40<br />

Identificadas 0,30<br />

Em identificação 0,00<br />

A identificar 0,00<br />

Fonte: Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001 (SEMA-MT, 2009, p. 43).<br />

Portanto, os municípios mato-grossenses que possuem em seu território<br />

Unidades de Conservação e Terras Indígenas têm direito ao recebimento<br />

do ICMS Ecológico, instrumento que possui como critério<br />

determinante a existência legal dessas áreas.<br />

Dos 141 municípios mato-grossenses, 86 recebem o ICMS Ecológico<br />

de acordo com o tamanho das Unidades de Conservação e Terras<br />

Indígenas, bem como os fatores de conservação das categorias dessas<br />

áreas. Ou seja, ainda são considerados apenas parâmetros quantitativos,<br />

o que significa que quanto maior a área do município ocupada<br />

por áreas protegidas, bem como seu fator de conservação, tanto maior<br />

será o valor de recursos do ICMS Ecológico destinado a ele (SEMA-MT,<br />

2008, p. 6 e 7).<br />

Visando aperfeiçoar os critérios para o cálculo do recurso, a Instrução<br />

Normativa nº 001 representa um avanço para que o cálculo leve<br />

em consideração não apenas o tamanho da área e o Fator de Correção<br />

como dado genérico, mas, principalmente, a qualidade ambiental de<br />

determinada unidade, isto é, que as ações estejam, de fato, compatíveis<br />

satisfatoriamente aos objetivos das categorias de manejo.<br />

Os chamados escores são definidos após avaliação dos critérios qualitativos,<br />

de atribuição da SEMA-MT, que gradualmente vem estabele-<br />

24 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


cendo metodologias para avaliar e definir os Fatores de Correção das<br />

áreas protegidas do estado. A previsão para efeito financeiro da fase<br />

da avaliação qualitativa foi estabelecida para o ano de 2013 em diante<br />

(SEMA, 2011).<br />

Uma das principais ferramentas, de acordo com a Instrução Normativa<br />

nº 001, é o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação, com<br />

registro atualizado anualmente, que reúne as informações gerais das<br />

áreas protegidas, permitindo acompanhar as ações nelas desenvolvidas.<br />

No portal eletrônico da Secretaria de Estado do Meio Ambiente,<br />

o link para acesso ao Cadastro, até o fechamento desta pesquisa, não<br />

estava disponível.<br />

É importante destacar a necessidade de ampla divulgação e fomento<br />

desse importante canal de comunicação com o público, que pretende<br />

congregar e mobilizar o setor para que os propósitos sejam alcançados<br />

e o processo seja continuamente avaliado e aperfeiçoado. Tal ação poderia<br />

ser complementada por atividades de monitoramento presencial<br />

periódico nas unidades e pela realização de eventos, por exemplo.<br />

Outro aspecto que se torna saliente na análise da Instrução Normativa<br />

nº 001 é a inserção de Território Quilombola no conjunto de áreas<br />

protegidas. Assim como Terras Indígenas, as áreas das comunidades de<br />

remanescentes quilombolas são dotadas de características peculiares<br />

quanto à cultura dos grupos que as ocupam e a relação destes com o<br />

ambiente onde estão inseridos, requerendo estudos com abordagens<br />

específicas para a determinação e avaliação dos critérios qualitativos,<br />

já que o dispositivo legal trata disso superficialmente. Esse talvez seja<br />

um dos pontos mais desafiadores à gestão pública, pois demanda um<br />

trabalho conjunto intra e intergovernamental, articulando instâncias<br />

municipais e estaduais (secretarias de governo), bem como federais,<br />

com as universidades e os institutos de pesquisa.<br />

No contexto apresentado, Mato Grosso possui atualmente 105 Unidades<br />

de Conservação, sendo 38 municipais, 44 estaduais e 23 federais<br />

(SEPLAN-MT, 2010, p. 51-53), além de 74 terras indígenas (SEPLAN-<br />

-MT, 2010, p. 46-51) e 65 comunidades de remanescentes quilombolas<br />

(BRASIL, 2010, p. 23-24). Segundo dados dos relatórios sobre a<br />

aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso, no período de 2002 a<br />

2009 os 86 municípios beneficiados arrecadaram R$ 324.319.496,00,<br />

conforme Tabela 5.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

25


Tabela 5<br />

ICMS Ecológico arrecadado pelos municípios mato-grossenses – 2002 a 2009<br />

Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />

01 ÁGUA BOA 250.832,01<br />

02 ALTA FLORESTA 245.547,89<br />

03 ALTO ARAGUAIA 2.127.043,88<br />

04 ALTO DA BOA VISTA 12.347.563,44<br />

05 ALTO PARAGUAI 645.367,84<br />

06 ALTO TAQUARI 3.645.837,97<br />

07 APIACÁS 11.673.303,45<br />

08 ARIPUANÃ 6.037.923,53<br />

09 BARÃO DE MELGAÇO 1.271.298,97<br />

10 BARRA DO BUGRES 1.065.520,10<br />

11 BARRA DO GARÇAS 6.046.039,69<br />

12 BOM JESUS DO ARAGUAIA 208.356,74<br />

13 BRASNORTE 2.486.244,18<br />

14 CÁCERES 1.250.065,23<br />

15 CAMPINÁPOLIS 8.976.623,90<br />

16 CAMPO NOVO PARECIS 6.684.675,43<br />

17 CAMPO VERDE 173.882,04<br />

18 CANARANA 4.565.378,18<br />

19 CHAPADA DOS GUIMARÃES 3.563.316,71<br />

20 CLÁUDIA 864,57<br />

21 COCALINHO 1.795.421,62<br />

22 COLNIZA 2.961.014,10<br />

23 COMODORO 14.524.510,36<br />

24 CONFRESA 1.063.090,52<br />

25 CONQUISTA D’OESTE 11.080.966,24<br />

26 COTRIGUAÇU 7.011.302,15<br />

27 CUIABÁ 4.086.100,74<br />

28 DIAMANTINO 214.276,17<br />

29 FELIZ NATAL 10.575.251,28<br />

30 GAÚCHA DO NORTE 11.090.875,08<br />

31 GENERAL CARNEIRO 5.212.240,18<br />

26 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

(Continuação Tabela 5)<br />

Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />

32 GUARANTÃ DO NORTE 2.884.937,16<br />

33 GUIRATINGA 999.198,76<br />

34 ITIQUIRA 15.470,97<br />

35 JACIARA 64.659,93<br />

36 JUARA 2.771.029,08<br />

37 JUINA 14.987.012,99<br />

38 LUCAS DO RIO VERDE 5.964,31<br />

39 LUCIARA 1.664.000,22<br />

40 MARCELÂNDIA 2.630.647,30<br />

41 MATUPÁ 3.946.764,63<br />

42 NOBRES 4.052.061,63<br />

43 NORTELÂNDIA 105.002,38<br />

44 NOSSA SENHORA DO LIVRAMENTO 835.776,56<br />

45 NOVA BANDEIRANTES 698.958,69<br />

46 NOVA BRASILÂNDIA 1.454.774,96<br />

47 NOVA CANAÃ DO NORTE 6.397,14<br />

48 NOVA LACERDA 3.621.894,25<br />

49 NOVA MARINGÁ 1.251.750,23<br />

50 NOVA NAZARÉ 12.482.646,24<br />

51 NOVA UBIRATÃ 2.716.807,19<br />

52 NOVA XAVANTINA 197.702,57<br />

53 NOVO MUNDO 4.604.128,45<br />

54 NOVO SANTO ANTÔNIO 11.946.586,89<br />

55 NOVO SÃO JOAQUIM 307.824,75<br />

56 PARANATINGA 3.876.073,70<br />

57 PEDRA PRETA 291,16<br />

58 PEIXOTO DE AZEVEDO 10.103.380,77<br />

59 PLANALTO DA SERRA 60.976,45<br />

60 POCONÉ 2.595.716,43<br />

61 PONTE BRANCA 659.044,39<br />

62 PONTES E LACERDA 2.473.958,89<br />

63 PORTO ALEGRE DO NORTE 4.510.846,05<br />

64 PORTO ESPERIDIÃO 1.408.590,88<br />

27


(Continuação Tabela 5)<br />

Município ICMS Ecológico arrecadado (R$)<br />

65 PORTO ESTRELA 4.599.144,10<br />

66 POXORÉO 1.855.635,06<br />

67 QUERÊNCIA 9.373.452,08<br />

68 RIBEIRÃO CASCALHEIRA 3.885.384,82<br />

69 RIBEIRÃOZINHO 213.344,27<br />

70 RONDOLÂNDIA 10.717.022,36<br />

71 RONDONÓPOLIS 878.721,69<br />

72 ROSÁRIO OESTE 2.186.749,00<br />

73 SANTA CRUZ DO XINGU 6.806.335,90<br />

74 SANTA RITA DO TRIVELATO 687.329,57<br />

75 SANTA TEREZINHA 4.073.787,37<br />

76 SANTO ANTÔNIO DO LESTE 3.430.978,21<br />

77 SANTO ANTÔNIO DO LEVERGER 647.301,51<br />

78 SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA 3.409.857,41<br />

79 SÃO JOSE DO XINGU 4.167.074,55<br />

80 SAPEZAL 8.159.970,47<br />

81 SINOP 11.096,87<br />

82 SORRISO 27.326,96<br />

83 TANGARÁ DA SERRA 11.781.548,42<br />

84 TESOURO 2.669.014,25<br />

85 VÁRZEA GRANDE 355.280,38<br />

86 VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE 1.561.528,06<br />

TOTAL 324.319.493,50<br />

Fonte: Relatórios da Coordenadoria de Unidades de Conservação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente<br />

de Mato Grosso.<br />

Os municípios que arrecadaram ICMS Ecológico acima de 40% do<br />

valor total do ICMS compreendem 14, do universo de 86, entre os<br />

quais se destacam Conquista D’Oeste, Novo Santo Antônio, Alto da<br />

Boa Vista e Nova Nazaré, que arrecadaram valores superiores a 60%<br />

do total de ICMS repassado. Tais municípios se sobressaem por contemplar<br />

um conjunto de aspectos favoráveis a esse quadro.<br />

A Terra Indígena Marãwatsede, por exemplo, possui tamanho superior<br />

a 120 mil hectares e está localizada no município de Alto da<br />

28 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


Boa Vista, ocupando quase a metade do território do município, o<br />

qual, em termos proporcionais, arrecadou valores representativos do<br />

ICMS no período. Combinação semelhante pode ser encontrada no<br />

município de Conquista D’Oeste, que possui duas Terras indígenas<br />

(Juininha e Sararé) que abrangem uma porção representativa do território<br />

do município, sendo o repasse do ICMS também significativo<br />

proporcionalmente.<br />

Como constatado, esse instrumento pode ser considerado uma importante<br />

fonte de recursos aos municípios que abrangem territórios<br />

desfavoráveis às práticas econômicas convencionais no estado (como<br />

a atividade agropecuária), incentivando-os a manter as Unidades de<br />

Conservação já existentes e motivando-os para a criação e manutenção<br />

de novas áreas protegidas.<br />

Em síntese, trata-se da análise integrada dos seguintes aspectos: tamanho<br />

e categoria de Unidade de Conservação ou Terra Indígena,<br />

tamanho do município e valor total do ICMS repassado. A proporção<br />

pode ser entendida resumidamente da seguinte forma: quanto maior<br />

a Unidade de Conservação ou Terra Indígena em relação ao tamanho<br />

do município onde se encontra, mais restritiva sua categoria; e quanto<br />

maior for a proporcionalidade desses fatores com o valor do ICMS<br />

geral repassado, maior será o ICMS Ecológico arrecadado.<br />

Vale considerar também que tão importante quanto a implantação<br />

formal de normas para manter essa política exequível é o estabelecimento<br />

de critérios para o acompanhamento de como o recurso deverá<br />

ser aplicado pelos gestores municipais, visto que ainda não há,<br />

na política ambiental mato-grossense, instrumentos que assegurem a<br />

gestão e aplicabilidade desse recurso às demandas específicas do setor<br />

ambiental do município.<br />

Para exemplificar essa circunstância, é interessante citar os dados de<br />

um dos municípios mato-grossenses que estão inseridos na política do<br />

ICMS Ecológico, Barão de Melgaço. Segundo informações de gestores<br />

públicos do setor ambiental desse município pantaneiro, localizado<br />

ao sul do estado, há carência de recursos para o setor. Afirmam que o<br />

ICMS Ecológico é resultado decorrente da existência de Unidades de<br />

Conservação, que necessitam de infraestrutura para que possam ser<br />

mantidas (como recursos materiais e pessoal capacitado); entretanto,<br />

ele não tem sido destinado à causa, sendo provavelmente investido<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

29


em outros setores da administração pública, como infraestrutura urbana<br />

e saúde.<br />

Para ilustrar esse quadro – que apresenta o quanto os recursos se<br />

mostram insuficientes e o quanto se necessita de um plano de gestão<br />

eficiente para garantir os objetivos do ICMS Ecológico enquanto incentivo<br />

à conservação ambiental – realizou-se uma análise que tem<br />

como referência a despesa anual aproximada para manutenção de<br />

uma Unidade de Conservação, no caso a Reserva Particular do Patrimônio<br />

Natural SESC Pantanal, com 106.335,86 hectares, localizada<br />

em Barão de Melgaço, uma das principais Unidades de Conservação<br />

do país quanto à estrutura e gestão para proteção dos ecossistemas<br />

pantaneiros.<br />

A Estância Ecológica SESC Pantanal, uma das unidades do SESC em<br />

Mato Grosso, é a instituição proprietária da Reserva. Segundo dados<br />

dos Balanços Anuais da RPPN, a despesa anual para manutenção da<br />

unidade é de cerca de R$ 2.400.000,00 (ano base: 2009).<br />

Ao comparar esse valor com o ICMS Ecológico arrecadado pelo<br />

município de Barão de Melgaço no período de oito anos (2002 a<br />

2009), que foi de R$ 1.271.289,97, e considerando também os outros<br />

73.739,08 hectares de Unidades de Conservação e Terras Indígenas<br />

do seu território, pode-se observar o quanto o recurso deve ser incrementado<br />

para que contribua efetivamente com as iniciativas conservacionistas<br />

que constituem a base de sua razão de existência.<br />

Outros dados a serem observados são os valores monetários atribuí–<br />

dos aos serviços ecossistêmicos. No município de Barão de Melgaço<br />

é possível estabelecer uma análise a partir dos pressupostos dos mecanismos<br />

de valoração dos serviços que o ecossistema oferece como<br />

recursos utilizados para atendimento das necessidades humanas.<br />

De acordo com a pesquisa divulgada por Seidl e Moraes (2000, p. 3),<br />

o valor anual dos serviços ecossistêmicos estimados para o Pantanal da<br />

Nhecolândia (segunda maior sub-região da planície pantaneira) corresponde<br />

a US$ 15,5 bilhões, ou US$ 5 mil por habitante. Nesse cálculo<br />

os autores consideraram as seguintes categorias de serviços ecossistêmicos:<br />

suprimento de água, regulação da perturbação, tratamento de<br />

resíduos, valor cultural, regulação da água, ciclagem dos nutrientes,<br />

recreação e habitat. Outras categorias foram consideradas, mas não<br />

representaram um fornecimento significativo quanto aos serviços.<br />

30 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


Esse estudo de caso pode ser comparado ao caso de Barão de Melgaço,<br />

a terceira maior sub-região da planície pantaneira. É possível<br />

analisar, por um lado, a estimativa de um valor monetário dos serviços<br />

ecossistêmicos pantaneiros e, por outro, um valor monetário que poderia<br />

auxiliar na manutenção desse patrimônio. Entende-se que essa<br />

abordagem da valoração ainda carece de dados para a região referenciada,<br />

mas deve ser considerada como um ponto de partida para<br />

novos estudos que venham a indicar caminhos para o fortalecimento<br />

da proteção do Pantanal.<br />

Nessa perspectiva, é importante considerar também a necessidade<br />

de se estabelecerem parcerias entre as organizações públicas e privadas,<br />

no caso de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) e<br />

Áreas de Proteção Ambiental, de forma que sua manutenção possa<br />

contar com o incentivo do município. Alguns estados, como Paraná e<br />

Mato Grosso do Sul, mantêm as Associações de Proprietários de Reservas<br />

Particulares do Patrimônio Natural, organizações que reúnem<br />

os objetivos de seus associados visando criar mecanismos para auxiliá-<br />

-los no trabalho de manutenção e manejo das Reservas.<br />

A Repams, como é denominada a Associação de RPPNs do Mato<br />

Grosso do Sul, como exemplo de estrutura desse tipo de organização,<br />

tem como objetivo geral promover a preservação do meio ambiente<br />

em RPPNs, contribuindo para o crescimento em área e qualidade dessa<br />

categoria de Unidade de Conservação (REPAMS, 2011).<br />

Entre seus objetivos específicos, a Repams visa promover a troca<br />

de informações entre proprietários de RPPNs, poder público em suas<br />

diferentes instâncias e organizações não governamentais; divulgar as<br />

RPPNs de Mato Grosso do Sul, seus objetivos e atividades; apoiar instituições<br />

públicas e privadas na implementação de políticas voltadas<br />

para a conservação de reservas privadas; identificar projetos incentivadores<br />

da criação de RPPNs no estado e a manutenção das áreas<br />

já existentes, buscando sua sustentabilidade econômica; estimular e<br />

desenvolver pesquisas que contribuam para a missão da organização;<br />

e produzir materiais didáticos e científicos sobre a temática ambiental.<br />

Segundo a Instrução Normativa nº 01, publicada em 2010 em Mato<br />

Grosso, quanto ao aspecto qualitativo das Unidades de Conservação<br />

Privadas (RPPNs), é fundamental que possibilitem a apropriação social<br />

das Reservas, isto é, que implementem ações voltadas à educação<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

31


ambiental, ecoturismo, democratização das informações, regulamentação<br />

(associada ao zoneamento), produção de baixo impacto, pesquisas<br />

e estudos, além de sua conservação e manejo.<br />

A RPPN SESC Pantanal vem atuando e repercutindo de forma a promover<br />

tais frentes de trabalho. O município deveria considerar sua importância<br />

(consequentemente para a arrecadação do ICMS Ecológico)<br />

não somente em proporção territorial, mas também como geradora<br />

de benefícios que ultrapassam a dimensão quantitativa em tamanho<br />

de área. Dessa forma, uma articulação entre a iniciativa privada e a<br />

gestão pública municipal poderia fortalecer esta ação e contribuir para<br />

ações semelhantes.<br />

Observa-se o quanto os recursos destinados à conservação ambiental<br />

ainda podem avançar e contribuir para a gestão ambiental de<br />

Mato Grosso. Espera-se, portanto, que esta pesquisa possa incitar mais<br />

questões para a evolução da temática, repercutindo positivamente no<br />

processo de tomada de decisões dos gestores públicos que visem ao<br />

reconhecimento do importante papel das áreas protegidas no Pantanal<br />

brasileiro.<br />

CONSIDERACÕES FINAIS<br />

A aproximação da economia com as questões ambientais tem proporcionado<br />

um novo olhar sobre o desenvolvimento da sociedade, especificamente<br />

sobre as formas de gestão e planejamento das políticas<br />

públicas, para compatibilizar as diferentes perspectivas de cada um<br />

desses setores, aparentemente dicotômicos, mas fortemente associados<br />

de forma híbrida.<br />

A concepção de um sistema econômico que não encontra limites<br />

tende a se tornar cada vez mais distante das práticas sociais, considerando<br />

que padrões sustentáveis são indispensáveis ao desenvolvimento.<br />

É essencial que o sistema econômico alivie os impactos que<br />

incidem sobre os recursos naturais, que comprometem sua disponibilidade<br />

em quantidade e qualidade nas escalas temporais e espaciais.<br />

As políticas ambientais demandam estratégias eficazes para que os<br />

resultados sejam satisfatórios e permanentemente revistos, avaliados e<br />

incrementados. O ICMS Ecológico tem sido um instrumento promissor<br />

na distribuição de recursos destinados aos municípios, com a imple-<br />

32 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


mentação de medidas compensatórias e incentivadoras à conservação<br />

de áreas protegidas.<br />

Em Mato Grosso, a política do ICMS Ecológico foi implantada há<br />

aproximadamente dez anos. Os avanços para adaptá-la à realidade<br />

mato-grossense têm sido gradualmente alcançados, introduzindo aspectos<br />

condizentes com o contexto socioeconômico dos municípios e<br />

das áreas protegidas. Entretanto, há fatores latentes, que merecem um<br />

melhor embasamento, para que essa política seja fortalecida e seus<br />

reflexos sejam consolidados, a exemplo de outros estados, que têm<br />

obtido êxito e destaque nesse âmbito.<br />

O fortalecimento do tema nas agendas públicas e políticas do estado<br />

e seus municípios é fundamental para instituir a infraestrutura<br />

mínima necessária para a execução da política nesses dois níveis.<br />

Consequentemente, a legislação deverá apresentar detalhamentos,<br />

principalmente quanto aos critérios de análise dos aspectos qualitativos<br />

das áreas e suas categorias, as quais exigem abordagens específicas<br />

quanto aos aspectos físicos, biológicos, ecológicos, culturais,<br />

antropológicos, entre outros, na tentativa de articulá-las da forma<br />

como se apresentam de fato.<br />

O Cadastro Estadual de Unidades de Conservação tem uma função<br />

essencial nesse contexto, podendo ser mais bem divulgado e implementado<br />

junto ao público. A Associação de Proprietários de Reservas<br />

Particulares do Patrimônio Natural também representa um meio potencial<br />

para possibilitar a articulação com a iniciativa privada, que intenta contribuir<br />

para a conservação ambiental em Mato Grosso; porém, poderia<br />

ser mais bem instituída para promover os princípios em que está<br />

alicerçada por meio de eventos e parcerias com organizações afins,<br />

entre outras estratégias, a exemplo de associações de outros estados.<br />

As Terras Indígenas e territórios de comunidades de remanescentes<br />

quilombolas são tipos de territórios com lógicas distintas quanto ao<br />

modo de vida de seus ocupantes, e constituem uma importante lacuna,<br />

para a qual novos estudos devem dedicar atenção, no sentido de<br />

subsidiar políticas públicas para o setor.<br />

Acredita-se que, com a evolução gradual das pesquisas e formulação<br />

de políticas públicas, o cálculo do ICMS Ecológico poderá se aproximar<br />

de um conjunto significativo de fatores na busca por resultados<br />

mais condizentes com as necessidades regionais e locais.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

33


Portanto, o ICMS Ecológico tem apresentado viabilidade, e medidas<br />

como a estruturação das bases para sua execução, e para a democratização<br />

e compartilhamento do processo, bem como a consideração<br />

dos múltiplos critérios a serem ponderados, poderão agregar ainda<br />

mais eficácia à conservação ambiental, promovendo a incorporação e<br />

o aprimoramento dessa política, para que suas repercussões no estado<br />

sejam amplas e exitosas.<br />

34 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


REFERÊNCIAS<br />

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Press, 2008.<br />

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 8. ed. São Paulo:<br />

Cortez, 2006.<br />

COSTANZA, R. et al. The value of the world’s ecosystem services and natural<br />

capital. Nature, n. 387, p. 253-260, 1997.<br />

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Comunidades de remanescentes quilombolas:<br />

certidões expedidas por estado. Brasília, 2010. Disponível em:<br />

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Acesso em: jul. 2011.<br />

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brasileiros. Rio de Janeiro, 2005.<br />

LIU, S. et al. Valuing ecosystem services: theory, pratice, and the need for a<br />

transdisciplinary synthesis. Annals of the New York Academy of Sciences, n.<br />

1185, p. 54-78, 2010.<br />

LOUREIRO, W. Contribuição do ICMS ecológico à conservação da biodiversidade<br />

no estado do Paraná. Curitiba: Universidade Federal do Paraná,<br />

2002. Originalmente apresentada como Tese de Doutorado.<br />

MATO GROSSO. Instrução Normativa n. 1, de 5 de maio de 2010. Regula<br />

procedimentos administrativos para organização do Cadastro Estadual de Unidades<br />

de Conservação e Terras Indígenas, a operacionalização dos cálculos e<br />

gestão do Programa do ICMS Ecológico, da publicação e democratização das<br />

informações, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Mato<br />

Grosso, Cuiabá, n. 25328, p. 12-15, 28 maio 2010.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

35


MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 1999.<br />

Cuiabá, 2000.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2000.<br />

Cuiabá, 2001.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2001.<br />

Cuiabá, 2002.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2002.<br />

Cuiabá, 2003.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2003.<br />

Cuiabá, 2004.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2004.<br />

Cuiabá, 2005.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2005.<br />

Cuiabá, 2006.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2006.<br />

Cuiabá, 2007.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2007.<br />

Cuiabá, 2008.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2008.<br />

Cuiabá, 2009.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Fazenda. Balanço geral do Estado:<br />

relatório circunstanciado sobre as contas, volume I: exercício de 2009.<br />

Cuiabá, 2010.<br />

36 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011


MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. ICMS ecológico.<br />

Cuiabá, 31 jan. 2011. Disponível em:<br />

. Acesso em: jul. 2011.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Relatório sobre a<br />

aplicação do ICMS ecológico no Estado de Mato Grosso: período 2002 a<br />

2007. Cuiabá, 2008.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Coordenadoria de<br />

Unidades de Conservação. ICMS ecológico: conservando a biodiversidade<br />

mato-grossense. Cuiabá, 2009.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral.<br />

Anuário estatístico, 2009. Cuiabá, 2010.<br />

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral.<br />

Mato Grosso em números, 2008. Cuiabá, 2008.<br />

MOTTA, R. S. da. Manual para valoração econômica dos recursos ambientais.<br />

Rio de Janeiro: IPEA; CNPq, 1997.<br />

PERMAN, R. et al. Natural resources & environmental economics. London:<br />

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PIMENTEL, C. C. R. Repercussões da Reserva Particular do Patrimônio<br />

Natural SESC Pantanal: um olhar para além dos seus limites. Cuiabá: Universidade<br />

Federal de Mato Grosso, 2009. Originalmente apresentada como<br />

Dissertação de Mestrado.<br />

SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro:<br />

Garamond, 2004.<br />

SEIDL, A. F.; MORAES, A. S. Global valuation of ecosystem services: application<br />

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p. 1-6, 2000.<br />

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2011. Disponível em: . Acesso em:<br />

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TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa<br />

qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 10-37 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

37


A HORA DE IR<br />

PARA A ESCOLA<br />

Daniel Santos<br />

38 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


Diversos trabalhos têm mostrado que, no Brasil, indivíduos que frequentaram<br />

a pré-escola quando crianças obtêm melhor desempenho escolar, maiores<br />

salários, dentre outros resultados positivos em suas vidas, ao passo que ter<br />

frequentado creche não produz efeitos significativos. Esse fato é intrigante na<br />

medida em que muitos estudos teóricos e descobertas empíricas recentes em<br />

diversas partes do mundo sugerem que quanto antes se começar a investir no<br />

aprendizado, maior serão os benefícios. Este artigo apresenta um panorama da<br />

produção nacional sobre impactos de educação infantil, sugerindo possíveis<br />

interpretações para o dilema e apontando direções para pesquisas futuras que<br />

permitam entender por que creches não têm impacto.<br />

Palavras-chave: educação infantil, creches, desempenho<br />

Several studies have shown that, in Brazil, individuals who attended the preschool<br />

in their childhood achieve a better school performance and higher salaries,<br />

among other positive outcomes in their lives, while having attended daycare<br />

centers does not produce any significant effect. This fact is intriguing in<br />

the sense that many recent theoretical studies and empirical findings in several<br />

parts of the world suggest that the sooner one starts investing in a child’s learning<br />

process, the higher the benefits will be. This article presents an overview<br />

of the Brazilian research on the impacts of the early childhood education, proposing<br />

possible interpretations of the dilemma and pointing out directions for<br />

future research that may allow us to understand why day-care centers do not<br />

cause impact.<br />

Keywords: early childhood education, day care, performance<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

39


INTRODUÇÃO 1<br />

A atenção à primeira infância vem ocupando espaço crescente nas<br />

agendas de pesquisa e formulação de políticas públicas em todo o<br />

mundo nestes primeiros anos do milênio. Por um lado, há farta evidência<br />

de que crianças que nesse período são corretamente estimuladas<br />

aproveitam melhor o conteúdo ensinado ao longo do ciclo educacional<br />

(CUNHA et al., 2006). Por outro lado, há evidência igualmente<br />

abundante de que déficits cognitivos que eventualmente surjam nessa<br />

fase são dificilmente compensados em idades mais avançadas, por<br />

mais que haja investimento das famílias e do governo. A primeira infância<br />

é uma faixa etária crítica em termos de aprendizado, e a insuficiência<br />

de estímulos tem como provável consequência futura um<br />

menor acúmulo de capital humano por parte dos trabalhadores do<br />

país, com prejuízo para nossa capacidade de crescimento. Além disso,<br />

a desigualdade de estímulos tende a produzir desigualdade educacional<br />

e de rendimentos futuros.<br />

Do ponto de vista dos governantes, tais conclusões sugerem que o<br />

fomento ao desenvolvimento infantil deveria estar entre as prioridades<br />

de política social. A grande dificuldade é que nessa idade as crianças<br />

estão predominantemente sob cuidados dos pais, ficando relativamente<br />

pouco expostas aos potenciais benefícios de políticas públicas.<br />

Dentre as relativamente poucas alternativas de ações voltadas ao<br />

desenvolvimento infantil, a oferta de educação infantil em creches e<br />

pré-escolas tem sido uma das principais apostas do Estado nas diversas<br />

partes do mundo.<br />

Os dados brasileiros mostram que, de fato, crianças que passaram<br />

pela pré-escola apresentam desempenho significativamente<br />

superior em várias dimensões de desenvolvimento e bem-estar se<br />

comparadas às que não tiveram essa experiência, mas existe pouca<br />

evidência de que a frequência escolar em idades menores (creches 2 )<br />

tenha algum impacto. Exemplos dessa evidência estão em Barros<br />

1 Agradeço os imprescindíveis comentários de Márcia Gil, Sheila Najberg e de<br />

um parecerista anônimo.<br />

2 A educação infantil no Brasil é dividida em creches (0 a 3 anos de idade) e<br />

pré-escola (4 e 5 anos).<br />

40 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


e Mendonça (1999; 2000), que analisam o impacto da educação<br />

infantil sobre salários na idade adulta e escolaridade atingida,<br />

e em Curi e Menezes-Filho (2006), Felício e Vasconcellos (2007),<br />

Calderini e Souza (2009), Felício et al., (2009) e Guimarães, Pinto e<br />

Santos (2010), que investigam o efeito do ensino infantil sobre o<br />

desempenho escolar ao longo do ensino básico. Esses resultados<br />

são ainda mais intrigantes se considerarmos que o consenso multidisciplinar<br />

que se forma em torno do tema sugere que quanto mais<br />

cedo se investe no desenvolvimento infantil, mais alto é o retorno<br />

(HECKMAN, 2008). Outro fato carece de investigação aprofundada:<br />

algumas estatísticas descritivas sugerem que, no Brasil, é entre as<br />

famílias mais abastadas que ter ido à creche parece fazer alguma<br />

diferença na vida futura das crianças, ao contrário da evidência internacional<br />

de que são as famílias vulneráveis as que mais se beneficiam<br />

desse tipo de serviço.<br />

Este artigo tem como objetivo principal interpretar a ausência<br />

de indícios de que, no Brasil, o ensino anterior aos 4 anos de idade<br />

tenha impactos positivos sobre resultados futuros, bem como<br />

analisar o efeito significativo verificado com a pré-escola. A partir<br />

dessa interpretação, discute-se que recomendações de política educacional<br />

e quais esforços de pesquisa complementares deveriam ser<br />

realizados para evitar que haja defasagem de desenvolvimento na<br />

primeira infância.<br />

1 IDADES CRÍTICAS<br />

A primeira infância é uma das fases da vida em que os indivíduos<br />

estão particularmente propensos ao aprendizado. Os estímulos<br />

recebidos nesse período não somente aumentam o conhecimento<br />

durante essa fase como também facilitam a absorção de novos conhecimentos<br />

no futuro e sua ausência pode levar a defasagens de<br />

desenvolvimento que exigem maiores investimentos futuros para serem<br />

compensadas. Em alguns casos sequer podem ser totalmente<br />

eliminadas.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

41


Fonte: Thompson e Nelson, 2001<br />

Figura 1<br />

Desenvolvimento do cérebro<br />

A Figura 1, extraída de Thompson e Nelson (2001), resume a evidência<br />

neurocientífica sobre as fases de desenvolvimento cerebral e<br />

respectivas susceptibilidades para o aprendizado. Já no sexto mês de<br />

gravidez a quase totalidade dos neurônios que compõem um cérebro<br />

adulto está formada. Então, migram para as regiões do cérebro onde<br />

exercerão funções especializadas, e em seguida formam sinapses uns<br />

com os outros para poder se comunicar e reter informações. Estímulos<br />

externos são fundamentais nessa fase para que o cérebro se organize<br />

de modo eficiente, mantendo apenas as sinapses efetivamente úteis<br />

ao seu funcionamento. Apesar de haver um período relativamente flexível<br />

de “plasticidade” nesse processo de organização, crianças com<br />

déficit de estímulos por longos períodos podem ter dificuldades permanentes<br />

de cognição.<br />

Dentre os indicadores disponíveis para acompanhar o desenvolvimento<br />

cognitivo dos indivíduos, a linguagem ocupa um papel central<br />

nos primeiros anos de vida, quer porque seja uma das primeiras<br />

manifestações cognitivas dos indivíduos, quer porque é insumo<br />

necessário para o desenvolvimento de outras formas de raciocínio.<br />

Complementando a evidência neurocientífica, estudos nas áreas de<br />

educação e psicologia confirmam a dificuldade da aprendizagem tardia<br />

da linguagem, com possíveis consequências sobre outras formas de<br />

aprendizado. A Figura 2 ilustra esses resultados, mostrando notas médias<br />

de adultos que vivem nos Estados Unidos, por idade de chegada<br />

42 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


no país, e sugere que indivíduos que se mudaram depois de adultos<br />

conseguem ter apenas 75% do desempenho linguístico daqueles que<br />

mantiveram contato com a língua desde o nascimento.<br />

Figura 2<br />

Proficiência linguística por idade em que teve contato intenso com a língua<br />

