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Revista Palavra 2012 - Sesc

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falar, sem compromisso, em conversações em que<br />

pude escutá-lo, considerando-me sua amiga, já<br />

que tive a alegria de ser incluída em seu círculo de<br />

escritores fraternos que dividiam a poesia, livremente<br />

deixando-a falar, fora do âmbito universitário,<br />

onde me formei e, como Ana, ensinei.<br />

Quando me aposentei, desejei outros contatos, con-<br />

tatos diferentes daqueles a que me acostumei por<br />

ofício e, assim, conheci melhor o escritor, este que<br />

eu já conhecia e amava, mas de maneira diferente.<br />

E foi tudo mesmo uma festa, não de alarido, mas,<br />

muitas vezes, uma festa de silêncio, pois a poesia<br />

não precisa de muito barulho, este que o convívio<br />

social confunde com alegria. A festa de que falo me<br />

lembrou aquela a que o poeta se refere no início de<br />

O livro de Ana: “jamais li O livro de Ana, mas fico<br />

atento ao mundo e sua festa”.<br />

Minha festa foi a de me chegar aos amigos de<br />

Bartolomeu, aqueles mais íntimos ou aqueles menos<br />

íntimos, que se reuniam em várias ocasiões<br />

para uma festa poética, que acontecia, algumas<br />

vezes, na porta da Livraria Quixote; outras vezes,<br />

em outros lugares, em outras casas escritas ou<br />

pintadas.<br />

No fim de O livro de Ana, na nota sobre o autor,<br />

pode-se ler: “Bartolomeu só faz o que gosta, não<br />

cumpre compromissos sociais nem tarefas que não<br />

lhe pareçam substanciais.” A roda dos amigos de<br />

Bartolomeu não se reunia em tediosos compromissos<br />

sociais, pois esta sociedade era constituída pela<br />

causa da poesia. No entanto, não se falava apenas<br />

de poesia. Havia também conversas com fio partido,<br />

fios que se entrelaçavam e faziam outros fios, outros<br />

tecidos meio esburacados, com ruídos, música, silêncios.<br />

Em um especial diálogo que não queríamos<br />

que terminasse.<br />

Retomo o Tempo de voo e, novamente, encanto-me<br />

com as ilustrações do artista espanhol Alfonso<br />

Ruano, que desenha um tempo surrealista, com to-<br />

ques de Dalí e Gaudí, em que os olhos têm rodas e<br />

pássaros, ninhos, asas de borboletas, carretéis que<br />

se enrolam, desenrolam, envolvendo homens e pequenas<br />

coisas, que não são sem importância, pois<br />

criam um espaço-tempo livre e solto de nossas exigências<br />

lógicas de ordem, que às vezes nos amordaçam<br />

e nos prendem em armaduras fixas.<br />

Neste livro, o tempo é personagem que desorganiza e<br />

despenteia o mundo. É mestre da vida, não no sentido<br />

histórico que pretende nos dar lições de bom-senso<br />

e previsibilidade. É o tempo da banda de Moebius,<br />

É curiosa a história dessa biblioteca<br />

que, em grande medida, deve a<br />

sua fundação a um dos maiores<br />

conquistadores da Antiguidade.<br />

do dentro e do fora, do oito deitado ou do infinito. O<br />

tempo do aberto que não se fecha na completude que<br />

ansiamos, sem saber que ela nos sufoca e impede o<br />

lúdico que está na poesia, que está na voz do narrador.<br />

Pai? avô? Por parte de pai, por parte de pai.<br />

Ou no avô de olho de vidro? Não importa, pois ficção<br />

e fatos se enovelam e o leitor não pode e não<br />

quer decidir o que é verdade ou ficção. Sabemos,<br />

entretanto, com certeza, o que a ficção nos dá:<br />

Ao ficar com meu avô eu me sentia apenas<br />

um menino em seus olhos. Se alguém nos<br />

olha, nos multiplica. Passamos a ser dois.<br />

Somo duas meninas dos olhos. Mas no olhar<br />

de meu avô eu só podia ser um. E ser dois<br />

é ter um companheiro para aventurar, outro<br />

irmão para as errâncias. Assim, é sempre<br />

possível jogar nossa culpa no outro. E ele desculpa<br />

sempre. Há sempre um outro escondido<br />

dentro de nós que nos vigia em silêncio.<br />

Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • quarenta e nove

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