Revista Palavra 2012 - Sesc
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com sete pares de asas<br />
e sete espadas de prata<br />
Como a música, a poesia, que tem a música em sua<br />
gênese, sempre pede para ser lembrada, ou melhor,<br />
não pede, não precisa pedir: a poesia vem, visita<br />
o leitor que não deseja perder o poeta, vendo-o de<br />
novo em lugares que frequentava, nas pessoas que<br />
o cercavam, nos amigos que o amavam.<br />
Por isso nunca deixei de ouvir os sons que o anunciam,<br />
e meus sentidos se abrem em uma festa de música,<br />
cores e palavras, fazendo-me voltar ao poeta, este, que<br />
não morrerá nunca, devido ao encanto de suas palavras.<br />
Assim, seu avô não morreu nunca, para quem leu<br />
seus rabiscos nas paredes da casa-escrita, da escrita<br />
do livro do neto. Esse avô grafiteiro fez suas marcas em<br />
inscrições, escavações nas paredes, documentarista<br />
das histórias da cidade. Linhas escritas puxadas pelo<br />
neto e guardadas como herança poética, mais rica do<br />
que todos os bens e riquezas materiais.<br />
Será que poesia se herda? Não sei, só sei que os ca-<br />
minhos poéticos são diferentes dos mortais comuns,<br />
como os nossos. Entretanto somos leitores, atravessados<br />
pelas veredas escritas, que nos escavam, que<br />
nos riscam e rabiscam, deixando-nos para sempre<br />
habitados pelas linhas, pelos fios que se abraçam<br />
e entrelaçam e vencem o tempo. Disso Bartolomeu<br />
sabia. E ensinava, como Ana, como o avô, como o<br />
narrador, mestre do menino perguntador, que queria<br />
saber sobre a substância fugidia do tempo e que<br />
desejou captá-lo, até saber que o carretel da linha,<br />
do fio, “é um fio inteiro, fio frágil, sem começo ou<br />
fim. Não tem pontas. Impossível encontrar o início<br />
do tempo”.<br />
Ficamos sabendo que o tempo, e mais ainda o tem-<br />
po poético, amarra tudo, pois “ele conhece as for-<br />
migas, as lesmas, as pedras. Sabe do Ocidente e<br />
do Oriente, do Norte e do Sul”. E sabe dos poetas<br />
e desse poeta-menino que cresceu, mas não perdeu<br />
a infância, sempre revisitada na casa escrita do avô,<br />
que lê, com Maria, O livro de Ana. Lê e relê, até<br />
reescrevê-lo, com suas palavras, tornando a escrita<br />
sua escrita, pois aos poetas, nem sempre as palavras<br />
vêm facilmente e o árduo ofício da escrita se<br />
faz a duras penas. E as palavras ficam, e de novo<br />
ecoam em outros meninos que serão ou já nasceram<br />
poetas, aprendendo a captá-las, no tempo da escrita,<br />
para fazer com que a beleza não seja tão fugidia<br />
como o tempo comum que nos assola. A beleza,<br />
sabemos com Bartolomeu, tem a substância do<br />
tempo, e, em seu fulgor, deixa-se capturar, mesmo<br />
que seja em um átimo, por esses sujeitos privilegiados<br />
que são os poetas, guardadores de verdades, às<br />
vezes perigosas, que ameaçam os vãos saberes de<br />
cada tempo.<br />
Vou lembrar-me sempre dele, sentado, de um jeito<br />
assim só seu, quando conversava e ouvia seus leitores,<br />
amigos e amigos-leitores. Assim como sua também<br />
amiga e leitora Sandra Bianchi, artista plástica<br />
que o representou em uma aquarela pouco antes<br />
da morte do poeta. Sentado, abraçando as pernas,<br />
com seu meio sorriso, sua postura de quem pacificamente<br />
olha o mundo, ele, de forma contemplativa,<br />
parece lançar seu olhar para longe.<br />
Ruth Silviano Brandão é escritora, com romances, contos e outras obras publicadas. Formada em Letras,<br />
fez pós-doutorado em Literatura Comparada na Universidade de Paris XIII. Atualmente, leciona como professora<br />
visitante sênior na UFOP.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • cinquenta e um