Fonte: Johnson e Newport, 1988.<br />

Se, por um lado, é contundente a evidência de que há formas de<br />

aprendizado enormemente facilitadas nos primeiros anos de vida, não<br />

menos importante é a evidência de que parte da desigualdade cognitiva<br />

observada entre pessoas adultas se forma de fato na primeira infância e<br />

acarreta consequências permanentes em termos de diferenças salariais<br />

e de bem-estar. O gráfico abaixo contém a evolução longitudinal de<br />

notas de linguagem entre crianças equatorianas e traz três informações<br />

importantes: a) filhos de mães mais escolarizadas apresentam melhor<br />

rendimento desde bem cedo (36 meses), mas as diferenças podem ser<br />

consideradas relativamente pequenas; b) as disparidades se mantêm relativamente<br />

baixas até os 4 anos de idade, período em que grande parte<br />

das crianças passa a ter contato mais intenso com experiências extra-<br />

-familiares; c) a partir desse momento, a desigualdade cresce enormemente,<br />

sendo aos 5 anos significativamente maior do que a percebida<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

43


aos 36 meses. Interessante notar que, na métrica do teste, a tendência<br />

inicial de queda é revertida em idades diferentes dependendo do nível<br />

educacional da mãe (por muitos considerada medida mais fiel da qualidade<br />

do ambiente familiar). Com os filhos das mães menos escolarizadas<br />

há modificação da tendência somente aos 5 anos. O aumento de<br />

desigualdade manifestado entre 48 e 66 meses não necessariamente é<br />

consequência apenas de eventos ocorridos nessas idades, tais como a<br />

frequência a escolas diferenciadas. É possível que parte dessa dispersão<br />

resulte do acúmulo de experiências obtidas entre 0 e 4 anos, cujo resultado<br />

apenas se manifesta depois dessa idade.<br />

Fonte: Schady, 2006.<br />

Figura 3<br />

Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (I)<br />

Desenvolvimento cognitivo de crianças entre 36 e 72 meses de idade no Equador<br />

A Figura 4, proveniente de estudo semelhante, porém focada em<br />

uma faixa etária mais avançada, ilustra o fato de que a partir de determinada<br />

idade os resultados cognitivos se cristalizam e há pouca<br />

modificação na desigualdade entre crianças que vivem em ambientes<br />

familiares diferentes. Na medida em que a desigualdade cognitiva provoca<br />

desigualdade no desempenho educacional dos indivíduos, e esta<br />

seja segundo a maioria dos estudos disponíveis a principal fonte de<br />

desigualdade de rendimentos e bem-estar na idade adulta, verifica-se<br />

que a atenção a políticas de desenvolvimento infantil deveria ser<br />

ingrediente fundamental de qualquer política de combate à desigualdade<br />

de oportunidades.<br />

44 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


Figura 4<br />

Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (II)<br />

Fonte: Heckman, 2008<br />

Tendência na média de teste cognitivo (PIAT, da família Peabody)<br />

Com respeito à formação das características não cognitivas dos<br />

indivíduos, os indícios são menos contundentes a respeito da existência<br />

de uma fase crítica nos primeiros anos de vida. De fato, diversos<br />

estudos mostram que algumas dessas características sofrem<br />

mudanças importantes mesmo durante a idade adulta (CUNHA et<br />

al., 2006).<br />

2 EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL<br />

A constatação de que parte da desigualdade de capital humano entre<br />

os indivíduos pode estar sendo gerada já na primeira infância tem<br />

repercussão especial no Brasil, país em que a desigualdade de renda<br />

e riqueza tem sido historicamente um problema agudo. De fato, o<br />

sistema educacional tem dado cada vez mais destaque ao papel desempenhado<br />

pelo ensino infantil, que vem passando por profundas<br />

transformações no período recente.<br />

A educação infantil pública no Brasil é de responsabilidade municipal<br />

e é dividida em dois níveis: as creches, cobrindo o período de<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

45


0 a 3 anos 3 , e a pré-escola, dos 4 aos 6 anos. A iniciativa de integrar os<br />

dois níveis em um mesmo sistema é recente. Se, por um lado, a demanda<br />

por pré-escola surgiu no país como consequência de famílias<br />

que desejavam antecipar o início da educação formal de seus filhos,<br />

tendo portanto o conteúdo educacional como seu principal objetivo,<br />

por outro, a origem das creches está muito mais associada à necessidade<br />

de oferecer às mães uma alternativa de cuidado aos filhos para<br />

que pudessem participar ativamente da força de trabalho. Por essa<br />

razão, durante a maior parte de nossa história recente, as creches brasileiras<br />

estiveram vinculadas às secretarias de assistência social e seus<br />

objetivos e atividades eram direcionados para que as crianças permanecessem<br />

em ambiente seguro e saudável, sem ter no conteúdo educacional<br />

sua prioridade central. Foi apenas com o advento da Lei de<br />

Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, que o poder público<br />

transferiu às secretarias de educação a responsabilidade pelas creches,<br />

definindo-as como parte integrante da educação infantil e obrigando<br />

os municípios a formular propostas pedagógicas e currículos adequados<br />

ao novo perfil que se desejava implementar nesses espaços. Os<br />

municípios tiveram dez anos a partir de 1996 para adaptar suas creches<br />

às novas exigências.<br />

Uma segunda transformação importante da legislação que orienta o<br />

funcionamento da educação infantil no Brasil foi a redução da idade<br />

mínima obrigatória de ingresso na escola e a inclusão de frequência<br />

a creches entre os direitos da criança. Fortemente influenciado pela<br />

abundante evidência (nacional e internacional) de que a passagem<br />

pela educação infantil efetivamente proporciona diferenciais permanentes<br />

em diversos indicadores de oportunidade e bem-estar, a lei<br />

foi por diversas vezes alterada de modo a redefinir direitos e deveres<br />

de crianças e pais no que diz respeito ao ensino infantil. Já na LDB as<br />

creches passaram a ser consideradas direito das famílias, obrigando os<br />

municípios a oferecer serviços gratuitos que possam contemplar essa<br />

demanda. Em 2006, as classes de alfabetização tornaram-se obrigatórias<br />

para todas as crianças, reduzindo a idade mínima de ingresso<br />

3 No caso das creches públicas, há em geral um limite mínimo de idade (em<br />

torno de 3 meses) para que uma criança possa ser aceita. Grande parte dos<br />

municípios opta por subdividir as creches em berçários e maternais.<br />

46 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


na escola de 7 para 6 anos e, no final de 2009, o congresso nacional<br />

aprovou nova mudança, tornando toda a pré-escola obrigatória, com<br />

idade de ingresso aos 4 anos a partir de 2011. Ainda persiste um intenso<br />

debate entre educadores, psicólogos e demais profissionais da<br />

área sobre a proposta curricular que deveria vigorar na pré-escola. Um<br />

dos pontos de maior divergência diz respeito à conveniência ou não<br />

de integrar a educação infantil ao ensino fundamental, colocando-se<br />

a alfabetização e a preparação para o início do fundamental como<br />

prioridade da pré-escola.<br />

Finalmente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação<br />

Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb),<br />

um importante instrumento de política criado pelo governo<br />

federal para apoiar financeiramente o ensino básico em estados e<br />

municípios, foi recentemente adaptado para poder atender também<br />

às necessidades da educação infantil, revelando mais uma vez<br />

a prioridade que esse nível de ensino vem ocupando na formulação<br />

de políticas educacionais no país. Mais do que simplesmente<br />

incluir a educação infantil entre as finalidades para as quais as<br />

transferências do fundo podem ser usadas, a lei abriu uma exceção<br />

que permite que creches privadas (desde que sem fins lucrativos e<br />

de algum modo conveniadas ao sistema público de creches) possam<br />

receber recursos.<br />

Em recente estudo, Foguel e Veloso (2010) detalham o perfil do<br />

acesso à educação infantil no Brasil, confirmando que, tal como na<br />

maioria dos países latino-americanos 4 , a cobertura do ensino infantil<br />

tem evoluído em ritmo acelerado ao longo da última década.<br />

Mesmo antes da obrigatoriedade prevista em lei, as taxas de acesso<br />

à pré-escola já haviam subido de pouco mais de 50% em 1996 para<br />

cerca de 80% em 2007, já bem próximo da universalização. Nesse<br />

mesmo estudo, os autores mostram também que o uso de creches<br />

no Brasil ainda é significativamente maior entre famílias mais ricas<br />

e educadas, ao passo que na pré-escola é relativamente menos<br />

desigual.<br />

4 Ver UNESCO – World Data on Education (2006/2007). (http://www.ibe.<br />

unesco.org/Countries/WDE/2006/index.html ).<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

47


Tabela 1<br />

Proporção de crianças frequentando educação infantil por idade no Brasil<br />

Idade<br />

(anos)<br />

48 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

Ano<br />

1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007<br />

0 1.1 1.1 1.5 1.3 1.1 1.2 1.6 2.3 1.4 2.2 2.7<br />

1 3.1 3.2 3.3 3.7 3.7 5.1 5.0 6.2 5.7 7.2 8.0<br />

2 7.6 8.1 8.1 9.3 11.5 11.8 11.2 14.3 14.5 17.7 18.3<br />

3 17.4 19.5 20.2 21.7 24.5 26.3 25.5 29.5 30.6 34.6 38.0<br />

4 33.3 36.5 35.7 39.0 43.9 46.0 47.9 50.5 52.6 58.0 60.3<br />

5 51.7 54.8 55.7 57.0 62.7 64.6 67.1 70.9 71.2 75.0 76.8<br />

Fonte: Foguel e Veloso (2010).<br />

Utilizando uma série de perguntas específicas sobre as razões reportadas<br />

pelos pais para não colocar seus filhos nas creches 5 , Foguel<br />

e Veloso (2010) constroem dois tipos de indicadores dicotômicos de<br />

falta de acesso ao ensino infantil. O primeiro (indicador de frequência),<br />

baseado no fato de as crianças estarem ou não fora da escola, assume<br />

o valor zero se a criança não está matriculada e um em caso contrário.<br />

O segundo (indicador de oportunidade) assume o valor um para falta<br />

de acesso apenas se a criança estiver fora da escola e essa situação for<br />

consequência de falta de recursos ou vagas nas escolas disponíveis. Com<br />

base nesses indicadores, os autores calculam, para cada idade, as taxas<br />

de acesso (ou cobertura) e desigualdade 6 de acesso a creches e pré-<br />

-escolas no Brasil, conforme exposto nos gráficos a seguir. Percebe-se<br />

neles que grande parte da desigualdade total existente nas idades mais<br />

novas (linhas claras do segundo gráfico) não resulta de falta de oferta de<br />

vagas em creches, mas, sim, de outros motivos encontrados pelos pais<br />

para que seus filhos não frequentem a escola (linhas escuras) 7 .<br />

5 Suplemento de acesso ao ensino da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios<br />

(PNAD) de 2006.<br />

6 O indicador de desigualdade utilizado é o proposto por Barros et al. (2009).<br />

7 O mais intrigante no que diz respeito ao acesso ao ensino infantil no Brasil<br />

é que no momento da matrícula existe excesso de demanda, no entanto, há<br />

elevadas taxas de rotatividade e desistência ao longo do ano (evidência preliminar<br />

de pesquisa em andamento conduzida por Ricardo Paes de Barros,<br />

avaliando impacto de acesso a creches no Rio de Janeiro).


Fonte: Foguel e Veloso, 2010.<br />

Figura 5<br />

Taxas de acesso à educação infantil no Brasil<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

49


3 ESTIMATIVAS DE IMPACTO DE FREQUÊNCIA À EDUCAÇÃO<br />

INFANTIL NO BRASIL E SUAS INTERPRETAÇÕES<br />

Ao mesmo tempo em que está se formando um consenso multidisciplinar<br />

sobre a importância de investimentos em capital humano<br />

durante a primeira infância, sabemos ainda muito pouco a respeito da<br />

melhor forma de realizar esse investimento. As divergências se concentram<br />

essencialmente em estabelecer quando as crianças devem<br />

começar a frequentar a escola (ou mais genericamente se submeter<br />

a algum tipo de cuidado extradomiciliar), em que intensidade, e em<br />

definir qual o tipo ideal de cuidado que uma criança deveria receber.<br />

Estudos que buscam investigar a efetividade do ensino infantil como<br />

meio para promoção de desenvolvimento nem sempre encontram resultados<br />

estatisticamente positivos e significativos. Em primeiro lugar,<br />

escolas infantis não são criadas apenas para educar as crianças, mas<br />

também para permitir que os pais aumentem sua oferta de trabalho.<br />

Parte das estimativas de impacto de instituições que não têm no conteúdo<br />

educacional seu foco principal encontram resultado nulo sobre o<br />

aprendizado. Em segundo lugar, a existência de impactos significativos<br />

depende da adequação da instituição de ensino ao seu público-alvo.<br />

Parte das atividades exercidas na escola depende da existência de ambiente<br />

familiar estimulante para ser melhor aproveitada, mas no caso<br />

de crianças provenientes de famílias particularmente desestruturadas e<br />

vulneráveis pode ser necessário um esforço adicional da escola para<br />

compensar a ausência de tais estímulos. É possível, portanto, que uma<br />

mesma escola tenha impacto positivo se oferecida a uma criança adequadamente<br />

estimulada e impacto nulo se oferecida a uma criança<br />

defasada ou com carência de incentivos complementares em casa.<br />

Apesar de não necessariamente conflitantes, os vários papéis desempenhados<br />

por instituições de ensino infantil podem levar a escolhas<br />

delicadas sobre o tipo de ensino que queremos. Por requerer atenção<br />

individualizada, o ensino infantil apresenta um custo por aluno relativamente<br />

elevado (se comparado a outros níveis de ensino), custo esse que<br />

aumenta ainda mais no caso de intervenções compensatórias. Como os<br />

benefícios em termos de oferta de trabalho dos pais são percebidos antes<br />

dos benefícios associados a um maior acúmulo de capital humano<br />

dos filhos, não raro governantes buscam atender à demanda por escolas<br />

50 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


infantis expandindo serviços com baixo conteúdo educacional. Por outro<br />

lado, se parcela significativa da população beneficiada necessitar de fato<br />

de intervenções do tipo compensatório, é possível que a expansão de<br />

um serviço mediano para esse público não surta o efeito desejado. A<br />

possibilidade de se oferecer serviços diferenciados depende intrinsecamente<br />

da definição de critérios objetivos para determinar quais seriam<br />

as crianças que poderiam ou deveriam receber esse investimento mais<br />

elevado por parte do governo. Como os custos de reparar déficits cognitivos<br />

(e de desenvolvimento em geral) são tipicamente ainda mais altos<br />

em idades mais avançadas, o problema que se coloca é que não fazer<br />

o investimento nessas crianças implicará em ter que fazer investimentos<br />

ainda maiores (e, portanto, com taxa de retorno menor) no futuro, ou<br />

em conviver com níveis elevados de desigualdade 8 .<br />

3.1 RESULTADOS OBTIDOS NO BRASIL<br />

O Brasil não é especialmente rico em bases de dados que possuam<br />

detalhes sobre características de intervenções voltadas ao ensino infantil<br />

e seus respectivos resultados futuros. A Tabela 1 resume as conclusões<br />

dos trabalhos disponíveis na literatura econômica e o Anexo 1<br />

descreve de forma sucinta as bases de dados disponíveis e utilizadas<br />

nesses estudos.<br />

Nos primeiros artigos que investigam o tema, Barros e Mendonça<br />

(1999; 2000) usaram a Pesquisa sobre Padrões de Vida de 1996/97<br />

(PPV-IBGE), que contém perguntas retrospectivas a respeito da frequência<br />

escolar de adultos. Nesses artigos, os autores estimaram por<br />

mínimos quadrados o impacto de ter frequentado o ensino infantil sobre<br />

indicadores educacionais, nutricionais e de inserção no mercado<br />

de trabalho em uma amostra de adultos das regiões Nordeste e Sudeste.<br />

Foi detectado impacto positivo da frequência à pré-escola sobre o<br />

nível educacional atingido e a inserção no mercado de trabalho.<br />

8 Note-se que as estimativas das taxas de retorno dos melhores programas<br />

compensatórios apontam para valores bastante positivos. Isso significa que<br />

esse tipo de investimento não apenas pode ser justificado do ponto de vista de<br />

justiça social, por reduzir as desigualdades de oportunidade entre indivíduos,<br />

como é também eficiente do ponto de vista alocativo.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

51


Os demais artigos mencionados na tabela utilizam amostras de estudantes<br />

matriculados no ensino básico para verificar se aqueles que<br />

frequentaram a educação infantil obtiveram notas maiores em testes<br />

padronizados de matemática e linguagem. Curi e Menezes-Filho 9<br />

(2006) utilizam amostra do Sistema de Avaliação da Educação Básica<br />

(Saeb 2003) para estimar por mínimos quadrados o impacto de começar<br />

os estudos no maternal e pré-escola sobre notas de matemática de<br />

crianças na 4ª, 8ª e 11ª séries do ensino básico, percebendo efeitos<br />

significativos de frequência à pré-escola sobre as notas de matemática.<br />

Felício e Vasconcellos (2007) usam um painel de escolas públicas<br />

presentes no Saeb 2003 e na Prova Brasil 2005 para investigar se nas<br />

escolas em que aumentou a proporção de alunos que iniciaram seus<br />

estudos no maternal ou na pré-escola esses alunos obtiveram incrementos<br />

em suas notas médias obtidas nos exames. Os resultados foram<br />

positivos e significativos tanto para a proporção de ingressantes no maternal<br />

quanto para ingressantes na pré-escola. Calderini e Souza (2009)<br />

juntam informações do Censo Escolar aos dados da Prova Brasil 2005<br />

para estimar o impacto de ter entrado na escola no maternal ou na<br />

pré-escola sobre notas de matemática, tentando lidar com o problema<br />

de endogeneidade dessas variáveis utilizando variáveis de oferta escolar<br />

como instrumento. Pinto, Santos e Guimarães (2010) propõem um<br />

modelo estrutural para lidar com a endogeneidade da decisão familiar<br />

de matricular seus filhos na creche ou na pré-escola utilizando método<br />

de funções de controle com variáveis de oferta escolar e incidência de<br />

doenças contagiosas entre crianças de 0 a 5 anos de idade como restrições<br />

de exclusão, e novamente encontram impactos importantes de<br />

frequência à pré-escola sobre notas de alunos do ensino básico, porém<br />

com pouco efeito adicional de ter frequentado creche.<br />

Felício et al. (2009) usam dados da Provinha Brasil aplicada em todas<br />

as classes de 2ª série do ensino básico da cidade de Sertãozinho<br />

(SP) para estimar o impacto de frequência e exposição à educação<br />

infantil sobre notas de matemática. O estudo difere dos anteriores em<br />

três dimensões importantes: a) os resultados são medidos com menor<br />

distância do tratamento, refletindo características de um sistema de<br />

9 Os autores também utilizam a PPV para realizar uma série de exercícios similares<br />

aos de Barros e Mendonça (1999; 2000), obtendo conclusões semelhantes.<br />

52 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


educação infantil mais recente; b) perguntas de frequência à educação<br />

infantil das crianças são feitas aos pais (e não às crianças, como<br />

ocorre no Saeb e na Prova Brasil); e c) há perguntas sobre frequência<br />

ao ensino infantil em cada ano de vida (ao contrário do Saeb e<br />

da Prova Brasil, que apenas perguntam se a criança foi inscrita pela<br />

primeira vez na escola no maternal, na pré-escola ou no ensino básico).<br />

As principais conclusões sugerem que frequentar o último ano da<br />

pré-escola tem impacto importante sobre o desempenho escolar, mas<br />

permanecer no ensino infantil por mais tempo não acarreta ganhos<br />

adicionais estatisticamente significativos. As estimativas são obtidas<br />

com várias técnicas diferentes (mínimos quadrados, pareamento por<br />

propensity score, entre outras), sendo que todas assumem que não há<br />

seletividade em não observáveis, e produzem resultados semelhantes.<br />

Estudo Base de<br />

dados<br />

Barros e<br />

Mendonça<br />

(1999)<br />

Tabela 2<br />

Estimativas de impacto de ter frequentado ensino infantil<br />

sobre resultados individuais futuros no Brasil<br />

Nível<br />

educacional<br />

PPV Creche Pr (completar<br />

2 o grau antes<br />

de 25 anos)<br />

Favoráveis Nulos<br />

Pré-escola Escolaridade final<br />

Pr (completar<br />

8ª série, 2 o grau<br />

e 3 o grau)<br />

Pr (4ª s. < 14 a.<br />

e 3 o g. < 25 a.)<br />

Taxa de repetência<br />

Renda do trabalho<br />

dos homens<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

Escolaridade final<br />

Pr (completar 8ª série,<br />

2 o grau e 3 o grau)<br />

Pr (4ª s. < 14 a.,<br />

8ª s. < 18 a. e<br />

3 o g. < 25 a.)<br />

Taxa de repetência<br />

Participação feminina<br />

na força de trabalho<br />

Taxa de ocupação feminina<br />

Renda do trabalho<br />

dos homens<br />

Pr (completar 8ª série<br />

antes de 18 anos)<br />

Participação feminina<br />

na força de trabalho<br />

Taxa de ocupação feminina<br />

53


Estudo Base de<br />

dados<br />

Barros e<br />

Mendonça<br />

(2000)<br />

(variável<br />

explicativa<br />

principal:<br />

tempo<br />

frequentado<br />

na creche<br />

ou<br />

pré-escola)<br />

Curi e<br />

Menezes-<br />

Filho (2006)<br />

Felício e<br />

Vasconcellos<br />

(2007)<br />

Nível<br />

educacional<br />

Favoráveis Nulos<br />

PPV Creche Escolaridade final<br />

SAEB/03<br />

e<br />

PPV<br />

SAEB/03<br />

e Prova<br />

Brasil/05<br />

Pré-escola Escolaridade final<br />

Pr (esc. > 4, esc. > 8<br />

e esc. > 11)<br />

Pr (repetência)<br />

Pr (esc. > 4, esc. > 8<br />

e esc. > 11)<br />

Pr (frequentar 3 o grau)<br />

Pr (repetência)<br />

Participação feminina<br />

na força de trabalho<br />

Taxa de ocupação feminina<br />

Renda dos homens<br />

Renda dos homens<br />

Frequentar pré-escola: nulo para z-scores alturaidade<br />

e peso-idade, positivo para peso-altura.<br />

Frequência da merenda escolar: nulo para<br />

z-scores altura-idade, peso-idade e peso-altura.<br />

Tempo de permanência na pré-escola:<br />

Negativo sobre z-score altura-idade<br />

Creche Nota de matemática<br />

4ª série<br />

Pré-escola Pr (concluir<br />

primário, ginásio,<br />

colégio, 3 o grau)<br />

Escolaridade final<br />

Salário<br />

Nota de matemática<br />

4ª série, 8ª série<br />

e 11ª série<br />

Creche (log) Nota de<br />

matemática 4ª série<br />

por regiões:<br />

SE>CO>NE>S>N<br />

Pré-escola (log) Nota de<br />

matemática 4ª série<br />

por regiões:<br />

SE>CO>NE>S>N<br />

Pr (concluir primário,<br />

ginásio, colégio, 3 o grau)<br />

Escolaridade final<br />

Salário<br />

(Continuação Tabela 2)<br />

54 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


Estudo Base de<br />

dados<br />

Calderini e Prova<br />

Souza<br />

(2009)<br />

Brasil/05<br />

Felício<br />

et al (2009)<br />

Pinto,<br />

Santos e<br />

Guimarães<br />

(2010)<br />

Provinha<br />

Brasil<br />

Fonte: Elaboração própria.<br />

Nível<br />

educacional<br />

Favoráveis Nulos<br />

Pré-escola Nota de matemática<br />

4ª série (todos)<br />

Ensino<br />

infantil<br />

Nota de matemática<br />

4ª série (idade<br />

correta)<br />

Nota de matemática<br />

(2ª série)<br />

(ter frequentado)<br />

SAEB/05 Creche Nota de matemática<br />

4ª série<br />

Nota de literatura<br />

4ª série<br />

Pré-escola Nota de matemática<br />

4ª série<br />

Nota de literatura<br />

4ª série<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

Nota de matemática<br />

(2ª série)<br />

(frequentar por<br />

mais de 1 ano)<br />

(Continuação Tabela 2)<br />

A Tabela 2 evidencia o fato de que indivíduos que frequentaram<br />

pré-escola apresentam resultados melhores do que os que não frequentam.<br />

Os ganhos se manifestam na forma de maiores salários e escolaridade<br />

na vida adulta e notas e desempenho educacional ao longo<br />

do ensino básico. Com respeito às notas, o que pode ser interpretado<br />

como medida de influência da pré-escola sobre o desempenho cognitivo<br />

dos indivíduos, os números brasileiros são elevados e bastante<br />

semelhantes aos encontrados em países como Argentina (BERLINSK<br />

et al., 2009), em torno de 0,25 desvio-padrão, e ligeiramente acima<br />

dos obtidos na maioria dos estudos sobre impactos de programas de<br />

ensino infantil em larga escala nos Estados Unidos, entre 0,1 e 0,2 desvios<br />

(BARNETT, 2008). Os resultados obtidos nesses trabalhos tiveram<br />

forte repercussão e influenciaram diretamente a defesa da redução da<br />

idade mínima obrigatória para frequência escolar.<br />

Com respeito à creche, a evidência é bem menos contundente. A<br />

maioria dos estudos não encontra impactos estatisticamente significativos,<br />

ou encontra apenas impactos de pequena magnitude. As leituras<br />

que costumam ser feitas desses números procuram ou questionar a<br />

55


validade das estimativas ou interpretar o significado das mesmas no<br />

contexto do atual sistema de ensino brasileiro.<br />

Para interpretar essa evidência, também encontrada nos Estados<br />

Unidos, é útil esclarecer alguns tipos de intervenções feitas naquele país.<br />

Os programas americanos de ensino infantil se dividem nas seguintes<br />

categorias: a) pre-kindergarten (3 e 4 anos) e kindergarten (5 e 6 anos),<br />

de larga escala e com foco de aprendizado em geral baseado em escolas<br />

formais que, eventualmente, também oferecem ensino básico; b)<br />

daycare centers (0 a 3 anos), de larga escala, são essencialmente programas<br />

pagos, com cuidadoras para tomar conta de um grupo de crianças<br />

em locais mantidos por associações de bairro e outras organizações<br />

da sociedade civil; c) Head Start, programa compensatório de larga<br />

escala focado no desenvolvimento infantil (entendido de modo amplo)<br />

de crianças que vivem em famílias vulneráveis; além de atividades na<br />

escola (em geral em tempo integral), prevê visitas de educadores, médicos<br />

e nutricionistas às famílias para acompanhamento das crianças e<br />

para orientações aos pais, bem como visitas dos pais e filhos para atividades<br />

conjuntas na escola nos finais de semana; d) intervenções-modelo,<br />

experimentais e de pequena escala, em geral de caráter compensatório<br />

e focadas em crianças vulneráveis, e que na maioria das vezes<br />

preveem intervenções simultâneas sobre o aprendizado das crianças e<br />

envolvimento familiar. Grosso modo, os daycare centers se assemelham<br />

ao antigo modelo de creches vinculadas à assistência social, ao passo<br />

que o pre-kindergarten pode inspirar o tipo de creche que está sendo<br />

gestado atualmente nas secretarias de educação brasileiras.<br />

3.2 VALIDADE DAS ESTIMATIVAS<br />

Estimativas de impacto de uma intervenção sobre uma variável de<br />

resultado (digamos, ), em geral, comparam as distribuições de em<br />

um grupo de indivíduos que recebeu a intervenção e outro que não<br />

a recebeu (cujo papel na estimativa é simular o que teria ocorrido ao<br />

grupo tratado no cenário contrafactual em que não recebesse a intervenção).<br />

A qualidade da estimativa depende crucialmente de quão<br />

convincente é a suposição de que a única diferença relevante entre<br />

esses grupos foi o fato de um deles ter sido tratado. Assim, as críticas<br />

às estimativas existentes se concentram em: a) colocar em dúvida a<br />

56 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


suposição acima e b) colocar em dúvida que as variáveis envolvidas<br />

no exercício de estimação sejam corretamente medidas. Em ambos os<br />

casos, podemos dizer que é a validade interna das estimativas que está<br />

sendo questionada.<br />

Adicionalmente, se uma estimativa é feita em uma amostra muito<br />

particular, e suspeitamos que, portanto, suas conclusões não sejam válidas<br />

em outros contextos, ou se desconfiamos que resultados obtidos<br />

em determinado ponto do tempo podem não ser boas aproximações<br />

do impacto de um programa em outros períodos, dizemos que a validade<br />

externa das estimativas é frágil.<br />

3.2.1 VALIDADE INTERNA<br />

DELIMITAÇÃO DOS GRUPOS DE TRATAMENTO E CONTROLE<br />

Idealmente, para estimar o impacto de um tratamento T sobre ,<br />

gostaríamos de poder comparar dois grupos em que a única diferença<br />

entre ambos (em termos da composição de possíveis características<br />

determinantes de ) fosse o fato de que um deles recebeu o tratamento<br />

e o outro não. Na medida em que o grupo de tratados e não tratados<br />

difere em outras dimensões além do recebimento do tratamento,<br />

surge sempre uma suspeita de que eventuais diferenças na distribuição<br />

de entre os grupos sejam causadas por diferenças nessas outras<br />

variáveis, e não propriamente pelo tratamento.<br />

No caso do tratamento em que estamos interessados (frequência<br />

ao ensino infantil) há três conjuntos de características que costumam<br />

afetar diretamente variáveis de resultado futuro (tais como salários,<br />

notas ao longo do ensino básico, ou escolaridade final atingida) e que<br />

podem diferir sistematicamente entre os grupos de pessoas que frequentaram<br />

e que não frequentaram creches e pré-escolas.<br />

O primeiro conjunto são as características individuais das crianças.<br />

Atributos como motivação, inteligência e extroversão frequentemente<br />

não são observados e podem afetar o processo de desenvolvimento<br />

de modo a influenciar resultados futuros. Se as famílias levam em<br />

conta nuances da personalidade dos filhos no instante de decidir se os<br />

matriculam ou não no ensino infantil, a interpretação de causalidade<br />

atribuída ao tratamento em exercícios econométricos pode ficar prejudicada.<br />

Um exemplo de situação em que egressos do ensino infantil<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

57


são não observacionalmente distintos dos não egressos é aquela em<br />

que os pais, acreditando ser a creche boa para seus filhos, mas sem ter<br />

condições de matriculá-los todos, escolhe os mais atrasados em termos<br />

de desenvolvimento como forma de reduzir as diferenças entre irmãos<br />

(comportamento compensatório). De modo inverso, também é possível<br />

que sejam os mais desenvolvidos os escolhidos, sob o argumento<br />

de que podem aproveitar melhor os estímulos oferecidos pelas instituições<br />

educacionais (comportamento complementar). Bernal (2001)<br />

conclui, por meio de estimativa estrutural das decisões simultâneas<br />

das mães de trabalhar e utilizar diferentes formas de deixar seus filhos<br />

sob cuidados de terceiros (seja em daycare centers, pre-kindergartens<br />

ou com adultos), que: a) crianças que ficam a maior parte do tempo<br />

nas creches têm desenvolvimento inferior aos criados pelas mães; b)<br />

crianças com melhores índices de desenvolvimento são as que mais<br />

sofrem com a falta de contato com as mães e as que mais perdem com<br />

o fato de serem inscritas em creches.<br />

O segundo conjunto de variáveis refere-se a características do ambiente<br />

familiar em que a criança é criada. É razoável supor que um<br />

mesmo tratamento, no caso a frequência a alguma instituição de ensino<br />

infantil, tenha efeitos diferentes sobre indivíduos vindos de famílias<br />

diferentes. Para uma criança que vive em domicílio desestruturado,<br />

onde os adultos presentes não oferecem estímulos mínimos para que<br />

se desenvolva, passar boa parte de seu tempo na escola (em detrimento<br />

de passá-lo com a família) produz possivelmente um efeito maior<br />

sobre o desenvolvimento infantil do que em uma criança criada em<br />

família estruturada, para a qual cada hora despendida na escola pode<br />

significar uma hora a menos de convívio com os pais e familiares. Por<br />

outro lado, é possível também que uma mesma hora gasta na escola<br />

seja aproveitada de modo mais intenso por crianças que vivem em<br />

famílias mais estruturadas (se os estímulos recebidos na escola e no lar<br />

forem complementares). Em ambos os casos, crianças que vivem em<br />

famílias diferentes poderiam ser beneficiadas de modo distinto por<br />

um mesmo tratamento. Por esses motivos, a simples comparação de<br />

resultados futuros de crianças que frequentaram e crianças que não<br />

frequentaram ensino infantil pode não resultar em boa estimativa do<br />

impacto causal desse tipo de intervenção, ou do provável resultado<br />

que teriam os não tratados caso tivessem frequentado o ensino infantil.<br />

58 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


Diferenças sistemáticas entre as famílias também surgem por outros<br />

canais. É sabido, por exemplo, que pais mais escolarizados valorizam<br />

mais a educação e, portanto, tendem a ser mais propensos a colocar<br />

seus filhos na escola desde cedo. Por outro lado, e na medida em<br />

que uma das principais razões para que uma família decida matricular<br />

seus filhos no ensino infantil seja liberar o tempo dos pais para poder<br />

trabalhar, é possível que sejam os pais com maiores oportunidades<br />

profissionais os que prefiram colocar seus filhos na escola. Se a qualificação<br />

profissional for correlacionada com outros talentos para criar os<br />

filhos, surge outro espaço para a existência de seletividade na decisão<br />

de matrícula no ensino infantil.<br />

O Gráfico 1, construído com base nos dados do Saeb 2005, ilustra<br />

o fato de que no Brasil famílias mais estruturadas colocam seus filhos<br />

no ensino infantil com maior probabilidade. Pelo gráfico, construído<br />

a partir de uma amostra de alunos do ensino básico, as mães mais<br />

educadas, que frequentam reuniões de pais na escola e que apresentam<br />

atitudes positivas quanto ao empenho dos filhos nos estudos, são<br />

também as que com maior probabilidade matricularam seus filhos em<br />

escolas infantis no passado.<br />

Gráfico 1<br />

Proporção de filhos matriculados no ensino infantil,<br />

por características de ambiente familiar<br />

Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2005.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

59


O terceiro grupo de determinantes de resultados futuros provém de<br />

características de experiências extrafamiliares, em especial relacionadas<br />

às escolas frequentadas entre o momento em que foram matriculados<br />

no ensino infantil e o momento em que os resultados futuros foram medidos.<br />

Famílias que valorizam mais a educação, por exemplo, tendem<br />

ao mesmo tempo a inscrever os filhos mais cedo na escola e a optar por<br />

escolas de melhor qualidade, tanto no ensino infantil quanto posteriormente.<br />

