Para um pensamento do sul : diálogos com Edgar Morin - BVS-Psi
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ásia Menor, para realizar <strong>um</strong>a última absorção, lançou-se à conquista da<br />
pequena cidade de Atenas. Apesar de todas as probabilidades em contrá-<br />
rio, o pequeno exército ateniense, <strong>com</strong> a ajuda <strong>do</strong>s esparciatas, consegue<br />
resistir em Maratona e repelir o enorme exército <strong>do</strong>s persas. O império<br />
persa atacou Atenas <strong>um</strong>a segunda vez e, dessa vez, conquista, incendeia<br />
e saqueia toda a cidade: tu<strong>do</strong> parece perdi<strong>do</strong>. Mas a frota grega preparou<br />
<strong>um</strong>a armadilha no golfo de Salamina para a enorme frota persa, que viu<br />
seus navios destruí<strong>do</strong>s, <strong>um</strong> após outro, ao passar pelo estreito. Depois de<br />
Salamina, Atenas não sofreu mais o perigo persa e alg<strong>um</strong>as décadas mais<br />
tarde nasciam a democracia e a filosofia. Esse triunfo <strong>do</strong> improvável deu,<br />
portanto, lugar à nossa cultura.<br />
Podemos hoje restaurar <strong>um</strong>a esperança no improvável. Essa esperança<br />
não tem nenh<strong>um</strong>a certeza científica, porque a dita certeza científica<br />
<strong>do</strong> progresso foi atualmente abolida. Trata-se de <strong>um</strong>a esperança que não<br />
obedece a nenh<strong>um</strong>a promessa histórica, depois <strong>do</strong> colapso de todas as<br />
promessas de <strong>um</strong> futuro melhor, entre eles o radiante futuro soviético. Estamos<br />
falan<strong>do</strong> de <strong>um</strong>a esperança que não é <strong>um</strong>a esperança qualquer, mas<br />
a esperança. Podemos fundá-la? Em primeiro lugar, podemos fundá-la na<br />
ideia da crise, porque o que é característico de <strong>um</strong>a crise, é que ela contém<br />
perigos enormes de regressão e destruição, mas também encerra chances<br />
de imaginação criativa, de diagnóstico pertinente, de elaboração de <strong>um</strong><br />
caminho para a saída. Por que haveria <strong>um</strong> despertar criativo? Porque em<br />
todas as sociedades, <strong>com</strong>o em to<strong>do</strong>s os seres h<strong>um</strong>anos, existem capacidades<br />
criativas a<strong>do</strong>rmecidas. <strong>Para</strong> explicitar meu arg<strong>um</strong>ento, uso o exemplo<br />
das células-tronco que <strong>do</strong>rmem no adulto, em nossa coluna vertebral, em<br />
nosso cérebro. Como são polivalentes, são porta<strong>do</strong>ras de capacidades regenerativas<br />
inéditas que permitem fabricar o fíga<strong>do</strong>, o baço, o cérebro, a<br />
pele. Mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde, a biologia e a medicina vão despertá-las...<br />
Tomo o exemplo das células-tronco <strong>com</strong>o metáfora para dizer que capacidades<br />
gera<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>rmem nas sociedades e despertam em épocas de crise.<br />
Além <strong>do</strong> mais, em toda sociedade rígida, normalizada, em que as mentes são<br />
quase todas <strong>do</strong>mesticadas, elas existem e podem despertar nos indivíduos<br />
desviantes: poetas, escritores, músicos, descobri<strong>do</strong>res, bricoleurs. 1 Essas capacidades<br />
criativas podem, então, despertar <strong>com</strong> a crise e <strong>com</strong> o perigo.<br />
Existe, igualmente, a aspiração à harmonia, que permeia toda a história<br />
da h<strong>um</strong>anidade. Submeti<strong>do</strong>s, porém, à organização social, às <strong>com</strong>partimentalizações,<br />
às hierarquias, salvamos cantinhos, pedacinhos de har-<br />
1. Termo utiliza<strong>do</strong> para definir cria<strong>do</strong>res que não têm <strong>um</strong> projeto defini<strong>do</strong> para a produção de objetos em geral, fazen<strong>do</strong><br />
uso de resíduos culturais acaba<strong>do</strong>s. (N.T.)