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Revista Palavra 2012 - Sesc

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a claridade do já decifrado. Escrever é<br />

dividir-se.<br />

Ler é somar-se, afirma o poeta; escrever é dividir-se.<br />

Entretanto, interferindo em sua matemática, acredito<br />

que escrever também é somar-se, pois, transitando por<br />

outras escritas, ficamos ricos de ver o mundo. Escrever<br />

e ler são atos tão entrelaçados que acabam por não se<br />

separarem, já ensinava Roland Barthes, com outras<br />

palavras. Quem assim se volta para o mundo nem precisa<br />

conversar muito, como o próprio Bartolomeu, que<br />

era silencioso. Mas não nos iludamos, seu silêncio gerava<br />

palavras que se multiplicavam em poesia e em uma<br />

sabedoria de vida que não o paralisou, mas o fez criar<br />

uma terceira história. Toda história, toda criação é uma<br />

terceira via, uma terceira margem do sentido,<br />

uma saída para nossa humanidade, cuja fragilidade<br />

ele conhecia:<br />

Acredito que ler é configurar uma terceira<br />

história, construída parceiramente a partir do<br />

impulso<br />

movedor contido na fragilidade humana,<br />

quando dela se toma posse. A fragilidade que<br />

funda o homem é<br />

a mesma que o inaugura, mas só a palavra<br />

anuncia.<br />

(Trecho de manuscrito cedido pelo autor)<br />

Tomar posse da fragilidade é conviver com ela, é fazer<br />

dela uma força criativa, colocá-la em movimento<br />

para estabelecer uma fundação: a fundação ou<br />

constituição do homem, como sujeito de seu desejo,<br />

que vai anunciá-lo pela escrita. A força da palavra já<br />

está na memória do menino, que viu o avô escrevendo<br />

nas paredes de sua casa, fato contado no livro Por<br />

parte de pai (QUEIRÓS, 1995, p. 10-11). “Todo<br />

acontecimento da cidade, da casa, da casa do vizinho,<br />

meu avô escrevia nas paredes. Quem casou, morreu,<br />

fugiu, caiu, traiu, comprou, juntou, chegou, partiu.<br />

Coisas simples como a agulha perdida no buraco do<br />

assoalho, ele escrevia.”<br />

A escrita do avô lembra aquelas escritas antigas<br />

de listas, que adicionam pequenos fatos e que são<br />

registros da vida, formas de marcar, manter a memória<br />

viva, para não deixar que a vida morra, que<br />

o esquecimento cubra, como pó, os traços de cada<br />

sujeito, de cada experiência. Dessa maneira, o avô<br />

Ler é somar-se, afirma o poeta;<br />

escrever é dividir-se. Entretanto,<br />

interferindo em sua matemática,<br />

acredito que escrever também é<br />

somar-se, pois, transitando<br />

por outras escritas, ficamos<br />

ricos de ver o mundo.<br />

ensinava, deixava uma herança, uma lembrança do<br />

vivido, pois sabia que a vida não quer morrer. O menino<br />

Bartolomeu ensinou ao poeta Bartolomeu, que<br />

se alimentou dessas letras inscritas que se juntaram<br />

e se escreveram em seu coração.<br />

Escrever é inscrever-se, que seja em papéis, mu-<br />

ros, pinturas, paredes de uma casa, da casa de<br />

uma família, o que a torna uma casa escrita, uma<br />

casa-memória, uma casa depoimento daquilo que<br />

viveram seus membros e que ficou na alma da<br />

criança já escritor, já poeta, esse neto das letras,<br />

que foi afinando sua escrita, que nasceu cedo, que<br />

nasceu com ele, mas também que se construiu em<br />

parte com o pai, Por parte de pai.<br />

Assim, de novo, aprendemos que ler e escrever<br />

se enlaçam, se abraçam, se usamos a imagem do<br />

poeta, este que nos trouxe o livro de Ana, mesmo<br />

sem o ter lido, como confessa na abertura de seu<br />

texto: “Jamais li o livro de Ana/mas se fico atento<br />

ao mundo e sua festa,/posso adivinhar a escritura.”<br />

Adivinhar a escritura, ir atrás do sentido, é dar sentido,<br />

é reescrever o livro de Ana, sem pensar no que<br />

Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • quarenta e sete

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