Se parte dessa qualidade não for observável nos dados, há de<br />

novo espaço para a superestimação do impacto de ensino infantil sobre<br />

outras variáveis que reflitam o desenvolvimento individual. Por outro<br />

lado, pais mais educados sabem que não faltarão estímulos aos filhos em<br />

casa e podem valorizar mais aspectos socioafetivos na escola, ao passo<br />

que pais menos educados podem valorizar um tipo de escola mais intensiva<br />

em estímulos cognitivos que eles mesmos não podem proporcionar<br />

aos filhos. Essa é precisamente a conclusão do trabalho de Jacob e Lefgren<br />

(2005). Sendo esse o caso, é possível que seja justamente entre as famílias<br />

menos favorecidas que ocorra um maior impacto do tratamento.<br />

A possibilidade de diferenças não observacionais sistemáticas entre<br />

tratados e não tratados compromete estimativas de impacto baseadas<br />

em simples comparação de resultados futuros desses dois grupos e<br />

requer cuidados estatísticos especiais para lidar com potencial viés de<br />

seleção e endogeneidade da decisão de inscrever os filhos no ensino<br />

infantil. Os trabalhos apresentados na Tabela 2 diferem significativamente<br />

com respeito às técnicas de estimação e bases de dados utilizadas<br />

e nas formas de lidar com problemas de endogeneidade. O<br />

fato de chegarem a conclusões semelhantes faz acreditar que ainda<br />

que essa heterogeneidade possa causar alguma distorção nas estimativas<br />

esse viés não deve ser de grande magnitude. Em primeiro lugar,<br />

grande parte das possíveis diferenças entre tratados e não tratados<br />

tem origem em disparidades existentes no ambiente familiar, para o<br />

qual em geral conseguimos observar uma gama relativamente ampla<br />

de características que podemos usar para isolar o efeito do ensino<br />

infantil. Em segundo lugar, pesquisa qualitativa recente 10 parece indicar<br />

que o principal motivo para matricular crianças em creches é<br />

10 Entrevistas realizadas com pais para um projeto de avaliação de impactos<br />

de creches no município do Rio de Janeiro em andamento.<br />

60 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


viabilizar a oferta de trabalho dos pais, tendo pouca relação com talentos<br />

da criança ou com preferências dos pais por educação. Mesmo<br />

no que diz respeito à qualidade do ensino, a mesma pesquisa revela<br />

que o principal critério para a escolha da instituição educacional é a<br />

proximidade de casa e não a qualidade do ensino. Com respeito à<br />

pré-escola, os resultados obtidos nos trabalhos citados na Tabela 2 são<br />

bastante próximos dos obtidos internacionalmente (BERLINSKI et al.,<br />

2009; BARNETT, 2008), reforçando a impressão de que sejam bastante<br />

próximos do verdadeiro impacto médio na população.<br />

PROBLEMAS DE MENSURAÇÃO<br />

A segunda dificuldade é a medição dos resultados e das características<br />

individuais usadas para tornar comparáveis os grupos de tratamento e<br />

controle. No que diz respeito à validade interna dos resultados obtidos<br />

para o Brasil, o problema de mensuração surge tanto quando se coloca<br />

em xeque a capacidade de um aluno de 4ª série responder fielmente se<br />

frequentou ensino infantil ou não ou ao se estimar o impacto de ter frequentado<br />

creche e pré-escola a partir de dados do Saeb quanto quando<br />

se questiona a qualidade de informações reportadas por adultos sobre<br />

se frequentaram ensino infantil, evento que no caso dos dados da Pesquisa<br />

sobre Padrões de Vida pode ter ocorrido há décadas.<br />

Erros de medida em variáveis explicativas costumam provocar um<br />

viés de impactos medidos a partir de algumas estratégias empíricas<br />

bastante populares em direção a zero em magnitude, que é justamente<br />

o que obtemos no caso dos impactos associados a creches.<br />

No entanto, como mencionado anteriormente, resultados obtidos por<br />

diferentes estratégias e a partir de diferentes bases de dados apontam<br />

para uma conclusão comum de que os impactos de creches são em<br />

geral de pequena magnitude e, frequentemente, estatisticamente insignificantes.<br />

Em particular, o desenho amostral do estudo de Felício<br />

et al. (2009) busca especificamente lidar com o problema, perguntando<br />

aos pais de alunos do 3º ano do ensino fundamental a respeito<br />

da frequência dos mesmos ao ensino infantil. Os autores conseguem<br />

contornar o problema de respostas provenientes de crianças que poderiam<br />

estar insuficientemente informadas e a eventualidade de tais<br />

respostas estarem relacionadas a eventos já distantes no passado. Mesmo<br />

esse estudo obtém impactos insignificantes de ensino infantil em<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

61


idades muito pequenas. Não parece, portanto, que a justificativa para<br />

a ausência de impactos de creches sobre resultados individuais futuros<br />

esteja em deficiências de mensuração.<br />

3.2.2 VALIDADE EXTERNA<br />

A validade das conclusões de um exercício estatístico em contextos<br />

diferentes do caracterizado pela amostra em que é realizado depende<br />

essencialmente de quão parecidos são esses contextos. No caso das<br />

estimativas de impacto do ensino infantil sobre resultados futuros dos<br />

indivíduos, há quatro aspectos que com frequência são questionados.<br />

COBERTURA GEOGRÁFICA<br />

Em primeiro lugar, há exercícios como o de Felício et al. (2009), que<br />

utiliza uma amostra de crianças que frequentam a segunda série do ensino<br />

fundamental na cidade de Sertãozinho (SP), cujas conclusões não<br />

necessariamente valem para a totalidade do território brasileiro se, por<br />

exemplo, o tipo de ensino oferecido nessa cidade destoar bastante do<br />

existente em outras partes. Como os próprios autores argumentam,<br />

Sertãozinho foi escolhido precisamente por contar com um sistema<br />

educacional desenvolvido para padrões brasileiros e devido também à<br />

receptividade da secretaria de educação municipal em permitir e colaborar<br />

para que o estudo fosse feito. O fato de que as conclusões desse trabalho<br />

coincidem tanto qualitativamente quanto quantitativamente 11 com<br />

as obtidas em pesquisas que partem de dados com representatividade<br />

nacional (GUIMARÃES, PINTO e SANTOS, 2010) sugere que sua validade<br />

possivelmente pode ser generalizada para contextos mais amplos.<br />

11 Os autores encontram um impacto de ter frequentado ensino infantil sobre<br />

as notas de matemática de cerca de 0,25 desvio-padrão, bastante semelhante<br />

ao desvio de 0,27 obtido no Brasil por Guimarães, Pinto e Santos (2010).<br />

Adicionalmente, não constatam nenhuma evidência de que alunos que passaram<br />

mais de um ano no ensino infantil obtiveram ganhos superiores aos que<br />

frequentaram apenas um ano. Como a maioria dos indivíduos matriculados<br />

no ensino infantil em determinado ano permanece matriculada nos anos<br />

seguintes, é plausível interpretar esse resultado como evidência de que é a frequência<br />

ao último ano da pré-escola (5 anos de idade) que de fato influencia<br />

o desempenho no exame de matemática aplicado.<br />

62 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


CRECHES DO PASSADO<br />

Uma segunda crítica à validade externa da maioria dos trabalhos<br />

sobre o tema é a de que os impactos medidos podem estar relacionados<br />

a características do sistema educacional do passado, pouco<br />

informativas sobre o presente. Como foi dito anteriormente, o sistema<br />

educacional brasileiro passou por intensa transformação nos últimos<br />

anos, sendo as mudanças mais significativas a reorientação da finalidade<br />

do ensino oferecido nas creches (reforma curricular e passagem<br />

da administração do sistema para as secretarias de educação e não<br />

mais de assistência social), o aumento da disponibilidade de recursos<br />

por meio da inclusão do ensino infantil entre os possíveis beneficiários<br />

de transferências do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento<br />

da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação<br />

(Fundeb) e a expansão da rede, com elevação dos requerimentos de<br />

qualificação dos educadores e a redução da idade mínima obrigatória<br />

de entrada das crianças no sistema educacional. É possível, portanto,<br />

que os impactos estimados nos estudos citados estejam associados ao<br />

efeito que um sistema anterior ao vigente tinha sobre o desenvolvimento<br />

cognitivo, que não necessariamente é igual ao impacto que<br />

tem o atual sistema. Ao contrário das críticas anteriores, essa parece<br />

de fato pertinente e estudos adicionais são necessários para saber a<br />

extensão de sua relevância. Entre as bases de dados utilizadas nos<br />

estudos citados neste artigo, o que remete a um tipo de ensino mais<br />

recente é o feito com estudantes da 2ª série de Sertãozinho (FELÍCIO<br />

et al., 2009), pois crianças matriculadas nessa série em 2008 deveriam<br />

ter eventualmente frequentado creches, entre 2000 e 2004 (quando<br />

tinham entre 0 e 3 anos) e pré-escola, entre 2005 e 2006. Se considerarmos<br />

que 2006 foi justamente o final do prazo para que as creches<br />

passassem aos cuidados das secretarias de educação 12 , e que foi a<br />

partir de 2007 que a idade de ingresso na escola foi pela primeira vez<br />

reduzida, é plausível que o ensino recebido pelas crianças de hoje seja<br />

bem diferente (eventualmente com impacto positivo sobre aprendizado)<br />

do recebido pela coorte que em 2008 estava na 2ª série.<br />

12 Grande parte dos municípios, como, por exemplo, o Rio de Janeiro, esperou<br />

até o limite do prazo para fazer a transição.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

63


HETEROGENEIDADE DE IMPACTOS<br />

A terceira (e possivelmente mais contundente) crítica referente à validade<br />

externa das estimativas é a de que pode haver heterogeneidade<br />

dos impactos tanto devido à idade em que os efeitos estão sendo medidos<br />

(um mesmo tratamento pode ter grande efeito sobre um teste<br />

aplicado em determinada idade, mas efeito menor sobre um teste<br />

aplicado em idade posterior) quanto devido ao tipo de tratamento<br />

recebido (duas crianças que disseram ter feito creche em determinada<br />

idade podem efetivamente ter recebido tratamentos bem diferentes<br />

e, consequentemente, com efeitos diferentes sobre um teste futuro<br />

aplicado numa dada idade). Um impacto médio nulo pode ser obtido<br />

tanto por um tratamento que não afeta nenhum dos tratados quanto<br />

por tratamentos que afetem positivamente alguns agentes e negativamente<br />

outros.<br />

Tomando o caso americano 13 , por contar ao mesmo tempo com<br />

diversas bases, com dados longitudinais e bastante completas com respeito<br />

a informações sobre características dos tratamentos (em alguns<br />

casos envolvendo aleatorizações dos grupos de controle e tratamento),<br />

as estimativas para impactos cognitivos da grande maioria das intervenções<br />

de desenvolvimento infantil mostram que ou o impacto é<br />

nulo, de magnitude ínfima (como no caso de daycare centers) ou o<br />

impacto é positivo e significativo em curto prazo e desaparece com o<br />

passar do tempo (ou seja, crianças que fazem provas logo depois de<br />

terem passado por intervenções obtêm desempenho superior às que<br />

não frequentaram o ensino infantil, mas tal diferença é nula quando<br />

ambos os grupos fazem exames já em idades mais avançadas e distantes<br />

do instante da intervenção).<br />

Magnusson et al. (2007) estimam que a frequência ao pre-kindergarten<br />

aos 4 anos tem impacto positivo nas notas obtidas no ano seguinte<br />

(kindergarten), mas já não encontram qualquer impacto nas<br />

notas da classe de alfabetização. Garces e Currie (2002) verificam que,<br />

entre egressos do Head Start, brancos e negros experimentam benefícios<br />

positivos (e de magnitude semelhante) nos primeiros anos do<br />

13 No Brasil, não há bases de dados que acompanhem crianças longitudinalmente,<br />

desde o momento em que poderiam ter frequentado o ensino infantil<br />

até idades em que pudessem estar matriculadas no ensino básico.<br />

64 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


ensino elementar, mas apenas entre os brancos esse efeito é ainda<br />

estatisticamente positivo ao final do segundo grau (e mesmo assim<br />

com magnitude bem inferior à obtida no início do ciclo educacional).<br />

Heckman (2008), conforme Figura 6, mostra que entre crianças vulneráveis<br />

sorteadas para frequentar o programa High Scope/Perry School<br />

se observam significativos ganhos cognitivos nos primeiros anos após a<br />

intervenção, mas aos 8 anos a magnitude desse impacto já é bastante<br />

pequena e desaparece após os 10 anos.<br />

Fonte: Heckman (2008).<br />

Figura 6<br />

Impacto cognitivo do programa High Scope/Perry School<br />

Se, por um lado, grande parte dos programas de ensino infantil tem<br />

impacto relativamente pequeno em longo prazo, por outro, há grande<br />

interesse em se saber a razão pela qual alguns programas revelam ter<br />

impactos persistentes e outros não. Tanto no caso dos brancos que<br />

frequentam o Head Start quanto no caso do programa Abecedarian<br />

(implementado na Carolina do Norte, conforme mostra a Figura 7),<br />

de características semelhantes ao Perry School, os impactos são ainda<br />

encontrados em idades tardias, contrariamente ao caso dos negros do<br />

Head Start ou dos egressos do próprio Perry.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

65


Fonte: Campbell et al., 2001.<br />

Figura 7<br />

Impacto cognitivo do programa Carolina Abecedarian<br />

Parte da resposta parece estar intimamente relacionada à duração<br />

da exposição de crianças vulneráveis a programas de alta qualidade.<br />

No caso do Abecedarian, o acompanhamento das crianças tratadas<br />

perdura até o final do primeiro ciclo do ensino básico, diferentemente<br />

do Perry, que teve dois anos de duração (começando entre 3 e 4 anos<br />

de idade). Pelo primeiro gráfico dos três expostos acima contendo medidas<br />

cognitivas do Abecedarian ao longo do ciclo de vida, vemos<br />

que de fato o efeito de curto prazo é significativamente maior que o<br />

percebido em longo prazo, mas, por outro lado, a magnitude do efeito<br />

estabiliza após os 6 anos e perdura até a idade adulta. De modo semelhante,<br />

Garces e Currie (2002) constatam que as escolas elementares<br />

que os brancos egressos do Head Start frequentaram após sair do pro-<br />

66 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


grama eram sensivelmente melhores do que as escolas frequentadas<br />

pelos negros, e que tal diferença pode explicar por que o impacto do<br />

programa entre os brancos persistiu até a idade adulta ao passo que<br />

entre os negros o mesmo não ocorreu.<br />

No que se refere às creches brasileiras, as conclusões dos estudos citados<br />

sugerem duas possibilidades para interpretar a ausência de impactos<br />

nas estimativas e que deveriam ser objeto de investigação futura. Em<br />

primeiro lugar, é possível que o impacto seja positivo mas efêmero, de<br />

modo que mesmo o estudo com menor distância entre o tratamento e a<br />

medição, que coleta informações na 2ª série do ensino fundamental de<br />

Sertãozinho (cerca de 4 anos após o tratamento), possa já não capturar<br />

a existência de efeitos estatisticamente significativos do programa.<br />

Em segundo lugar, as bases de dados brasileiras carecem de detalhes<br />

sobre as características das intervenções recebidas. De acordo com os<br />

resultados obtidos nos Estados Unidos, programas com maior conteúdo<br />

educacional tendem a ter impactos positivos ao passo que programas<br />

em que as crianças apenas são cuidadas apresentam impactos nulos<br />

ou negativos (como em Bernal, 2008). Além disso, as magnitudes dos<br />

efeitos computados parecem depender da assiduidade das crianças durante<br />

o período do programa e da exposição (tempo integral ou parcial),<br />

informações essas inexistentes em nossos dados. É possível, portanto,<br />

que o impacto nulo reportado nos estudos seja uma espécie de média<br />

ponderada de efeitos positivos de intervenções recebidas por algumas<br />

crianças e efeitos negativos de intervenções recebidas por outras. Nunca<br />

é demais lembrar que no Brasil o sistema de creches foi originalmente<br />

concebido para permitir que as mães pudessem trabalhar, sem que<br />

houvesse o explícito compromisso educacional trazido com a nova LDB<br />

de 1996. É razoável supor, portanto, que grande parte das creches brasileiras<br />

se assemelhe ao modelo dos daycare centers americanos, que<br />

em geral se mostra pouco efetivo para promover o desenvolvimento<br />

infantil, e que as transformações rumo a um direcionamento voltado<br />

ao ensino ainda não teriam se completado, fazendo com que o antigo<br />

modelo ainda perdure em parte importante das creches.<br />

Com a informação existente, é possível conjecturar algumas hipóteses,<br />

que deveriam ser objeto de investigação futura. O Gráfico 2<br />

mostra a diferença entre a nota de matemática do Saeb 2005 entre<br />

crianças que frequentaram e que não frequentaram creche, segundo<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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o nível educacional da mãe (tido aqui como proxy para a qualidade<br />

do ambiente familiar). Interessante notar que nas famílias com mães<br />

pouco educadas, crianças que fizeram creche obtiveram performance<br />

pior do que as que não fizeram, ao passo que o oposto ocorre entre as<br />

mães mais educadas. Há duas formas de analisar esse fato: a) estímulos<br />

recebidos na creche são complementares aos recebidos em casa,<br />

de modo que um mesmo estímulo teria impacto relativamente maior<br />

entre crianças que crescem em ambientes melhores, ou b) os estímulos<br />

recebidos na creche são efetivamente diferentes (e melhores para<br />

filhos de mães mais educadas). Se considerarmos que grande parte da<br />

evidência internacional mostra que são justamente as crianças de famílias<br />

mais vulneráveis as que mais se beneficiam do ensino infantil 14 ,<br />

é improvável que a explicação para o fato apresentado neste gráfico<br />

seja a primeira, sugerindo que heterogeneidade de tratamentos pode<br />

ser um elemento importante omitido das análises disponíveis.<br />

Gráfico 2<br />

Diferencial de notas de matemática entre crianças que fizeram e<br />

não fizeram creche, segundo o nível educacional da mãe<br />

Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), 2005.<br />

14 Ver artigos de Lee et al. (1990), Magnusson et al. (2007) e os trabalhos de<br />

Janet Currie e coautores (1995; 1999; 2000; 2002), além do capítulo em<br />

coautoria com Garces no Handbook of Economics of Education v. 2.<br />

68 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


Os dados do Saeb e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios<br />

(PNAD) trazem informações adicionais que podem confirmar<br />

que, no Brasil, as creches que os filhos das famílias abastadas frequentam<br />

podem ter impacto bastante distinto das disponíveis às<br />

famílias vulneráveis. Voltando à Tabela 1, percebe-se que há grande<br />

desigualdade na proporção de crianças de 0 a 3 anos matriculadas<br />

em creches, refletindo o fato de que os ricos têm maior probabilidade<br />

de ter seus filhos matriculados do que os pobres 15 . A desigualdade<br />

cai drasticamente quando o indicador de acesso a creches<br />

considera sem acesso somente casos em que os pais gostariam de<br />

inscrever seus filhos, mas não o fizeram por falta de recursos ou<br />

de oferta de creches. Consequentemente, pode-se deduzir que a<br />

maior parte da desigualdade de matrícula resulta do fato de que<br />

famílias pobres voluntariamente decidem não matricular seus filhos<br />

em creches, mesmo quando essa decisão não envolve gastos diretos.<br />

Se o custo deixa de ser empecilho para diferentes famílias, podemos<br />

inferir que diferenças sistemáticas nas decisões de matrícula<br />

devem estar associadas a diferenças nos benefícios, ou seja, no fato<br />

de que as creches a que as famílias pobres têm acesso são relativamente<br />

piores do que as das famílias ricas.<br />

A Figura 8, extraída do mesmo estudo, acrescenta dados a essa suspeita<br />

ao verificar que justamente entre as famílias mais pobres aumenta<br />

a proporção de crianças não matriculadas em creches, sendo razão<br />

para a não inscrição a decisão voluntaria dos pais 16 .<br />

15 Em gráficos complementares, os autores verificam que a proporção de<br />

crianças matriculadas nessa faixa etária cresce com a renda familiar per<br />

capita.<br />

16 Essa explicação é ainda coerente com resultados obtidos por Jacob e<br />

Lefgren (2005). Investigando a importância que dois tipos de informação<br />

transmitidos pelos diretores aos pais na hora de tomarem a decisão de em<br />

que escola infantil matricular seus filhos, os autores concluem que as famílias<br />

mais pobres são as que dão mais peso à resposta “os professores são<br />

comprometidos com a melhora de resultados cognitivos dos alunos”, ao<br />

passo que as mais ricas valorizam mais o fato de os alunos estarem satisfeitos<br />

com a escola.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

69


Proporção de crianças<br />

Figura 8<br />

Proporção de pais que voluntariamente não colocam os filhos na creche<br />

Distribuição de crianças que poderiam ter frequentado creche mas os pais preferiram não<br />

fazê-lo, segundo o centésimo de renda per capita – Crianças entre 0 e 3 anos de idade – 2006<br />

Fonte: Foguel e Veloso, 2010.<br />

Centésimos de renda per capita<br />

se igualmente distribuído<br />

IMPACTOS COGNITIVOS E NÃO COGNITIVOS<br />

Finalmente, um quarto aspecto referente à validade externa das estimativas<br />

está relacionado a outras dimensões de impacto que possam<br />

decorrer da frequência ao ensino infantil não capturadas pelas medidas<br />

correntemente utilizadas (tais como notas de linguagem e matemática,<br />

salários e escolaridade atingida, entre outras). O fato de que<br />

creches não tenham impacto sobre medidas cognitivas não implica<br />

que não possam afetar de modo importante dimensões não cognitivas<br />

do desenvolvimento humano.<br />

Aqui novamente a literatura internacional mostra que pode haver<br />

diferenças importantes de impacto entre programas com diferentes<br />

finalidades. Magnusson et al. (2007), por exemplo, estimam que crianças<br />

matriculadas na escola antes do kindergarten (classe de alfabetização,<br />

5 e 6 anos) sofreram piora em indicadores de agressividade e<br />

autocontrole durante o kindergarten, especialmente quando provenientes<br />

de famílias desestruturadas e em situação de vulnerabilidade.<br />

Os autores também observam que esses efeitos adversos não se manifestam<br />

entre crianças que não precisaram mudar de escola quando<br />

entraram no kindergarten, sugerindo que o canal de causalidade pode<br />

estar na necessidade de mudança de escola e não nas atividades reali-<br />

70 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


zadas nas creches e pre-kindergartens per si. De todo modo, se as características<br />

do sistema educacional forçarem a mudança de ambiente<br />

na passagem da creche para a pré-escola, este deve ser um revés a<br />

mais a ser computado. No estudo, os impactos de creches (daycare<br />

centers e pre-kindergarten centers) não desaparecem ao longo dos<br />

dois primeiros anos do ensino fundamental, ao contrário dos impactos<br />

sobre notas de matemática e linguagem. Duncan et al. (2004), contudo,<br />

ressaltam que tais impactos não cognitivos adversos não afetam o<br />

desempenho escolar das crianças ao longo do ensino básico.<br />

Outros estudos que utilizam intervenções aleatorizadas e acompanham<br />

os indivíduos até a vida adulta 17 mostram conclusões bastante<br />

distintas a respeito de efeitos não cognitivos de programas de ensino<br />

infantil (tais como o High Scope/Perry Program, Carolina Abecedarian<br />

e Chicago CPC). Nesses estudos, é documentado que as crianças<br />

beneficiárias apresentaram indicadores de criminalidade substancialmente<br />

menores que os não beneficiários, bem como casamentos mais<br />

estáveis e menor probabilidade de gravidez precoce. Essas medidas<br />

diferem das anteriores porque: a) nesses programas (de elevado conteúdo<br />

educacional e atenção individualizada às crianças) não houve<br />

mudança de escola; b) a estratégia de identificação do efeito envolve<br />

um experimento aleatório; c) as medidas de impacto não cognitivo<br />

foram realizadas já na idade adulta. A mensagem principal é a de que<br />

o ensino infantil pode ter efeitos importantes e duradouros sobre dimensões<br />

não cognitivas do desenvolvimento, que podem inclusive superar<br />

os impactos cognitivos em termos de suas consequências sobre<br />

bem-estar futuro (CUNHA et al., 2006). Avaliações de custo-benefício<br />

de programas de ensino infantil estão, portanto, incompletas se não<br />

considerarem eventuais benefícios e danos causados pelos mesmos.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS<br />

O QUE TEMOS<br />

Há, grosso modo, três maneiras de interpretar a inexistência de indícios<br />

de que creches tenham impactos sobre resultados futuros dos indi-<br />

17 Heckman (2008), Doyle et al. (2007) e Barnett (2008) resumem evidências<br />

sobre essas intervenções.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

71


víduos. A primeira é o questionamento da qualidade e correção dessas<br />

estimativas, quer por deficiências metodológicas, quer por dificuldades<br />

de mensuração. Os contrapontos a essa interpretação são os de que: a)<br />

os estudos têm sido realizados com diferentes metodologias e bases de<br />

dados, e chegam às mesmas conclusões. Há bases de dados que buscam<br />

especialmente corrigir problemas de mensuração (FELÍCIO et al., 2009),<br />

bem como há iniciativas de incrementar os estudos com informações<br />

adicionais que possam simular condições experimentais por meio de<br />

métodos de variáveis instrumentais e os resultados parecem bastante robustos;<br />

b) as estimativas para a pré-escola estão também em acordo com<br />

as obtidas em outros países (EUA, Argentina), ao passo que o impacto das<br />

creches não destoa do resto do mundo pela simples razão de que nessa<br />

idade a evidência é pouco conclusiva sobre os benefícios do ensino infantil.<br />

De todo modo, é difícil crer que os impactos da pré-escola possam<br />

estar corretos e os de creches não quando as estratégias empíricas usadas<br />

para estimá-los costumam ser a mesma em cada estudo.<br />

A segunda interpretação é a de que o impacto é de fato nulo, o<br />

que significa que os maiores beneficiados pelo serviço oferecido pelas<br />

creches são os pais, que com isso podem aumentar sua oferta de<br />

trabalho. Considerando que crianças em creches públicas custam não<br />

menos que R$300 mensais ao erário, é plausível supor que o custo-<br />

-benefício desse tipo de intervenção seja negativo, pois dificilmente o<br />

incremento na oferta de trabalho dos pais levaria a um aumento de<br />

renda familiar dessa magnitude. Nesse caso, uma política que simplesmente<br />

pagasse R$300 para que um dos pais ficasse em casa tomando<br />

conta do filho provavelmente tornaria a vida de todos melhor.<br />

A dificuldade com esse tipo de argumento é que, para ser válido,<br />

seria necessário que fossem calculados todos os possíveis impactos da<br />

creche sobre resultados futuros e não apenas impactos sobre uma dimensão<br />

específica, como o aprendizado de matemática ou de linguagem.<br />

Frequentar creche ou pré-escola afeta potencialmente múltiplas<br />

dimensões da formação do capital humano e, muitas vezes, conseguimos<br />

estimar seu impacto apenas sobre um conjunto restrito de indicadores.<br />

Em particular, medidas de resultados cognitivos dos indivíduos<br />

são relativamente mais frequentes nas bases de dados disponíveis que<br />

indicadores não cognitivos, ao passo que quando é possível medir<br />

o impacto desse tipo de intervenção sobre estes últimos, frequente-<br />

72 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


mente obtém-se resultados mais importantes que sobre os primeiros.<br />

Uma análise que desconsidere dimensões importantes de impacto tais<br />

como empregabilidade e salários, escolaridade atingida, criminalidade,<br />

propensão à gravidez na adolescência, entre outros, corre o risco<br />

de subestimar os benefícios da intervenção.<br />

O exemplo do Head Start ilustra bem esse ponto. No mesmo texto<br />

em que Garces e Currie (2002) detectam que os ganhos cognitivos<br />

dos brancos tratados pelo Head Start perduram, ao passo que o mesmo<br />

não ocorre com os negros, há evidência de significativo impacto<br />

entre os negros em termos de redução de criminalidade, medida pela<br />

probabilidade de encarceramento antes dos 30 anos de idade. Em<br />

outro trabalho, Lee et al. (1990) comparam o Head Start com outras<br />

formas de pré-escola nos Estados Unidos e verificam que: a) ambas<br />

trazem benefícios de curto prazo às crianças se comparadas a crianças<br />

que não tiveram acesso a qualquer tipo de pré-escola e b) o tipo de<br />

pré-escola (Head Start versus outros) com maiores benefícios depende<br />

essencialmente da medida de resultado utilizada (ver Figura 9).<br />

Figura 9<br />

Impacto do programa Head Start sobre diferentes dimensões de desenvolvimento<br />

Tamanho do efeito em desvios-padrão<br />

0.4<br />

0.3<br />

0.2<br />

0.1<br />

0.0<br />

-0.1<br />

-0.2<br />

Raciocínio<br />

perceptual<br />

Fonte: Lee et al., 1990.<br />

A B C D E<br />

Desempenho<br />

verbal<br />

A Figuras embutidas B Matrizes de Raven C Teste verbal<br />

D Escala de competência social E Inventório de Schaefer<br />

Competência<br />

social<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

Head Start versus outras<br />

intervenções pré-escolares<br />

Head Start versus “sem<br />

experiências pré-escolares”<br />

Efeitos ajustados de participação no (programa pré-escolar) Head Start sobre o desempenho no kindergarten e na<br />

primeira série do ensino fundamental<br />

73


Em outro estudo, Barnett (2004) mostra que se, por um lado, o diferencial<br />

de QI entre tratados e não tratados pelo programa High Scope/<br />

Perry School desaparece quando as crianças completam cerca de 14<br />

anos, por outro, diferenças importantes continuam a ser estimadas até<br />

os 40 anos de idade em dimensões como salários, probabilidade de<br />

possuir casa própria, necessidade de transferências governamentais<br />

e probabilidade de encarceramento. O autor conclui, ainda, que o<br />

programa Abecedarian reduziu a probabilidade de ser fumante quando<br />

adulto, aumentou as chances de estar matriculado na faculdade<br />

ou ter emprego qualificado aos 21 anos, melhorou o desempenho<br />

educacional (reduziu repetência e necessidade de educação especial<br />

e aumentou as chances de completar o segundo e o terceiro graus).<br />

Resultados similares no que diz respeito ao desempenho educacional<br />

e criminalidade são também obtidos nesse artigo para o Chicago<br />

Child-Parent Centers, programa compensatório de larga escala mantido<br />

pela municipalidade de Chicago.<br />

Em recente e detalhado estudo sobre o High Scope/Perry School,<br />

Heckman et al. (2010) estimam que, do total de US$153 mil em benefícios<br />

para a sociedade por indivíduo tratado pelo programa 18 (medidos<br />

em dólares de 2006), cerca de metade (78 mil) resulta de maiores<br />

salários recebidos pelos indivíduos (o ganho salarial sendo três vezes<br />

maior para as mulheres do que para os homens); pouco menos da metade<br />

(67 mil) de economias com criminalidade (especialmente entre<br />

os homens), e o restante de economias com os gastos públicos com<br />

educação (devido à menor repetência) e transferências de renda. Se<br />

considerarmos que dos ganhos salariais ao menos metade resulta de<br />

melhoras em habilidades não cognitivas, temos que parcela significativa<br />

dos eventuais benefícios de uma intervenção na primeira infância<br />

ocorre por canais não cognitivos, e sua mensuração é vital para um<br />

julgamento mais fidedigno do custo-benefício de realizá-la.<br />

A terceira leitura é a de que o resultado médio nulo obtido pelas<br />

investigações resulta de uma combinação de resultados positivos que<br />

o ensino infantil teve sobre algumas crianças com resultados negativos<br />

que teve sobre outras. A insuficiência de informação sobre a qualida-<br />

18 O custo por tratado foi de US$ 17,7 mil, resultando em taxa de retorno de<br />

8,6 %.<br />

74 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


de e intensidade do ensino efetivamente oferecido em cada escola<br />

infantil não permite avaliar com profundidade essa interpretação, mas<br />

a evidência obtida em países em que dados mais detalhados estão<br />

disponíveis a coloca como uma possibilidade concreta.<br />

Nos Estados Unidos, país com maior riqueza de informações sobre<br />

programas de ensino infantil, detecta-se significativa heterogeneidade<br />

nos impactos medidos. Programas com elevado conteúdo educacional,<br />

como alguns pre-kindergartens estaduais e intervenções-modelo<br />

(Perry, Abecedarian, CPC), causam sensível melhora, tanto cognitiva<br />

quanto não cognitiva, ao passo que crianças enviadas a daycare centers<br />

e instituições onde a criança é pouco estimulada não raro apresentam<br />

desenvolvimento inferior às criadas em tempo integral pelos<br />

pais e parentes. Heterogeneidade importante também é verificada<br />

com respeito à duração dos impactos medidos. Apesar de ser isto,<br />

ainda, objeto de intenso debate, a maioria dos resultados sugere que<br />

grande parte da durabilidade está associada à persistência da exposição<br />

da criança ao tratamento. Os benefícios de uma boa escola tendem<br />

a desaparecer com o tempo se em níveis subsequentes a criança<br />

for matriculada em escola de qualidade inferior, fazendo com que<br />

programas com maior duração ou seguidos de outros programas de<br />

qualidade aceitável apresentem com maior probabilidade resultados<br />

positivos a longo prazo.<br />

No Brasil, algumas estatísticas descritivas apontam em direção parecida.<br />

Em primeiro lugar, vimos que entre crianças com mães pouco<br />

educadas, as que frequentaram creches têm desempenho educacional<br />

inferior às que não frequentaram, ao passo que entre os filhos de mães<br />

mais escolarizadas acontece o oposto. Como a maioria das estimativas<br />

do impacto de um tipo específico de ensino infantil disponível mostra<br />

que, ceteris paribus, são as crianças de famílias mais vulneráveis as que<br />

mais se beneficiam, o resultado acima sugere que as crianças estão<br />

de fato recebendo tratamentos distintos. Em segundo lugar, quando<br />

selecionamos apenas as famílias que reportaram que a razão para que<br />

seus filhos não estejam matriculados na creche não é insuficiência de<br />

recursos (quer porque disponham de recursos próprios, quer porque<br />

tenham acesso a vagas em creches gratuitas), observamos que a frequência<br />

com que os pais respondem que simplesmente não querem<br />

matricular a criança é decrescente com a renda familiar per capita.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

75


Uma possível explicação para isso é de novo a hipótese de que as<br />

creches a que os pobres têm acesso não são da mesma qualidade das<br />

dos ricos, fazendo com que, dadas as opções existentes, prefiram criar<br />

seus filhos em casa.<br />

Caso os impactos sejam efetivamente heterogêneos, o desafio é replicar<br />

os casos bem-sucedidos, e fazer com que se generalizem. Um<br />

primeiro passo nessa direção é identificar e estudar quais são os programas<br />

bem-sucedidos e suas características, e isso deveria ser prioridade,<br />

tanto porque, se não houver tal heterogeneidade e o impacto<br />

for efetivamente nulo, uma mudança na prioridade da expansão da<br />

rede de creches deveria ser considerada, quanto porque, caso a explicação<br />

esteja vinculada à heterogeneidade de impactos, torna-se<br />

urgente oferecer aos menos favorecidos serviços com qualidade compatível<br />

à recebida pelos mais ricos.<br />

O QUE QUEREMOS<br />

A partir de um diagnóstico preciso a respeito das razões para que<br />

até hoje não tenham sido detectados impactos importantes de fre -<br />

quência a creches sobre resultados futuros, é possível saber se há,<br />

dentre as experiências já testadas no Brasil, algumas que funcionem<br />

melhor que outras, e que devem servir de modelo para as creches que<br />

temos. Uma primeira questão relevante, portanto, é saber como usar<br />

da melhor maneira possível os recursos que atualmente já são gastos<br />

com o sistema e em que medida os casos bem-sucedidos devem ser<br />

expandidos para que atinjam seu público-alvo.<br />

Uma segunda questão relevante é saber se há espaço para outros<br />

tipos de intervenção educacional, diferentes do modelo de creches,<br />

que devessem ser implementados, ou oferecer serviços distintos a<br />

crianças que partem de condições iniciais diferentes. Ainda que seja<br />

factível, a partir das respostas dadas à questão anterior, aprimorar<br />

nossas creches de modo a que produzam o maior benefício possível,<br />

resta a dúvida de que seja ou não conveniente fazer investimentos<br />

adicionais e complementares para crianças que vivem em ambientes<br />

familiares vulneráveis ou que apresentam defasagens de desenvolvimento<br />

diagnosticadas. Como foi dito, uma creche que mire seu<br />

foco em uma criança com desenvolvimento regular não necessariamente<br />

produzirá o efeito esperado sobre uma criança defasada,<br />

76 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


nem conseguirá reduzir a distância com respeito aos colegas que não<br />

apresentam atraso. De um modo geral, todas as crianças parecem se<br />

beneficiar de atendimento extrafamiliar com conteúdo educacional,<br />

mas é possível que algumas precisem de incentivos adicionais para<br />

alcançar as outras.<br />

A literatura internacional mostra que intervenções bem-sucedidas<br />

destinadas a recuperar o atraso no desenvolvimento de crianças que<br />

vivem em famílias vulneráveis são relativamente caras e exigem cuidados<br />

especiais, talvez porque nesses casos a escola tenha que cumprir<br />

seu papel natural de dar estímulos que em geral as crianças não<br />

recebem em casa e, ao mesmo tempo, compensar as deficiências de<br />

atenção e estímulo da própria família. Dada a importância central<br />

que o ambiente familiar tem sobre o desenvolvimento nas primeiras<br />

fases da vida, é possível que uma escola que seja apenas escola de<br />

fato não faça diferença fundamental na vida de crianças de famílias<br />

desestruturadas, e investimentos maiores deveriam ser considerados.<br />

Doyle, Harmon, Heckman e Tremblay (2007) resumem em cinco<br />

as características de intervenções compensatórias bem-sucedidas ao<br />

redor do mundo:<br />

a) Dosagem: programas que oferecem maiores montantes de intervenção<br />

produzem maiores benefícios;<br />

b) Timing: programas que começam em idades mais tenras e se estendem<br />

por mais tempo produzem benefícios maiores e mais duradouros;<br />

c) Recebimento direto da intervenção: programas que alteram diretamente<br />

a rotina das crianças (por exemplo, ir à escola) produzem<br />

efeitos maiores e mais duradouros que programas que tentam influenciar<br />

os pais na esperança de que criem melhor seus filhos;<br />

d) Benefícios diferenciados: algumas crianças se beneficiam mais<br />

que outras de uma mesma intervenção. As diferenças estão relacionadas<br />

ao tipo de vulnerabilidade inicial delas e ao grau com<br />

que o programa é desenhado para lidar com aquele tipo específico<br />

de vulnerabilidade;<br />

e) Continuidade do suporte: efeitos positivos iniciais tendem a desaparecer<br />

se não houver posterior suporte adequado para manter<br />

tais benefícios.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

77


A essas características, pode-se acrescentar que o envolvimento familiar<br />

com a escola potencializa os benefícios de uma intervenção<br />

educacional. A maioria dos programas relativamente bem-sucedidos<br />

como High Scope/Perry School, Carolina Abecedarian, Chicago CPC<br />

e Head Start, apenas para citar alguns, continham (ou contêm) algum<br />

tipo de acompanhamento direto com as famílias, quer na forma de<br />

visitas periódicas de educadores, médicos, nutricionistas e assistentes<br />

sociais para monitorar o desenvolvimento das crianças e orientar os<br />

pais em como criar seus filhos, quer solicitando a presença simultânea<br />

de pais e filhos para atividades conjuntas na escola.<br />

Finalmente, análises de custo-benefício das melhores intervenções<br />

apontam para taxas de retorno ao investimento realizado bastante<br />

atrativas, apesar do elevado custo inicial. Além disso, essas taxas<br />

parecem ser especialmente altas para crianças sob risco de vulnerabilidade,<br />

sugerindo que se deva tratar desigualmente aos desiguais,<br />

disponibilizando aos menos favorecidos condições para que eventuais<br />

carências de estímulos familiares sejam compensadas por cuidados e<br />

estímulos recebidos na escola. A prudência recomenda, contudo, que<br />

intervenções inovadoras e caras devam sempre ser implementadas em<br />

pequena escala, inicialmente, e avaliadas antes que possam ser replicadas<br />

em larga escala. Intervenções-modelo como o Perry School ou<br />

o Abecedarian são expostas a críticas válidas de que ao menos um<br />

dos insumos utilizados em sua confecção não é facilmente contabilizável<br />

em termos de custos ou mesmo replicável (a que preço for):<br />

a dedicação e o compromisso dos educadores que as construíram e<br />

mantiveram de modo abnegado. Na impossibilidade de se replicar<br />

em larga escala tais intervenções, avaliações constantes e rigorosas<br />

são necessárias para selecionar os aspectos positivos que possam ser<br />

aproveitados em redes públicas, mas governos certamente deveriam<br />

estimular que tais experiências em pequena escala surgissem como<br />

forma de se apreender características que realmente importam no desenvolvimento<br />

infantil.<br />

78 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


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82 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


ANEXO 1<br />

BASES DE DADOS BRASILEIRAS USADAS PARA<br />

INVESTIGAR IMPACTOS DO ENSINO INFANTIL<br />

Os estudos de impacto de ensino infantil sobre resultados futuros<br />

realizados no Brasil (e sumarizados na Tabela 2) utilizam essencialmente<br />

três fontes de dados:<br />

a) Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV), baseada em entrevistas a<br />

cerca de 5 mil domicílios realizadas nas regiões Sudeste e Nordeste<br />

do Brasil, entre março de 1996 e março de 1997. As variáveis<br />

de maior interesse para a estimativa de impacto do ensino infantil<br />

são perguntas retrospectivas dicotômicas sobre se indivíduos frequentarem<br />

ou não cada nível de ensino separadamente, e por<br />

quanto tempo. A pesquisa é particularmente rica em informações<br />

socioeconômicas dos indivíduos, incluindo características educacionais,<br />

do trabalho, de casamento e fecundidade, de consumo e<br />

renda. Dessa forma, é possível associar medidas de bem-estar de<br />

pessoas adultas em 1996/97 com características passadas de acesso<br />

ao ensino infantil. As desvantagens são: a cobertura limitada<br />

(apenas duas regiões do país), fazendo com que conclusões obtidas<br />

dessa amostra não necessariamente possam ser generalizadas<br />

para o restante do país; a ausência de informações detalhadas<br />

sobre a qualidade das escolas que os indivíduos frequentaram; e<br />

a antiguidade, pois além de ter já 13 anos de existência, adultos<br />

que em 1996 reportaram ter frequentado o ensino infantil o fizeram<br />

antes dos anos 80, quando tanto a abrangência da população<br />

coberta por esse tipo de serviço era menor, quanto as características<br />

dos programas desse tipo eram significativamente distintas<br />

das atuais.<br />

b) Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e da<br />

Prova Brasil, base de dados bienal composta por quatro fontes<br />

de informação: provas de português e matemática aplicadas a<br />

cerca de 24 mil estudantes que estejam concluindo o primeiro<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

83


e o segundo ciclos do ensino fundamental (atualmente 5ª e 9ª<br />

séries), e o ensino médio (3º ano); entrevistas com os diretores<br />

das escolas a que esses estudantes pertencem; entrevistas com<br />

os professores das turmas desses estudantes; e questionários preenchidos<br />

pelos próprios estudantes com informações a respeito<br />

de si e de suas famílias. Em geral, os estudos baseados no Saeb<br />

tomam os resultados das provas como medida de resultado e a<br />

resposta dos estudantes sobre o primeiro nível educacional que<br />

frequentaram como variável de interesse. As principais vantagens<br />

da pesquisa são a existência de informações sobre qualidade das<br />

escolas e das turmas que os alunos atualmente frequentam (que<br />

pode aproximar a qualidade da escola que habitualmente vêm<br />

frequentando desde a primeira vez que foram matriculados) e as<br />

próprias notas dos testes, que em geral são tomadas como medida<br />

razoavelmente fiel do estágio de desenvolvimento cognitivo<br />

dos alunos. Dentre as desvantagens estão a ausência de informações<br />

detalhadas sobre a família (em particular não se sabe a renda<br />

e detalhes da composição de irmãos) e o questionamento sobre<br />

a acurácia das informações reportadas pelos estudantes, tanto a<br />

respeito de características de seus pais quanto sobre o primeiro<br />

nível educacional que frequentaram (principalmente entre os alunos<br />

que ainda estão completando o primeiro ciclo do fundamental).<br />

Adicionalmente, para nossos propósitos, é ruim o fato de que<br />

a pergunta sobre frequência ao ensino infantil seja feita de modo<br />

a que os estudantes apenas tenham que responder quando foram<br />

pela primeira vez à escola, sendo admissíveis as respostas “maternal”<br />

(creche), “pré-escola”, “primeira série” (do fundamental),<br />

e “depois da primeira série”. Essa estrutura não permite saber<br />

dos estudantes que responderam “maternal”, se também fizeram<br />

“pré-escola” ou não. Por esse motivo, o impacto líquido da creche/maternal<br />

é calculado supondo que todos os alunos que entraram<br />

nesse nível permaneceram na escola durante a pré-escola.<br />

c) Um estudo recente (FELÍCIO et al., 2009) inova ao utilizar dados<br />

de uma pesquisa de campo própria, coletada no município de<br />

Sertãozinho (SP) em maio de 2008, composta por uma aplicação<br />

da Provinha Brasil a crianças de segunda série de todas as escolas<br />

84 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011


do município, questionários com os pais dos alunos, professores<br />

e diretores. A base de dados procura corrigir a suspeita existente<br />

sobre a qualidade das respostas dos alunos nas bases do Saeb/<br />

Prova Brasil ao perguntar diretamente aos pais sobre características<br />

da família e sobre o acesso de seus filhos ao ensino infantil.<br />

Além disso, pergunta detalhadamente aos pais se em cada ano de<br />

vida da criança ela esteve inscrita em alguma escola, permitindo<br />

detectar casos de crianças que frequentaram creche mas não pré-<br />

-escola, e também saber por quanto tempo as crianças estiveram<br />

em cada nível de ensino. Finalmente, trata-se da base de dados<br />

em que o público-alvo frequentou o ensino infantil mais recentemente<br />

(para estar na 2ª série do fundamental em 2008, as crianças<br />

precisariam ter nascido em torno de 2001 e ter frequentado<br />

o ensino infantil entre 2002 e 2006). A desvantagem mais óbvia<br />

é a limitação da cobertura geográfica, pois Sertãozinho é um município<br />

particularmente rico para padrões brasileiros e conta com<br />

uma das redes de ensino público mais bem estruturadas do país.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 38-85 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

85


CRIATIVIDADE<br />

Marsyl Bulkool Mettrau<br />

86 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011


Este artigo tem a intenção de apresentar algumas concepções de criatividade<br />

e de processo criativo e objetiva descrever as mais importantes perspectivas<br />

nessas áreas. De acordo com a literatura, uma definição e uma interpretação<br />

do conceito de criatividade poderiam considerar várias dimensões: áreas de<br />

expressão, graus, níveis de motivação, relevância social e o contexto dentro do<br />

qual está organizado o processo criativo. Esse processo apresenta um largo espectro<br />

de características e performances, sendo organizado em uma sequência<br />

de fases importantes para o objetivo da explicação, para o desenvolvimento e<br />

a descrição dos grupos criativos. O artigo aborda também temas como insight,<br />

talento e inteligência humana, criatividade individual e grupal. Finalmente, descreve<br />

o pensamento lógico, criativo e também a flexibilidade.<br />

Palavras-chave: criatividade, processo criativo, inteligência<br />

This article intends to present some conceptions of creativity and the creative<br />

process and aims to describe the most important perspectives in these areas.<br />

Several notions emerge when creativity and the creative process are concerned.<br />

According to the literature, we can see that a definition and an interpretation of<br />

the creative concept should consider the following dimensions: expression areas,<br />

degrees, motivation levels, social relevance, and the context within which<br />

the creative process is organized. This process embraces a wide range of features<br />

and performances, organized in a sequence of phases, which are important<br />

for the purpose of explanation, for the development, and for the description<br />

of the creative groups. Furthermore, the article also approaches issues such as<br />

insight, human talent and intelligence, and individual and collective creativity.<br />

Finally, it describes the logical, creative thinking and also the flexibility.<br />

Keywords: creativity, creative process, intelligence<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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INTRODUÇÃO<br />

A história intelectual do conceito de criatividade nos remete ao século<br />

XVIII, quando surgiram os debates sobre o gênio criativo e seus<br />

fundamentos. Já Duff (1967, apud LUBART, 2007) diferenciou gênio<br />

criativo e talento, considerando o talento um nível de performance<br />

superior, mas que não necessariamente apresentaria um pensamento<br />

original. De acordo com essa ideia, que se desenvolveu progressivamente,<br />

a criatividade seria uma forma excepcional de genialidade,<br />

diferente do talento, determinada por fatores genéticos e condições<br />

ambientais (ALBERT e RUNCO, 1999 apud LUBART, 2007).<br />

No decorrer do século XIX, alguns autores sustentaram a ideia de<br />

que gênio criativo seria aquele que apresentasse a criatividade a partir<br />

de um nível excepcional de originalidade, que dependeria da capacidade<br />

de associar ideias.<br />

O início do século XX trouxe novas contribuições ao conceito de<br />

criatividade. Binet realizou estudos de caso baseados na criação literária,<br />

sustentando que o pensamento criativo teria associação com parte<br />

da inteligência. Freud referiu-se à criatividade como resultado de uma<br />

tensão entre realidade consciente e pulsões inconscientes, sugerindo<br />

que os artistas e os escritores criam para expressar seus desejos inconscientes<br />

através de meios culturalmente aceitáveis.<br />

Essa tensão criativa refere-se também a uma superposição do objetivo<br />

pessoal, individual (o que queremos) com a clareza da análise da realidade<br />

(onde estamos). É necessária uma força para unir um e outro, a qual<br />

corresponderia à tensão na busca de nova resolução. Esse processo, uma<br />

vez em andamento, gera um tipo de aprendizado que não significa apenas<br />

a aquisição de mais informação, mas sim a ampliação da capacidade<br />

de produzir os resultados que desejamos. Sua duração é longa, pois se<br />

trata de um aprendizado produtivo que dura a vida inteira.<br />

Também Ribot (1900) abordou o papel da inteligência, da emoção<br />

e do inconsciente no pensamento criativo (LUBART, 2007). O interesse<br />

pela criatividade como agente de crescimento econômico social é<br />

constante. Indica-o, por exemplo, o livro de . P. Guilford, Creativity,<br />

de 1950, considerado um precursor do tema.<br />

O fato histórico do Sputinik, o primeiro satélite artificial da história,<br />

lançado ao espaço pela União Soviética em 4 de outubro de 1957,<br />

88 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011


deu origem à disputa espacial com os EUA, e foi, de certo modo, outro<br />

detonador de interesse no assunto, pois acelerou a pesquisa científica<br />

no campo. Foram iniciados novos programas de estudo dedicados ao<br />

tema da criatividade, destinando-se grandes quantias de dinheiro para<br />

o financiamento de pesquisas na área, além da organização de simpósios<br />

interdisciplinares impulsionados pela Michigan State University.<br />

Desses estudos resultaram, entre outros, os ensaios reunidos por<br />

Anderson e publicados em 1995 sob o título Creativity and its Cultivation.<br />

Seguiram-se novas publicações e textos coletivos envolvendo de<br />

Anderson a Erich Fromn, de Guilford a Hilgard, de Maslow a Margareth<br />

Mead e de Roger a Sennet. A criatividade tornou-se um objeto de estudo<br />

científico, específico e interdisciplinar, e a sociedade pós-industrial<br />

se nos apresenta como um sistema programado e criativo, tendo<br />

como centro a invenção, a cientificidade, os valores, os símbolos e a<br />

estética (DE MASI, 2003).<br />

As consequências e repercussões dos estudos voltados mais especificamente<br />

para a criatividade têm sido intensas e temos uma expressão<br />

de Einstein que bem o demonstra: “Quando observo a mim mesmo e<br />

os meus métodos de pensamento, chego à conclusão de que o dom<br />

da imaginação foi mais importante para mim do que a minha capacidade<br />

de assimilar conhecimentos”. Ainda nessa perspectiva, temos<br />

Niemeyer: “Na arquitetura, a intuição desempenha um papel tão importante<br />

quanto o conhecimento... A imaginação e a espontaneidade<br />

são para mim as fontes da arquitetura” (DE MASI, 2003, p. 567).<br />

1 PROCESSO CRIATIVO E CRIATIVIDADE<br />

Já em 1953, Osborn descreveu o processo criativo como um processo<br />

que envolve sete etapas: orientação, preparação, análise, criação,<br />

incubação, nova síntese e avaliação. Anziem descreveu outras características<br />

do processo criativo no século XX: a saisissement (surpresa),<br />

como a tomada de consciência do problema a resolver; a estruturação<br />

do código que rege o tipo de conhecimento implícito em um determinado<br />

processo criativo; a composição e a realização da ideia; o<br />

licenciamento e o dissabor (sensação causada pela frustração de uma<br />

expectativa). Finalmente, é De Masi quem resume: a criatividade foi<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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considerada como capacidade de construir e destruir; de revelar segredos;<br />

de ver antes dos outros e de fazer ver aos outros; de apresentar<br />

originalidade marcada pela avaliação social; de ser pesquisa como<br />

forma regida por um pensamento dotado de originalidade, unidade e<br />

qualidade rara de ser; conquista de alto grau de subjetividade na arte,<br />

de alto grau de objetividade na ciência; de usar um modo para liberar-<br />

-se das escolhas habituais e obrigatórias; de ser conquista capaz de enriquecer<br />

não apenas os aspectos criativos, mas todo o gênero humano;<br />

de ser um método diferente do pensamento comum, capaz de chegar<br />

a resultados que o pensamento comum poderá entender, aceitar e<br />

apreciar somente num segundo momento (DE MASI, 2003).<br />

Criatividade é uma palavra forte, um conceito complexo e um tema<br />

da atualidade, sobre o qual muitos falam mas poucos entendem, pois<br />

se refere a cada nova forma de dizer, fazer, pensar ou construir qualquer<br />

coisa, ideia ou produto.<br />

É necessário ter muito conhecimento sobre o tema para afirmar que<br />

o “potencial criador é inerente ao ser humano”, como o faz Ostrower<br />

(1989, p. 9). Penso também que a criatividade é uma dimensão da<br />

inteligência, pois lida com algumas das muitas categorias ou elementos<br />

que compõem nossa inteligência, como a memória, a ordenação, a<br />

intuição, a percepção etc., necessários e participantes na criatividade,<br />

no processo criativo e na inteligência humana.<br />

Vale ressaltar ainda que o tema da criatividade vem, nos últimos<br />

anos, recebendo atenção ampliada, relacionado a questões de outras<br />

áreas, como educação, psicologia e até mesmo na área empresarial,<br />

devido à interdisciplinaridade do assunto e à crescente e visível necessidade<br />

de novas soluções e novas respostas para a humanidade continuar<br />

seu caminho, o caminho da busca incessante de novas transformações<br />

necessárias para o crescimento e evolução da vida humana.<br />

“O vício de se pensar que a criatividade só existe nas artes deforma<br />

toda a realidade humana” (Ostrower, 1989, p. 39) e é uma maneira de<br />

excluir as inúmeras condições criativas existentes em outras áreas. A<br />

maioria das pessoas tem uma representação sobre ser criativo apenas<br />

como uma pessoa que toca, pinta, desenha, dança etc. Mas os cientistas,<br />

os pensadores, os filósofos e os técnicos, entre outros, também<br />

são criadores, embora seus produtos não sejam sempre concretos e<br />

visíveis em um primeiro olhar, em um primeiro momento. Apreciar<br />

90 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011


e encorajar o uso da criatividade é uma necessidade para atender às<br />

demandas crescentes de nosso mundo em constantes e rápidas transformações<br />

e também para a vivência cotidiana.<br />

Usualmente a criatividade pode ser percebida mediante alguns<br />

comportamentos, tais como: motivação extremamente alta em determinado<br />

campo de esforço; inconformidade (variando em graus);<br />

facilidade para quebrar algumas convenções; e manutenção de altos<br />

padrões de excelência e autodisciplina relacionados ao trabalho<br />

de criação. Nas pessoas que demonstram ter criatividade, nota-se<br />

profundo compromisso com o esforço criativo, podendo aparentar<br />

até certo desligamento em outras tarefas que não sejam aquelas<br />

de seu interesse específico, isto é, seu campo de criação. Às vezes<br />

torna-se difícil conviver com ela, tanto no grupo social quanto no<br />

grupo de trabalho ou familiar, pois apresenta múltiplos e variados<br />

funcionamentos.<br />

Ao comentar o processo criativo, devemos elencar outro aspecto<br />

que faz parte do seu funcionamento: trata-se do insight, que corresponde<br />

a uma aparente e súbita compreensão da natureza de alguma<br />

coisa, resultando, na maior parte das vezes, em uma abordagem<br />

inédita. Essa compreensão súbita é, na verdade, só aparentemente<br />

súbita, pois muito esforço, motivação, concentração e conhecimentos<br />

já existentes, relacionados à tentativa de uma nova descoberta, são<br />

acionados. O que é súbito é a própria descoberta e um profundo e<br />

extenso esforço direcionado ao alvo que se pretende atingir.<br />

No processo de insight, nota-se ainda, às vezes, que a própria criatividade<br />

está sendo realizada na perspectiva da resolução de um problema,<br />

que contém todas as etapas necessárias para ser bem resolvido.<br />

Assim, todo novo ângulo ou nova ótica assemelha-se a um novo<br />

problema, a ser resolvido no campo da aceitação e de seu uso. Além<br />

disso, quase sempre é possível perceber, nas leituras biográficas e na<br />

observação de sujeitos em ação e em pleno uso de seu potencial criador,<br />

que há no processo criativo um período de repouso, ao qual se<br />

segue um período de intenso esforço, em que se percebe uma explosão<br />

de mais flexibilidade mental, a fim de favorecer a emergência<br />

do insight. Logo, o insight não é súbito. O resultado da incubação e<br />

emergência da ideia, o ato ou objeto criado é que nos é apresentado<br />

de forma súbita, isto é, quando não se está esperando.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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Ainda descrevendo a pessoa criativa, podemos observar, em seu<br />

convívio com outras, que ela se expressa algumas vezes demonstrando<br />

irritação, insatisfação ou até algum nível de agressão, que correspondem<br />

ao processo de desejar e poder criar alguma coisa e ainda<br />

não ter conseguido selecionar maneiras para fazê-lo. Usualmente o<br />

meio social não favorece, não encoraja e, muitas vezes, não possibilita<br />

a realização criativa, especialmente quando se trata das ideias<br />

de pessoas mais pobres, moradoras de periferias, que têm uma vida<br />

cotidiana mais restrita em possibilidades socioculturais. Essas pessoas<br />

têm ideias, mas não encontram acolhimento e local para apresentá-las<br />

e desenvolvê-las. Na conjuntura difícil do dia a dia, o grupo social tem<br />

sido impedidor ou dificultador da expressão da criatividade e do reconhecimento<br />

das expressões do processo criativo em muitas pessoas,<br />

tanto adultas quanto crianças e adolescentes.<br />

Uma sociedade de atores criativos teria melhores chances de encontrar<br />

respostas mais eficazes e de propor a promoção da criatividade,<br />

tanto no sistema educacional quanto no sistema empresarial, o que<br />

permitiria encarar novos problemas de maneira mais criativa, procurando<br />

novas soluções a partir de novas necessidades e perspectivas.<br />

No campo de estudos da criatividade, um dos marcos da abordagem<br />

científica do gênio criativo é a obra Gênio hereditário, de 1869<br />

(FRANCIS GALTON apud SIMONTON, 2002).<br />

Dentre os gênios reconhecidos pela humanidade temos, por exemplo,<br />

Charles Darwin, que fez suas pesquisas em casa e foi muito afortunado,<br />

uma vez que sua família lhe proporcionou o ambiente especial<br />

de que necessitava para ler e escrever, refletir e fazer experimentos.<br />

Note-se a importância do suporte afetivo, seja ele familiar, do grupo<br />

social ou até mesmo individual.<br />

Simonton (2002) aponta a necessidade de se definir e diferenciar<br />

genialidade e criatividade, uma vez que se trata de tema com o qual<br />

grande parte das pessoas já convive ou reconhece em biografias, jornais,<br />

publicações técnicas e históricas, filmes, entre outros. Para o autor,<br />

a genialidade refere-se à qualidade daquilo ou de quem é gênio.<br />

No que diz respeito aos indivíduos, o termo gênio passou a corresponder<br />

à descrição de algum talento, capacidade ou inclinação natural,<br />

especialmente quando ela ultrapassa as normas usuais e esperadas de<br />

contribuição.<br />

92 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011


Simonton (2002) nos remete a Galton (1869), que definia gênio em<br />

termos de reputação duradoura, como os homens e mulheres que receberam<br />

o Prêmio Nobel – Niels Bohr (Física), Marie Curie (Química),<br />

Ivan Pavlov (Medicina e Filosofia) e Toni Morrison (Literatura), entre<br />

outros –, que foram reconhecidos por suas notáveis contribuições em<br />

suas respectivas áreas, além de contribuições para o conhecimento<br />

humano e a humanidade. A conceituação de gênio refere-se àqueles<br />

que são donos de uma rara habilidade, de uma capacidade de produzir<br />

ideias perenes e absolutamente originais, que favoreçam amplamente<br />

o grupo social e a sociedade global.<br />

Há alguns outros fenômenos psicológicos associados à criatividade<br />

e compreendê-los corresponde a uma necessidade, pois tanto nossa<br />

vida cotidiana familiar e social se beneficiam com esta compreensão<br />

quanto as relações no mundo do trabalho. As empresas já demonstram<br />

em cursos, capacitações, treinamentos e anúncios um interesse<br />

crescente pelos estudos da criatividade de seus empregados e da<br />

própria instituição, para se adaptarem aos mercados de trabalho em<br />

evolução constante e rápida.<br />

2 COMO PERCEBER A CRIATIVIDADE?<br />

O processo criativo é complexo e de difícil observação. No passado<br />

falava-se de criatividade referindo-se quase sempre às atividades<br />

artísticas, praticamente em oposição às outras experiências,<br />

como a conceituação matemático-científica ou qualquer tipo de<br />

pesquisa e habilidade técnica ou motora. Entretanto, podemos<br />

chamar também de criativa uma pessoa que sempre faz perguntas,<br />

descobre problemas onde outros encontram respostas satisfatórias,<br />

que é capaz de juízos e julgamentos autônomos e independentes<br />

(da família, da escola, da sociedade etc.), que recusa o já codificado<br />

e remanuseia objetos e conceitos, sem se deixar inibir pelo<br />

conformismo de aceitar os produtos como já se apresentam. Há um<br />

leque variado de comportamentos, ações, ideias e produtos que<br />

configuram criatividade. Os artistas também podem ser analíticos,<br />

porque dedicam muita atenção e tempo até chegar ao produto<br />

final, aos materiais e à tecnologia que seus trabalhos e suas produções<br />

artísticas exigem.<br />

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Ostrower (1989) e Rodari (1982) sustentam que “a função criativa<br />

da imaginação pertence tanto ao homem comum como ao cientista<br />

e ao técnico; tanto é essencial para descobertas científicas como para<br />

o nascimento da obra de arte ou a criação de novas técnicas; é realmente<br />

condição necessária à vida cotidiana” (RODARI, 1982, p. 141).<br />

Vygotsky (1982, p. 18) ressalta que os “germes da imaginação criativa<br />

manifestam-se já nas brincadeiras da vida infantil”.<br />

A brincadeira e o jogo não são uma simples recordação de impressões<br />

vividas, mas uma reelaboração criativa delas. A imaginação é um<br />

processo pelo qual o homem, desde criança, combina entre si os dados<br />

da experiência, no sentido de construir uma nova realidade, correspondente<br />

às suas curiosidades e necessidades. É preciso, portanto,<br />

que cada pessoa possa crescer e se desenvolver em um ambiente pleno<br />

de experiências e estímulos em todas as direções possíveis, para<br />

nutrir sua imaginação e aplicá-la em novas atividades.<br />

Segundo a maioria de estudiosos e autores do tema, a motivação é<br />

muito importante no pensamento criativo, pois funciona como uma<br />

fonte para a criação. Assim, ter motivação para ou estar motivado com<br />

alguma coisa significa que você poderá passar cinco anos, cinco horas,<br />

semanas ou muito tempo, enfim, investindo seu pensamento na tentativa<br />

de descobrir a melhor maneira de fazer ou resolver determinadas<br />

situações, apresentar ideias, propostas, projetos etc. Isso significa<br />

dedicar tempo e esforço em relação a algo em que se acredita e que<br />

se deseja.<br />

O processo criativo implica, portanto, esforço, atenção dirigida e<br />

motivação. Fazem parte desse conjunto de múltiplos fatores não só o<br />

contexto ambiental, mas também a motivação, as variáveis de personalidade<br />

e de processos intelectuais, os níveis adequados de conhecimento,<br />

conjugados à flexibilidade cognitiva e à alta concentração na<br />

tarefa, os traços de prontidão para assumir riscos, as crenças flexíveis e<br />

a confiança pessoal na busca criativa. É verdadeiramente um processo<br />

complexo. Não devemos menosprezá-lo nem deixar de incluí-lo<br />

em nossa organização empresarial, individual ou grupal, desenvolvê-<br />

-lo em todos os campos do saber e do fazer, pois só assim estaremos<br />

exercitando nossa criatividade e a das demais pessoas.<br />

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3 TALENTO E CRIATIVIDADE<br />

Gagné (1997) e Moon (2003) vêm tentando estudar e compreender<br />

o talento como algo que aparece ligado, de alguma forma, à criatividade<br />

e ao processo criativo. O suporte afetivo e o acolhimento familiar<br />

são necessários para o desenvolvimento do talento, pois, se a pessoa<br />

não tiver a possibilidade de conhecer os materiais e produtos necessários<br />

ao seu ato criador, dificilmente poderá expressar sua criatividade.<br />

É conhecida a importância dos elos afetivos criados pela passagem de<br />

sujeitos reconhecidamente criativos na vida pregressa de uma pessoa<br />

criativa: um treinador, um professor, um amigo, entre outros.<br />

Gagné conceitua o talento como um domínio superior de habilidades<br />

sistematicamente desenvolvidas e aplicadas a pelo menos um<br />

campo da atividade humana, podendo ser percebido em uma pessoa<br />

quando comparada a outras atuantes no mesmo campo. O autor agrupa<br />

essas habilidades superiores em cinco domínios: intelectuais (raciocínio,<br />

memória etc.); criativos (originalidade, invenção, humor etc.);<br />

socioafetivos (liderança, empatia etc.); sensório-motor (força, resistência<br />

etc.) e outros (as habilidades sociais). Para ele, a expressão superior<br />

de apenas um desses domínios e habilidades poderia ser chamada de<br />

talento natural. Tais habilidades, que devem ser desenvolvidas, estão<br />

ligadas a motivação, temperamento, personalidade e meio social, e<br />

sua expressão se realiza ao longo da vida pela aprendizagem, pelo<br />

treinamento e exercício. Os talentos implicariam sete campos mais<br />

especialmente definidos: o acadêmico, os jogos de estratégias, o uso<br />

da tecnologia, a arte, o grupo social, os negócios e os esportes.<br />

Já Moon (2003) define talento pessoal como uma capacidade excepcional<br />

de selecionar e atingir metas difíceis que se relacionem a<br />

interesses, habilidades, valores e contextos em que a pessoa vive.<br />

Os conceitos de talento e criatividade se relacionam, mas não significam<br />

a mesma coisa nem se apresentam de formas idênticas, pois<br />

a criatividade envolve imaginação e o talento envolve aprendizagem.<br />

Claro que imaginação e aprendizagem não são excludentes, porém a<br />

imaginação independe da aprendizagem e o talento depende, para<br />

seu desenvolvimento, da prática e do conhecimento para se expressar<br />

plenamente. Aceitar e reconhecer o talento é uma necessidade e um<br />

compromisso social. O Brasil é conhecido por suas riquezas naturais<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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e, talvez por isso, faz pouco uso de seus recursos humanos e investe<br />

pouco neles. Fingir que não existem talentos é uma forma de mentir<br />

e de não ter que se ocupar nem se preocupar com a questão de<br />

desenvolvê-los (METTRAU, 2000).<br />

Embora haja muita publicação folclórica sobre as grandes descobertas<br />

e os grandes descobridores em todas as áreas, é sabido que muitas<br />

delas, hoje imprescindíveis à vida humana, resultaram da exploração<br />

de ocorrências casuais ou de incidentes aparentemente inesperados<br />

que, aliados à atitude de observação e ao senso de oportunidade,<br />

foram transformados em nova descoberta. Isso não invalida todo o<br />

processo criador até o momento final de seu desdobramento, seu uso<br />

e sua transformação em nova produção ou produto.<br />

Vale ressaltar que há ainda muita desinformação e relativamente<br />

pouca pesquisa sobre o campo de estudos referente à pessoa criadora<br />

e à criatividade. Boa parte da sociedade, ainda nos dias atuais,<br />

apresenta certo temor em relação ao desenvolvimento e ampliação<br />

dos traços criativos, por relacionarem algumas características da criatividade<br />

a doença mental, atos de loucura ou mesmo delinquência.<br />

Quando se pensa ou se escreve sobre essa inadequada correlação,<br />

não se costuma fazer um levantamento da história de vida de cada sujeito,<br />

seus antecedentes familiares etc. Um sujeito que é criativo pode<br />

ter desenvolvido em si ou ter em sua família algum aspecto patológico<br />

que não tem a ver, necessariamente, com sua criatividade ou seu talento.<br />

São situações distintas, embora possíveis, e acarretam alguma<br />

confusão quando obtidas em leituras e informações mais superficiais e<br />

populares sobre a questão.<br />

A criação é uma busca de ordenações e significados, e é no próprio<br />

quotidiano que o homem sente necessidade de ser consciente,<br />

compreender, analisar e ordenar os fenômenos que o rodeiam, avaliando<br />

o sentido das formas por ele ordenadas para comunicar-se com<br />

os outros seres humanos, correspondendo, portanto, a necessidades<br />

existenciais. Assim, o homem não cria só porque gosta ou quer, mas<br />

sobretudo porque precisa, e os processos de criação ocorrem tanto no<br />

âmbito da intuição quanto no pensamento racional.<br />

Usualmente as pessoas consideradas inteligentes e bem-sucedidas<br />

percebem quando o ambiente em que se encontram pode ou não<br />

permitir que aproveitem ao máximo seu talento. Buscam o ambiente<br />

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favorável não apenas para realizar um trabalho competente, mas também<br />

para fazer algo importante, usando suas possibilidades e habilidades.<br />

Elas criam suas próprias oportunidades, em vez de deixar que<br />

estas sejam limitadas pelas circunstâncias em que se encontram<br />

(STERNBERG, 2000a). Mesmo que não seja uma regra geral, muitos<br />

reduzem sua participação se não houver um meio favorável e estimulador<br />

para que seu talento se desenvolva e se ressentem por não<br />

receberem o reconhecimento social de suas produções, atividades realizadas<br />

ou propostas oferecidas.<br />

Estudos de Torrance (1965), um clássico do tema, ressaltaram com<br />

veemência que é necessário desenvolver alguns aspectos específicos,<br />

como tornar-se sensível a falhas ou deficiências na informação,<br />

identificar dificuldades ou elementos que faltam, formular hipóteses<br />

e comunicar os resultados encontrados, para que se realizem todas as<br />

fases da criatividade propriamente dita. Trazendo essa reflexão para<br />

a perspectiva laboral, vemos que esses aspectos, necessários e vitais,<br />

nem sempre recebem encorajamento nos espaços tanto empresariais<br />

quanto educacionais. Ainda assim, há pessoas que apresentam variados<br />

talentos nos campos do saber ou do fazer e que se tornam muito<br />

férteis, apesar de não terem tido oportunidade de escolarização,<br />

isto é, oportunidade de aprendizagem sistematizada e institucional<br />

(METTRAU, 2000). Temos, então, quando não nos preocupamos com<br />

o desperdício do talento e da criatividade, dois tipos de perdas: a<br />

referente à pessoa propriamente dita e a referente ao grupo social,<br />

ou seja, a perda relacionada a uma coletividade, a perda da própria<br />

criatividade enquanto campo de estudos, de produção e de avanços<br />

conceituais.<br />

A imaginação criadora é uma capacidade de combinação e reelaboração<br />

de elementos essencial ao ser humano. Vygotsky (1982),<br />

Ostrower (1989) e outros estudiosos caracterizam a imaginação criadora<br />

como uma função vital ao ser humano e ao desenvolvimento<br />

social global e, portanto, temos justa razão para cultivá-la em todo<br />

o nosso percurso de vida.<br />

Sem criatividade nosso mundo não caminharia. Estaríamos ainda<br />

sem fogo, sem roda, sem eletricidade, telefone e avião, entre outras<br />

criações, o que hoje é impensável. Obviamente cada nova criação faz<br />

emergir novos usos e novas dependências desses usos, pois nos acos-<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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tumamos de tal maneira a produtos e obras criadas que sentimos sua<br />

falta em nosso cotidiano se eles nos forem tirados.<br />

4 INTELIGÊNCIA E CRIATIVIDADE<br />

A Figura 1 apresenta o Diagrama de Mettrau (2004), no qual uma<br />

das três dimensões da inteligência humana é a criatividade.<br />

Figura 1<br />

Diagrama de Mettrau (2004)<br />

O diagrama apresenta movimento circular e contínuo, indicando<br />

que nossa inteligência não tem hierarquia em suas expressões criativa,<br />

afetiva e cognitiva nem existem campos de maior ou menor<br />

expressão entre elas, pois apresentam funcionamento ininterrupto<br />

em todas as fases de nossas vidas. O funcionamento da inteligência<br />

humana é um processo dinâmico, sem local de início nem fim, que<br />

englobaria três expressões distintas, mas indissociáveis e sem hierarquia<br />

entre si. Essas diferentes expressões se iniciam, se realizam<br />

e se desenvolvem no contexto do grupo social, isto é, o homem<br />

não existe, não se realiza nem se desenvolve fora do grupo social<br />

(METTRAU, 2004; 2009).<br />

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Criar, conhecer e sentir são as diferentes expressões da inteligência<br />

humana. É possível ao homem expressar sua inteligência de variadas<br />

maneiras e formas, pois ele é capaz de criar (criação), perceber e<br />

conhecer o que cria (cognição) e sentir emoções sobre sua criação.<br />

“Criar, perceber o que cria e sentir são, exatamente, as dimensões que<br />

distinguem o ser humano dos demais animais” (METTRAU, 2004, p.<br />

257). A partir desse diagrama, a criatividade é vista como uma dimensão<br />

da inteligência humana.<br />

As pessoas necessitam obter novos conhecimentos sobre seu próprio<br />

funcionamento inteligente e criativo, para compreender e enriquecer<br />

uma variedade de tipos de interesses e possibilidades, para se libertar<br />

da maioria dos mitos e fantasias que correm sobre esses dois campos<br />

de estudos.<br />

O tema da inteligência humana continua sendo um tópico inter e<br />

transdisciplinar, exigindo reflexão e debate contínuos sobre seus múltiplos<br />

aspectos. O Diagrama de Mettrau é parte de uma ideia maior,<br />

qual seja, a compreensão de que nossa inteligência é um patrimônio<br />

social, que devemos cuidar e preservar ao máximo, com atenção e<br />

cuidado, favorecendo sempre um desenvolvimento mais completo de<br />

todas as pessoas e suas potencialidades.<br />

5 FATORES INDIVIDUAIS DA CRIATIVIDADE<br />

Estudos de Sternberg e Lubart (1991; 1993; 1995) sugerem que<br />

deve haver convergência de fatores individuais e ambientais para que<br />

venha a ocorrer a criatividade. A confluência de múltiplos fatores distinguiria<br />

a pessoa muito criativa de uma pessoa apenas modestamente<br />

criativa (STERNBERG, 1996).<br />

Ao examinar processos intelectuais de pessoas criativas, as pesquisas<br />

dão destaque para a competência na descoberta do problema (quando<br />

se verificam as falhas ou os procedimentos até então existentes em determinados<br />

campos) e para a definição e seleção de estratégias de resolução.<br />

Sternberg (1992) chamou a capacidade de expressão global de “ver a<br />

grande tela” (opondo-se à concentração em detalhes), que é ainda aliada<br />

à preferência pela novidade e produtividade geradora de muitas ideias.<br />

Outro fator componente e importante é a flexibilidade. Por flexibilidade<br />

entendemos a aptidão de apreender um único objeto, uma<br />

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única ideia sob ângulos diferentes; ter sensibilidade à mudança como<br />

a capacidade de se libertar de uma ideia inicial para explorar novas<br />

pistas. Flexibilidade é palavra-chave envolvida com a criatividade,<br />

pois reflete a mobilidade e a maleabilidade do pensamento (LUBART,<br />

2007). Segundo o autor, observa-se que, do ponto de vista cognitivo,<br />

temos algumas capacidades intelectuais consideradas essenciais ao<br />

ato criativo:<br />

a) identificar, definir e redefinir (o problema ou a tarefa);<br />

b) revelar, dentro do ambiente, as informações relativas ao problema<br />

(situação, tarefa);<br />

c) observar as semelhanças nas diferentes áreas que clareiam o problema<br />

(semelhança, analogia, comparação, metáfora);<br />

d) escolher e fazer comparação seletiva;<br />

e) reagrupar elementos diversos da informação que, quando reunidos,<br />

vão formar uma nova ideia (combinação seletiva);<br />

f) gerar várias possibilidades (pensamento divergente);<br />

g) autoavaliar sua evolução para solução de problemas;<br />

h) libertar-se de uma ideia inicial para explorar novas pistas.<br />

O estudo da criatividade remete-nos a um interesse suplementar,<br />

qual seja, o de levantar grande número de questões, tanto de ordem<br />

científica quanto de ordem existencial, que podem ser agrupadas em<br />

cinco problemáticas mais amplas: questões referentes a definições; à<br />

origem das diferenças individuais; ao domínio de expressão do ato<br />

criativo; à criatividade em si; e, por último, a questão: a criatividade<br />

pode se expressar em vários campos distintos ou atingir unicamente<br />

um domínio específico em cada pessoa?<br />

Outra perspectiva se refere à identificação e à medida da criatividade.<br />

Qual seria a definição científica da criatividade e quais seriam os<br />

meios e instrumentos capazes de avaliá-la?<br />

6 GRUPOS CRIATIVOS<br />

Para tentar responder a algumas dessas difíceis questões, De Masi<br />

(1997) faz uma análise de treze grupos históricos, conjugada ao estudo<br />

da literatura sobre criatividade, ressaltando algumas constantes que<br />

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dizem respeito à personalidade dos sujeitos criativos individualmente<br />

e à organização dos grupos nos quais eles operam.<br />

Quanto aos fatores individuais, podem-se destacar nos estudos desses<br />

grupos: forte motivação dos artistas e cientistas com a atividade<br />

idealizada e realizada; habilidades intelectuais e percepção rigorosa<br />

por forte envolvimento emotivo; amplo senso de união por pertencer<br />

ao mesmo grupo; espírito de iniciativa, confiança e reciprocidade;<br />

vontade firme, dedicação total e flexibilidade (DE MASI, 1997).<br />

Quanto às características dos grupos criativos, destacam-se: a convivência<br />

pacífica na mesma equipe com diferentes modelos de personalidade;<br />

a procura obstinada de um ambiente físico acolhedor, bonito<br />

e funcional; a interdisciplinaridade; a forte complementaridade e a<br />

afinidade cultural dos membros; habilidade na concentração de energias<br />

de cada um no objetivo comum; busca e encontro de recursos<br />

para calibrar a natureza afetiva com o profissionalismo e para facilitar<br />

o intercâmbio entre desempenhos e funções. Como se vê, nada fácil<br />

de obter, atingir e manter.<br />

Podemos afirmar que criar é dar forma a algo novo em qualquer campo<br />

do pensamento e da atividade e, portanto, o ato de criar abrange<br />

a capacidade de compreender, que, por sua vez, envolve outras capacidades,<br />

como relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER,<br />

1989). Assim, a criação pode ser vista como uma dimensão da<br />

inteligência. Os indivíduos altamente criativos têm necessidades fortes<br />

voltadas para o desconhecido, o inusitado, o paradoxal, o misterioso<br />

e o inexplicável. De modo geral, a sociedade não oferece reconhecimento,<br />

nem mesmo demonstra interesse no encorajamento e na<br />

persistência dessa curiosidade mais intensa apresentada por alguns.<br />

Em constantes e aceleradas mudanças, necessitamos, de forma essencial<br />

e especial, da imaginação e da criatividade, compreendendo<br />

e aceitando a diversidade de talentos e das diferentes personalidades.<br />

Os variados profissionais deveriam, portanto, dispor de todas as ocasiões<br />

possíveis para a descoberta e a experimentação estética, artística,<br />

desportiva, científica, cultural, tecnológica e social, a fim de captar e<br />

usar as indicações de novas ideias e criações.<br />

Criatividade, portanto, corresponde a uma maior flexibilidade mental,<br />

que impulsiona a pessoa para outros patamares de realização e<br />

pode ser definida como “o processo de produzir alguma coisa que é ao<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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mesmo tempo original e de valor” (STERNBERG, 2000, p. 332). Não<br />

está diretamente relacionada ao conhecimento acadêmico, mas sim a<br />

uma produção que pode ocorrer na área acadêmica, cultural, tecnológica<br />

ou artística. Sternberg define a criatividade como a capacidade<br />

de ir além do já estabelecido para gerar ideias novas e interessantes.<br />

Ostrower (1989), artista plástica, criadora, professora e escritora,<br />

ressalta que, do mesmo modo que a percepção, a intuição é um processo<br />

dinâmico e ativo, que tem participação atuante no ambiente, e<br />

que é também um sair-de-si para captar novas buscas de conteúdos<br />

significativos. Os processos de perceber e intuir são afins, tanto é assim<br />

que não só a intuição está ligada à percepção, como o próprio ato de<br />

perceber talvez não seja outra coisa senão um contínuo ato de intuir.<br />

Já outro autor, De Bono (1994), diferencia dois modelos de pensamento:<br />

o vertical (lógico, natural) e o lateral (criativo), descrevendo-os<br />

como diferentes, porém complementares. Segundo o autor, fazemos<br />

muito uso do pensamento vertical e pouquíssimo do pensamento lateral,<br />

ainda que essa forma de pensamento seja muito valiosa para<br />

reconhecer ideias dominantes e polarizadoras, gerar as diversas maneiras<br />

de examinar situações e relaxar o rígido controle exercido pelo<br />

pensamento lógico (DE BONO, 1994).<br />

Já cabe perguntar, a esta altura, quando é que um grupo pode ser chamado<br />

de criativo e quais as propostas disciplinares que mais nos ajudarão<br />

para desvendar os segredos da criatividade coletiva, e ainda novas questões:<br />

como pode nossa sociedade perder seus talentos e não usar a criatividade?<br />

Voltamos nossa preocupação, agora, para uma sociedade toda ela<br />

mais criativa, com base no estudo de grupos criativos (DE MASI, 2003).<br />

Lent, um estudioso e pesquisador atual do campo da neurologia,<br />

afirma que é pelo desenvolvimento da percepção que também podemos<br />

desenvolver a criatividade. “Percepção é a capacidade de associar<br />

informações sensoriais à memória e à cognição (conhecimento)<br />

de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e<br />

orientar o nosso comportamento” (LENT, 2001, p. 556).<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Novos saltos no curso da história acontecem e continuarão a acontecer<br />

com base nas grandes descobertas nos campos teóricos e práticos.<br />

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Foram necessários muitos milênios de vida arcaica para produzir o<br />

Estado moderno; foram necessários quinhentos anos de organização<br />

moderna para produzir a sociedade industrial e apenas dois séculos de<br />

indústria bastaram para provocar o advento pós-industrial. A imaginação<br />

pessoal é influenciada pela experiência (quantitativa e qualitativa),<br />

pela realidade e pelas experiências passadas, incluindo a participação<br />

da memória. Apoia-se na experiência direta com a realidade, pois se<br />

trata de um enlace da imaginação pessoal com a realidade concreta.<br />

“Percebe-se a necessidade de ampliar sempre as experiências se queremos<br />

proporcionar uma base suficientemente sólida para a atividade<br />

criadora” (VGOTSK, 1982, p. 18).<br />

Todos somos ou podemos ser observadores, pois observar tanto se<br />

ensina quanto se aprende. Desenvolver a observação é um dos caminhos<br />

para se desenvolver a criatividade em todas as idades, circunstâncias<br />

e locais. A importância de encorajar e oferecer variadas experiências<br />

no cotidiano e no ambiente é uma prioridade cada vez mais<br />

visível, uma vez que as pessoas passam a conviver, nos dias de hoje,<br />

mais constantemente com as diferenças e com os diferentes. Oferecer<br />

um ambiente facilitador para o desenvolvimento do potencial criativo<br />

existente em todos nós atende à necessidade de saúde mental, além<br />

de facilitar, ampliar e qualificar nosso viver cotidiano. Delors (1996)<br />

sugere que, nos diversos espaços sociais, a arte e a poesia, aliadas à<br />

ciência e à tecnologia, deveriam ocupar lugar de destaque, a fim de<br />

impulsionar e expandir a ampliação da imaginação e da criatividade<br />

ao longo do desenvolvimento humano.<br />

O comportamento criativo pode ser entendido a partir do exame<br />

de nossa atitude pessoal em relação: ao nosso potencial criativo, ou<br />

seja, como nos vemos em nossas interações com outras pessoas na<br />

busca de novas soluções; às combinações realizadas quando usamos<br />

o já conhecido, tanto o conhecimento formal quanto as diversas<br />

experiências; às novas formas que imaginamos para lidar com novas<br />

situações ou descobertas; e, finalmente, à nossa capacidade de<br />

avaliar novos resultados a partir dessas outras perspectivas e análises<br />

(WECHSLER, 2009).<br />

A análise e a reflexão desses variados aspectos significantes nos remetem<br />

à nossa afetividade e ao quanto ela é significativa no campo<br />

dos estudos da criatividade. É de Noller (apud GLIGIO, WECHSLER<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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e BRAGOTTO, 2009) o exemplo de uma equação simbólica relativa<br />

ao processo criativo: Criatividade = f.a (C, I, A), interpretando-se a<br />

criatividade como função (f) de uma atitude (a), em direção ao uso<br />

benéfico e positivo da criatividade, em combinação com três fatores:<br />

conhecimento (C), imaginação (I) e avaliação (A). Essa equação criativa<br />

formata, um pouco mais rigidamente, os diversos fatores que irão<br />

compor o conjunto de nosso comportamento criativo.<br />

Os novos tempos ficam velhos muito rapidamente, levando-nos<br />

ao espanto. No sistema social, o conhecimento teórico, a ciência e<br />

a informação ocupam o papel central que já pertenceu à produção<br />

manufatureira. No sistema cultural, o individualismo e o narcisismo<br />

adquirem vigor crescente (DE MASI, 1997). Os burocratas têm medo<br />

da inovação, os criativos temem o imobilismo. As duas posições serão<br />

cada vez mais inconciliáveis. Vencerão os mais criativos, porque a sociedade<br />

pós-industrial se alimenta de invenções; não tem outra saída<br />

senão premiar a iniciativa e jogar para fora do mercado o imobilismo<br />

(DE MASI, 2000).<br />

Em conclusão, já vimos que a espécie humana é dotada de possibilidades<br />

e inúmeros comportamentos inteligentes, cada vez mais<br />

diferenciados, conforme demonstram as invenções e as descobertas<br />

que auxiliam e fazem parte da evolução de nosso mundo. É de Morin<br />

o pensamento aqui expresso: “o desenvolvimento das competências<br />

inatas anda a par do desenvolvimento das aptidões para adquirir, memorizar<br />

e tratar o conhecimento. É, pois, esse movimento espiral que<br />

nos permite compreender a possibilidade de aprender. Aprender não<br />

é apenas reconhecer o que de maneira virtual já era conhecido. Não<br />

é apenas transformar o desconhecido em conhecido. É a conjunção<br />

do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do<br />

conhecimento e do desconhecimento” (MORIN, 1995, p. 71).<br />

Neste artigo, o talento e a criatividade não são concebidos como<br />

dom, mas sim como conjunto de características e comportamentos<br />

que podem e devem ser desenvolvidos e ampliados na interação com<br />

o mundo, e que se apresentam em grande variedade de possibilidades.<br />

Para os talentosos nem sempre tem sido fácil demonstrar ou<br />

expressar suas capacidades diferenciadas, pois há uma tendência à<br />

conservação e à padronização.<br />

104 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011


REFERÊNCIAS<br />

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do pensamento lateral. Trad.: Nivaldo Montingelli JR. São Paulo: Pioneira,<br />

1994.<br />

DELORS, J. et al. Educação um tesouro a descobrir. Porto: Edições ASA,<br />

1996. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação<br />

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1850-1950. Trad.: Elia Ferreira Edel. Brasília, D.F.: UnB; Rio de Janeiro: J.<br />

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SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 86-107 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

107


ENTRE O DRAMA E A<br />

TRAGÉDIA: PENSANDO<br />

OS PROJETOS SOCIAIS DE<br />

DANÇA DO RIO DE JANEIRO<br />

Monique Assis<br />

Nilda Teves<br />

108 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


Os objetivos do presente estudo foram: a) explicitar as construções imaginárias<br />

que norteiam as práticas cotidianas dos projetos sociais de dança no Rio de Janeiro;<br />

e b) identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte e a<br />

formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar cotidiano desses<br />

projetos. Para tanto, utilizou-se uma trilha metodológica composta pela análise<br />

do discurso, conforme a concepção desenvolvida por Eni P. Orlandi (1988;<br />

1993; 1996), e pelos estudos de etnometodologia, apresentados por Coulon<br />

(1995). As observações de campo se realizaram em dois projetos sociais e envolveram<br />

diferentes aspectos que ultrapassavam a dimensão da dança, mas que<br />

são indissociáveis da produção de sentido gerada por essa prática. Características<br />

abrangentes do projeto, como localização, condições materiais, origem<br />

e formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário, murais,<br />

gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário do projeto e<br />

as formas como os alunos expressam sua adesão e identificação com diferentes<br />

vivências da dança. Na investigação perceberam-se outros significados para os<br />

projetos, tais como heterogeneidade, identidade, divertimento, deslocamento<br />

de sentidos nas relações entre ócio e trabalho, casa e rua, desilusão, imbricações<br />

com o patrocínio e os vários interesses em jogo, preconceitos, segregação.<br />

Palavras-chave: favela, projetos sociais de dança, imaginário social<br />

The present study’s objective was to: a) explain the imaginary constructions that<br />

guide the daily practices of the dance social projects in Rio de Janeiro; and b)<br />

identify how the relationships between the art teaching and the establishment<br />

of the citizenship in the formal structure and in the daily development of these<br />

projects are manifested. For this purpose, a methodology was applied combining<br />

the speech analysis technique according to the concept developed by Eni<br />

P. Orlandi (1988, 1993, 1996) and the ethno-methodology studies presented<br />

by Coulon (1995). The field observations occurred in two social projects and<br />

involved different aspects that surpassed the dance realm but are inseparable<br />

from the production of meaning generated by all this practice. The project’s<br />

comprehensive features such as location, material conditions, origin, and professional<br />

training mingled with details like clothing, murals, slangs, hairstyles, in<br />

short, signals that suggest the project’s image and the ways how these students<br />

express their connection to and identification with different dance experiences.<br />

This investigation brought up other significances for the projects such as: heterogeneity,<br />

identity, recreation, displacement of meanings in the relationships<br />

between leisure and work, home and street, disappointment, imbrications with<br />

sponsorship and the various interests at stake, prejudice and segregation.<br />

Keywords: slum, dance social projects, social image<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

109


INTRODUÇÃO<br />

A Proclamação da República consolidou e remodelou a cidade do<br />

Rio de Janeiro, sem, no entanto, permitir que se formassem cidadãos.<br />

Isso parece um contrassenso, uma vez que a implantação do novo<br />

regime, inspirado na melhor tradição da Revolução Francesa de 1789,<br />

se propunha exatamente a trazer o povo para o proscênio da cena<br />

política. É difícil imaginar uma República sem participação pública. Da<br />

Matta e Soarez (1999) trouxeram à tona o caráter arbitrário e elitista<br />

da situação. Segundo os autores, a reduzida participação popular no<br />

processo de transição republicana conferiu-lhe um aspecto de surpresa,<br />

mais próximo do que se convencionou chamar de golpe. A massa<br />

populacional foi tomada de assalto pela parada militar de Deodoro e<br />

reagiu com incredulidade frente àquele evento aleatório e completamente<br />

exterior ao curso normal de seu cotidiano.<br />

As ideias de uma democracia liberal estavam realmente sem contexto<br />

em nossa sociedade, ou, como diz Schwarz (2000), estavam definitivamente<br />

“fora do lugar”.<br />

Refletindo sobre a disparidade entre a sociedade brasileira negra de<br />

origem escravista e as ideias do liberalismo europeu, Sérgio Buarque<br />

de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, observa que a tentativa de<br />

implantação da cultura europeia em nosso território, em geral adverso<br />

em todos os sentidos, tornou-se, nas origens da sociedade brasileira, o<br />

fato dominante e mais rico em consequências. Para o autor, “trazer de<br />

países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições e nossas<br />

ideias e tentar manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável<br />

e hostil caracteriza nossa história, somos uns desterrados em nossas<br />

próprias terras” (HOLANDA, 2002, p. 31) 1 .<br />

1 Essa expressão do autor pode ser estendida para a concepção de dança<br />

acadêmica que foi trazida para o Brasil. O rigor dos padrões estéticos do balé<br />

clássico russo e europeu não se adequava nem ao corpo arredondado, nem à<br />

cor morena, e muito menos ao espírito dos brasileiros. Era como se um novo<br />

corpo tivesse que ser construído.<br />

110 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


Era como se a elite carioca se julgasse europeia 2 , branca e superior,<br />

em contraste com uma maioria negra ou mestiça, formada em grande<br />

parte por ex-escravos, que insistiam em contaminar a estética e a<br />

cultura da cidade com seus hábitos perniciosos e primitivos e com sua<br />

religiosidade impregnada de crenças indígenas e práticas africanas.<br />

O enredo do drama carioca, portanto, delineava-se na dualidade de<br />

duas ordens de valores, de duas morais: a moral do senhor, representada<br />

por uma elite participativa, e a moral escrava, serviçal, estranha,<br />

porém útil, mas principalmente privada de qualquer direito político.<br />

Uma leitura dessa dicotomia da cidade já estava presente, no início<br />

do século XX, na obra de João do Rio, pseudônimo do jornalista e<br />

escritor Paulo Barreto. Esse personagem lendário da historiografia do<br />

Rio de Janeiro foi um dos primeiros a ler a cidade dual que se tornou<br />

o Rio depois das reformas de Pereira Passos.<br />

Era como se a cidade real, por onde circulava uma rica tradição<br />

popular, não pudesse fazer parte da cena moderna. Como nos diz<br />

Gomes (1996), era vista como obscena e deveria estar fora, para não<br />

manchar o cenário ideal de cidade civilizada, cujo emblema era a<br />

Avenida Central, inaugurada em 1909.<br />

Vê-se que a favela, ao longo do século XX, foi se construindo como<br />

um espelho invertido da cidade urbana e civilizada, e o favelado,<br />

como um fantasma, um outro, foi percebido a partir do que se esperava<br />

de um cidadão urbano nos moldes europeus. Essas duas cidades,<br />

marcadas pela ordem e pela desordem, entram em conflito e<br />

se complementam, se entranham e se estranham, desaprendendo e<br />

aprendendo cada vez mais uma linguagem comum com que poderiam<br />

se comunicar.<br />

2 O sonho dos dirigentes políticos de tornar a cidade do Rio de Janeiro uma<br />

capital cultural nos moldes europeus fez com que, em 1909, fosse criado<br />

o Theatro Municipal, com o objetivo de receber as companhias de danças<br />

internacionais, e em 1927, se inaugurasse a primeira escola oficial profissionalizante<br />

de dança no Brasil, seguindo os padrões estéticos do balé clássico<br />

europeu e russo.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

111


1 A DANÇA ARTÍSTICA SOBE O MORRO<br />

Desde os anos 1990, vários coreógrafos e bailarinos que compõem<br />

o cenário da dança artística do Rio de Janeiro estão investindo na vivência<br />

da dança em comunidades de baixa renda, levando as técnicas<br />

de dança para corpos que, como tradutores do texto e do contexto<br />

social, carregam em si o estigma da exclusão social. Tais coreógrafos<br />

pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como matéria-<br />

-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem espaço<br />

para a democratização da vivência da arte.<br />

A dança artística sobe o morro pela ação de projetos sociais que<br />

são, de certo modo, veiculados pela mídia e contam com o apoio de<br />

patrocinadores governamentais e da iniciativa privada, cujos interesses<br />

são diferentes e contrastantes.<br />

No trabalho desenvolvido por Silvia Soter 3 (2002), A dança no Rio de<br />

Janeiro: uma alternativa contra a exclusão, foi elaborada uma cartografia<br />

dos projetos sociais em dança na cidade. Segundo a autora, o balé<br />

clássico, a dança contemporânea, a dança de rua e as danças populares<br />

são alguns exemplos das práticas oferecidas para as comunidades.<br />

Embora todas utilizem a dança como eixo comum, suas propostas diferem<br />

quanto a seus objetivos e metas.<br />

O relatório final do estudo apresentou a catalogação de 32 projetos,<br />

sem garantir a cobertura de todo o universo existente, descrevendo<br />

seus conteúdos quanto ao estilo de dança e aos objetivos do projeto,<br />

o número e o perfil das pessoas atendidas, os benefícios oferecidos<br />

(cesta básica, serviço médico e odontológico, assistência social etc.),<br />

características dos financiadores e investidores privados, tempo de<br />

existência dos projetos, apresentações artísticas, entre outros aspectos.<br />

O estudo de Soter revela uma significativa inserção de projetos sociais<br />

ligados à dança na cidade do Rio de Janeiro. Observa a autora<br />

que tal fenômeno, já presente desde 1989, ganha vulto a partir de<br />

3 Silvia Soter é formada em dança pela Universidade de Paris VIII e em Artes<br />

pela PUC-RJ, além de ser crítica de dança do jornal O Globo. Seu estudo foi<br />

patrocinado pelo Programa de Bolsas RioArte, do Instituto Municipal de Arte e<br />

Cultura, e teve como objetivo mapear os projetos de prática de dança oferecidos<br />

gratuitamente a comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro.<br />

112 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


1998, quando surgem 26 dos 32 projetos catalogados, que desenvolvem<br />

propostas sociais e artísticas. Os profissionais envolvidos nos<br />

projetos pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como<br />

matéria-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem<br />

espaço para a democratização da vivência da arte, elaborando temas<br />

como: resgate da cidadania, recuperação da autoestima, da identidade<br />

cultural e étnica, inclusão social e construção de um futuro. Pautando-se<br />

no bordão da inclusão social, esses projetos entram em cena<br />

no espaço social da favela e nos palcos da cidade, produzindo, além<br />

de um espetáculo artístico, crenças, fantasias e ilusões.<br />

Esses movimentos vêm, de certa forma, propondo sentidos alternativos<br />

à cidadania e à política, mediante a ideia da democratização<br />

da arte. Trata-se de múltiplas ações e projetos sociais de resgate da<br />

cidadania e construção do indivíduo promovidos por ONGs, Igrejas,<br />

empresas e profissionais liberais. São movimentos que complementam<br />

a ação estatal ou caminham em direção oposta, como resposta a uma<br />

crise de cidadania. Pressupõe-se, nesse caso, que a sociedade civil<br />

acaba participando na implementação de novas políticas públicas,<br />

criando redes de sociabilidade e pontes de sentido entre o cidadão e a<br />

sociedade, além de promover um processo educacional mediado pela<br />

corporeidade. Isso porque a educação não se esgota na instrução de<br />

conteúdos de conhecimento, ela passa necessariamente pelo corpo,<br />

pela capacidade de sentir, ver, ouvir e tocar o mundo. Segundo Ferreira<br />

(1993), o corpo todo do homem é seu limite de captação do mundo.<br />

É, pois, mediante sua corporeidade que a pessoa chega às coisas.<br />

Um projeto social de dança trafega por duas linguagens, por duas<br />

formas de ver o mundo. Por um lado, sendo um projeto social, traz<br />

consigo questões que norteiam o pensamento moderno, como direito<br />

à cidadania, desigualdades sociais, marginalidade e alteridade. Por outro,<br />

o fato de lidar com a dança se depara com a dimensão anárquica,<br />

plástica e trágica da arte de se embrenhar pelas fissuras do instituído<br />

e transformá-lo.<br />

Considerando essas reflexões, o presente estudo se desenvolveu a<br />

partir de três objetivos principais:<br />

a) Investigar os sentidos de dois projetos sociais de dança oferecidos<br />

gratuitamente a comunidades de baixa renda da cidade do Rio de<br />

Janeiro, conforme expressos nos discursos dos alunos.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

113


) Explicitar as construções imaginárias que norteiam as práticas cotidianas<br />

desses projetos.<br />

c) Identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte<br />

e a formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar<br />

cotidiano dos projetos.<br />

Como estratégia metodológica, optou-se por trabalhar o imaginário<br />

presente nos discursos dos alunos dos projetos de dança<br />

trilhando diversos percursos. Dentro dessa temática, Gilbert Durand,<br />

em seu livro O Imaginário (1999), aponta para outras combinações<br />

de análise, que fogem de uma lógica binária, as quais ele denominou<br />

de bacia semântica, em que A não necessariamente segue B<br />

e tampouco C; há, de fato, uma pluralidade de combinações, produzindo<br />

diferentes sentidos. Para tornar o termo “bacia semântica”<br />

mais claro, pode-se pensar no curso de um rio, constantemente<br />

regulado pelo fluxo de seus afluentes: o rio representa o superego<br />

institucional e seus afluentes e escoamentos trazem o que é<br />

marginal, seus mitos condutores, seus motivos pictóricos, tudo o<br />

que se mistura com o instituído e que, necessariamente, transforma<br />

seu curso.<br />

2 RESULTADOS<br />

As observações de campo envolveram diferentes aspectos que<br />

ultrapassavam a dimensão da dança, mas que são indissociáveis da<br />

produção de sentido gerada por essa prática. Características abrangentes<br />

do projeto, como localização, condições materiais, origem e<br />

formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário,<br />

murais, gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário<br />

do projeto e as formas como os alunos expressam sua adesão e<br />

identificação a diferentes vivências da dança.<br />

Qualquer observação de campo é arbitrária e incompleta se não<br />

incorpora a complexidade e a dramaticidade das experiências observadas<br />

e vividas. Cada projeto se constitui em um universo de sentidos<br />

que se apresentam e se velam a todo instante. Mesmo assim, após as<br />

observações, o bate-papo com os alunos e coreógrafos e o compartilhamento<br />

de momentos singulares começaram a revelar pistas sobre<br />

os significados daquelas práticas.<br />

114 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


Os alunos, em geral, gostam de dar depoimentos sobre sua experiência<br />

dentro e fora da dança, revelando orgulho de fazer parte daquela<br />

tribo, sem, contudo, deixar de apontar a realidade que eles vivem<br />

fora do projeto. Segundo Maffesoli (1987), a constituição dessas tribos<br />

se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma ética<br />

específica e no quadro de uma rede de comunicação.<br />

Na medida em que as histórias de vida eram relatadas, a pluralidade,<br />

a heterogeneidade e a riqueza de experiências recheavam aqueles<br />

discursos, mostrando desde o início que o que fora visto nas reportagens<br />

jornalísticas em relação aos projetos não abarcava a complexidade<br />

do todo. Outros sentidos começaram a emergir.<br />

Na interpretação das reportagens de jornal observou-se que, de<br />

modo geral, os discursos se baseavam em premissas falsas, as quais,<br />

como aponta Orlandi (1993), foram consideradas verdadeiras por<br />

uma produção ideológica historicamente construída e reforçada ao<br />

longo dos anos. O discurso social do asfalto considera que todos os<br />

jovens dos morros da cidade do Rio de Janeiro são iguais, possuem<br />

uma só face de favelado – ou seja, são o outro da cidade, o feio, o<br />

preto, o pobre – e que precisam ser salvos, corrigidos ou inseridos<br />

urgentemente.<br />

As premissas da “salvação”, recorrendo ao imaginário religioso, da<br />

“correção”, sob o viés da moralidade, e da “inserção”, dentro de uma<br />

perspectiva política, são formas elegantes de exclusão, uma vez que as<br />

soluções assistencialistas, na maioria das vezes, não atendem às questões<br />

relativas ao direito à diferença (DEMO, 1998).<br />

Retornando à cidade partida, parte-se do princípio de que toda divisão<br />

de classes é definida por uma determinação econômica; os ricos<br />

moram no asfalto e os pobres e miseráveis nos morros. Entretanto, a<br />

partir dessa primeira divisão vieram outras, que não mais se reportavam<br />

a um fato, mas que foram se construindo simbolicamente no imaginário<br />

das pessoas. Ser favelado, por derivações morais estabelecidas pela ideologia<br />

dominante, abarca as questões da etnia, ou seja, significa ser negro;<br />

da ordem social, significa ser desviante; da cultura, ser aculturado;<br />

da sociedade, não exercer a cidadania; das artes, não possuir qualquer<br />

acesso; e da educação, ser quase analfabeto, por uma questão de precariedade<br />

do ensino público, ou mesmo por uma dificuldade de aprendizado<br />

oriunda de uma debilidade genética inerente à sua origem.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

115


Essa homogeneização do discurso foi enfocada nos estudos de<br />

Preteceille e Valladares (2000), que revelam que seria ingênuo considerar<br />

o universo das favelas como uma unidade ou um espaço homogêneo,<br />

pois elementos indicativos de sua diversidade logo aparecem:<br />

localização dentro da cidade; relevo do terreno; antiguidade; grau de<br />

consolidação das construções; verticalização; nível dos equipamentos<br />

e serviços; condição jurídica de ocupação; presença ou não de “organização”<br />

de tráfico de drogas. Muitas vezes a arquitetura pode até<br />

se mostrar monótona, apresentando algumas semelhanças no tipo de<br />

material de construção, nos quintais, nos tipos de portas e janelas e até<br />

na distribuição dos cômodos, mas logo as diferenças se definem nos<br />

acessórios que se destacam no interior das casas, pelo tipo de mobília,<br />

pelos aparelhos eletrodomésticos: fogão de seis bocas, freezer, presença<br />

de aparelhos eletrônicos, como televisores, videocassetes, DVDs,<br />

CDs e computadores.<br />

Os acessórios funcionam como símbolo de status, uma forma de<br />

comunicar as distinções sociais. É o que Bourdieu (1992) chama de<br />

“capital simbólico”, referindo-se ao acúmulo de bens de consumo que<br />

atestam a classe social de quem os possui. Entretanto, esse capital não<br />

é estático, ele só se mantém como capital simbólico na medida em<br />

que se cria em torno dele uma produção de sentidos que faça com<br />

que ele atenda aos desejos dos consumidores. Muitos adolescentes<br />

entrevistados fizeram questão de mencionar que passavam o dia “jogando<br />

videogame, e do último tipo, minha madrinha me deu de Natal”.<br />

Mais que um simples jogo, o videogame é um símbolo.<br />

Avançando além das questões econômicas e geográficas, a diversidade<br />

da favela também aparece na coloração da pele, no nível de<br />

escolaridade, na vivência da arte, nas experiências de vida, nos gostos,<br />

desejos e fantasias, na religião, nos princípios morais, enfim, existe<br />

um universo de diferenças de uma favela para outra e dentro de uma<br />

mesma favela.<br />

Pode-se dizer que a favela é composta por várias tribos, com mecanismos<br />

de regulagem muito sofisticados e distintos. Segundo Maffesoli<br />

(1987), de fato existe uma partilha geográfica e simbólica de territórios,<br />

formando vários reagrupamentos, que se apoiam em múltiplas<br />

sociabilidades. Para o autor, “o coeficiente de pertença não é absoluto,<br />

cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo<br />

116 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


em cada um deles uma parte importante de si” (p. 202). O espaço<br />

social compreende várias redes flexíveis de jogos de linguagem, em<br />

que vários códigos são compartilhados por um determinado grupo.<br />

Essa pluralidade de tribos torna o conceito de “cidade partida” pouco<br />

abrangente, uma vez que ele traduz uma dicotomia que reduz em<br />

dois os territórios da cidade. Contudo, tanto a favela quanto a cidade<br />

se constituem em uma multidão de aldeias, onde as pessoas se<br />

enraízam, se retraem, buscam abrigo e segurança. Enfim, a cidade é<br />

um grande mosaico urbano ou, como aponta Harvey (1996), o tecido<br />

urbano é uma colagem de espaços e misturas altamente diferenciados.<br />

Quando se entrevista os jovens que moram nos morros, se apreende<br />

que há uma diversidade de experiências de vida tão grande que o<br />

asfalto, aprisionado em sua miopia e seu autocentramento narcísico,<br />

nem sonha conhecer. Vianna (1997), ao estudar o fenômeno dos bailes<br />

funk no Rio de Janeiro, relata essa mesma tendência e comenta<br />

que os subúrbios da cidade são sempre considerados como territórios<br />

inexplorados e selvagens, “onde um antropólogo pode descobrir ‘tribos’<br />

desconhecidas como se estivesse na floresta Amazônica” (p. 12).<br />

O que ocorre é que muitas tribos do asfalto (os jesuítas modernos)<br />

desconhecem o que se passa nas favelas (índios) e, muitas vezes, são<br />

eles (os jesuítas) que determinam o que, quando e onde devem ser<br />

feitos os movimentos de intervenção social (catequese).<br />

3 O PROJETO I<br />

O Projeto I teve seu início em 1997, em uma favela da Zona Norte da<br />

cidade do Rio de Janeiro, e desenvolve um trabalho de dança e teatro<br />

com jovens e crianças da comunidade. Atualmente funciona no morro<br />

e também em um sobrado antigo situado numa rua do mesmo bairro.<br />

As atividades oferecidas são: balé, dança afro-brasileira, dança moderna/jazz,<br />

mobilidade articular, expressão e consciência corporal,<br />

pesquisa de movimento, laboratório de coreografia, contato e improvisação,<br />

interpretação, inglês e cidadania.<br />

Já passaram pelo Projeto 325 pessoas entre 7 e 25 anos, e atualmente<br />

ele conta com 113 alunos de dança e 19 alunos do curso técnico de<br />

som e iluminação. O Projeto se mantém pelo patrocínio da Petrobras<br />

e pelos cachês das apresentações.<br />

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3.1 AS VISITAS<br />

O primeiro contato da pesquisadora com o Projeto I se deu na I<br />

Jornada de Dança e Inclusão, realizada na Universidade Gama Filho<br />

em 2000, quando foi feita uma apresentação de dança/teatro com<br />

diálogos e coreografias que tinham como tema a realidade social que<br />

eles viviam no morro, com destaque para a questão da miséria, da violência<br />

e da etnicidade negra. Outros encontros se deram em apresentações<br />

e mesas-redondas e, por conta do presente estudo, em visitas<br />

periódicas às sedes do Projeto para registro de observações de campo<br />

e entrevistas.<br />

A primeira visita se deu na sede do Projeto, que fica na subida do<br />

morro. Logo se percebeu que as ruas da favela possuem uma ordenação<br />

espacial bastante diversa e surgem aos nossos sentidos de modo<br />

insólito, apresentando sérios problemas de orientação para os que não<br />

estão familiarizados com o local. Possuem uma lógica topográfica e,<br />

por que não dizer, uma gramática de valores bastante peculiares, inoculando<br />

em seus moradores gostos, costumes, hábitos, modos e opiniões<br />

políticas e contribuindo para tornar os moradores do asfalto cada vez<br />

mais estrangeiros no local.<br />

A sede do Projeto tinha uma sala de dança com espelhos na parede<br />

e outras salas que podiam atender a diferentes atividades. Parecia ser<br />

também um espaço para encontro de jovens. O local era limpo e todo<br />

pintado de branco.<br />

Uma segunda visita, quando foi realizado todo o trabalho etnográfico,<br />

se deu na outra sede, um sobrado antigo e adaptado para abrigar<br />

as atividades do Projeto. A sala de aula tinha padrões considerados<br />

razoáveis para uma escola de dança: 63 metros quadrados de área,<br />

piso de linóleo 4 , espelhos e barra em toda a sua volta, um escritório<br />

de coordenação com sofá e computador, uma pequena recepção com<br />

uma secretária oriunda da comunidade, uma biblioteca e uma cozinha<br />

“para as crianças poderem lanchar 5 ”, segundo a coreógrafa, e um<br />

4 Piso emborrachado adequado para a dança em sala de aula e no palco.<br />

5 As crianças fazem as refeições na sede para que possam se deslocar da<br />

escola diretamente para o projeto, utilizando o uniforme escolar, e assim economizar<br />

no tempo e no gasto com transporte.<br />

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anheiro misto. Todo o acabamento do local era bastante simples,<br />

com paredes cinza, chão de madeira, louças brancas e um mural coberto<br />

por folhas impressas com diversas informações.<br />

Fui assistir a um espetáculo. Emocionante. Muito criativo. Muito diferente.<br />

Em termos de dança, uma companhia ainda nova, crua em<br />

termos de técnica, porém com bastante expressividade. Como se eles<br />

soubessem o que queriam passar teatralmente. Tinham muita força<br />

para representar o que estavam sentindo e o que viviam. Havia muita<br />

improvisação, muito estudo do movimento, muitas experimentações<br />

cênicas. Gostei!<br />

O debate em si já era emocionante, toda a companhia participava<br />

e todos falavam. Impressionante como aqueles jovens eram alegres<br />

e articulados para falar, muito mais que qualquer bailarino de classe<br />

média, pensei. Falavam sobre a experiência na dança, sobre o preconceito.<br />

Fiquei maravilhada.<br />

Logo percebi uma conscientização política que passava, principalmente,<br />

pela fala da coreógrafa. Ela dizia: “Falo sobre as coisas que me<br />

indignam, sobre o que as pessoas não querem ver”.<br />

Quando a plateia começou a participar do debate, a questão sobre o<br />

que movia as pessoas a assistirem ao espetáculo começou a ficar mais<br />

clara. As pessoas olhavam para a coreógrafa como se ela fosse uma<br />

pessoa especial, “salvando” aqueles jovens. Tudo me soou como uma<br />

espécie de idealização ideológica e religiosa. O olhar e as palavras<br />

proferidas pela plateia eram de admiração. Mas não de um êxtase<br />

provocado por uma obra de arte.<br />

O aspecto artístico parecia não ser o principal. Dois comentários da<br />

plateia confirmaram minhas intuições. Uma moça falou: “Como foi<br />

apresentar esse trabalho em uma mostra de dança?” (a mostra a que<br />

ela se referia ocorre todo ano, ocasião em que várias companhias de<br />

dança conhecidas se apresentam em teatros espalhados pela cidade).<br />

A coreógrafa respondeu que tinha sido muito legal e que, afinal, eles<br />

eram uma companhia de dança, o que, subliminarmente, deixava claro<br />

que eles não se representavam como pobres e favelados que tiveram<br />

a oportunidade de dançar, mas como artistas bailarinos.<br />

A segunda pergunta foi ainda mais significativa. Na verdade não foi<br />

uma pergunta, foi uma colocação que mais ou menos dizia assim: “Eu<br />

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estou muito emocionada, achei o trabalho fantástico, você conseguiu<br />

fazer um espetáculo belíssimo sem nenhum ator ou bailarino.” A coreógrafa<br />

logo retrucou: “Eles são todos atores e bailarinos.” A moça logo<br />

retificou o que disse, explicando que se referia a bailarinos famosos,<br />

visto que alguns projetos colocavam a Ana Botafogo para dançar com<br />

as bailarinas. E seguiu se justificando. Tarde demais.<br />

Diário de campo (12 de março de 2003)<br />

3.2 AS AULAS DE DANÇA<br />

As aulas acontecem durante todo o dia, várias turmas entram e<br />

saem, ocupam os corredores e a cozinha, conversam, se arrumam ou<br />

se desarrumam, dependendo da aula a ser feita.<br />

Uma das aulas observadas foi a de dança contemporânea, ministrada<br />

por professor formado pela própria companhia. A inserção dos<br />

alunos no ensino da dança é uma característica destacada pelo professor:<br />

“Depois de toda a nossa vivência, nós devemos ser agentes multiplicadores.<br />

Não dá para ficar somente dançando e se apresentando.”<br />

Essa prática possui outros desdobramentos, pois esse mesmo professor<br />

também trabalha em outros projetos sociais e centros culturais.<br />

A fala do professor sugere algumas pistas, que se evidenciaram no<br />

decorrer da análise. A ideia de multiplicação revela um caráter de missão,<br />

isto é, de um dever a cumprir. Uma missão de transformação da<br />

realidade social, ou uma missão religiosa que envolve a disseminação<br />

de uma crença. Existe uma construção ideológica do esquema temporal,<br />

em que, como aponta Ansart (1978), o passado, o presente e o<br />

futuro se coordenam e proporcionam à ação presente uma plenitude<br />

de significados. A ideia de evolução, numa perspectiva de esquerda, se<br />

baseia num esquema de invalidação do passado, que sublinha toda a<br />

gênese da injustiça e da exploração social que se pretende erradicar. O<br />

que o professor quer é transformar a realidade social, criar alternativas<br />

contra o recrudescimento da miséria e da segregação racial e social.<br />

A dança, portanto, ainda não deixou de ser associada a aspectos<br />

funcionais. Por que “não dá para ficar somente dançando e se apresentando”?<br />

Mesmo que todo o processo seja temperado por momentos<br />

lúdicos e artísticos, isso é silenciado no discurso, ressurgindo, porém,<br />

no significado de sua prática no dia a dia.<br />

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As aulas de dança contemporânea observadas revelam a grande<br />

mistura de linguagens presentes no Projeto , como: elementos de solo<br />

da dança moderna com ênfase nos movimentos de contração e expansão<br />

e alongamento, elementos de força da dança contemporânea<br />

e gestos influenciados pela dança de rua e pela dança afro-brasileira.<br />

Na vivência corporal, outros imaginários são resgatados, proporcionando<br />

um distanciamento de aspectos mais ligados ao utilitarismo e<br />

uma aproximação da dimensão artística e lúdica.<br />

Essa corporeidade, desprendida de um discurso racional, permite<br />

que os mitos e os deuses da mitologia negra sejam evocados no palco.<br />

Há nos espetáculos um resgate das origens étnicas, ao mesmo tempo<br />

em que o cotidiano atual do morro também é coreografado. Essa tendência<br />

de levar o morro para o palco se assemelha à corrente bauschiana,<br />

que transporta gestos cotidianos para a cena, dando-lhes uma<br />

dimensão estética.<br />

O próprio fato de levar a pobreza dos gestos cotidianos contemporâneos<br />

para o palco ou algumas danças socialmente consagradas já<br />

é uma forma de denunciá-los, de mostrar seus limites e interdições<br />

e a partir daí transformá-los. A improvisação, a retórica urbana e os<br />

objetos ordinários que compõem o cenário das favelas, como sacos<br />

de lixos, ganham uma dimensão estética e toda uma outra rede de<br />

sentidos quando postos em cena.<br />

Essa ideia de transformação abre espaço para uma plasticidade semântica,<br />

em que a ação de dar uma nova forma pode ser vivida de<br />

várias maneiras. Dar nova forma ao cotidiano pode significar que a<br />

rotina será alterada, que novas relações serão formadas, que outros<br />

mitos e crenças serão reavivados, que os desejos podem mudar, enfim,<br />

que outras formações simbólicas permearão o cotidiano desses<br />

jovens, criando novos sentidos a partir das novas experiências vividas.<br />

Diferentemente da cristalização de sentidos do discurso social mostrado<br />

nos jornais, transformar não passa só pela ideia de abandonar<br />

a favela e ser incorporado no universo do asfalto, ou deixar de ser<br />

desviante, ocioso, mundano, ou de se perder na vida optando pelo<br />

espaço da rua. O verbo transformar é polissêmico, é vivido por cada<br />

bailarino de forma singular e única. Não existe um modelo de transformação<br />

quando se pensa em uma experiência artística, lúdica, criativa.<br />

Cada um se transfigura de modo diferente a partir da arte.<br />

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3.3 A AULA DE CIDADANIA<br />

Logo colocaram a professora de cidadania para conversar comigo. Ela<br />

me explicou o que fazia, fiquei pensando a razão da inserção daquela<br />

aula em um projeto de dança.<br />

Diário de campo (14 de março de 2003)<br />

Entre as muitas aulas de dança, os bailarinos também têm, semanalmente,<br />

aulas de cidadania, compondo o conteúdo curricular do Projeto .<br />

A aula de cidadania é dada por uma jornalista, que utiliza primordialmente<br />

jornais como material didático para gerar temas para discussões.<br />

“Eu não fico falando sobre coisas que estão fora do universo<br />

deles, eu lido com fatos diários, abordando questões que vão desde a<br />

economia do país e os direitos do cidadão a dicas de saúde, alimentação,<br />

cuidados com o corpo, sexualidade”, disse a professora. E revelou<br />

que muitas vezes precisa iniciar o tema de cidadania falando da necessidade<br />

de existir para a sociedade, “e o primeiro passo está na certidão<br />

de nascimento, que muitos não têm”. É interessante pensar nos<br />

dados populacionais oferecidos pelo IBGE e a quantidade de pessoas<br />

que não possuem sequer registro de nascimento; ou seja, existe uma<br />

camada da população invisível aos olhos do Estado, cuja cidadania é<br />

prematuramente inviabilizada.<br />

A professora conta que é solicitada pelos alunos e suas famílias, que<br />

a consultam sobre situações como falta de luz, cobrança indevida das<br />

contas de telefone, como tirar documentos ou como cozinhar de forma<br />

saudável 6 .<br />

Analisando com mais rigor essa questão, indaga-se o porquê da<br />

inserção diária de aulas sobre “cidadania” em um projeto artístico.<br />

Existem algumas construções imaginárias que estariam regendo o programa<br />

curricular do Projeto? É possível que a aula de cidadania seja<br />

usada para lhes dar legitimidade, justificando sua “relevância social”,<br />

reproduzindo o imaginário que circula na sociedade de que, para um<br />

projeto ter importância, valor e patrocínio, deve estar vinculado a uma<br />

6 A professora diz que ensina como preparar comida macrobiótica, e anda o<br />

tempo todo com uma foto que a mostra com 40 quilos a mais. “Acho que isso<br />

impressiona os alunos, eles aderem à dieta rapidinho”, diz ela.<br />

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ideia de funcionalidade? A prática da dança em si não seria suficiente?<br />

Só dançar? Para quê?<br />

Um projeto que valorizasse maciçamente os aspectos mais sensíveis,<br />

estéticos e lúdicos do indivíduo talvez não obtivesse reconhecimento<br />

social, nem mesmo dentro do próprio grupo, que tem como pressupostos<br />

a valorização étnica e uma perspectiva de transformação social.<br />

O direito à arte, à ludicidade, à fantasia, ao sonho e ao lazer não são<br />

questões suficientemente “relevantes” para sustentarem um projeto<br />

social, como se a educação não passasse também pela capacidade de<br />

sentir, ver, ouvir e tocar o mundo.<br />

O mesmo acontece em relação às exigências feitas aos alunos. Todos<br />

devem estar matriculados na escola para participarem do Projeto, a<br />

“Petrobras exige isso para dar o patrocínio”, diz um aluno. Contudo,<br />

a maioria revela um grande desinteresse pelo espaço social da escola,<br />

muitos afirmam que só a frequentam para não serem expulsos do Projeto,<br />

outros a frequentam por desejo das mães e alguns revelam que<br />

“terminar o segundo grau é a única forma de fazer uma faculdade de<br />

artes cênicas, educação física ou dança”.<br />

O Projeto, ao valorizar a aula de cidadania nos moldes formais<br />

ou exigir que os alunos frequentem a escola para poderem dançar,<br />

abre espaço para que a fala do instituído penetre num universo<br />

essencialmente artístico. O discurso hegemônico se infiltra através<br />

de pequenas brechas e não para de se reproduzir, o que pode levar<br />

a um empobrecimento da potência artística e lúdica de criação do<br />

Projeto, uma vez que pode funcionar como agente inibidor das<br />

paixões e das emoções. Entretanto, sem capital o projeto fenece. É<br />

necessário ter capital para realizá-lo; ao mesmo tempo, é prudente<br />

controlar sua voracidade, sob pena de empobrecer todo o conteúdo<br />

artístico.<br />

3.4 OS ALUNOS<br />

Os alunos são predominantemente negros e em sua maioria residem<br />

no morro, embora alguns venham de outras comunidades. Existe uma<br />

adesão muito grande de homens, o que não é comum no meio da<br />

dança, principalmente com adolescentes. Talvez, mais do que a possibilidade<br />

de se conseguir algumas vantagens por fazer parte de um<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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projeto social 7 , o próprio estilo de dança baseado nos elementos de<br />

cultura corporal 8 dos alunos é significativo para eles e, principalmente,<br />

se distancia do estereótipo feminilizante atribuído ao balé clássico.<br />

Um dos alunos chegou a comentar que no início não se autodenominava<br />

bailarino, pois tinha vergonha do que os amigos iriam dizer: “Quando<br />

me perguntavam, eu dizia que era passista, aprendiz de mestre-sala<br />

do Salgueiro Mirim, até rei Momo, qualquer coisa, menos bailarino.” O<br />

bailarino foi criando uma polissemia da dança para poder se explicar. Ao<br />

associá-la com o samba, daí a ideia de passista, ou com as escolas de samba<br />

e o Carnaval em geral, ele tenta pertencer a algo que já é legitimado<br />

pelos pares e usa um acordo de falas para não ser considerado diferente.<br />

Hoje em dia, ser bailarino do Projeto I, segundo esses alunos, é<br />

possuir referências, é pertencer a um tipo de linguagem, é ser reconhecido<br />

entre os pares do morro e do asfalto. Um aspecto interessante<br />

observado é que há professores que dão aulas em vários projetos, alunos<br />

que fazem apresentações especiais em outras academias, bailarinos e<br />

coreógrafos que são convidados para dançar no Projeto I, enfim, bailarinos<br />

do asfalto e do morro se misturam, se diferenciam e se igualam,<br />

desenvolvem parcerias, trocam saberes e dividem uma mesma cena.<br />

No momento das trocas não há pobre ou rico, o que se vê são bailarinos.<br />

De fato, se por um lado eles se diferenciam em seu modo de<br />

inserção social, por outro eles compartilham códigos, vínculos simbólicos<br />

que os aproximam uns dos outros, representações coletivas. Não<br />

importa se alguém é branco ou preto, o que importa é se a perna sobe<br />

180 graus, se a pirueta é em quarta ou segunda posição, ou se fulano é<br />

alongado, talentoso, exibicionista, entre outras coisas. Xiberras (2000)<br />

afirma que qualquer perspectiva de inserção ou inclusão tem necessariamente<br />

que passar por longo caminho até que espaços reais para as<br />

trocas simbólicas sejam abertos.<br />

7 O Projeto oferecia uma bolsa de R$50 para cada aluno.<br />

8 Um ensino a partir da concepção de cultura corporal, de acordo com a<br />

interpretação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pode ser relacionado<br />

à estrutura desse projeto, uma vez que tem como proposta valorizar as<br />

formas de expressão que os alunos trazem da comunidade, resgatar elementos<br />

de uma etnicidade menosprezada pela “cultura branca” dominante e, a partir<br />

daí, criar uma nova linguagem artística.<br />

124 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


A participação no Projeto permite que novos códigos sejam internalizados<br />

e que sejam construídas pontes de sentido entre os indivíduos<br />

e a dança, ou seja, a prática da dança os inclui, lhes dá sentido de pertença<br />

e de filiação. Isso também pode ser percebido nos bate-papos<br />

antes das aulas, nos períodos de descanso ou nos camarins antes das<br />

apresentações. Tudo gira em torno de eventos, associados às vivências<br />

proporcionadas pela prática artística. Pode-se dizer, entretanto, que<br />

são momentos efêmeros de igualdade social, pois não são transformadas<br />

as condições objetivas de vida.<br />

3.5 O LAZER<br />

Conversei com os bailarinos e perguntei o que havia mudado na vida<br />

deles com o Projeto. Duas coisas chamaram a atenção: a ideia de disciplina<br />

e uma rejeição aos bailes funk. Talvez o baile funk represente o<br />

Outro da disciplina. É a festa versus a ordem. O projeto, então, parecia<br />

estar na categoria da ordem, mas não era só isso.<br />

Diário de campo (15 de março de 2003)<br />

Quando perguntados sobre o que fazem nos momentos de lazer,<br />

aos sábados e domingos, os alunos falavam do lugar social do Projeto,<br />

ou seja, incorporavam discursos normativos para tentar reforçar sua<br />

posição de não desviante. Desse modo, temas como “ficar na rua”,<br />

“ficar à toa” ou frequentar bailes funks eram prontamente evitados. “Eu<br />

agora estou mais calmo. Estou saindo pouco, não tenho muito tempo e<br />

às vezes estou muito cansado...”. Ou, como disse outra bailarina: “Eu<br />

fico em casa, vendo televisão. Lá onde eu moro é meio perigoso. Tem<br />

dias que tem hora para chegar e hora para sair. Prefiro ficar quieta em<br />

casa...” Se, por um lado, a violência é um dado de realidade na vida<br />

contemporânea, ela não é o único fator que apaga do discurso desses<br />

jovens a representação da rua. Parece existir uma moral que constantemente<br />

policia suas expressões mais soltas. O discurso instituído visto<br />

nas reportagens dos jornais também surge nos projetos, ao menos<br />

como um acordo de falas entre os bailarinos e o pesquisador externo.<br />

Muitas vezes os bailarinos colocam a participação no Projeto como<br />

um divisor de águas em suas vidas. “Antes eu só zoava por aí ou ficava<br />

pensando besteira...”, disse um bailarino. E outro: “Eu ia a todos<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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os bailes funk da minha comunidade e de outros lugares, mas agora,<br />

quando você começa a entender de música e dança, não tem mais<br />

saco de ir a esses lugares...”<br />

Todo processo de ensino da arte certamente transforma os indivíduos<br />

em sua capacidade de sentir o mundo, uma vez que os bailarinos<br />

desenvolvem outros gostos, novos vocabulários e outros modos de<br />

fruir a arte. Entretanto, o baile funk está na ordem do lazer, do divertimento<br />

e da festa, ele não pode ser visto como o Outro do Projeto,<br />

não pode ser substituído por algo que esteja na dimensão da ordem,<br />

e sim por novas formas de ludicidade, expressividade, sensualidade e,<br />

principalmente, desmedida. Por que, então, ele deve ser enfaticamente<br />

negado? Frequentar os bailes assume um estatuto de transgressão<br />

social, étnica e moral, além de figurar na lista dos pecados a serem<br />

evitados.<br />

Vianna (1997) aponta para algumas pistas referentes a essa questão.<br />

Em primeiro lugar, as ideias de conscientização negra, que originalmente<br />

circulavam no mundo funk durante o tempo da Banda Black<br />

Rio e se tornaram emblemáticas pelas músicas de James Brown 9 , não<br />

estão mais presentes, ou seja, não há qualquer tipo de proposta política<br />

que envolva a questão da etnia, da superação do racismo ou<br />

do resgate do orgulho de ser negro no movimento funk. Outro ponto<br />

importante, segundo o autor, é que muitas vezes as roupas e gírias usadas<br />

nos bailes são parte integrante do estilo de vida dos traficantes e<br />

ladrões cariocas. Afirmar que todos os bandidos da cidade frequentam<br />

o mundo funk não é justificável, “mas que existem relações entre os<br />

dois mundos, como entre o funk e o pagode, isso me parece evidente”<br />

(p. 104).<br />

E, por fim, outro ponto do baile funk que o faz ser tão odioso para<br />

a sociedade é que ele “não serve para nada”, não há de fato nenhuma<br />

funcionalidade nessa folia. Os bailarinos se divertem como se o<br />

mundo fosse acabar, naquele momento não há passado nem futuro,<br />

9 James Brown, em 1968, em um movimento de conscientização dos negros<br />

norte-americanos, cantava: “Say it loud – I’m black and I’m proud”. Segundo<br />

Vianna (1997) James Brown era um dos cantores mais tocados nos bailes<br />

da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1970, dentro do espírito “black is<br />

beautiful”.<br />

126 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


é o tempo vivido. O baile funk está na dimensão da festa, por isso seu<br />

caráter efêmero e subversivo. A festa traz à tona tudo o que é combatido,<br />

como a desordem, o esbanjamento, a diversão e o vício e, entre<br />

outras coisas, abre as percepções, anima os sentidos, enfim, propõe<br />

experiências humanas que não se esgotam na racionalidade produtiva<br />

10 . “A festa é excesso em todos os sentidos, para não fazer sentido<br />

algum” (VIANNA, 1997, p. 108).<br />

3.6 SER ARTISTA<br />

Comecei a circular. Observei que os alunos eram em sua maioria negros<br />

e pardos. Todos se vestiam de forma artística, era uma faixa colorida<br />

na cabeça, os cabelos de trancinha, dreads, roupas soltas. Em<br />

momento nenhum pareciam querer copiar algum modelo do asfalto,<br />

possuíam uma estética própria, sempre procurando um resgate da cultura<br />

negra. Pareciam misturar um estilo artístico com uma valorização<br />

da cultura negra.<br />

Diário de campo (20 de março de 2003)<br />

Ser artista não reside em reproduzir modelos do asfalto. Embora<br />

atualmente o grupo se apresente em diversos locais e seja coreografado<br />

por bailarinos do asfalto e do exterior, a arte está em buscar novas<br />

formas de expressão levando-se em conta toda a sua história.<br />

Isso pode ser facilmente observado na estética incorporada pelos<br />

alunos no cotidiano. Os cabelos nunca são alisados, ao contrário,<br />

usam elementos que destacam suas características étnicas, como black<br />

power, trancinhas, dreadlocks, permanente afro, cordinha, sem<br />

contar as faixas e os lenços utilizados nos penteados, havendo alguns<br />

alunos que se especializaram em produzir as barbas e cabelos dos<br />

colegas. As roupas, por sua vez, realçam as linhas e as curvas dos<br />

corpos, em oposição ao estilo predominante no vestuário da dança,<br />

que busca destacar um biótipo longilíneo. De acordo com Maffesoli<br />

(1987), quando uma tribo começa a existir, seus componentes deixam<br />

de ser massa e singularizam-se em um grupo específico, com<br />

10 Para entender a complexidade das relações entre a festa e a sociedade<br />

moderna, conferir Duvignaud (1982).<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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novos códigos a serem compartilhados. No caso, é a tribo dos atores/<br />

bailarinos negros e pardos.<br />

A dança que eles dançam também possui características particulares.<br />

Ao mesmo tempo em que uma técnica acadêmica, como o balé<br />

clássico, é ensinada e aprimorada diariamente, existe a valorização do<br />

que lhes é singular, as origens, os movimentos corporais, o tipo físico, a<br />

musicalidade e a experiência de vida. “Utilizo os elementos da favela<br />

como material cênico. Em vez de esconder, trago para a cena o lixo, os<br />

cobertores, o funk, a violência urbana, o preconceito, as brincadeiras,<br />

as gírias”, diz a coreógrafa, que enfatiza sua posição de artista, e não<br />

de assistente social. “Minha motivação é artística, tudo o que vejo é<br />

levado para o palco”.<br />

A fala da coreógrafa, de certa forma, vai de encontro às falas atribuídas<br />

às coreógrafas do discurso jornalístico. Se nos jornais elas aparecem<br />

sob o véu do discurso religioso de salvação e caridade, dispostas<br />

a se sacrificarem para ajudar crianças a fugirem do inferno, no caso<br />

representado pela polissemia da rua, o desejo da coreógrafa do Projeto<br />

I de levar a dança para as comunidades carentes está norteado por<br />

questões artísticas.<br />

A representação dos alunos também se transforma. Se para os jornais<br />

eles são vistos como desvalidos, excluídos, marginais ou mendigos,<br />

para a coreógrafa do Projeto I, eles são alunos de uma escola de<br />

arte, que se preparam para desenvolver novas formas de dançar e de<br />

se relacionar com o mundo.<br />

Isso não quer dizer que seu discurso não tenha também um forte<br />

conteúdo ideológico: “Gosto de levar ao palco as coisas que me indignam,<br />

para ver se os próprios alunos e o público são profundamente<br />

afetados, por terem que ver o que geralmente todo mundo tenta esconder”.<br />

A arte, para a coreógrafa, em alguns momentos, passa pelo<br />

viés de conscientização e transformação social, como se a arte servisse<br />

para afastar qualquer tipo de pensamento ingênuo e livrar os indivíduos<br />

da “alienação” em que eles vivem. Ela, inclusive, se utiliza da<br />

expressão guerrilha cultural para denominar esse tipo de ação. Será<br />

que esse é o papel da arte?<br />

Este pode até ser um desdobramento da arte: sensibilizar as pessoas<br />

para questões referentes às injustiças sociais, mas não pode ser<br />

sua essência. E, se esse for um desdobramento, por que ser mostra-<br />

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do justamente por bailarinos negros e pobres, moradores de favela?<br />

É, novamente, estigmatizá-los e reduzi-los a só uma possibilidade de<br />

expressão, obstruindo alguns caminhos criativos, deixando pouco espaço<br />

para a revolução do novo.<br />

Tudo parecia muito organizado, e como eu já vinha acompanhando<br />

o trabalho dessa companhia há alguns anos, percebi que estava tudo<br />

bem estruturado. Não era só uma companhia de dança, mas um projeto<br />

pedagógico de formação de cidadania com objetivos bem definidos.<br />

Fiquei com medo de toda essa organização abandonar o caos<br />

necessário para a criação artística. Lembrei de Nietzsche.<br />

Diário de campo (22 de março de 2003)<br />

4 O PROJETO II<br />

Dois bailarinos/coreógrafos com ampla formação em balé clássico e<br />

dança contemporânea e com passagens pelos principais balés da Europa<br />

e dos Estados Unidos vieram para o Brasil, a partir de um convite<br />

da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro, para montar<br />

uma companhia de dança contemporânea carioca e um projeto social<br />

em dança.<br />

Com a formação da companhia, o grupo de profissionais concebeu<br />

um projeto social que tem como prioridade o ensino do balé e da<br />

dança contemporânea para crianças e adolescentes de comunidades<br />

de baixa renda da cidade. Até a realização desta pesquisa, cem jovens<br />

já haviam passado pelo Projeto. Esses jovens são oriundos da<br />

Vila Olímpica da Maré, da Cia. Étnica de Dança e da Fundação Darcy<br />

Vargas. O patrocínio vem do repasse da Prefeitura, embora os organizadores<br />

tenham comentado que não lhes foi repassado tudo o que<br />

foi prometido. “A gente está aguentando quanto pode, mas é muito<br />

difícil trabalhar no Brasil. Nós tínhamos um projeto, que na verdade o<br />

prefeito nunca ‘canetou’, tudo ainda é meio incerto, não dou garantia<br />

desse projeto social, e até da companhia durar muito mais tempo. Eu<br />

vim da Europa com uma proposta concreta, de montar uma companhia<br />

de dança contemporânea na cidade e um projeto social, mas as<br />

coisas, as promessas e o dinheiro ficaram mais no papel do que na<br />

realidade”, diz o coreógrafo.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

129


A expressão “canetar”, utilizada no discurso do coreógrafo, significa<br />

tornar oficial o acordo, “assinar embaixo”, estar formalmente comprometido<br />

com o Projeto. O fato de o prefeito não querer firmar o<br />

acordo, mesmo que algum dinheiro esteja sendo repassado, denota<br />

as bases frágeis ou talvez excessivamente burocráticas em que esses<br />

projetos culturais e sociais muitas vezes se constroem, daí seu caráter<br />

efêmero e sua frouxidão na determinação de objetivos e metas.<br />

Se as coisas não se oficializarem nem se tornarem uma proposta<br />

municipal de incentivo às artes, ou seja, se ficarem no plano pessoal<br />

do conluio, do conhecido “jeitinho” brasileiro e do favor, nunca passarão<br />

pela categoria do direito. O Estado, ao se furtar de assumir um<br />

compromisso, vai ao encontro dos preceitos do liberalismo lockeano.<br />

Não havendo impessoalidade nas relações nem universalidade de<br />

princípios, se toda essa iniciativa não é regida pela questão do direito,<br />

como se pretende formar “cidadãos dançantes”? É interessante conferir<br />

o título da reportagem do jornal O Globo do dia 24 de outubro de<br />

2000: “O Rio é a nova menina dos olhos do coreógrafo dos cidadãos<br />

dançantes”.<br />

4.1 AS VISITAS<br />

O Projeto II acontece num armazém na Zona Portuária da cidade<br />

do Rio de Janeiro, na praça Mauá. As aulas de dança se realizam no<br />

palco de um anfiteatro de aproximadamente 80 metros quadrados de<br />

área, onde foram adaptados espelhos, barras e o piso de linóleo. O<br />

lugar parece não ser reformado há algum tempo, suas características<br />

lembram as dos teatros antigos, com o chão da “arquibancada” coberto<br />

por um carpete vermelho, um piano empoeirado ao fundo e um pé<br />

direito alto, com portas de madeira duplas em formato de arco com<br />

aproximadamente 4 metros de altura.<br />

O contato se deu por telefone, o cronograma das aulas foi repassado,<br />

dando à pesquisadora liberdade para assistir a qualquer aula sem<br />

qualquer restrição de turma ou de horário. A disponibilidade desse<br />

Projeto em ser visitado e investigado academicamente contrastou com<br />

a dificuldade encontrada em outros projetos com maior projeção na<br />

mídia e maior suporte econômico.<br />

130 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


4.2 AS AULAS<br />

Todo o caos e a beleza da existência estavam ali presentes. Era a arte<br />

pela arte, onde uma estética nova e revolucionária surgia. Não havia<br />

amarras quanto a resgates étnicos ou ideologias de direita ou de esquerda.<br />

Era uma estética que abria para o novo, que revolucionava.<br />

Diário de campo (23 de março de 2003)<br />

A aula de balé clássico é dada pelo idealizador, coreógrafo e bailarino<br />

da companhia nos moldes tradicionais, com a utilização de uma<br />

técnica predominantemente europeia. O professor explicava o movimento,<br />

tentando traduzir para os alunos o espírito e o significado<br />

de um gestual inspirado numa estética das cortes francesas do século<br />

XVIII: “Gente, esse movimento de braço (reverência) é uma saudação,<br />

um cumprimento que os nobres faziam entre si nos palácios, durante<br />

as festas e encontros, vocês têm que vivenciar esses personagens”.<br />

O balé clássico está maciçamente presente nas escolas de dança,<br />

mas em geral ele é dado de forma mecânica, funcional, como uma<br />

técnica fundamental de preparação corporal para a dança, havendo<br />

um ofuscamento de seu conteúdo lúdico e simbólico. Esse professor,<br />

talvez por sua passagem pelas companhias de dança europeias, permitiu<br />

que a fantasia se infiltrasse naquela coreografia.<br />

Por mais distante que essa realidade branca, nobre e europeia possa<br />

estar desses bailarinos, ela se atualiza, resgatando o imaginário ocidental<br />

dos contos de fadas, das princesas, dos reis e rainhas. No momento<br />

da dança, a imaginação toma conta e a fantasia se apropria dos corpos<br />

dos bailarinos, inaugurando a dimensão do lúdico; qualquer menina<br />

pode ser Cinderela e qualquer menino, um príncipe valente. Costa<br />

(1999) revela que a experiência corporal lúdica abre espaço para uma<br />

transformação simbólica, permite um desprender-se do cotidiano,<br />

para depois reencontrá-lo transmutado, renovado.<br />

Num pequeno intervalo entre as aulas, em conversas informais, o divertimento<br />

já tomava conta dos discursos daqueles alunos: “Essa aula<br />

é muito divertida, eu adoro dançar” e mais, “gente, estou morta e<br />

nossos pais acham que a gente não faz nada, só se diverte dançando”.<br />

Ao investigar a segunda fala, um dado novo emergiu: há uma cumplicidade<br />

e os pais desejam que os filhos participem de um projeto social<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

131


enquanto são crianças. Qualquer traço de maturidade ou o fato de já<br />

terem terminado o segundo grau faz com que os alunos tenham que<br />

interromper suas atividades para ingressarem no mundo do trabalho.<br />

Algumas falas reforçam esse outro lado da relação das mães com o<br />

Projeto II: “minha mãe até gosta que eu me ocupe, mas também tem<br />

aquele outro lado de ter que arrumar emprego” ou ainda, “o problema<br />

é quando fica grande e começa a perder a graça, a família começa<br />

a te pressionar para trabalhar, não dá mais para ficar fazendo peripécias<br />

por aí”. Na visão das mães, o Projeto II é útil durante uma fase<br />

da vida da criança, posteriormente, até pelo componente viciante da<br />

dança, ele passa a ser um problema.<br />

Após o intervalo, iniciou-se uma aula de dança contemporânea com<br />

uma professora convidada. Essa aula se desenvolve dentro dos pressupostos<br />

atuais da dança contemporânea. Ela é fragmentada, não segue<br />

uma progressão pedagógica de exercícios característicos do balé, utiliza-se<br />

de elementos emprestados de outras técnicas corporais, como<br />

acrobacias e exercícios de interpretação. A aula propõe uma mistura<br />

de referências e um campo aberto para experimentações corporais, o<br />

corpo do bailarino é atravessado por várias correntes, ou seja, uma diversidade<br />

de técnicas compõem a sua formação e dão ao seu discurso<br />

coreográfico um tom de mestiçagem.<br />

O processo de aprendizagem na aula de dança contemporânea é<br />

fundamentalmente autoral, o bailarino vai construindo seus próprios<br />

movimentos a partir de determinadas propostas dadas pelo professor.<br />

A partir daí, uma nova dinâmica se instala na aula: existe uma subversão<br />

da ordem tradicional, vista no balé clássico, em que o professor<br />

determina padrões corretos para os movimentos. Enquanto o balé trabalha<br />

com a ideia de reprodução, a dança contemporânea se recria<br />

constantemente, a partir de uma concepção de transformação. Gomes<br />

(2002), em seus estudos sobre a dança contemporânea carioca, mostra<br />

que há sempre um desejo latente entre os bailarinos e coreógrafos<br />

de transformarem e serem transformados. Para a autora, a dança<br />

lida com a ideia de trânsito, mobilidade, passagem, troca, subversão,<br />

como em um constante processo alquímico.<br />

A alquimia se dá entre a história do bailarino e a dança que ele<br />

dança, ou seja, todos os seus passos carregam sua subjetividade,<br />

seus sonhos e desejos. Não existe somente um modo de se dançar,<br />

132 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


cabe a cada um descobrir e experimentar novas possibilidades de<br />

movimento.<br />

Não se nota no trabalho do Projeto II nenhuma ênfase na questão<br />

da etnia, de resgate de uma cultura africana ou de qualquer proposta<br />

para uma “arte engajada”; todo o processo segue um viés fundamentalmente<br />

artístico. Existe um apagamento da condição social dos<br />

bailarinos, uma vez que isso não é o elemento gerador da criação<br />

na dança.<br />

Em uma leitura tradicional, isso poderia assumir ares de alienação,<br />

porém, dentro de uma perspectiva artística, ocorre um alargamento<br />

de possibilidades, que descolam o indivíduo de suas marcas mais<br />

óbvias. Os bailarinos não são vistos apenas pela sua forma de inserção<br />

social, e sim pela sua capacidade de fantasiar e de criar.<br />

Afinal, não é a arte o mais alto poder do falso, a magnificação do<br />

erro e a santificação da mentira? Relembrando Nietzsche (1996), o<br />

poder do falso deve ser elevado até uma vontade de enganar, vontade<br />

artística, que é a única capaz de rivalizar com o ideal ascético. Para<br />

o autor, os artistas são os inventores de novas possibilidades de vida.<br />

Os aspectos essencialmente lúdicos e estéticos vistos nas aulas forneceram<br />

novas pistas para a pesquisadora sobre um tema recorrente<br />

em pesquisas sobre marginalidade: o papel da casa e da rua no<br />

imaginário dos jovens moradores de comunidades de baixa renda.<br />

As matérias jornalísticas contrapõem esses papéis: a rua representa<br />

a perdição e a casa, a proteção. Nas falas dos alunos outros sentidos<br />

emergiram: “Antigamente eu era muito parado, fui para a Vila Olímpica<br />

para fazer alguma coisa” ou, “Antes eu não me ocupava com<br />

nada. Eu fui para a Vila Olímpica e gostei, antes não tinha nada para<br />

fazer” ou ainda, “Agora eu fico mais em casa, antes ficava largado<br />

na praça, não tinha nada para fazer, mas pelo menos não fazia nada<br />

com outras pessoas, em casa ficava sozinho”. A casa e a rua entram<br />

na mesma rede de sentidos, significam o não ter o que fazer, o vazio<br />

de sentidos. A rua muitas vezes não é opção de experiências que pudessem<br />

trazer algum significado para esses jovens. O projeto social,<br />

então, cria uma rede de sentidos que norteia as práticas cotidianas<br />

dos bailarinos.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

133


4.3 OS ALUNOS<br />

Os professores eram os mesmos que davam aulas para uma companhia<br />

profissional da cidade e os alunos não eram iniciantes, vinham<br />

de outros projetos sociais de dança. Estavam ali para aprimorar sua<br />

capacidade artística, sua técnica, sua expressividade, sua sensibilidade,<br />

e não para se tornarem educados, disciplinados e cidadãos.<br />

Diário de campo (29 de março de 2003)<br />

O Projeto II atua com uma faixa de bailarinos que já possuem<br />

formação inicial em dança, a maioria participa ou já participou de<br />

algum outro projeto social. Talvez isso permita que o Projeto II enfatize<br />

uma formação artística menos pedagogicista. Até por ser elaborado<br />

por um bailarino/coreógrafo, não se propõe e nem se obriga<br />

a assumir o papel da escola ou da família, partindo do princípio de<br />

que quem está ali quer aprimorar sua vivência artística.<br />

Esses bailarinos já formam outra tribo: a linguagem, os gestos, o<br />

vestuário já se diferenciam daqueles que se notam em projetos sociais<br />

formais. Já mostram diferenças entre eles em relação aos estilos<br />

de dança, demonstrando variadas experiências e aptidões. Existe<br />

uma diversidade de identidades, que possuem em comum aquele<br />

território onde valores e referências são compartilhados.<br />

Talvez por esse Projeto viver uma incerteza quanto à sua continuidade,<br />

não existe uma escola, mas uma multiplicidade de tendências.<br />

O preço dessa riqueza artística pode ser o caráter efêmero<br />

e, portanto, pós-moderno do processo. Entretanto, de acordo com<br />

Maffesoli (2003), essa perspectiva de viver o agora em seu máximo<br />

vigor, sem pensar racionalmente no desenrolar dos fatos futuros, dá<br />

espaço para que uma ética vivida no presente adquira mais força<br />

do que uma moral universalista e distante. Uma nova noção de<br />

temporalidade se inaugura. É a vida que se esgota no ato de viver<br />

intensamente o presente. Para o autor, a vida está aqui, e não em<br />

outra dimensão. A participação mágica está arraigada no aqui e no<br />

agora. O mundo de cá é o que se apresenta a ver e a viver, é o gozo<br />

no presente.<br />

134 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


4.4 APOLO E DIONISIO<br />

Durante uma visita ao Projeto, senti imediatamente que meu estudo,<br />

apesar de ter provocado muita dor e sofrimento, tinha valido a<br />

pena. Estava em êxtase lúdico, estético e, por que não dizer, trágico.<br />

Diário de campo (28 de março de 2003)<br />

A questão da temporalidade logo se apresentou como um aspecto<br />

novo no desenrolar deste Projeto. Em primeiro lugar, para a pesquisadora,<br />

no lugar social de público, assistindo ao espetáculo, o tempo<br />

parou. Naquele momento a intensidade do estético e do lúdico<br />

rompeu com qualquer possibilidade de linearidade do tempo.<br />

A noção de projeto, com objetivos bem definidos e coerentes<br />

com uma progressão linear ordenada, foi brutalmente invadida e<br />

esteticamente dominada por uma força criativa que eternizou aquele<br />

instante.<br />

Todo trabalho de corpo, que consiste numa sucessão de passos desenvolvidos<br />

ao longo dos anos, pareceu abandonar uma perspectiva<br />

puramente técnica para se transformar em inúmeras possibilidades de<br />

gozo. O lúdico e o estético se conjugaram e o ato de dançar resgatou a<br />

dimensão do jogo e do belo. Dentro de uma perspectiva trágica, Apolo<br />

e Dionisio se reencontraram. A representação artística, portanto, traz a<br />

essência e a aparência, a luz e as trevas, a superabundância das forças<br />

dionisíacas dentro de uma estética apolínea. É nessa união que a vida<br />

se faz sentir, onde ela se afeta, onde ela propriamente é.<br />

Para Nietzsche (1996), a arte trágica produz alegria. Ela surge<br />

como um estimulante da vontade de potência. Nada na vida deve<br />

ser negado, até os aspectos mais tenebrosos devem ser vividos em<br />

sua intensidade. A expansão da vida consiste em aceitar o todo da<br />

existência humana. O autor propõe uma celebração de todas as<br />

forças imanentes, sem a necessidade de se aspirar, de forma mística<br />

ou ideológica, a uma vida perfeita, melhorada ou duradoura.<br />

O Projeto II, ao se furtar de uma retórica linear, moderna e dramática,<br />

situou-se além da moral, da metafísica ou da religião. Permitiu<br />

perceber que não há mais fantasias nem ilusões. É tempo de viver<br />

artisticamente, isto é, celebrar cada instante em sua totalidade, sem<br />

saudades de um amanhã perfeito ou redentor.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

135


A dança bastava-se por si mesma, representava uma intensificação<br />

da vida porque proporcionava uma “pequena morte”, um orgasmo<br />

advindo do êxtase, mas uma morte que traz ainda mais vigor à vida.<br />

Uma vida que se esgota no ato mesmo de sua criação.<br />

Fiquei pensando que as narrativas modernas e a noção de temporalidade<br />

linear a que estamos acostumados realmente assassinam a arte.<br />

O Projeto acontecia naquele momento, não se saberia o que viria depois,<br />

ou amanhã, era o tempo vivido. A corporeidade experimentada<br />

naquele momento era o ser dentro de uma ética vital. Para mim, uma<br />

experiência inesquecível.<br />

Parece realmente que a arte nasce do caos, é a porta de abertura da<br />

cultura para os instintos. É aí que está a verdade. De novo lembrei do<br />

Nietzsche. A arte é mais ação do que reflexão, é ela que transmuta as<br />

forças reativas em ativas. Ela é potência criativa capaz de proporcionar<br />

uma experiência dionisíaca, muito além do bem e do mal.<br />

Diário de campo (2 de abril de 2003)<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Muitas tribos e muitos espaços se formam e se dissolvem a partir da<br />

inserção de projetos desenvolvidos em uma determinada área. Iniciativas<br />

governamentais e não governamentais, patrocínios de empresas<br />

nacionais e internacionais, pessoas de fora da comunidade, com ou<br />

sem subsídio financeiro, associação de moradores e até mesmo indivíduos<br />

das comunidades desenvolvem projetos que transformam a arquitetura<br />

da favela e da cidade e forjam novas subjetividades. Há, por<br />

exemplo, a construção de vilas olímpicas, as salas de aula de escolas<br />

públicas que viram salas de balé, os pátios de igrejas e as praças que<br />

se transformam em palcos, sobrados antigos do Rio de Janeiro cedidos<br />

para serem escolas de dança e teatro e armazéns da Zona Portuária da<br />

cidade que são reformados para abrigarem companhias e projetos<br />

de dança. Todos esses projetos criam códigos de linguagem específicos,<br />

definem gírias, roupas, acessórios e corpos, produzem sentidos e<br />

constroem crenças, fantasias, desejos e sonhos.<br />

A proliferação de projetos sociais permite uma vivência rica e<br />

múltipla da arte; entretanto, a dependência de capital e suas imbri-<br />

136 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


cações políticas os transformam em iniciativas caóticas, desordenadas<br />

e efêmeras. Muitos projetos são criados e descontinuados sem<br />

qualquer tipo de planejamento racional ou de justificativa pública.<br />

Algumas favelas, mais assediadas pela mídia, possuem uma dezena<br />

de projetos, como a Mangueira, o Pavão/Pavãozinho e a Rocinha,<br />

enquanto outras, como as da Zona Oeste, do Centro e da Leopoldina,<br />

são absolutamente esquecidas pelo poder público e pela<br />

sociedade civil.<br />

Alguns projetos parecem buscar somente um impacto instantâneo,<br />

são efêmeros, não possuem poder de sustentação, constroem<br />

e destroem sonhos, não podem ser considerados estruturantes na<br />

formação dos indivíduos. O outro lado do colapso dos horizontes<br />

temporais, da busca do impacto imediato e do descaso com a continuidade<br />

dos projetos é uma perda paralela de profundidade. Tudo<br />

acontece rapidamente, como uma série de presentes puros e não<br />

relacionados no tempo.<br />

Atualmente, a produção cultural integrou-se à produção de mercadorias<br />

em geral. Surge no meio artístico e cultural a necessidade<br />

e a urgência de se produzirem novos produtos e novas experimentações<br />

estéticas, para serem imediatamente comercializados. Vale<br />

a pena lembrar Baudrillard (2001), quando afirma que a produção<br />

artística também entrou no estádio de circulação ultrarrápida.<br />

Existe uma produção de necessidades e desejos que mobiliza os<br />

indivíduos a consumirem um determinado produto, que pode ser<br />

um filme, um show, um programa de televisão, um estilo de roupa<br />

ou um espetáculo de dança. Mais do que uma inovação estética ou<br />

uma obra de arte, o que se vê é a atualização do capitalismo, para<br />

manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar<br />

sua lucratividade. A estética se materializou por toda parte<br />

e assumiu uma forma operacional. O sistema funciona não tanto<br />

pela mais-valia da mercadoria, mas pela mais-valia estética do signo<br />

(BAUDRILLARD, 2001).<br />

A arte na favela também entra na lógica da diversificação do capital.<br />

É como se a preocupação estética do momento suplantasse um<br />

compromisso com o depois. Não há um investimento mais longo e<br />

consistente quanto à formação ética dos atores sociais. A passagem<br />

relâmpago dos investimentos transforma da noite para o dia um<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

137


morador da favela em um bailarino ou em um ator de sucesso, para<br />

depois novamente devolvê-lo à favela, com poucas possibilidades<br />

de dar prosseguimento ao seu trabalho, pois o capital que o impulsionou<br />

já migrou para novas experimentações estéticas. O que<br />

vem depois parece não importar, existe um abandono da ideia de<br />

continuidade.<br />

Muitos projetos sociais de dança têm uma duração que parece<br />

estar ligada a uma estética do acontecimento. Interessante notar,<br />

contudo, que a palavra “projeto” tem sua origem etimológica no<br />

latim, projectus, e significa “ação de lançar para frente, de se estender,<br />

extensão”.<br />

É importante que a lógica do capital não anuvie a dimensão artística<br />

e ética dos projetos. Senão, em vez de projeto social, haverá<br />

um evento social que formará, no lugar de artistas, empresários da<br />

dança e bailarinos frustrados. Por sua vez, os projetos que se engessam<br />

em algumas metanarrativas modernas de resgate da cidadania,<br />

da etnia, ou que se baseiam em qualquer forma de engajamento<br />

rígido, que controlam o tempo aprisionando-o a uma linearidade<br />

racional, transformam-se em projetos pedagógicos formais, em que<br />

a dança é usurpada de sua dimensão lúdica e estética.<br />

O homem cidadão pode até ser produzido, mas e o homem artista?<br />

Será que o projeto criou uma alma externa feita para ser vista<br />

somente de fora? As marcas exteriores do balé não deixam dúvidas,<br />

tatuam o corpo e os gestos, permitem um reconhecimento imediato<br />

a qualquer olhar dirigido ao espelho.<br />

Antes de ser um cidadão, entretanto, o artista é criador. Ele, de<br />

fato, prescinde do espelho, a intensidade de sua potência criativa<br />

lhe mostra a dimensão de sua existência. Ele sente tragicamente o<br />

mundo, não reflete sobre ele, tenta transformá-lo a cada instante.<br />

Todo projeto social de dança deveria se desenrolar como um drama,<br />

sem contudo abandonar seus aspectos trágicos, como as duas<br />

metades de uma laranja. É pela arte que uma cultura se abre para<br />

os instintos, senão, não é arte.<br />

Este estudo não se esgota aqui, muitos outros aspectos do pensamento<br />

sobre a arte e a sociedade escaparam ao escopo da abordagem<br />

proposta. Algumas coisas, porém, ficaram claras: a pobreza<br />

não aniquila a alegria de viver, o drama e o trágico são vividos em<br />

138 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011


todas as classes sociais, cada um a sua maneira. Novas formas de<br />

vida são inventadas a cada dia e, por fim, a capacidade de viver o<br />

lúdico e o estético define o vigor de uma cultura. Qualquer tentativa<br />

de achatamento dessas potências gera dor e ressentimento. É a<br />

morte em vida.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 108-141 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

141


GINÁSTICA ESCOLAR COMO<br />

DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-<br />

PEDAGÓGICO: UMA<br />

ANÁLISE DA RELAÇÃO<br />

ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE<br />

E MORALIDADE EM<br />

FERNANDO DE AZEVEDO 1<br />

Murilo Mariano Vilaça<br />

1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no VIII Congresso Luso-<br />

-Brasileiro de História da Educação: Infância, Juventude e Relações de Gênero<br />

na História da Educação, em São Luís (MA), em 2010, com o título “O corpo<br />

educado, o homem regenerado: Fernando de Azevedo e o papel da gymnastica<br />

escolar (1915-1933)”.<br />

142 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


Como imperativo, a saúde tem constituído uma complexa rede de relações<br />

de poder-saber. Persuadidos da importância do investimento pessoal na busca<br />

de uma vida considerada saudável, os sujeitos modificam suas condutas,<br />

submetendo-se a um intrincado procedimento de normalização que extravasa<br />

o âmbito biológico da vida, atuando sobre outros aspectos. Neste artigo,<br />

analiso como Fernando de Azevedo articulou saúde, educação e moralidade<br />

por meio da prática denominada ginástica escolar. Partindo da genealogia da<br />

noção moderna de saúde e da sua importância para o controle e organização<br />

do meio social, bem como para a produção de subjetividades, abordo o papel<br />

conferido pelo autor àquela prática no processo de regeneração do povo e na<br />

formação de uma nova nação brasileira. Neste sentido, infiro que, a partir de<br />

uma visão biologicista de educação, Fernando de Azevedo procurou lançar um<br />

investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando no vínculo<br />

entre educação, biologia, política e moral.<br />

Palavras-chave: ginástica escolar, educação, Fernando de Azevedo<br />

As imperative, the health has been a complex network of relationships of power-knowledge,<br />

impacting the subjects. Convinced of the importance of the<br />

personal investment in pursuit of a life considered healthy, the individuals modify<br />

their behaviors, submitting themselves to an intricate normalization procedure<br />

that goes beyond the biological life, working on other aspects. In this<br />

article, I analyze how Fernando de Azevedo articulated health, education, and<br />

morality through the practice known as school gymnastics. From the genealogy<br />

of the modern notion of health and its importance for the control and organization<br />

of the social environment, as well as for the production of subjectivities, I<br />

discuss the role given by the author to that practice in the process of regeneration<br />

of the people and in the formation of a new Brazilian nation. In this sense,<br />

I infer that, from a biological view of education, Fernando de Azevedo sought<br />

to launch a biopolitical investment on the Brazilian population, focusing on the<br />

relationship between education, biology, politics and morality.<br />

Keywords: school gymnastics, education, Fernando Azevedo<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

143


INTRODUÇÃO<br />

A relação histórica entre práticas corporais e pedagógicas, produção<br />

de saberes e exercício do poder com vistas ao governo dos homens<br />

possui várias nuances, múltiplas formas e distintos objetivos. Cada<br />

configuração histórica tem suas particularidades, que são irredutíveis a<br />

um modelo, um método ou um objetivo. O esforço de compreender<br />

a multiplicidade exige observar traços da experiência, visando à apreensão<br />

de alguns sentidos, tendo em vista sua relevância para se compreender<br />

uma época e as relações que estabelece com outros tempos.<br />

Tomando a modernidade como uma passagem histórica marcante<br />

no que tange aos cuidados com a vida, haja vista poder ser identificada,<br />

entre outras coisas, com a emergência de uma série de biociências,<br />

o que, por sua vez, ensejou o nascimento da clínica, da medicina<br />

social e da ideia de saúde pública, é a partir dela, de uma genealogia<br />

das relações de saber-poder que se inventou para governar os sujeitos<br />

e a vida, que constituirei o pano de fundo da discussão central do<br />

presente artigo.<br />

Investigo como Fernando de Azevedo articulou saúde e educação<br />

por meio da prática denominada de ginástica escolar 2 . A partir<br />

duma análise da noção moderna de saúde e da sua importância<br />

para a organização do meio social, estabeleço uma cartografia para<br />

analisar a visão de Azevedo, segundo a qual a ginástica, além de<br />

promover saúde, regeneraria os indivíduos. Inicialmente, focalizo<br />

como a saúde se tornou um imperativo, constituindo uma rede de<br />

relações de poder-saber tipicamente moderna. A análise permitiu<br />

compreender traços da proeminência que aquele imperativo goza<br />

desde a modernidade e como isso repercute, doravante, na formação<br />

das noções de homem. Grosso modo, persuadidos da sua importância,<br />

os sujeitos modularizam suas condutas, submetendo-se<br />

relativamente a um intrincado procedimento de normalização que<br />

extravasa o âmbito biológico da vida humana, atuando sobre outros<br />

2 Embora o termo utilizado nos textos de Fernando de Azevedo seja gymnastica<br />

escolar, neste artigo, usarei sua versão atualizada, mantendo o original apenas<br />

nos títulos dos livros. O mesmo procedimento será feito para outros termos<br />

que tenham grafia atualizada.<br />

144 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


aspectos. Os campos da moralidade e da formação do caráter são<br />

alguns exemplos.<br />

Com o apoio analítico-conceitual da noção foucaultiana de governamentalidade,<br />

especialmente o polo biopolítico, busco, na primeira<br />

parte deste artigo, fazer uma breve cartografia da lógica operatória<br />

na qual a ginástica está inserida, concebida como um dispositivo biopolítico-pedagógico<br />

de gestão da vida. Dessa etapa analítica, depreendo<br />

que Azevedo conjugou, com a ginástica, saberes biocientíficos,<br />

intentos biopolíticos de regeneração étnico-racial e formação moral,<br />

investindo biopoliticamente sobre a população brasileira. Esses apontamentos<br />

serviram de base para analisar a articulação entre elementos<br />

do movimento higienista e a ginástica escolar no pensamento de<br />

Fernando de Azevedo. Cumpre ressaltar que, a partir do século XIX,<br />

viu-se uma crescente influência dos movimentos higienistas no Brasil.<br />

Com eles, a escola passou a exercer uma função indispensável na<br />

prática e formação de hábitos e condutas, na promoção de hábitos<br />

saudáveis.<br />

O foco analítico foi o texto “A poesia do corpo ou a gymnastica escolar:<br />

sua história e seu valor” (1915), no qual a ginástica é denominada<br />

de médico-pedagogia. Secundariamente, outrossim, considero<br />

os textos “Da educação physica: o que ella é, o que tem sido, o que<br />

deveria ser” (1920) e “O problema da regeneração” (1933). Com<br />

eles, foi possível compreender como a ginástica, associada à educação<br />

física, é valorizada como prática escolar capaz de regenerar o<br />

povo brasileiro de um modo radical, a saber, alterando a sua constituição<br />

étnico-racial. As conclusões sugerem que Azevedo, integrando<br />

a noção de governamentalidade biopolítica, reputa à ginástica<br />

um papel fundamental num conjunto de tecnologias que visavam à<br />

prevenção e promoção de dada noção de vida saudável ou higiênica<br />

(biológica), mas, sobretudo, à regeneração de uma população<br />

tida como étnico-racialmente deficiente, prescrevendo uma noção<br />

de vida boa e correta (ético-política), sem a qual a nação brasileira<br />

não progrediria.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

145


1 EIXOS DO IMPERATIVO DA SAÚDE COMO PRINCÍPIO GOVERNAMENTAL<br />

DA VIDA: BIOPOLÍTICA, MEDICALIZAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA<br />

As práticas corporais como atividades de cunho pedagógico intimamente<br />

associadas à educação física como uma disciplina escolar<br />

representam, em certa medida, uma mentalidade atinente à modernidade<br />

educativa. Quer dizer, a modernidade representa um importante<br />

momento na reestruturação do exercício do poder pela produção de<br />

novos campos de saberes, bem como de meios de transmissão daqueles<br />

tidos como oficiais, científicos e verdadeiros, saberes totalizantes e<br />

englobantes, de tal maneira que pudessem ser um eficaz exercício de<br />

poder e de governo (CASTRO, 2006). A modernidade educativa, então,<br />

entendida como uma iniciativa de disciplinarização da sociedade e de<br />

promoção da vida, pode ser analisada a partir dos efeitos que visa a<br />

produzir pelas relações de saber-poder que atualiza, sobretudo acerca<br />

de que subjetividade quer empreender.<br />

Nesse sentido, as práticas corporais estão inseridas na lógica das<br />

relações de poder-saber que a modernidade inventou para governar<br />

sujeitos, preenchendo os requisitos para um exercício do poder biopolítico.<br />

Para compreender esse cenário, uma chave interpretativa é<br />

a análise do binômio formado pelo saber médico-higienista. Há a necessidade,<br />

portanto, de se resgatarem traços do movimento higienista,<br />

que data do século XIX, e da ideia de saúde pública. É a partir do<br />

conjunto formado pela relação entre saber médico e medicalização da<br />

sociedade, pela noção de saúde pública e pelo movimento higienista<br />

que traçarei uma cartografia.<br />

O filósofo francês Michel Foucault desenvolveu uma vasta e detalhada<br />

genealogia dos modos de exercício do poder com vistas ao governo.<br />

Sob o termo governamentalidade, ele pesquisou, na década<br />

de 1970, aquilo que considerou como os dois polos do governo dos<br />

outros sob o registro do biopoder, a saber, o poder disciplinar e a<br />

biopolítica, a partir do seu surgimento no século XVII e nos séculos<br />

XVIII e XIX, respectivamente. Na década seguinte, Foucault voltou o<br />

seu olhar para a antiguidade greco-romana, entrecruzando a questão<br />

do governo com a ética, ocupando-se de um estudo detalhado acerca<br />

das práticas de si e das formas de subjetivação (a noção de cuidado de<br />

si, de ascese, de parrhysía etc.) que ensejavam o governo de si.<br />

146 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


O lema da governamentalidade, em todas as suas formas, pode ser<br />

descrito por três questões fundamentais, conforme exposto por<br />

Foucault (2007): “como se governar, como ser governado, como fazer<br />

para ser o melhor governante possível” (p. 277-8). Para tanto, poderes<br />

e saberes são mobilizados. É nesse sentido, o da inserção da política<br />

nos limites de uma lógica, por assim dizer, econômica, da melhor<br />

gestão dos recursos para levar a efeito o objetivo do modo mais eficaz<br />

possível, que Foucault analisou, no curso “Segurança, território<br />

e população” (1978), a crise do poder de pastorado que ensejou a<br />

passagem para a razão de Estado, para o Estado governamentalizado.<br />

Nessas pesquisas, não só sobre as governamentalidades, o foco foucaultiano<br />

está voltado, conforme ele mesmo atesta, para os modos de<br />

objetivação dos sujeitos, isto é, as formas de transformação do ser humano<br />

em sujeito. No post-scriptum “O sujeito e o poder”, publicado<br />

na conhecida obra organizada por Dreyfus e Rabinow (originalmente<br />

intitulada Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics),<br />

Foucault identifica o seu extenso trabalho de reflexão como um empreendimento<br />

que visa a “criar uma história dos diferentes modos<br />

através dos quais, na nossa cultura, os seres humanos têm sido convertidos<br />

em sujeitos” (FOUCAULT, 2001, p. 241). A título de análise,<br />

elejo apenas o polo do governo dos outros, intitulado biopolítica. É o<br />

modo biopolítico de gestão do humano e formação dos sujeitos que<br />

interessa aqui.<br />

Por biopolítica, Foucault entende “a maneira como se procurou,<br />

desde o século XVIII, racionalizar os problemas colocados à prática<br />

governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos<br />

denominados como população” (FOUCAULT, 2008a, p. 359). A<br />

biopolítica é um tipo específico de poder que se centrou no corpo-<br />

-espécie, que constitui uma população de seres vivos transpassados<br />

por uma espécie de mecânica própria calcada nos processos biológicos.<br />

De acordo com Foucault (2005), esse exercício do poder é,<br />

essencialmente, um conjunto de tecnologias cujo objetivo é aumentar<br />

a vida, prolongar a sua duração, multiplicar as suas possibilidades, desviar<br />

seus acidentes e compensar suas deficiências pela gestão de certos<br />

fenômenos vitais. Dentre os fenômenos que apontam sobre o que tal<br />

poder atua, estão, como vimos acima, a proliferação, os nascimentos<br />

e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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considerando-se todas as condições que podem fazê-los variar. Esses<br />

fenômenos e condições são inseridos num regime de governo que<br />

une política e economia (FOUCAULT, 2007), uma gestão calculadora,<br />

que pretende oferecer o melhor modo de governar aquela entidade<br />

biológica definida como população, por meio de controles reguladores<br />

variados, normalizadores, que respeitam a lógica dos dispositivos de<br />

segurança.<br />

A lógica operatória dos dispositivos de segurança é descrita por<br />

Foucault (2008b) a partir da análise da intersecção entre caso-risco-<br />

-perigo-crise, própria das técnicas profiláticas de vacinação, tal como<br />

ele aborda utilizando os procedimentos atinentes à variolização na<br />

passagem do século XVIII para o XIX. Com base em seus mecanismos<br />

preventivos, analisa como um problema se distribui numa sociedade,<br />

que risco oferece para as pessoas, qual o perigo objetivo para cada<br />

indivíduo e como gerir uma situação na qual os meios tradicionais não<br />

dão conta, quer dizer, como gerir a crise. Tal regime político está associado<br />

a um campo específico de saber, qual seja, a medicina.<br />

O poder político da medicina “consiste em distribuir os indivíduos<br />

uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los, um a um,<br />

constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e<br />

fixar, assim, a sociedade em um espaço” (FOUCAULT, 2008b, p. 89).<br />

Esse trecho indica que uma série de elementos ligados aos mecanismos<br />

médicos extravasou para o controle social urbano num sentido<br />

ampliado, indiciando o fato de a medicina, entendida como técnica<br />

geral de saúde, ter assumido um lugar cada vez mais importante na<br />

maquinaria de poder a partir do século XVIII. Consoante à interpretação<br />

foucaultiana da modernidade, nesse século nasce um tipo de<br />

poder que está relacionado a um saber médico-administrativo<br />

acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição<br />

de vida, de sua habitação e de seus hábitos (...), uma ascendência<br />

político-médica sobre uma população que se enquadra como uma<br />

série de prescrições que dizem respeito não só à doença mas às formas<br />

gerais da existência e do comportamento (a alimentação e a bebida, a<br />

sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir, a disposição ideal<br />

do habitat (FOUCAULT, 2008b, p. 202).<br />

148 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


Afinal, isolar, individualizar, fixar (em um domicílio, por exemplo), esquadrinhar,<br />

dividir, inspecionar, controlar, registrar etc. são ações ligadas<br />

a práticas que visam a promover um minucioso controle social, pautado<br />

sobretudo na previdência, diretamente ligadas ao saber médico.<br />

Tal procedimento de gestão de populações de humanos é nomeado<br />

por Foucault como medicalização. Por esse conceito se entende um<br />

complexo, indefinido e contínuo processo de normalização biopolítica,<br />

que envolve uma série de práticas, cujos fundamentos estão nos<br />

procedimentos médicos, que têm uma função política de regular condutas,<br />

comportamentos, a vida biológica, incluindo os corpos, para<br />

além do registro das enfermidades. A saúde estava diretamente relacionada<br />

à noção de bem-estar da população, constituindo, em bloco,<br />

saúde-bem-estar, um dos objetivos essenciais do poder político, uma<br />

espécie de imperativo da saúde (FOUCAULT, 2007).<br />

Foucault faz uma análise a partir de uma genealogia da medicina<br />

social. Na sua pesquisa sobre a política de saúde no século XVIII, por<br />

exemplo, destaca as mudanças que implicaram uma nova noso-política,<br />

ou seja, uma nova “política das doenças”, que não deve ser<br />

entendida como uma intervenção do Estado na prática médica de<br />

cima pra baixo e/ou uniforme. De acordo com o filósofo, houve um<br />

deslocamento progressivo dos procedimentos mistos e polivalentes<br />

de assistência à saúde. O objetivo era operar um esquadrinhamento<br />

mais rigoroso das populações. Por um lado, houve a separação entre<br />

pobreza e doença; por outro, estabeleceu-se um novo quadro de distinções,<br />

de diferenciações categoriais e/ou funcionais, no qual a figura<br />

do pobre é substituída pela dos bons ou maus pobres, dos ociosos<br />

voluntários e dos desempregados involuntários etc. Em vez da pobreza,<br />

o que emerge como um problema ou uma categoria é a ociosidade.<br />

Preocupando-se com suas condições e seus efeitos, a nova<br />

noso-política visa basicamente à produtividade, ainda que se guarde<br />

uma estreita relação com a pobreza. Quer dizer, pretendia-se, por um<br />

lado, primordialmente, tornar a pobreza útil, fixando-a nos aparelhos<br />

de produção com um mínimo de vida saudável, isto é, uma vida que<br />

tornasse os indivíduos capazes de produzir; ou, por outro, aliviar ao<br />

máximo o peso dos pobres para o resto da sociedade.<br />

Essas novas regras, que são fruto da problematização da noso-política<br />

ocorrida naquele século, traduzem a organização progressiva da grande<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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medicina no século XIX, que é, por sua vez, corporificada por “uma<br />

política de saúde e de consideração das doenças como um problema<br />

político e econômico” (FOUCAULT, 2007, p. 194). Tal política de assistência<br />

não focaliza apenas os pobres, mas sim uma coletividade. Ou<br />

seja, buscam-se efeitos de conjunto, que atinjam toda uma população.<br />

O objetivo geral deve ser compreendido como “a saúde de todos como<br />

urgência para todos; o estado de saúde de uma população” (p. 195).<br />

Na medicalização biopolítica da sociedade, uma série funcional deve<br />

ser implementada e mantida ciosamente, a saber, a disposição da sociedade<br />

como meio de bem-estar físico, saúde perfeita e longevidade.<br />

Essa tríplice função fora exercida por um aparelho que conjugava mecanismos<br />

de garantia da ordem, desenvolvimento canalizado das riquezas<br />

e promoção da saúde em geral: a polícia 3 (FOUCAULT, 2007). Haja<br />

vista o foco do presente artigo, dentre suas múltiplas atividades, destaco<br />

o papel de preservar o respeito, o cumprimento das regras gerais de<br />

higiene. O privilégio dado à higiene marca a noso-política moderna, é<br />

um traço destacado do funcionamento da política médica como instrumento<br />

de controle social. Pensar a medicalização no seu nascedouro<br />

é se remeter à higiene como um regime de saúde de populações, um<br />

regime que envolve práticas profiláticas que foram alargadas ao conjunto<br />

de uma população, a fim de desaparecer com os surtos epidêmicos,<br />

baixar a taxa de morbidade e majorar a duração da vida.<br />

Tais objetivos são operacionalizados pelas instituições, bem como pelas<br />

práticas de saúde pública a elas atinentes. Para a história da saúde pública,<br />

os anos entre 1750 e 1830 foram decisivos. É nessa época, segundo<br />

Rosen (1994), que são lançadas as bases do Movimento Sanitário do século<br />

XIX, estabelecendo alguns princípios que, associados às mudanças<br />

diacrônicas no campo, influenciam a saúde pública até a atualidade. Possivelmente,<br />

é a reboque do Iluminismo que se inicia um ávido impulso<br />

de fazer chegar ao povo os conhecimentos científicos e da medicina, com<br />

o intuito de esclarecer o público sobre os assuntos de saúde e higiene.<br />

É nesse momento histórico que se reconhece a importância dos<br />

dados numéricos precisos sobre os habitantes e tomam força os re-<br />

3 Este termo deve ser entendido num sentido genérico, já que, pelo menos<br />

até o final do Antigo Regime, a polícia não se resumia às instituições policiais<br />

propriamente ditas.<br />

150 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


gistros matemáticos da vida e da morte. Em 1786, o célebre matemático<br />

Pierre Simon Laplace procurou estimar a população francesa<br />

a partir das taxas de nascimento de distritos representativos. A partir<br />

das ideias de Condorcet sobre o uso do cálculo das probabilidades<br />

nas questões de saúde, Philippe Pinel, em 1807, procurou provar,<br />

matematicamente, o valor do tratamento moral de seus pacientes psiquiátricos.<br />

Em 1820, Jeremy Bentham propôs, em seu governo hipotético,<br />

a criação de um escri tório central de estatística. Enfim, vários<br />

Estados, especialmente a França, e estudiosos se debruçaram sobre a<br />

aritmética política (ROSEN, 1994).<br />

Mais tarde, diferentes investigações contribuíram para fortalecer, ainda<br />

mais, a relevância do cálculo estatístico e das probabilidades nas análises<br />

sobre a saúde. Adolpho Quetelet reuniu e organizou dados sobre o tamanho<br />

corporal e procurou expressar, em um valor numérico, o homem<br />

médio. Assim, em 1835, Quetelet apresentou o índice de Quetelet, também<br />

conhecido como índice de massa corporal (IMC), como resultado<br />

da distribuição em uma curva de normalidade. Entre 1849 e 1855, John<br />

Snow publicou dois manuscritos que continham suas conclusões sobre as<br />

mortes por cólera em Londres. Mesmo desconhecendo o agente infec -<br />

cioso, Snow identificou e relacionou, a partir dos dados estatísticos,<br />

o número de mortes de cada área habitada com o grau de poluição no<br />

rio Tâmisa e, portanto, das condições socioeconômicas (ROSEN, 1994).<br />

Desses estudos, pode-se especular, emergiram as raízes do discurso<br />

sobre o risco na saúde pública. Com efeito, o higienismo é um traço<br />

fundamental da rede de tecnologias médico-políticas que constituíram<br />

a ideia de governamentalidade biopolítica nos séculos XVIII e XIX, legando<br />

ao século XX relevante influência – o que não significa identidade<br />

entre elas, mas sim o compartilhamento de alguns sentidos, práticas e<br />

métodos, tais como o estabelecimento ainda hoje de políticas de controle<br />

médico-estatístico de endemias em conjuntos populacionais.<br />

2 A EDUCAÇÃO FÍSICA COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO:<br />

O PAPEL DA GINÁSTICA<br />

A problemática das epidemias é um foco constante da literatura médica<br />

do início do século passado (MIRANDA e DABAT, 2000). Com<br />

base em um modelo flagrantemente higienista, forjado por discursos<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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e práticas, sobretudo médicos, que visavam à profilaxia, conforme se<br />

percebe numa pesquisa preliminar nas publicações disponíveis no catálogo<br />

de teses de medicina do Brasil, tal enfoque tem sido largamente<br />

estudado, e seu papel civilizatório vem sendo devidamente trabalhado<br />

na sua estreita relação com a educação (GONDRA, 2000; 2003;<br />

2004). Essa preocupação com as epidemias teria chegado ao Brasil,<br />

com reapropriações e reinterpretações, na passagem do século XIX<br />

para o XX, dando lugar ao cuidado com a saúde da população (GÓIS<br />

JUNIOR e LOVISOLO, 2003). O Movimento Higienista ou Sanitarista<br />

defendia a saúde e a educação pública no ensino de hábitos higiênicos,<br />

ou seja, defendia a ideia de que um povo educado e saudável é<br />

a principal riqueza de uma nação. Acerca desses projetos civilizatórios<br />

e de nação, bem como da ideia de progresso a eles relacionada, é<br />

indubitável a importância dada à ligação entre educação e ensino de<br />

hábitos saudáveis, relacionada ao higienismo.<br />

Segundo Bagrichevsky et al. (2006), a educação física, desde a modernidade,<br />

sempre esteve afinada com os objetivos do controle biopolítico.<br />

Soares (1994), no seu estudo sobre as raízes da educação física<br />

brasileira, descreve como o movimento higienista europeu influenciou<br />

a constituição de um campo de intervenção no qual ela foi inserida. A<br />

educação física vem abrigando tais intentos, tomando para si os ideais<br />

da exercitação corporal como uma espécie de carro-chefe. Isso pode<br />

ser comprovado, entre outras coisas, pela clara prevalência histórica<br />

de enfoques em pesquisas que exploram os determinantes biológicos<br />

da atividade física, sobretudo quanto às suas consequências para<br />

a saúde no indivíduo ativo e no sedentário, em detrimento de uma<br />

abordagem que considere também os elementos socioculturais.<br />

Tal focalização é uma espécie de legado que a epidemiologia dá à<br />

educação física. Palma e Vilaça (2010) analisaram como a epidemiologia<br />

lida contraditoriamente com índices de sedentarismo para definir<br />

estilos de vida de indivíduos de uma população, produzindo rótulos<br />

baseados em pares de oposição binária questionáveis (sedentário versus<br />

ativo), visando ao constrangimento e à modularização de condutas.<br />

Os autores mostram como os critérios usados num mesmo estudo<br />

epidemiológico podem alterar a caracterização de um indivíduo<br />

como sedentário ou ativo. Assim, demonstram como é questionável<br />

o critério científico de determinação de um estilo de vida tido como<br />

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sedentário, o que apontaria menos para uma constatação de cunho<br />

estritamente científico, e mais para uma estratégia moralizante, que<br />

visa a rotular, culpabilizar e normalizar sujeitos.<br />

No âmbito escolar, as práticas corporais parecem estar sob o domínio<br />

da educação. É essa disciplina que é a responsável por operacionalizar<br />

aquelas práticas com fins, por assim dizer, educacionais.<br />

Nesse sentido, a relação entre elas formaria um dispositivo biopolítico-<br />

-pedagógico, uma estratégia biopolítica de controle da vida a partir<br />

de uma prática pedagógica. Como um dispositivo, tem uma função<br />

histórico-estratégica de responder a uma urgência, sendo capaz de se<br />

remodelar permanentemente a fim de se adaptar à próxima demanda.<br />

Ademais, está inserido em um jogo de poder, sempre ligado também<br />

a uma ou mais configurações de saber que nascem dele, mas que,<br />

por outro lado, são sua condição de emergência. Ou seja, o dispositivo<br />

biopolítico-pedagógico articula um conjunto de saberes, atuando<br />

como uma força nas relações de poder que visam a formar o humano,<br />

orientar sua vida, gerir seu comportamento.<br />

Em relação ao dispositivo formado pela educação física e suas práticas,<br />

como a ginástica, cabe apontar que ela se organizou e organiza<br />

fundamentalmente em torno do campo de saberes biomédicos, criando<br />

uma espécie de casamento (im)perfeito (BRACHT, 2003). A fisiologia,<br />

a biomecânica, a bioquímica etc. são alguns dos pilares mais firmes<br />

da educação física. Segundo Bracht, as biociências do esporte, ao<br />

mesmo tempo em que trouxeram legitimidade social, acarretaram um<br />

comprometimento pedagógico da educação física. O casamento com<br />

os esportes e as biociências vem legitimando social e academicamente<br />

a educação física como um campo de saberes e práticas, mas expropria,<br />

em certa medida, sua autonomia pedagógica. Esse é um ponto<br />

bastante relevante, porque um dos mais caros subsídios legitimadores<br />

das práticas corporais é justamente uma suposta promoção da noção<br />

marcadamente biomédica de saúde. Isso vem criando uma relação de<br />

dependência da educação física em relação aos saberes biomédicos,<br />

uma vez que são eles que, via de regra, vêm ratificando ou não a eficácia<br />

das práticas corporais, dando-lhes ou tirando-lhes legitimidade.<br />

Contudo, tal relação de causa-efeito entre atividade física e saúde,<br />

como argumenta Palma (2000), sequer se sustentaria na prática. Embora<br />

fortemente questionável, tal correlação de causalidade serviu e<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

153


segue servindo de fundamento para que a educação física opere como<br />

um dispositivo biopolítico-pedagógico. Como um instrumento pedagógico<br />

que, entre outras coisas, ensina os sujeitos a se governarem a si<br />

mesmos, a educação física foi um precioso dispositivo de governo da<br />

vida, sobretudo em termos higiênicos.<br />

Aliada aos métodos de previsão de riscos, a educação física fora proposta<br />

como uma forma de combate às doenças. Melo (2001), no seu<br />

estudo sobre o nascimento da ideia de que esporte é saúde, aponta<br />

como o remo foi uma prática desportiva que auxiliou na constituição<br />

de um processo de crescente modernização, urbanização e saneamento<br />

da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, no século XIX,<br />

começa-se a perceber uma nova relação dos habitantes com a cidade,<br />

com a água e o mar incorporados, primeiramente, como práticas<br />

higiênicas e terapêuticas, o que foi fundamental para o vertiginoso<br />

desenvolvimento do remo como o “sport saudável”, uma prática desportiva<br />

plenamente adequada às imagens de progresso e de modernidade.<br />

Tais imagens incluíam, como pano de fundo, uma ideia geral<br />

de progresso da nação que se relacionava com o ideal de indivíduos<br />

saudáveis, física e moralmente (MELO, 2001).<br />

A articulação entre discursos e saberes médicos, política e pedagogia<br />

está delineada em termos de higienismo. Citando o eugenista brasileiro<br />

Renato Kehl, Gondra ressalta o destaque dado à higiene, definida<br />

como a solução dos problemas da humanidade, pois seria capaz de<br />

engrandecê-la e de promover sua felicidade, assim como seu bem-<br />

-estar físico e moral, além da evolução somática e intelectual. Ainda<br />

segundo o eugenista, a higiene é uma “arte de conservar a saúde (...),<br />

prolongando a vida dentro dos limites ótimos de sua duração normal”<br />

(KEHL apud GONDRA, 2003, p. 28). Gondra e Garcia (2004) ressaltam<br />

a investida higienista sobre a melhoria das condições de salubridade<br />

da infância. O tratamento de problemas como a má circulação<br />

do ar, que acarretava um alto índice de contaminação, a temperatura<br />

e a umidade elevadas etc. eram alvos da higienização da sociedade,<br />

especialmente do ambiente escolar.<br />

A infância era vista como capaz de proliferar os ensinamentos e hábitos<br />

educacionais e higiênicos. Acreditava-se que ela disseminaria a<br />

consciência higiênica. Ao passo que a criança era vista como uma espécie<br />

de elemento propagador dos ideais higienistas, a escola era um<br />

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dos instrumentos mais relevantes para tal, o que reforça a afirmação<br />

acerca da estreita vinculação entre educação e higienismo.<br />

De acordo com o médico parisiense Alfred Becquerel, a higiene<br />

deveria ser entendida de um ponto de vista mais geral, ou seja, como<br />

higie ne privada, aquela que diz respeito à saúde individual, e como higiene<br />

pública, que se refere à saúde coletiva (GONDRA, 2003). Como<br />

uma espécie de conglomerado de ciências, uma ciência compósita<br />

(física, química, história natural e patologia), ela deveria se dar a tarefa<br />

de fazer florescer a humanidade nos seus mais diversos aspectos. E é<br />

justamente nesse sentido que, de acordo com Gondra (2003), o higienismo<br />

opera como uma matriz de projetos educativos, o que pode ser<br />

aplicado à inteligibilidade do papel dado à educação física. Conforme<br />

Gondra (2000), o uso pedagógico da higiene pode ser identificado na<br />

medida em que ela aparece como um instrumento de aperfeiçoamento<br />

das forças humanas, bem como de desenvolvimento de uma nação.<br />

É na esteira desse pensamento que Fernando de Azevedo, conhecido<br />

redator e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova<br />

(1932), parece perceber o papel da educação física na escola.<br />

Na tese apresentada para o concurso à vaga de professor da cadeira<br />

de ginástica do Gymnasio Mineiro, em 1915, defendia a necessidade<br />

de fundamentar cientificamente a ginástica escolar, a fim de que<br />

ela fosse devidamente utilizada como prática higienista e moralizante<br />

(GÓIS JUNIOR, 2009). Azevedo era um apologista da colaboração<br />

médico-pedagógica no ambiente escolar, propondo a periódica mensuração<br />

de coeficientes ligados a valências físicas, tais como a robustez<br />

e a força muscular, e a introdução de exames antropométricos. Todos<br />

esses elementos deveriam compor um boletim das medições corporais<br />

do aluno, o qual deveria ser assinado por um professor, pelo reitor e<br />

por um médico inspetor (AZEVEDO, 1915).<br />

Segundo Fernando de Azevedo, a cultura física se destinaria a vários<br />

fins. Um deles é definido como ginástica fisiológica. Esta, por sua vez,<br />

subdivide-se em terapêutica e ortopédica e em profilática ou higiênica.<br />

Para ele, era justamente esta subcategoria que devia viger na<br />

escola. Conforme o seu entendimento, a ginástica escolar subdividia-<br />

-se em educativa e higiênica. Enquanto àquela caberia desenvolver a<br />

atenção, a prontidão no movimento, a coragem e a energia, esta tinha<br />

a função de beneficiar o corpo, corrigindo atitudes defeituosas, des-<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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congestionando o cérebro, ativando a circulação e obtendo amplitude<br />

do peito (AZEVEDO, 1915). Tal caracterização dá os primeiros indícios<br />

de que a ginástica escolar coadunava-se com os objetivos da governamentalidade<br />

biopolítica.<br />

Para Azevedo, é necessária uma colaboração médico-pedagógica,<br />

reservando ao médico um papel importantíssimo na escola. Dentre<br />

suas funções, “ele deve examinar alunos na entrada do colégio, separando<br />

as duas grandes categorias de normais e anormais; deverá<br />

velar tanto sobre os jogos, como sobre a aplicação de ginástica, e,<br />

sobretudo, da ginástica respiratória” (AZEVEDO, 1915, p. 185). Sua<br />

argumentação é arrematada com a afirmação de que “é preciso, por<br />

isso, que os médicos inspetores sejam competentes, sobretudo, em<br />

higiene escolar, e afeitos ao estudo e à solução dos mil problemas que<br />

com ela se relacionam” (1915, p. 185). Sua adesão aos princípios da<br />

higiene e sua aposta em um suposto poder de controle social aliado à<br />

promoção de certa concepção de vida ficam explícitas.<br />

Azevedo alude à prática da ginástica moderna uma importância<br />

pouco reconhecida em sua época. Desde o aspecto propriamente<br />

físico-motor ou fisiológico da eficácia dos movimentos e desenvolvimento<br />

da energia corporal, passando pelo moral (formação do caráter),<br />

pelo higiênico e pelo regenerativo, ele abre um amplo espectro<br />

de benefícios advindos da prática da ginástica escolar.<br />

Quanto ao primeiro, Azevedo (1915) afirma que a ginástica racional<br />

tem de dar ao escolar “a coordenação desejável à produção dos atos<br />

físicos mais difíceis com o mínimo de esforço” (p. 22), tendo por um<br />

dos seus fins “desenvolver o aparelho locomotor” (p. 54). Recorrendo<br />

à cultura grega antiga e à indiana dos yoghi, Azevedo propugna a<br />

estreita interligação entre o aspecto físico-motor e a moral, afirmando<br />

que “não pode existir educação antagonista do corpo e do espírito”<br />

(p. 52). O homem, entendido como um maquinário orgânico solidário,<br />

sofre a repercussão do “enfraquecimento” dessa solidariedade<br />

harmônica ao nível do estado moral geral, ou seja, do pensamento, da<br />

vontade, dos hábitos e da sociabilidade. Para ele, “o desenvolvimento<br />

do indivíduo e a formação de seu caráter dependem tanto do funcionamento<br />

dos órgãos, como da qualidade de sua educação” (p. 53).<br />

Em outro trecho, há a assertiva de que “a inteligência e a moral não<br />

são, pois, menos influenciadas do que o físico pelo exercício e pelo<br />

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funcionamento dos órgãos (...). A atividade não é menos uma necessidade<br />

moral do que um dever físico” (p. 57-8).<br />

Sua perspectiva é impactante, controvertida, pelo menos nos dias<br />

atuais, pois nela se lê, por exemplo, que “o homem são, cultivado fisicamente<br />

e preparado pelas qualidades do caráter, tem por via de regra<br />

uma predisposição inata à moral”. Além de tal relação ser questionável<br />

do ponto de vista empírico, até mesmo especulativamente parece<br />

insustentável – afinal, se é inata, qual seria o papel daquelas formas de<br />

cultivo físico e de caráter na moralidade? Azevedo chega a citar uma<br />

“tendência para o mal” como resultado de um organismo doentio.<br />

Reportando-se novamente à Grécia Antiga, formula uma relação entre<br />

saúde, qualidades morais e coragem como característica de um tipo<br />

ideal de atleta de corpo e espírito.<br />

Azevedo aduz uma série de nomes para corroborar sua visão. De<br />

Schuyten, toma a ideia de que, pela observação, pode-se concluir<br />

que as crianças mais inteligentes têm mais força muscular; de Stanley<br />

Hall, Feré, Ribot e Binet, a visão de que motricidade e psique estão<br />

em íntima ligação; com Robertson, afirma que o homem é a soma dos<br />

seus movimentos; e, para resumir, põe-se ao lado de Waudsley, apostando<br />

na excêntrica tese de que o caráter do homem é simplesmente<br />

a soma de seus hábitos musculares. Em suma, era o perfeito equilíbrio<br />

do humano, o desenvolvimento harmônico e integral dos alunos, que<br />

Azevedo focalizava, tomando como inconteste a imprescindibilidade<br />

da dedicação aos exercícios físicos e ao cuidado com a cultura corporal<br />

como meio de alcançá-lo.<br />

No que tange à noção de higiene, é menos a ginástica que preocupa<br />

Azevedo do que o ambiente no qual é praticada. O ponto seria,<br />

então, fornecer um lugar asseado, as condições materiais propícias<br />

para que todos os benefícios daquela atividade se desenvolvessem<br />

sem empecilhos. Salas arejadas, iluminadas, sob a influência “salutar”<br />

do sol são tidas como condições de possibilidade do êxito, já que<br />

“sem higiene no local e no fato, não há ginástica profícua” (AZEVEDO,<br />

1915, p. 199).<br />

O aspecto da regeneração, no qual há elementos que expressam<br />

juízos de valor impregnados das pretensões de cientificidade das teorias<br />

da regeneração da época, deixa ainda mais patente a relação que<br />

viemos delineando no decurso do artigo, a saber, que o pensamento<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

157


de Azevedo se insere na lógica da governamentalidade biopolítica. Caracterizando<br />

o brasileiro como um povo sem um tipo étnico definido,<br />

uma etnia ternária, “emperrado, raquítico, destinado à absorção ou ao<br />

menos à quase impossibilidade de galgar agora a posição de destaque<br />

no convívio internacional” (1915, p. 203), Azevedo defende incisiva e<br />

amplamente a necessidade de medicalizar a população do Brasil, a fim<br />

de rejuvenescê-la. Assumindo a modernidade como parâmetro, defendendo<br />

que a educação física pela ginástica escolar é um fato precípuo<br />

para regenerar a sociedade brasileira, logo, a nação, afirma que<br />

não há senão seguir estas tendências modernas, em que triunfa (...) o<br />

princípio de fusão de todas as ciências para um perfeito ideal educativo<br />

– o sincretismo, que tem por objeto o homem em formação nas várias<br />

manifestações da sua personalidade somática e moral” (1915, p. 206).<br />

Progredir é tomado por Azevedo como sinônimo de regenerar física<br />

e moralmente os indivíduos, conforme aquelas pretensões governamentais<br />

biopolíticas. Nesse sentido, “a regeneração física é incontestavelmente<br />

um dos maiores fatores do progresso, se não for talvez<br />

este próprio progresso” (1915, p. 205). Pressupondo uma espécie<br />

de degenerescência do povo brasileiro, eleva a ginástica escolar à<br />

condição de instrumento fundamental de regeneração social. O objetivo<br />

da educação física escolar, das práticas corporais escolares,<br />

seria a formação de um novo homem brasileiro. Azevedo é taxativo<br />

em relação a isso:<br />

Uma vez entrada pela educação nos hábitos do país, a prática da ginástica,<br />

sustentada durante uma larga série de gerações, depuraria a<br />

nossa raça de diáteses mórbidas, locupletando-a progressivamente<br />

pela criação incessante de indivíduos robustos (1915, p. 208-9).<br />

Azevedo conclui sua visão prestigiosa da ginástica, afirmando que<br />

“o país que não tem educação física está morto” (1915, p. 209). Em<br />

suma, povo brasileiro forte se forma a partir da limpeza étnica e racial,<br />

de robustecimento físico e moral, o que é operado por meio da<br />

prática da ginástica escolar no âmbito da educação física, com vistas<br />

à medicalização da sociedade brasileira, a fim de regenerar a nação.<br />

158 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011


Tal perspectiva também pode ser vista em outras obras. Azevedo<br />

(1920) defende o melhoramento da raça humana pela democratização<br />

do ensino e da saúde. O exercício físico é tido como uma “maravilhosa<br />

ação mecânica, que corrige e modela a estrutura humana” (p.<br />

22). Azevedo (1933) aposta na educação sanitária como um modo de<br />

inculcar nas crianças hábitos higiênicos, regenerando sujeitos, gerando<br />

uma nova nação. Ao mostrar a importância da saúde, tal educação deveria<br />

criar nos indivíduos, desde a infância, uma vigilância constante,<br />

um cuidado intensivo e extensivo com a vida saudável.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A presente análise demonstrou como Fernando de Azevedo era um<br />

homem do seu tempo, ou seja, estava amplamente coadunado com<br />

alguns dos saberes que graçavam à época, notadamente os biomédicos.<br />

A partir de uma visão biologicista de educação, estava voltado<br />

para um investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando<br />

no vínculo entre biologia, política e moral, em conformidade<br />

com a lógica da governamentalidade biopolítica. Visando à construção<br />

de um novo povo e de uma nova nação, subsidiado pelos valores<br />

higienistas, apostava na educação para a contração de hábitos higiênicos,<br />

considerando as práticas corporais como fundamentais no processo<br />

de regeneração do povo e da nação, o que deveria contar com<br />

a atuação necessária do dispositivo biopolítico-pedagógico.<br />

Sua ideia de que a higiene envolve não só aspectos físicos, mas também<br />

morais, expressa o modelo de medicalização das sociedades modernas,<br />

conforme investigado por Foucault, o que indica sua aposta<br />

numa forma de governo dos outros entendida como uma estratégia de<br />

controle da vida calcada na prevenção. Aliás, como ficou evidenciado,<br />

as práticas corporais tinham um valor profilático, que deveria ser<br />

intensamente usado para fins educacionais.<br />

Assim, a cartografia feita permitiu que o pensamento de Fernando<br />

de Azevedo fosse compreendido em sua inegável inserção na lógica<br />

da governamentalidade biopolítica das populações.<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

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SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 142-161 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

161


NÚMEROS ANTERIORES<br />

EDIÇÃO 11<br />

EDIÇÃO 12<br />

162<br />

O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL<br />

DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL<br />

Anderson Eduardo Silva de Oliveira<br />

MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO<br />

DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA<br />

Andréa F. Costa<br />

Maria das Mercês Navarro Vasconcellos<br />

PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA<br />

Graziela Ansiliero<br />

Rogério Nagamine Costanzi<br />

GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL<br />

Análise comparativa das ações recentes para a reforma<br />

dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos<br />

Rafael Parente<br />

INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE<br />

Em busca de abordagens avaliativas e de efetividade<br />

Regina Bodstein<br />

HOMICÍDIO JUVENIL E SEUS DETERMINANTES SOCIOECONÔMICOS<br />

Uma interpretação econométrica para o Brasil<br />

Lisa Biron<br />

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA E O CONCEITO DE SOCIEDADE<br />

CIVIL EM GRAMSCI<br />

Estratégias para o enfrentamento da crise socioambiental<br />

Maria Jaqueline Girão Soares de Lima<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011


EDIÇÃO 13<br />

UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO RECENTE DA TAXA DE DESEMPREGO<br />

SEGUNDO DIFERENTES CLASSIFICAÇÕES<br />

Marina Ferreira Fortes Águas<br />

ÁREAS PROTEGIDAS E INCLUSÃO SOCIAL<br />

Uma equação possível em políticas públicas de<br />

proteção da natureza no Brasil<br />

Marta de Azevedo Irving<br />

DESENVOLVIMENTO INFANTIL<br />

Uma análise de eficiência<br />

Vívian Vicente de Almeida<br />

BIBLIOTECA E CIDADANIA<br />

Ana Ligia Silva Medeiros<br />

ESCOLA E SAMBA: SILÊNCIO DA BATUCADA?<br />

Augusto César Gonçalves e Lima<br />

O BRASIL, A POBREZA E O SÉCULO XXI<br />

Celia Lessa Kerstenetzky<br />

O MERCADO DE TRABALHO METROPOLITANO BRASILEIRO EM 2009<br />

Lauro Ramos<br />

LINGUAGEM, PENSAMENTO E MUNDO<br />

Ludovic Soutif<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011<br />

163


EDIÇÃO 14<br />

EDIÇÃO 15<br />

164<br />

EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO:<br />

UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES<br />

Carlos Frederico B. Loureiro<br />

A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS<br />

Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de S. Valle<br />

A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS<br />

TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937 – 1996)<br />

Ieda Magri<br />

DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES<br />

TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010<br />

Larissa Morais<br />

OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’<br />

Paulo Cesar Duque-Estrada<br />

A DESORDEM DO MUNDO<br />

André Bueno<br />

ESCUTA, ARTE E SOCIEDADE A PARTIR DO MÚSICO ENFURECIDO<br />

Daniel Belquer<br />

A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRI-<br />

ÇÕES AO INGRESSO<br />

Márcia Marques de Carvalho<br />

APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO<br />

Pedro Demo<br />

A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO:<br />

DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO<br />

Sylvia Moretzsohn<br />

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011


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